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LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS
MULTA APLICÁVEL
Sumário
1. Litiga de má-fé a parte que interpõe, pela terceira vez, recurso de revisão de Acórdão da Relação, transitado em julgado, invocando factos falsos – v.g., que o Acórdão não havia conhecido os argumentos jurídicos que apresentou – e revelando ainda um acirramento litigioso despropositado e desrespeito pelas decisões judiciais desfavoráveis. 2. A multa por litigância de má fé tem carácter sancionatório e deve constituir um sacrifício suficiente para o seu autor, como forma de prevenção geral e especial. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Sumário: (…)
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Em Acórdão desta Relação de Évora de 07.11.2024, que indeferiu liminarmente o recurso de revisão apresentado por (…), foi determinado o exercício do direito de contraditório quanto à litigância de má-fé do Recorrente, ao alterar a verdade dos factos, deduzir pretensão cuja falta de fundamento não ignorava e fazer uso manifestamente reprovável dos meios processuais.
No prazo concedido, o Recorrente veio aos autos, afirmando que “sempre teve a consciência de ter razão, salvo o devido respeito pelas decisões judiciais e seus fundamentos”, e que “há um facto continuado produtor de danos, em que o lesado tomou conhecimento da produção efectiva aquando da penhora da pensão. Essa penhora da pensão será o novo dano a que se refere o Acórdão supra referido, de onde se conclui que o espírito da lei e da jurisprudência é o de protelar no tempo o início da contagem do prazo ao invés de antecipá-lo, por forma a não prejudicar o lesado.”
Em conferência, os Juízes do Colectivo procedem agora à apreciação da litigância de má fé.
Como consta do relatório do Acórdão de 07.11.2024, já é a terceira vez que o Recorrente interpõe recurso de revisão do Acórdão desta Relação de Évora de 13.01.2022, transitado em julgado (isto depois de interposta revista, não admitida nesta Relação, em despacho depois reclamado para o Supremo Tribunal de Justiça, que manteve a não admissão da revista). Vejamos os factos documentados nos autos, tal como foram descritos no Acórdão de 07.11.2024: No processo principal:
1. No processo principal, o aqui Requerente demandou o Estado Português, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, no valor de € 1.500,00, e de outra por danos não patrimoniais, no valor de € 29.000,00;
2. A causa de pedir respeitava a anterior processo, no qual lhe foi indeferido o pedido de apoio judiciário que ali formulara (em decisão confirmada por Acórdão desta Relação de Évora de 14.12.1999), tendo em consequência sido penhorada parte da sua pensão; argumentou que a decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário era ilegítima e infundada;
3. A causa foi julgada improcedente por sentença de 08.06.2021, confirmada pelo Acórdão desta Relação de Évora de 13.01.2022;
4. O aqui Requerente interpôs revista desse Acórdão, que o Relator não admitiu;
5. Interposta reclamação pelo aqui Requerente, o Supremo Tribunal de Justiça, por decisão singular de 11.05.2022, manteve o despacho que não admitiu a revista, decisão esta que transitou em julgado; Apenso B – primeiro pedido de revisão:
6. Em 19.09.2022, o aqui Requerente pediu a revisão do mencionado Acórdão desta Relação de Évora de 13.01.2022, invocando para o efeito um novo documento, que era um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2022 (proferido no apenso A, que respeitava ao indeferimento de meios de prova requeridos no processo principal);
7. Em 28.11.2022, o relator nesta Relação de Évora indeferiu liminarmente o pedido;
8. O aqui Requerente reclamou para a conferência e, por Acórdão de 25.05.2023, esta Relação de Évora manteve a decisão de indeferimento liminar;
9. O aqui Requerente interpôs revista, à qual foi negado provimento, por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.06.2024; Apenso C – segundo pedido de revisão
10. Em 17.02.2024, o aqui Requerente pediu de novo a revisão do citado Acórdão desta Relação de Évora de 13.01.2022, invocando para o efeito um novo documento, que era uma listagem de penhoras efectuadas na sua pensão, entre Dezembro de 2004 e Novembro de 2005, no valor global de € 1.500,00;
11. O relator, mais uma vez, indeferiu liminarmente o pedido;
12. De novo, o aqui Requerente reclamou para a conferência que, por Acórdão de 23.05.2024, manteve essa decisão.
Aplicando o Direito.
O DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, que introduziu a redacção do artigo 456.º do anterior Código de Processo Civil que transitou para o actual artigo 542.º, afirmava quanto ao elemento subjectivo da litigância de má fé: «Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos.»
Em consequência da Reforma Processual de 1995/96, passaram a ser punidas não só as condutas processuais dolosas mas também as gravemente negligentes ou fundadas em erro grosseiro. Comentando o artigo 456.º do anterior Código de Processo Civil, Lopes do Rego[1] escreveu o seguinte: “o regime instituído traduz substancial ampliação do dever de boa-fé processual, alargando o tipo de comportamentos que podem integrar a má-fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva, como na objectiva.”
No que concerne à alínea a) do n.º 2 do artigo 542.º, não basta uma simples desconformidade da versão da parte com a realidade, tornando-se necessário que litigue sabendo e querendo prevalecer-se de algo que sabe ser falso, a que não tem direito.
Mas esse comportamento não se confunde com uma mera ausência de prova, nem com a uma lide temerária; vai para além disto em gravidade e censurabilidade. A defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância de má fé, tornando-se necessário que se demonstre que a parte não observou os deveres processuais de probidade, de cooperação e de boa fé.[2]
A exigência legal de demonstração de litigância com dolo ou negligência grave, pressupõe a consciência de que se não tem razão, sendo necessário que a parte tenha agido com intenção maliciosa, e não apenas com leviandade ou imprudência. Exige-se, pois, que a parte tenha agido sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.
Daí que se possa afirmar que litiga com má fé a parte que alega uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conhecia, o que significa ter alterado a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente pretensão ou oposição, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.[3]
Expostos os princípios gerais, no seu requerimento de revisão, o terceiro, desta vez fundado no artigo 696.º, n.º 2, alínea h), do Código de Processo Civil, o Recorrente alegou que “as supra referidas decisões posteriores proferidas nos presentes autos não se pronunciaram sobre o mérito da questão alegado pelo Recorrente ao ter sido considerado o seu direito prescrito e não foram analisados por nenhuma instância os fundamentos com base nos quais contraditou tal prescrição”, dizendo ainda que “nunca foi analisada e julgada a responsabilidade do Estado na decisão tomada que procede a uma contagem do prazo de prescrição que o Recorrente impugnou desde o início sem que nunca os seus argumentos tivessem sido apreciados” – esta frase, foi aliás, repetida, nas páginas 5 e 9 do requerimento de revisão.
Como já aqui se assinalou, esta argumentação é falsa – a questão da contagem do prazo de prescrição foi analisada no processo principal, quer na sentença de 08.06.2021, quer no Acórdão desta Relação de Évora de 13.01.2022.
Deste Acórdão, cita-se, por paradigmática, a seguinte passagem:
“(…) tanto os factos putativamente ilícitos e geradores dos danos cuja reparação é pedida pelo Autor, como os próprios danos alegados pelo mesmo, consolidaram-se ou concretizaram-se definitivamente com o trânsito em julgado de cada uma das referidas decisões acima descritas. Pegando no caso do despacho de indeferimento do pedido de concessão de apoio judiciário no âmbito do processo de instrução n.º 17/99.6TBVRS: este consumou-se com o seu trânsito em julgado, que ocorreu em 14.12.1999 e os danos alegados pelo Autor por este causados – impossibilidade de requerer a abertura de instrução e prosseguir com o processo penal – consumaram-se com a sua notificação ao Autor em 26.04.1999. Ora, é nesta data que o Autor tem conhecimento dos elementos fácticos do seu direito á indemnização, pelo que foi nessa altura que se iniciou o prazo de três anos de prescrição desse direito, o qual terminou em 26.04.2002.”
E daqui, quer a primeira instância, quer a Relação, no seu Acórdão de 13.01.2022, concluíram que o prazo de prescrição em sede de responsabilidade civil era de três anos, como previsto no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, afirmaram que o Recorrente tinha conhecimento do eventual acto danoso há mais de três anos, por referência à data em que foi proposta a acção de indemnização contra o Estado Português, e retiraram as consequências jurídicas da procedência dessa excepção peremptória.
Este comportamento do Recorrente afronta os deveres processuais de probidade, de cooperação e de boa fé, porquanto alega uma realidade oposta àquela que necessariamente conhecia, pretendendo alterar a verdade dos factos, a fim de deduzir intencionalmente pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.
E não se argumente com a tese de o Recorrente poder litigar ad nauseum, porque “sempre teve a consciência de ter razão”.
Salvo seja, o Recorrente litiga num processo e tal implica deveres de cuidado, de probidade, de verdade e de cooperação.
É livre de pensar que tem razão, mas o Recorrente não é juiz em causa própria.
A função jurisdicional assiste aos tribunais, que administram a Justiça em nome do Povo, dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados – artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Como tal, esta Relação de Évora, maxime no seu Acórdão de 13.01.2022, tinha a devida autoridade para apreciar o litígio e afirmar, perante o Recorrente, que o direito que invocava não procedia.
Pode o Recorrente discordar, mas a função de julgamento do pleito foi exercida pelos Tribunais, conhecendo expressamente os argumentos jurídicos invocados pelo Recorrente – e não lhes concedendo provimento, como podiam fazê-lo, de forma imparcial e desapaixonada.
Os autos revelam, por outro lado, um acirramento litigioso absolutamente despropositado.
O Recorrente insiste, insiste e volta a insistir.
Parece que, para o Recorrente, de nada vale os tribunais julgarem o pleito, apresentando os argumentos pelos quais a sua pretensão não pode proceder. Pelos vistos, trabalho inútil, porque o Recorrente considera ter “a consciência de ter razão” – o que implica, parece, que ele é o detentor da razão, os tribunais não a poderão ter, a não ser que julguem a causa conforme for a vontade do Recorrente.
Acresce que o direito, com consagração constitucional, de acesso ao direito não é incompatível com a imposição de deveres processuais de cuidado, de probidade, de verdade e de cooperação, porquanto tais deveres são também condição de eficaz cumprimento do Direito.
Enfim, tendo o Recorrente alegado uma realidade que contrasta flagrantemente com a realidade expressa nos próprios autos, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, e fazendo do processo um uso manifestamente reprovável, violou o disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b) e d), do Código de Processo Civil, pelo que será condenado como litigante de má fé.
A multa prevista naquela norma tem carácter sancionatório e deve constituir um sacrifício suficiente para o seu autor, como forma de prevenção geral e especial.
E visto o acentuado grau de culpa revelado pelo Recorrente (doloso, com acirramento litigioso despropositado, desrespeito pelas decisões judiciais desfavoráveis e invocação consciente de factos falsos), ainda por cima em sede de recurso de revisão perante Tribunal Superior, entendemos fixar a multa em 10 UC.
Decisão. Condena-se o Recorrente, como litigante de má fé, em multa de 10 UC.
Évora, 30 de Janeiro de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Rosa Barroso
Cristina Dá Mesquita
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[1] In Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. I.
[2] Neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.09.2012, proferido no Proc. n.º 2326/11.09TBLLE.E1.S1 e publicado em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, vide também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.02.2015 (Proc. n.º 1120/11.1TBPFR.P1.S1), publicado no mesmo local.