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REQUERIMENTO PARA ABERTURA DE INSTRUÇÃO (RAI)
ELEMENTO SUBJETIVO DO CRIME
REJEIÇÃO DO RAI
Sumário
I - No requerimento para abertura de instrução (RAI), apresentado pela assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, tem de ser deduzida uma acusação que observe os requisitos da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis previstos no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c), aplicável ex vi do artigo 287º, n.º 2, ambos do CPP. II - Não constando do RAI uma descrição de factos concretos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do crime pelo qual se pretende a pronúncia deve o meso ser rejeitado por ser legalmente inadmissível.
(Da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Processo 6450/23.7T9PRT.P1
Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal do Porto – J1
Acordam em conferência os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO I.1. Por despacho proferido a 26 de Junho de 2024 o Juízo de Instrução Criminal do Porto rejeitou o requerimento de abertura de instrução (doravante RAI) apresentado pela assistente AA que deduziu acusação alternativacontra BB, pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º do Código Penal (doravante CP) julgando-o legalmente inadmissível por não preencher os requisitos legais previstos n.º 3 do artigo 283º, ex vi do artigo 287º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal (doravante CPP).
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I.2. Recurso da decisão A assistente AA recorreu pedindo que se revogue o despacho recorrido e que seja admitida a abertura de instrução a fim de se pronunciar o arguido BB como autor material de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º do CP, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral):
“1. Salvo o devido respeito por opinião em contrária, o douto despacho sob censura deve ser revogado por violar a lei substantiva e adjectiva.
2. Ditou o Despacho que o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pela aqui Recorrente/Assistente fosse, nos termos do artigo 287.° n.°3 in fine do CPP, rejeitado por inadmissibilidade legal.
3. Com este Recurso, a Recorrente/Assistente pretende rejeitar a interpretação que, ab initio, o Ministério Público fez dos factos que levaram a Assistente a imputar o crime de ameaça ao Arguido, arquivando o procedimento criminal nessa parte, e que, por certamente lapso, o Juízo de Instrução secundou, interpretando incorrectamente o Requerimento de Instrução.
4. Decorrido o Inquérito Criminal dentro da normalidade, onde o Arguido e a Assistente, bem como as testemunhas, foram ouvidos e prestaram as devidas declarações, foi a aqui Recorrente/Assistente surpreendida por um Despacho de Arquivamento do Ministério Público em relação ao crime de ameaça (artigo 277.° do CPP) e onde convida a deduzir Acusação Particular quanto ao crime de injúria, dada a sua natureza particular.
5. A decisão de arquivamento dos autos relativamente ao crie de ameaça do Ministério Público deveu-se ao não preenchimento, vertidos os factos, dos elementos do tipo legal desse crime – motivo semelhante à decisão de rejeição da abertura de instrução por parte do Tribunal a quo.
6. Lido o despacho de arquivamento na sua íntegra, destaca-se a conclusão de que o Ministério Público não soube distinguir os dois momentos que, no entender da Recorrente/Assistente, constituem a prática do crime de ameaça e de injúria, isto é, o Ministério Público erradamente interpretou a Queixa-Crime feita por esta como tendo sido feita na finalidade de imputar, pelas injúrias proferidas pelo Arguido, de um crime de ameaça e de um crime de injúria - o que não corresponde à realidade.
7. A Assistente pretende ver imputado ao Arguidodois crimes, sim, mas originários de factos diferentes: o primeiro, o crime de ameaça, fruto da aproximação brusca, repentina e agressiva do Arguido a ela e o segundo, o crime de injúrias, originado pelos impropérios humilhantes que a ela dirigiu.
8. É na sequência destas contradições que a aqui Recorrente/Assistente deitou mão do regime processual previsto nos artigos 286.° e seguintes do CPP - atendendo ao facto de que o Ministério Público, à falta de melhor palavra, confundiu os factos imputados ao arguido como se todos eles, incluindo os insultos, consubstanciassem um crime de ameaça e um crime de injúria. Quando, na verdade, uns imputavam um crime de ameaça e outros imputavam um crime de injúria.
9. Dita o artigo 287.° n.°2 e o 283.° n.°3 b) e d) do CPP que além do requisito de conter as razões de facto e direito do requerente da discordância relativamente à não acusação, à indicação das provas a produzir na instrução, tratando-se de requerimento do assistente, àqueles acrescenta-se a obrigatoriedade de narrar os factos e a indicação das disposições legais aplicáveis, dada a parte final do artigo em causa e a remissão que nela opera.
10. Ou seja, deverá conter: (1) Razões de facto e direito do requerente da discordância relativamente à não acusação; (2) Indicação de produção de provas; (3) Disposições legais aplicáveis; (4) Narração dos factos que fundamentam a aplicação da pena, i.é, elementos subjectivos e objectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido; E (5) Tudo isto sem estar sujeito "a formalidades especiais”, mas parecendo-se, em forma e conteúdo, em tudo como uma Acusação do Ministério Público.
11. Analisado o Requerimento de Abertura de Instrução, na opinião da Recorrente/Assistente, constata-se que o mesmo contém todos os elementos acima elencados.
12. Quanto às razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, como já elaborado acima, a Assistente acredita que o Ministério Público, conclusos os autos de Inquérito, entendeu ser da pretensão daquela a subsunção do Arguido à prática de dois crimes, de ameaça e de injúria, com base nos mesmos factos. Em consequência, no Requerimento de Abertura de Instrução, a Assistente elencou, de forma clara, e novamente, os factos que sucederam no dia 23 de Dezembro de 2022 e expôs as contradições latentes na fundamentação do Ministério Público na sua apreciação da cronologia, o decorrer e a localização do sucedido.
13. Quanto à indicação de produção de provas, a Assistente requereu, no âmbito dos artigos 290.° e seguintes do CPP, a produção de prova documental, que a Assistente e o Arguido fossem ouvidos, bem como a Testemunha CC, que presenciou, na sua chegada ao local, o Arguido ameaçadoramente de pé junto à Assistente.
14. Quanto à indicação das normas aplicáveis, para além das normas mencionadas e que fundamentavam a prática daquele acto processual, por simplicidade do caso, foi indicado o arguido como sendo o autor material do crime de ameaça, previsto e puído pelo artigo 153.º do CP.
15. Na medida do possível, a forma e o conteúdo do Requerimento de Abertura de instrução assemelhou-se a uma Acusação do Ministério Público.
16. E, verdade seja dita, o Juiz de Instrução Criminal em nenhum momento colocou o cumprimento destes requisitos em causa - apenas fazendo referência à falta de elementos subjectivos do tipo legal de crime imputado.
17. O tipo subjectivo do ilícito, isto é, o dolo, abrangerá oelemento intelectual:a representação que o agente faz dos elementos objectivos da norma incriminadora. Incluirá, de igual forma, oelemento volitivo,que corresponde à vontade do agente realizar tais factos ou atingir os efeitos dessa realização. Assim, o elemento subjectivo do crime de ameaça expressar-se-á comoactuar de forma livre (podendo o agente do crime agir de outro modo, em conformidade com o direito ou o dever- ser jurídico),voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto),conscientemente(tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e, por fim,sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
18. Recordamos que a previsão do 283.° n.°3 b), aplicável pela remissão feita na parte final do n.° 2 do artigo 287.° do CPP, subordina a narração (que pode ser sintética) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, "sempre que possível” a critérios identificados como elementos subjectivos do tipo ilícito, nomeadamente a motivação da sua prática, o grau de participação do agente e quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção a elas destinada. E que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.° 1/2015 entende que tudo isto "costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto éy podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude)."
19.Ambas as fontes legais que o Juiz de Instrução Criminal invocou para recusar a Abertura de Instrução não são “fórmulas obrigatórias", pedras-chaves" ou até "balizas" de termos, frase ou textos autorizados os quais, e apenas esses, devem ser aceites como verdadeiras expressões de elementos subjectivos do tipo ilícito.
20. Acredita a Assistente que uma interpretação correcta a fazer – quer do texto do legislador no artigo 283.° n.º 3 b) do CPP, quer do STJ no AUJ 1/2015 - é a de que, mediante a interpretação daquele que acusa ou daquele que abre a Instrução (in casu, a Assistente), (1) deve ser verificado se a peça processual é omissa a em relação a qualquerreferência a elementos objectivos, e (2) caso se interprete, com base nas circunstâncias em causa, que o alegado é ou não bastante, se receba a acusação ou a Instrução! Isto para dizer que a recorrente acredita que, dentro do possível, manifestou, no seu acto processual, elementos subjectivos do crime de ameaça imputados ao Arguido!
21. O que motivou o Arguido a deslocar-se, pelo segundo dia consecutivo, a casa da Assistente, insistindo para passar o dia 25 de Dezembro de 2022 com a Maior Acompanhada? O que motivou o Arguido a soerguer-se bruscamente da cadeira, desferir um murro na mesa que o separava da Assistente, e dirigir-se rapidamente para onde esta estava sentada? A resposta de que a mãe de ambos passaria o dia 25 de Dezembro com a Assistente já lhe fora transmitida nos dias 19, 21 e 22 de Dezembro- como de resto foi escrito no Requerimento de Abertura de Instrução de maneira inequívoca no artigo 2.º.
22. Qual o grau de participação do agente nos factos?Total, pois foi ele próprio que se deslocou ao local de residência da Assistente. Foi ele próprio que tomou a decisão de levantar a voz, de esmurrar a mesa e de se aproximar da Assistente.
23. Mais nada poderia a Assistente acrescentar quanto às verdadeiras intenções do Arguido, depreendendo-se e deduzindo-se de maneira satisfatória da descrição dos factos que o Arguido agiu de modo livre e consciente!
24. Quis o Arguido agir voluntariamente ou deliberadamente? A Assistente não tem modo de saber nem tem obrigação de o saber! A Assistente apenas soube e sabe que, como dizem os próprios autos, "ficou com a convicção de que poderia ser agredida a qualquer momento, sentindo que a sua integridade física foi posta em causa!'.
25.Ter-se detido assim que a Assistente lhe disse que estava a ser filmado não atesta ao seu conhecimento do que o que estava afazer, e o que quer que estivesse prestes a fazer, era ilegal e previsto e punido pelo Direito Penal? Ter-se apenas afastado da Assistente, e depois do local, com a chegada de uma testemunha e a ameaça de chamada da Polícia de Segurança Pública? - cfr. artigo 2.°, 18.°, 21.° e 22.° da Abertura de Instrução.
26. Por outro lado, não serão as expressões utilizadas nos artigos 21.º, 34.º e 47.º do Requerimento de Abertura de Instrução comprobatórias de estar preenchido a menção ao elemento subjectivo do crime?
27. Quem intimida, quem provoca medo e inquietação e quem coíbe liberdade de movimentos não agirá de forma livre e consciente e segunda a própria vontade? E não serão as menções a essas reacções suficientes para estarem, na medida do possível, e de uma forma não costumeira, cumpridas as menções aos elementos subjectivos do tipo legal de crime imputado? 28. Por tudo o alegado acima, entende a Recorrente que o presente Despacho violou os artigos 283.º n.°3 b) e c), 287.º n.º 2 e n.º 3 do Código de Processo Penal e o artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa, impondo-se, por isso, a sua pronta revogação!”
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I.3. O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência, concluindo nos seguintes termos:
“A) Deve o recurso do despacho que não admitiu a instrução ser indeferido, mantendo-se o despacho sob censura, que não abriu a fase de instrução, por inadmissibilidade desta nos termos do art° 287° n°3 do CPP, por o requerimento de abertura da instrução não conter uma verdadeira acusação alternativa, por omissão do elemento subjetivo do tipo e por não vislumbramos que os elemento objetivo alegado integre a pratica de crime, constituindo tal "acusação" alternativa a violação do disposto no art° 287° n°2 do CPP;
B) E não podendo o Mmº Juiz ordenar o aperfeiçoamento, como decidiu o STJ no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 7/2005, nem se substituir aos assistentes, levando à Pronuncia esses factos omitidos, sob pena de nulidade dessa Pronuncia, nos termos do art° 309° n° l do CPP, só lhe resta pois, como fez, rejeitar o requerimento de abertura da instrução;
C) Não violando com tal rejeição qualquer norma jurídica, concretamente as alegadas pela recorrente, mas antes fazendo justa e adequada interpretação das normas dos art°s 286° n°l, 287° n°2 e 283° n°3, todas do CPP.
D) Rejeição essa que deve ser mantida, por estar de acordo com o direito, pois assim, se fará Justiça!”
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I.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso da assistente, subscrevendo a argumentação da resposta do Ministério Público da 1ª instância.
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I.5.Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
No caso dos autos, não há quaisquer vícios ou questões de conhecimento oficioso que importa conhecer por nenhuma dessas situações ocorrerem no caso sub júdice.
Da análise das conclusões da recorrente a única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se é de manter a decisão que rejeitou o requerimento de abertura de instrução ou de a revogar por o requerimento de abertura de instrução cumprir os requisitos legais para ser admitido.
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes)
“Decorre assim do exposto que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo M. Público.
No requerimento de abertura de instrução o assistente está, assim, obrigado, sob pena de rejeição, a fazer uma descrição contendo os factos concretos (se possível, localizados no tempo e no espaço) suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que considere mostrar-se preenchido.
Só desta forma se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que "...o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do Ministério Público." - Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.
Com efeito, no caso de despacho de arquivamento do Ministério Público, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deverá conter a descrição factual do ilícito que se pretende ver averiguado e imputado de forma percetível ao tribunal (JIC) e ao visado (arguido), pois só assim cumprirá com o princípio do acusatório a as garantias de defesa do arguido no respeito pelo princípio do contraditório.
Posto o que acaba de referir-se, e analisando-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente verifica-se que o mesmo se dedica a tecer largas considerações sobre a valoração dos indícios probatórios efetuada pelo Ministério Público, não relatando, contudo, de forma circunstanciada e individualizada a conduta integrativa da prática do enunciado crime, sem o mínimo de densidade factual no que tange à enumeração dos respetivos elementos típicos, concretamente os de índole subjetiva. Veja-se, no que a estes últimos diz respeito, que inexiste qualquer referência factual à consciência da ilicitude, a qual deve constar da acusação, e, consequentemente, também do requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente, nos termos do disposto nos artigos 287.°, n.° 2 e 283.°, n.° 3 do C. Pr. Penal (Neste sentido, ac RC 15/05/2013, processo 875/11.8TATNV.C1, in https://jurispmdencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2013:875.11.8TATNV.C1.D0, concluindo que se o requerimento para abertura da instrução é omisso em relação aos factos consubstanciadores do tipo objectivo e subjectivo de um determinado crime, tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.°, n.° 3, do C. Pr. Penal.
Neste particular, note-se que o requerimento da assistente não contém a descrição dos factos necessários ao preenchimento, ao nível dos elementos subjetivos do mencionado crime e nem sequer foi lançada mão da formulação genérica "o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei", o que se torna manifestamente insuficiente para que se mostrem descritos os elementos subjetivos deste crime.
Na verdade, e como se refere no ac. da Relação do Porto, de 18.MAR.15 (pr. 438/12.0GAVFR.P1) e que, com a devida vénia, se passa a transcrever na parte relevante: "Importa atentar na jurisprudência que encerra o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 20 de Novembro de 2014 e publicado no DR, I SÉRIE, N° 18, 27 DE JANEIRO DE 2015, P. 582 - 597 e que, sobre a omissão da tipificação subjectiva na acusação proferida pelo Ministério Público, veio a fixar a seguinte jurisprudência:
"... De forma mais concreta, o art. 283.°, n.° 3, alínea b) do CPP, impõe que a acusação contenha "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.». Todo o preceito está impregnado de referências aos elementos subjectivos, pois, ao falar dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, está a abarcar tanto os factos de carácter objectivo, como os de natureza subjectiva, e ao falar de motivação da prática dos factos, do grau de participação que o agente neles teve e de quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, é da particular relação do agente perante o facto que está a falar, incluindo a modalidade de culpa, as circunstâncias que conferem ao facto, através da personalidade do agente, maior ou menor carga de censura ético-social e ético-jurídica e de reprovação da sua conduta actuante ou omitente. Na verdade, todas estas circunstâncias têm influência decisiva na determinação da sanção".
Não compete ao juiz de instrução suprir tais falhas na enumeração dos factos, concretamente na vertente subjectiva, a imputar ao arguido.
Assente assim está que no requerimento de abertura de instrução deverão constar os factos que se entendem indiciados e que devem integrar a pronúncia, os quais consistirão na vinculação temática a que o juiz de instrução - que não é um acusador, por força dos princípios do acusatório e do contraditório - está forçosamente sujeito (cfr. arts. 287°, n° 1, al. b), 303°, n° 3 e 308°, n° 1, todos do C. Pr. Penal).
Não será legalmente admissível a abertura da instrução se o RAI for vago, genérico, desorganizado, confuso ou insuficiente quanto aos factos que permitam, materialmente, configurar os elementos, quer objetivos quer subjetivos, do tipo legal de crime imputado ao arguido. E compreende-se que assim seja, pois, quando do requerimento da abertura de instrução não conste uma acusação alternativa, este é total ou parcialmente omisso na narração dos factos essenciais que integram os elementos constitutivos do crime ou quando não imputa concretamente nenhum crime ao arguido, qualquer descrição que se viesse a fazer numa eventual pronúncia viria redundar, necessariamente, numa alteração substancial do requerimento, com a consequente nulidade, cominada no art.° 309.°, n° 1 do C. Pr. Penal.
Verifica-se, deste modo, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigada, a assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou ou descreveu de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, concretamente ao nível do elemento subjectivo, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação. Não efectuou uma narração factual bem apontada e delimitada, assim impedindo que o objeto do processo fosse fixado com rigor e precisão.
É ao assistente, enquanto sujeito processual, que compete a narração dos factos susceptíveis de integrar um determinado tipo penal, quer do ponto de vista objectivo (a conduta) quer subjectivo (dolo ou negligência) pelo qual pretende obter a pronúncia do arguido.
Relembra-se o que já foi dito sobre a exigência que, in casu, devia conter o requerimento da assistente: não só para que o arguido possa, eventualmente, ser pronunciado pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem definitivamente assegurados os seus direitos de defesa e lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, anotado, 9.a edição, pág. 541). Assim se respeitarão, então, os princípios basilares que subjazem ao processo penal: estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
Na verdade, não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante da alínea b) do n.° 3 do artigo 283.° do C. Pr. Penal não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados - e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa - como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do art.° 309.° do C. Pr. Penal.
Também que no sentido de que se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação do constante naquelas alíneas "...a instrução será a todos os títulos inexequível." (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, ed. do C.E.J., Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120).
Em síntese, a instrução nesses termos é inadmissível, por falta de objecto (art. 287.°, n.° 3 do C. Pr. Penal), impondo-se, pois, a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Aliás, veja-se a situação em que o Ministério Público não alega facto essencial.
Aí vê rejeitada a sua acusação - art.° 311° do C. Pr. Penal.
Donde a conclusão indubitável de que se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público, não obedecer aos requisitos contemplados no art. 283.°, n.° 3 - aplicável nomeadamente por força da remissão operada pelo art.° 287.°, n.° 2, ambos do C. Pr. Penal - que a lei exige para a acusação pública, tal requerimento não pode deixar de considerar-se nulo (tal como sucede, aliás, com a acusação pública deduzida sem observância de tais requisitos).
Quando um requerimento não observe os parâmetros supra referidos, tem como consequência a inadmissibilidade legal da instrução, designadamente, por omissão dos factos objeto de investigação.
Por razões de igualdade, que se impõem, e lealdade para com todos os sujeitos processuais, o requerimento é de indeferir.
Por outro lado, e por força do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 7/2005, publicado no D.R., I Série - A, n.° 212, de 04.N0V.05, que fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentando nos termos do artigo 287.°, n.° 2, do C. Pr. Penal, quando for omisso à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, o convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução está vedado ao tribunal.
No caso vertente, não constando da acusação alternativa da assistente ou, no caso, do RAI a indicação da tipificação subjectiva, não é possível ao juiz, seja ele o do julgamento como trata aquele acórdão uniformizador, ou o juiz de instrução, como é agora o caso, suprir essa omissão com a indicação, ainda que pela fórmula tabelar, da motivação subjectiva do agente, pois tal matéria, mais do que uma alteração substancial dos factos, que lhe está vedado operar, constitui a transformação de uma conduta objectiva sem cariz criminal, numa conduta perseguida criminalmente.
Conclui-se, assim, que o requerimento de abertura da instrução em apreço terá forçosamente de ser liminarmente rejeitado.
Nestes termos, sem necessidade de mais largas considerações e tendo em atenção tudo quanto acaba de referir-se, rejeita-se, por ser legalmente inadmissível, o requerimento de abertura da instrução em apreço - art.° 287°, n.° 3 do mencionado código.”
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II.3. Requerimento de abertura de instrução(que se transcreve integralmente por ser essencial para a apreciação do recurso)
“1.°
A 20 de Abril de 2023 foi apresentada queixa-crime, pela aqui Assistente, contra o Denunciado e Arguido BB.
2.º
Explicando-se aí sumariamente os seguintes factos:
Assistente e Arguido são irmãos;
A mãe de ambos, DD, foi declarada Maior Acompanhada no Processo ... pelo Juízo Local Cível de Matosinhos (Juiz 3) a 17 de Outubro de 2022.
Decorre da decisão judicial que a Assistente é a responsável pela fixação do regime de visitas e férias que a Maior Acompanhada recebe dos restantes filhos.
Nesse esteiro, a Assistente decidiu, em consideração com o estado de saúde da mãe, que cada filho residente no Porto auferiria, uma vez por mês, da possibilidade de estar junto da Maior Acompanhada ao fim-de-semana.
Coincidentemente, o dia de Natal do ano de 2022 ocorreu num fim-de-semana e de acordo com o regime outorgado pela Assistente, a Maior Acompanhada passaria esse dia com a irmã EE.
De livre iniciativa e por vontade própria, o Arguido decidiu permutar a data da sua visita (18 de Dezembro) com a da irmã EE de forma que a Maior Acompanhada passasse o dia de Natal com ele.
No dia 18 de Dezembro ninguém compareceu na Rua ..., Porto, o que acarretou consequências na agenda da vida privada da Assistente e sobretudo subsumiu-se numa desconsideração pelo apoio que a Assistente presta à mãe.
Tal afronta levou a Assistente a tomar a decisão de não permitir que a mãe passasse o Natal com algum dos filhos, no dia 19 de Dezembro e reiterado dois dias depois, a 21 de Dezembro,
A 22 de Dezembro, o Arguido, constatando que as sucessivas e inoportunas chamadas telefónicas não surtiam o efeito pretendido, deslocou-se à residência da Assistente, a dar o jantar à mãe e impossibilitada de descer, perseverando no sentido da Maior Acompanhada passasse o Natal com ele.
Ao que a Assistente alvitrou o dia 23 ou 26 como alternativas para ser permitido àquele passar o tempo a que tem justamente direito.
Face à posição assumida pela Assistente dias antes e mantida naquele momento, o Arguido intimidou (ou tentou intimidar) a Assistente com uma intervenção policial.
Já no dia 23 de Dezembro, no espaço comercial directamente abaixo da residência da Assistente denominado "...", compareceu o Arguido para conversar com a Assistente.
A conversa não foi nada mais do que nova tentativa de que a mãe de ambos passasse o Natal com o Arguido.
Perante a mesma tentativa, o Arguido recebeu a mesma resposta da Assistente.
Ora, foi a partir daí que de maneira agressiva, hostil e autoritária o Arguido começou a elevar o tom de voz e, a dado momento, levantou-se da mesa onde se encontravam, desferiu um forte murro na mesa, circundou a mesa dirigindo-se intimidativamente para junto da Assistente (que permanecia sentada), só se efectivamente detendo quando a Assistente lhe informou muito calmamente que o mesmo estava a ser filmado.
Concomitantemente ao tumulto causado pelo Arguido alertou-se de tal CC, empregada da Assistente no tratamento da Maior Acompanhada, que se encontrava na parte habitacional do prédio.
Quando a mesma se aproximou do local onde advinha o ruído deparou-se com o Arguido de pé, junto da Assistente, sempre sentada, num claro desnível de posições.
Nesse momento, foi pedido a CC que chamasse a polícia pela Assistente,
Perante a possibilidade de as suas acções virem a envolver forças de segurança pública, o Arguido afastou-se da Assistente, saindo do local a pedido da D. CC, mas proferindo os seguintes impropérios vexatórios ao descer as escadas: "cabrona, és uma mentirosa, vai para a puta que te pariu, deixas de ser minha irmã a partir de hoje". - tudo conforme as fls. 3 e seguintes dos autos.
3.°
O Inquérito foi, então, iniciado com o conjunto de diligências que visavam investigar a existência deum crime de ameaça e de um crime de injúria,respectivamente previstos e punidos pelos artigos 153.° n.°l e 181.° n.°l do Código Penal.
4.°
A 02 de Junho de 2023, a Ofendida AA foi constituída como Assistente no Processo.
5.°
A 22 de Janeiro de 2024, a Assistente prestou declarações ao órgão de polícia criminal que assistiu o Ministério Público na direcção do Inquérito nas quais confirmou o teor da queixa na sua integralidade - cfr. autos de inquirição das fls. 45/46.
6.°
Também as testemunhas arroladas na Queixa-Crime, CC e FF, foram ouvidas - c/r. respectivos autos de inquirição das fls. 48 e 50.
7.°
Realizadas as diligências probatórias, o Ministério Público, a 08-03-2024, proferiu Despacho de Arquivamento relativamente ao crime de ameaça e convidou a Assistente a deduzir Acusação Particular relativamente ao crime de injúria, acto de realização necessária dada a natureza particular em causa, pese embora o próprio Ministério Público admitir indícios suficientes da prática deste último crime.
8.°
Deduzida a Acusação Particular a 21 de Março de 2024, veio o Ministério Público a aderir in totum ao aludido nela a 03 de Abril de 2024.
9.°
Ora, serve o presente acto para contrariar a decisão de arquivamento do crime de ameaça - decisão que, como se exporá, a Assistente não se conforma e não concorda.
Vejamos,
10.°
A decisão do Ministério Público de arquivamento dos autos na parte do crime de ameaça reverte-se ao (não) preenchimento, vertidos os factos, nos elementos do tipo legal de crime, nomeadamente:"Entendemos, pois, que não devem ser consideradas idóneas para o preenchimento do tipo legal, com acontece no presente caso, os anúncios de "ameaças ilusórias, as bazófias, a advertência, o aviso, o súbito assombro de ira". Assim, a atitude e expressões atribuídas ao arguido não comportam a existência de qualquer ameaça de mal, menos ainda futuro como se exige para o preenchimento dos elementos do tipo de crime de ameaça”.
11.°
Desde já se afirma, com todo o respeito, que quer parecer à Assistente que o Ministério Público parte de uma interpretação errónea e desvirtuada dos acontecimentos do dia 23 de Dezembro logo a montante e que essa interpretação, a jusante, leva inevitavelmente a conclusões erradas como a do arquivamento.
12.°
Como exemplo disso indicamos:a princípio, no Despacho de Arquivamento onde indica o MP: “A assistente ficou perturbada com esta atitude e anunciou que chamaria a polícia tendo o denunciado se afastado (...)"
13.°
Esta afirmação não faz jus aos acontecimentos, imagine-se:
14.°
A Assistente e o Arguido encontravam-se sentados, de frente um para o outro, a sensivelmente 1 metro de comprimento.
15.°
O Arguido, após ter começado a aumentar o tom de voz, levanta-se bruscamente e desfere um murro na mesa (não a partindo dado a mesma ser de vinhático) - ambas as acções audíveis do andar de cima.
16.°
O Arguido mede mais de l,80m (um metro e oitenta) e a Assistente é cerca de 20 centímetros mais baixa.
17.°
Mesmo perante o estado alterado em que o seu irmão estava, a Assistente mantinha e sempre se manteve sentada.
18.°
Após se ter erguido e esmurrado violentamente a mesa (e enquanto vociferava), o Arguido rodeou a mesa que o separava da Assistente, dirigiu-se a esta e colocou-se junto da cadeira dela esó se deteve do que quer que o seu estado irracional, grosseiro, bruto, violento, autoritário o propelia a cometer porque a Assistente, imobilizada perante a brusquidão, o informou que "estás a ser filmado”.
19.°
E é só depois deste acto que aparece no local a Testemunha CC, descida do 2.° andar onde se encontrava com a Maior Acompanhada, e sedepara com o Arguido, de pé, muito próximo da Arguida.
20.°
Aliás, como a própria relatou no seu auto de inquirição e é reconhecido pelo Ministério Público no Arquivamento: "Destes factos foi testemunha CC que recordou a postura intimidatória e agressiva do denunciado (...)".
21.°
Apenas com o aparecimento da Testemunha no local, a quem a Assistente pede imediatamente para chamar a polícia, é que o Arguido se afasta da Assistente, arguindo que eram irmãos.
22.°
Por outro lado, a surpresa e o alívio provocados pelo aparecimento da Testemunha não foram suficientes para a dissipação da indignação face à grande violência provocada pela insegurança, ansiedade e falta de liberdade vivenciadas pela Assistente.
23.°
Levando a que pedisse reiteradamente à Testemunha para esta chamar a polícia.
24.°
Ora, é com a possibilidade de ser chamada a polícia ao local e com o pedido da Testemunha para o mesmo abandonar o local que o Arguido se afasta e injuria a Assistente,não antes ou simultaneamente ao rasgo de raiva demonstrado anteriormente.
25.°
Esta distinção cronológica é deveras importante porque influencia directamente a subsunção jurídica dos factos ao tipo legal de crime.
26.°
E confessa a Assistente como é que é possível o Ministério Público não conseguir distinguir os acontecimentos e reconhecer a qualificação jurídica diferente que cada um dos factos acarreta quando o próprio, contraditoriamente, dá a entender e a perceber que consegue fazer essa distinção.
27.°
Porque em oposição ao aludido no artigo 12.° deste Requerimento encontramos a citação realizada no artigo 20.° como a seguinte: "assistente AA que confirmou integralmente a queixa apresentada e as expressões que aí constam acrescentando que, perante a atitude do seu irmão,ficou com a convicção de que poderia ser agredida a qualquer momento, sentindo que a sua integridade física foi posta em causa",
28.°
Feito esta correcção da cronologia e da sequência fáctica torna-se necessário responder à qualificação jurídica destas no tipo legal de crime.
29.°
Destarte, está manifestamente errada a seguinte afirmação: "quanto à atitude e expressões que a assistente imputa ao arguido - que após ter dado um murro na mesa e se aproximado da assistente aos gritos lhe disse "cabrona, és uma mentirosa, vai para a puta que te pariu, deixas de ser minha irmã a partir de hoje" - os elementos recolhidos não permitem reconduzir o comportamento da arguida ao apontado crime de ameaça"
30.°
Desde logo, nunca a Assistente quis imputar os impropérios acima descritos ao crime de ameaça mas sim ao crime de injúria.
31.°
É a aproximação do Arguido à Assistente que se devem compreender na esfera jurídica do crime de ameaça e não as injúrias e as ofensas proferidos.
32.°
Aliás, estas últimas apenas ocorreramposteriormente à ameaça sentida, já na presença da Testemunha, e enquanto o Arguido abandonava ao local!
33.°
Diz-nos o artigo 153.° n.° l do Código Penal que"Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicara sua liberdade de determinação9 ê punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias."
34.º
É, então, precisamente a atitude intimidatória e agressiva do Arguido à Assistente que provocou medo e inquietação na Assistente que, imobilizada e temendo o que poderia o Arguido fazer, lhe informa que está a ser filmado,
35.°
Só nesse momento o Arguido se detém epermanecejunto da Assistente, aturdindo a mesma e restringindo a sua liberdade de movimentos.
36.°
Estar sentada e ter junto dela um individuo de alta estatura, em elevado tom de voz, e depois de ter esmurrado a mesa violentamente e se ter aproximado dela rápida e bruscamente é inegavelmente, de acordo com o critério de homem comum e com a experiência comum, uma ameaça adequada e séria junto da Assistente!
37.°
Quanto ao anúncio de um mal sem dúvida o Ministério Público labora com entendimento, sapiência e razão quando afirma que é um elemento objectivo do crime de ameaça pois corresponde à "prática futura de facto ilícito típico contra o bem jurídico da vida ou da integridade física".
38.°
Ora, em abono da verdade, não sabe a Assistente dizer o que lhe teria acontecido se não tivesse dito ao Arguido que estava a ser filmado e se não tivesse de seguida aparecido a Testemunha.
39.°
E é esse desconhecimento que preenche, quase na totalidade, o tipo legal de crime aqui em causa!
40.º
Como o Tribunal da Relação de Guimarães relatou em Acórdão de 09/09/2013: " Ê elemento constitutivo do crime de ameaça, o anúncio,por qualquer meio, de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, dependente da vontade do autor."
41.º
Aqui a expressão por qualquer meio é bastante relevante pois o crime de ameaça não é exclusivo a frases que ameaçam verdadeira e objectivamente a integridade física ou a vida da ofendida, incluindo-se assim aqui também as acções de quem ameaça.
42.°
Pergunta-se, então, a V/Exa se uma pessoa de alta estatura, após se ter levantado da mesa que o separa da Assistente, após ter esmurrado a dita mesa, a ter circulado rapidamente e a se deter junto da Assistente, ainda sentada (e aumentando assim a diferença de estatura comparada com a do Arguido (de metro e oitenta)), coibindo e obstinando os seus movimentos, provocando-lhe receio e aturdimento não constitui um crime de ameaça?
43.°
Parece-nos que a resposta óbvia vai no sentido afirmativo.
44°
Discordando, deste modo, a Assistente das razões de facto e de direito a que levaram ao Ministério Público a não deduzir Acusação Pública ao Arguido do crime de ameaça, pois parte de factos e de interpretações erradas que afectam obrigatória e forçosamente a conclusão de não subsunção ao tipo legal de crime em causa.
Concluindo,
45.°
A Assistente não se pode de forma alguma conformar com a decisão tomada nestes Autos.
46.°
O Arguidopraticou os actos ilícitos consubstanciadores do Crime de Ameaça.
47.°
Resulta inequivocamente dos Autos quea Assistente se sentiu coagida, amedrontada e temente de uma agressão por parte do Arguido e que a Testemunha inquirida anuiu a uma postura intimidatória deste último perante a Assistente.
48.°
Pelo que o Arguido praticou efectivamente os factos que vêm descritos na Queixa-Crime, reforçados na Acusação Particular já junta, e suportados pelos autos de inquirição juntos com os Autos, impondo-se a devida sindicação judicial ao Despacho de Arquivamento proferido nos autos.
48.°
É, então, o Arguidoresponsável, em autoria material, de um crime previsto e punido nos artigos 153.° n.° l do Código Penal.”
***
II.4. Apreciação do recurso §1. A recorrente entende que, no seu requerimento de abertura de instrução, estão sucintamente narrados e contextualizados os factos passíveis de integrar a prática do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º do CP imputado ao arguido BB.
Adiantamos, desde já, que a recorrente não tem razão.
*
§2. O requerimento para abertura da instrução não obedece a formalidades especiais mas deverá conter, ainda que em súmula:
a) as razões de facto e de direito da discordância com o despacho de arquivamento;
b) a indicação dos actos de instrução que pretende ver efectuados, dos meios de prova desconsiderados no inquérito e dos factos que, através dos referidos meios de prova, espera demonstrar;
c) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, entre outros, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática;
d) a indicação das disposições legais aplicáveis (cfr. artigo 287º, nº2, do Código de Processo Penal).
Assim, no requerimento de abertura de instrução em que a assistente visa a prolação de uma decisão de pronúncia para levar o arguido a julgamento, tem de ser deduzida uma acusação que observe os requisitos da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis previstos no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c), aplicável ex vi artigo 287º, n.º 2, ambos do Código do Processo Penal.
É determinante que na sua substância o requerimento contenha uma acusação suficiente e clara para permitir a realização de um julgamento vinculado a um tema viável – isto é, que possa terminar numa condenação – e para assegurar ao arguido a efectiva possibilidade de defesa, o que naturalmente pressupõe o conhecimento preciso dos factos imputados e a sua suficiência para integrar o tipo de crime em causa.
Os factos que fundamentam a aplicação, ao arguido, de uma pena reconduzem-se aos elementos do tipo legal de crime e constituem a vinculação temática do processo que limita os poderes de cognição do juiz (de instrução ou do julgamento), aos quais deve ser acrescentada a motivação do agente e localização temporal e espacial do comportamento.
O tipo de ilícito criminal apresenta elementos objectivos (a acção/omissão e, no particular caso dos crimes de resultado, o resultado e a causalidade entre a acção e o resultado, e no crime de mera actividade) e elementos subjectivos (conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias dos factos típicos, livre determinação do agente e vontade de praticar o facto).
Nos termos do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, o requerimento para a abertura da instrução deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução.
É inadmissível o requerimento para abertura de instrução do assistente que pretende discutir a decisão de arquivamento do MºPº em que a narração dos factos que imputa ao arguido não são susceptíveis de fundamentar a aplicação de pena alguma (cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, DPPP, Volume 3, 2015, pág.141, P.P. Albuquerque, CCPP, 4ª edição, pág.777, e Maia Costa, CPPC, 2016, pág. 962).
Como se refere no acórdão do TRC de 16.11.2016, relatado porMaria Pilar de Oliveira (acessível em www.dgsi.pt) que, por esclarecedor, se transcreve que “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141). Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição. Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução”.
No mesmo sentido veja-se, ainda, o Acórdão do TRP de 29.04.2020, relatado pela aqui adjunta Sra. Juíza Desembargadora Maria Joana Grácio (acessível em www.dgsi.pt) “I - O requerimento para abertura de instrução (RAI), apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público deve equivaler em tudo a uma acusação, condicionando e delimitando a atividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objeto da decisão instrutória, nos exatos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz. II - Daí que, não constando do RAI uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual de instrução por falta de delimitação do seu objecto. III - E isto porque é manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos suscetíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia. IV - Quando não contém os elementos supra referidos em II, o RAI é nulo por falta de objecto, o que implica a inexequibilidade da instrução e, por via disso, a sua rejeição”.
*
§3. Revertendo estas breves considerações ao caso concreto, o crime imputado na acusação alternativa deduzida pela recorrente no seu RAI é um crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do CP que preceitua (na parte que aqui importa): Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação,…”.
Uma vez que estamos perante um crime de natureza dolosa o RAI terá que conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo, visando que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito) e o elemento volitivo (supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma acção ou omissão, sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade intenção directa de praticar o facto, previsão do resultado como consequência necessária ou possível da conduta e aceitação do resultado.
A falta destes elementos não pode sequer ser suprida em sede de julgamento com recurso ao disposto no artigo 358º do CPP, de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 1/2015, relatado por Rodrigues da Costa (publicado no D.R. n.º 18, Série I, de 27.01.2015), onde se decidiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”.
A decisão recorrida rejeitou a acusação particular com base na falta do elemento subjectivo do crime imputado pelo assistente ao arguido.
Analisado o requerimento para a abertura de instrução em apreciação impõe-se forçosamente concluir que o mesmo não contempla uma narração, sequer desarticulada, de factos susceptíveis de fundamentar a aplicação de uma pena.
Concretizemos.
Da leitura do requerimento de abertura de instrução constatamos que:
- por um lado, a recorrente começa por fazer uma resenha do processado no inquérito, onde inclui a descrição dos factos denunciados na queixa-crime, entre os quais (cfr. artigos 1º a 8 do requerimento de abertura de instrução):
· “Já no dia 23 de Dezembro, no espaço comercial directamente abaixo da residência da Assistente denominado "...", compareceu o Arguido para conversar com a Assistente.
· A conversa não foi nada mais do que nova tentativa de que a mãe de ambos passasse o Natal com o Arguido.
· Perante a mesma tentativa, o Arguido recebeu a mesma resposta da Assistente.
· Ora, foi a partir daí que de maneira agressiva, hostil e autoritária o Arguido começou a elevar o tom de voz e, a dado momento, levantou-se da mesa onde se encontravam, desferiu um forte murro na mesa, circundou a mesa dirigindo-se intimidativamente para junto da Assistente (que permanecia sentada), só se efectivamente detendo quando a Assistente lhe informou muito calmamente que o mesmo estava a ser filmado.
· Concomitantemente ao tumulto causado pelo Arguido alertou-se de tal CC, empregada da Assistente no tratamento da Maior Acompanhada, que se encontrava na parte habitacional do prédio.
· Quando a mesma se aproximou do local onde advinha o ruído deparou-se com o Arguido de pé, junto da Assistente, sempre sentada, num claro desnível de posições.
· Nesse momento, foi pedido a CC que chamasse a polícia pela Assistente,
· Perante a possibilidade de as suas acções virem a envolver forças de segurança pública, o Arguido afastou-se da Assistente, saindo do local a pedido da D. CC (…)”.
- por outro lado, a recorrente indicou as razões da discordância com o despacho de arquivamento em relação ao crime de ameaça e os actos de instrução que pretende ver efectuados (cfr. artigos 9º a 49º do requerimento de abertura de instrução).
Do elenco dos factos narrados acima transcritos extrai-se claramente que não se imputa ao agente uma actuação livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-penal), com intençãode amedrontar a ofendida (querendo a realização do facto) e conscientemente(isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto, designadamente, sabendo que a ameaça era adequada a provocar na ameaçada medo ou inquietação).
Temos assim que o requerimento de abertura de instrução não contém factos concretos que permitam preencher o elemento subjectivo do crime de ameaça que a recorrente pretende que seja imputado ao arguido.
Aliás, se a recorrente não tinha modo de saber se o arguido agiu voluntariamente ou deliberadamente, como expressamente admitiu no presente recurso, não se compreende como pretende que seja imputado ao arguido o crime de ameaça.
E não se diga, como o faz a recorrente, que é possível considerar preenchido o elemento subjectivo dos factos narrados nos artigos 21 –º apenas com o aparecimento da Testemunha no local, a quem a Assistente pede imediatamente para chamar a polícia, é que o Arguido se afasta da Assistente, arguindo que eram irmãos – 34º – é, então, precisamente a atitude intimidatória e agressiva do Arguido à Assistente que provocou medo e inquietação na Assistente que, imobilizada e temendo o que poderia o Arguido fazer, lhe informa que está a ser filmado – e 47º – resulta inequivocamente dos Autos quea Assistente se sentiu coagida, amedrontada e temente de uma agressão por parte do Arguido e que a Testemunha inquirida anuiu a uma postura intimidatória deste último perante a Assistente – do requerimento de abertura de instrução.
Em conclusão, não se mostra alegada factualidade que permita o preenchimento do elemento subjectivo do imputado crime de ameaça.
*
§4. Por último, importa esclarecer que está fora de causa a possibilidade de suprimento de eventuais vícios do requerimento de abertura de instrução através de um eventual aperfeiçoamento conforme decorre do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12.05.2005 (publicado no DR n.º 212, Série I-A, de 04.11.2005) que decidiu: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
Em consequência, o requerimento de abertura de instrução não contém uma acusação que cumpra os requisitos de narração de factos do artigo 283º, n.º 3, al. b) do CPP, pelo que, não há qualquer censura a fazer à decisão recorrida. Improcede o presente recurso.
***
III.DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (artigo 515º, nº 1, b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do RCP, com referência à Tabela III).
*
Porto, 29.01.2025
Maria Rosário Martins (relatora)
Pedro Afonso Lucas (1º adjunto)
Maria Joana Grácio (2ª adjunta)