DECLARAÇÕES E DEPOIMENTOS
ANÁLISE DA PROVA
Sumário

O julgador não está obrigado a aceitar ou a rejeitar em bloco as declarações e depoimentos prestados, devendo, antes, procurar esmiuçar as narrativas realizadas em julgamento para delas retirar, em face de dados objetivos que os corroboram, os segmentos que exprimem a realidade dos factos.

(Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 699/20.1PIRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo local Criminal do Porto – Juiz 3




Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum Singular n.º 699/20.1PPRT, a correr termos no Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 3, por sentença de 14-06-2024, foi decidido:
«A) Absolver a arguida AA da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e nº 2, alínea a), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa de BB.
B) Absolver a arguida AA da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e nº 2, alínea a), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa de CC.
Convolando-se tal imputação:
C) Declarar extinto o procedimento criminal contra o arguida AA pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º do Código Penal referente a 21 de setembro de 2021 por falta de legitimidade do Ministério Público em acusar.
D) Declarar extinto o procedimento criminal contra o arguida AA pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do Código Penal referentes a 2017 e 2018 por inadmissibilidade legal do procedimento criminal (intempestividade do exercício do direito de queixa).
E) Condenar a arguida AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 a) e 2 e art. 132.º, nº2, al.b), todos do Código Penal na pena de 2 (dois) meses de prisão;
F) Substituir a pena de 2 (dois) meses de prisão aplicada à arguida por 150 (cento e cinquenta) dias de multa taxa diária de € 7.00 (sete euros), o que perfaz o montante global de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros).
G) Absolver a arguida AA do pagamento de indemnização a título de reparação, nos termos do art. 82.º-A do Código Penal e 21.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 112/2009 de 16.9.
H) Condenar a arguida AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça de 2UC´s, (cf. artigos 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais).»


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Inconformada, a arguida AA interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que altere a matéria de facto nos termos requeridos e a absolva, apresentando em apoio da sua pretensão as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«I- O tribunal recorrido descredibilizou a prova oferecida pela acusação, por não ser isente, não ser fiável, ser interessada;
II- E ainda porque os factos não foram vistos tanto pelo assistente como pelo menor BB, que foi quem descreveu ao assistente os pormenores que, segundo este, determinaram o teor da participação na PSP.
III- Também o ofendido CC doi descredibilizado pelo tribunal, quer pela sua animosidade contra a mãe, por estar alienado e manipulado pelo pai, e pela falta de fiabilidade para testemunhar, resultante dos relatórios de psiquiatria forense.
IV- Porém, o tribunal, em contradição com a restante parte da fundamentação, deu por provados os factos 3 a 6, por o relato dos factos pelo CC, quanto a estes factos, ter correspondência com as lesões apresentadas no episódio de urgência e no exame pericial.
V- Sendo certo, como resulta do exame pericial, que o CC atribuiu a lesão no ombro à agressão com o garfo;
VI- E acabou as suas declarações em audiência a dizer que não existiu agressão com o garfo;
VII- E que imputou à mãe tê-lo atirado contra os móveis de cozinha, contra o chão e contra a porta, acabando nas suas declarações, em julgamento, a dizer que as agressões consistiram em atirá-lo contra as paredes, como era hábito;
VIII- Como resulta das partes transcritas das suas declarações e do referido exame pericial.
IX- Acabando o tribunal por dar por assente a primeira versão do CC e dizendo que era coincidente com a versão dada em audiência;
X- O que constitui erro notório da apreciação da prova, nos termos do artigo 410, nº 2 al c) do CPP.
XI- E, no tocante à fundamentação, depois de desconsiderado o depoimento, relativamente aos outros factos, que foram dado por não provados, o tribunal invocou a coincidência, já contrariada nas conclusões anteriores, entre as declarações e as lesões, o que constitui vício de contradição na fundamentação, nos termos do artigo 410, nº 2 al. b) do CPP.
XII- Termos em que, se não fosse o erro notório de apreciação e a contradição na fundamentação, impunha-se que o tribunal desse por não provados os factos dados por provados nos pontos 3 a 6 e 11.
XIII- Além disso, sempre a prova produzida e supra referida, aliada ao histórico documental constante dos autos, e reproduzida na mais acertada parte da fundamentação da decisão, designadamente o histórico do divórcio, da regulação das responsabilidades parentais e do processo de promoção e proteção;
XIV- Era forçoso criar no tribunal a dúvida séria sobre a verificação dos referidos factos assentes sobre os pontos 3 a 6 e 11, determinando que fossem julgados não provados, pelo princípio do “in dúbio pro reo”.
XV- A sentença recorrida violou os artigos 143, nº 1, 145 nº 1 a) e 2, e artigo 132, nº 2 b) do CP, e os artigos 410 nº 2 als. b) e c), e artigo 127 do CPP.»

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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo em abono da sua argumentação as seguintes conclusões (transcrição):
«- Inexiste qualquer contradição entre os depoimentos das testemunhas, e nada contraria ou põe em crise o depoimento do menor CC, que, pese embora o conflito interior que denotou em relação à arguida sua mãe, e que a Mma Juiz “a quo” teve em devida consideração, descreveu os factos em apreço, dados como provados e ora impugnados, e, bem assim, o modo como se desenrolaram de modo credível e consistente.
- O facto de a arguida e ora Recorrente considerar como não credíveis ou fiáveis os depoimentos do menor CC e demais testemunhas de Acusação, não basta para lançar dúvidas quanto à sua credibilidade e clareza;
é ao Julgador, e não ao arguido, que compete aferir qual a credibilidade das testemunhas, à luz do princípio da livre apreciação da prova, apreciando os depoimentos perante si prestados com base na sua convicção pessoal, e, beneficiando da imediação e a oralidade, avaliando o modo como cada testemunha depôs, como se expressou, e como reagiu às diversas questões que lhe foram dirigidas.
- É pacificamente aceite por Doutrina e Jurisprudência que o invocado erro notório na apreciação da prova ocorre quando são dados como provados factos que, à luz das regras da experiência comum e lógica normal da vida, não podiam ter ocorrido, ou, v.g. são contrariados por documentos que fazem prova plena.
Este vício de raciocínio deve resultar da simples leitura do texto da decisão, constituindo um erro tão evidente que salta aos olhos do cidadão comum, dado que a prova aponta inequivocamente num sentido, e a decisão opta pelo sentido diametralmente oposto.
Ora, a Mmª. Juiz a quo explicou de forma clara, racional e perfeitamente compreensível os motivos que a levaram a considerar como provada a matéria impugnada, pelo que as invocadas contradições resultam, não de vícios da decisão, mas antes, do entendimento que a arguida elabora quanto ao modo como foi apreciada a prova produzida;
- No entanto, a decisão proferida baseou-se, não no capricho ou “selecção” arbitrária de factos, mas antes, na livre convicção da Mma. Juiz, devidamente escorada numa fundamentação objectiva; e, se optou pela solução que considerou como mais consentânea com a razão e as regras de experiência comum – tal como foi flagrantemente o caso,
a fonte de tal convicção apenas poderia ser abalada se fosse demonstrado que, utilizando essas mesmas regras da lógica e da experiência comum, a conclusão deveria ser irremediavelmente oposta -desiderato que a Recorrente não alcançou, dado ser patente não se ter verificado o alegado vício.
- O mesmo se dirá quanto ao vício a que alude o artº 410º, nº 2, b) do CPP – contradição na fundamentação - que ocorre quando, analisada a matéria de facto dada como provada, se alcançam conclusões que mutuamente se excluem, criando divergências que não podem ser ultrapassadas - em suma, quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, se dão como provados factos contraditórios: uma vez mais, a nenhum passo da douta sentença se surpreende tal ocorrência, nem, em bom rigor, é invocado no douto recurso qualquer concreto argumento nesse sentido.
- Resulta com meridiana clareza do texto da douta sentença recorrida qual o caminho lógico e processo de valoração seguido pela Mma Juiz “a quo”, conducente à decisão que alcançou sobre a matéria de facto, pelo que, neste conspecto, a decisão proferida respeita escrupulosamente as exigências do art.º 127º do CPP.
- E resulta da audição dos depoimentos prestados e da simples leitura da douta sentença recorrida, que não foi suscitada, nem o Mmª Juiz teve qualquer dúvida, por mínima que fosse, quanto ao modo como deveria ser valorada a prova produzida, pelo que não ocorre qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”.
- Nada há a censurar à Sentença ora recorrida, que não padece de qualquer dos vícios que lhe são apontados, tendo sido ponderada devida e justamente toda a prova produzida, revelando-se a decisão proferida como sendo adequada, formal e materialmente correcta, e devidamente fundamentada, pelo que,

confirmando-a nos seus precisos termos, farão Vossas Excelências

JUSTIÇA»


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O assistente DD (em representação dos filhos menores BB e CC) também respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, sintetizando a sua argumentação nas seguintes conclusões (transcrição):
«1- A recorrente pretende, como consequência da procedência do recurso interposto, a alteração da matéria de facto provada, destarte os factos provados nos pontos 3, 4, 5, 6 e 11 da douta sentença proferida.
2- A recorrente não cumpriu o ónus de indicar ao Tribunal as concretas provas que impunham decisão diversa da proferida, nos termos preconizados pelo artigo 412.º, n.º 3, b) e n.º 4 do CPP, o que obsta à alteração dos factos provados como pugnado pela Recorrente, por um lado.
3- Por outro lado, quanto aos invocados vícios imputados à sentença recorrida, os mesmos não se verificam.
4- Na verdade, a factualidade provada derivou de uma análise crítica de toda a prova produzida.
5- No que se refere à factualidade provada, o Tribunal valorou as declarações para memória futura prestadas pelo menor CC, bem como presencialmente na última sessão de audiência de julgamento, conjugadas com a prova documental e pericial junta aos autos.
6- Quanto à matéria provada, o Tribunal não teve dúvidas, como fez questão de enfatizar na análise crítica da prova produzida. (cfr. fls. 11 da sentença).
7- Assim como não existe qualquer contradição entre os factos provados e/ou não provados e a análise crítica (fundamentação) da prova vertida na sentença.
8- Quanto aos factos não provados, como bem nota a sentença recorrida, “a não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova segura.”.
9- Acresce que, por força da alteração não substancial dos factos e em função da mesma, foi a recorrente condenada apenas pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
10- A recorrente só não foi condenada também pela prática do crime, comprovadamente por si cometido, contra a honra do menor CC (injúria) porque a sentença recorrida foi proferida aos dias 14 de junho de 2024, ou seja, escassos dias antes da publicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º9/2024 de 09 de julho (DR n.º 131/2024, Série I, de 2024-07-09).
11- Já quanto aos (2) crimes de ofensas à integridade física simples, igualmente comprovadamente por si praticados contra a pessoa do seu filho menor, como bem sabe a recorrente, a mesma apenas beneficiou da extinção do procedimento criminal, por intempestividade do exercício do direito de queixa mas não porque não os tenha efetivamente praticado.
12- A não condenação da recorrente pela prática dos referidos crimes por questões de índole eminentemente legais/processuais, não foi, nem pode ser, suficiente para abalar a convicção do Tribunal que, finda a produção de prova, considerou provados os factos descritos nos pontos 3, 7, 8 e 9 da sentença proferida.
13- Considerando essa factualidade e, não obstante ser verdade não ter sido possível ao julgador, por razões de cariz processual, condenar a recorrente pela prática de todos os ilícitos comprovadamente por si praticados, não é menos verdade que terá contribuído para a formação da convicção do julgador a análise crítica de toda a prova e consequentemente terá sido igualmente crucial para a formação dessa mesma convicção, a apreciação de todos os factos provados (e não apenas os factos processualmente relevantes, parafraseando a própria recorrente).
14- É aliás este o significado e a essência do Princípio da Livre Apreciação da Prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que legitima o julgador apreciar os elementos probatórios perante si aduzidos com base na sua convicção pessoal.
15- Pretende a recorrente que as declarações para memória futura e esclarecimentos prestados pelo seu filho menor CC, deveriam ser integralmente desconsiderados pelo Tribunal a quo, por “alegada falta de fiabilidade para testemunhar resultante dos relatórios de psiquiatria forense”.
16- Não lhe assiste razão. Incumbe à autoridade judiciária, in casu, ao Juiz, verificar a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, conforme o comando do artigo 131.º do Código de Processo Penal, o que foi feito.
17- Não foi ordenada no âmbito dos presentes autos qualquer perícia sobre a personalidade do menor CC porquanto nunca esteve em causa a circunstância prevista no artigo 131.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e porquanto o Julgador não colocou em crise a capacidade do menor CC para testemunhar, pelo contrário.
Termos em que, não merce reparo ou censura a douta sentença condenatória proferida que assim, deverá manter-se, pelo que confirmando-a nos seus precisos termos, farão Vs. Exas. JUSTIÇA.»

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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, emitindo, assim, parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida.

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Cumprida a notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.

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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

- Contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, als. b) e c), do CPPenal; e

- Erro de julgamento em sede de matéria de facto.


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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):


«2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

2.1. Matéria de facto dada como provada:
Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. A arguida é mãe de CC, nascido a ../../2008, e de BB, nascido a ../../2011.
2. No dia 21/09/2021, quando CC se encontrava na casa da mãe, sita na Rua ..., ..., ..., no Porto, a arguida recebeu um e-mail da diretora de turma do menor a comunicar, entre o mais, que ele não tinha feito o trabalho de casa da disciplina de Português.
3. A arguida exaltou-se com o CC e aos gritos repreendeu-o por não ter feito o trabalho, empurrou-o contra os armários da cozinha, tendo o menor caído ao chão e desferiu-lhe pontapés nas nádegas, costas e membros inferior, apelidando-o de “cabrão”, “idiota”.
4. Ato contínuo desferiu-lhe pequenas pancadas com o cabo de um garfo no ombro, e exigiu-lhe que realizasse as tarefas propostas.
5. Quando se acalmaram foram para a sala, imprimiram o material necessário para a aula de português, altura em que a arguida se voltou a exaltar e empurrou o CC contra a porta de acesso ao jardim.
6. Em consequência direta e necessária da atuação da arguida o menor sofreu equimose na face superior do ombro esquerdo, equimose na nádega direita, que determinaram oito dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho.
7. Em dia não concretamente apurado do ano de 2018, zangada pelo facto do filho CC desconhecer o paradeiro do passe do Metro, quando se encontravam em casa, a arguida bateu-lhe com a mão em parte do corpo não concretamente apurada, tendo o menor caído ao chão e embatido com a cabeça.
8. No dia da mãe do ano de 2017, no corredor do Colégio que o CC frequenta, por motivo não concretamente apurado, a arguida deu-lhe uma bofetada na cara.
9. Ao atuar da foram descrita em 7 e 8 a arguida ofendeu a saúde e o corpo do menor CC, e com as expressões aludida em 3, a sua honra e consideração, o que representou e quis.
10. Ao atuar da forma descrita em 3., 4 e 5, a arguida sabia que o CC é menor, de si dependente e incapaz de se opor à sua atuação, mas, ainda assim, quis, como conseguiu, molestar o seu corpo e a sua saúde e atingi-lo na integridade física.
11. A arguida atuou de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, sendo capaz de a orientar de harmonia com esse conhecimento.
Mais resultou provado:
12. A arguida e o assistente eram casados entre si e separaram-se em maio de 2020. Até então AA residia com o então cônjuge e os dois descendentes do casal, BB e CC, atualmente com 15 e 11 anos de idade, em moradia própria, sita na rua da ... – Porto.
13. A relação conjugal foi descrita pelo ex casal como disfuncional, e após a separação em maio de 2020 a arguida foi sido impedida pelo assistente de ver/conviver com os filhos pelo período de 40 dias.
14. Desde setembro de 2020 que AA reside sozinha em apartamento, de tipologia 4, propriedade dos progenitores, sito na morada que consta nos autos. A habitação encontra-se inserida numa área urbana da freguesia ..., zona não conotada com problemáticas sociais e/ou criminais.
15. AA é a única filha de um casal de uma condição socioeconómica equilibrada proporcionada pela atividade profissional dos pais. As dinâmicas intrafamiliares foram descritas como positivas e marcada por laços de afetividade, num contexto funcional e estruturado, tendo sido descrita uma atitude educativa atenta e assente em valores sociais e morais tradicionais, com imposição de regras e limites definidos.
16. Registou um percurso escolar regular e investido, ingressando no ensino superior na Universidade ..., concluindo a licenciatura em ... em 2000. Posteriormente, em 2010, concluiu um curso de especialização que lhe concedeu o grau de mestre em Gestão de Empresas (MBA) na Escola ....
17. Apresentou um percurso profissional investido inicialmente na área da investigação pelo período de 5 anos, na área start-ups de base tecnológica, na área de traduções de biomédica/farmacêutica, na área de análise de negócios (software) e na área de gestão de investimentos na área farmacêutica. Em 2013 assumiu a responsabilidade pelo licenciamento do ..., e em maio de 2020 celebrou contrato de trabalho com a A..., Lda, para exercer a atividade profissional de Head of Business Strategy and Inteleectual Property, atividade que desenvolve até à data.
18. Desde 2011 também exerceu funções como professora auxiliar convidada, na área de gestão, na Universidade 1..., com celebração de contratos de trabalho anuais. No presente ano letivo, 2023/2024, encontra-se a exercer no departamento de Ciências de Computadores na Faculdade de Ciências da Universidade 1 ....
19. Em maio de 2022 AA tomou posse como deputada da Assembleia Municipal ..., funções que continua a manter até ao momento. A arguida encontra-se ainda a frequentar o 3º ano da Licenciatura ... na Universidade ....
20. AA referiu que após rutura relacional com o ex-cônjuge manteve um relacionamento afetivo, sensivelmente por um ano, cuja disfuncionalidade das dinâmicas conduziu a instauração de processo-crime, na qualidade de ofendida.
21. Estabeleceu novo relacionamento afetivo, que perdura há 2 anos, avaliado como positivo e estável por ambos, com projeto de vida em comum. O companheiro avaliou como positiva a inserção da arguida na sua família, nomeadamente no relacionamento interpessoal com as suas descendentes.
22. Em termos económicos subsiste com os rendimentos provenientes do exercício das atividades profissionais, auferindo um rendimento mensal líquido total de cerca de 2.131,98 euros. A este rendimento global, acresce o rendimento proveniente da renda de um imóvel próprio, no valor de 514.17 euros.
23. Identifica como despesas fixas mensais as relacionadas com a manutenção da casa onde reside, designadamente o fornecimento de eletricidade e de água, o serviço tv/net/voz, e o condomínio (pago semestralmente), com a mensalidade das propinas do curso superior que frequenta, com a metade da mensalidade das propinas do estabelecimento de ensino dos dois filhos, e com o serviço de telecomunicações, estimando-se um gasto médio mensal de cerca de 998.37 euros.
24. Ao nível das dinâmicas relacionais com os descendentes AA descreve que mantinha uma boa relação, mas a qual sofreu degradação durante o processo de divórcio, afirmando que o ex-cônjuge denegriu a sua imagem junto dos filhos. O processo de divórcio, formalizado em 2021, foi significativamente litigioso assim como sucede com o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, iniciado em julho de 2020, tendo sido acordada a residência semanal alternada. O regime do exercício das responsabilidades parentais já sofreu alterações desde essa data, tendo sido fixada a residência dos menores junto do progenitor e posteriormente com fins-de-semana junto da arguida e atualmente encontram-se no regime de residência semanal alternada.
25. Aquando elaboração do relatório social (novembro de 2023), foi referido pela arguida, corroborado pela avó materna e pela técnica do PIAC de ... que aquando da deslocação da arguida ao colégio dos filhos, nos fins-de-semana que lhe são atribuídos, os menores recusavam-se a acompanhar a mãe.
26. Ao nível do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais e processo de promoção e proteçao que correu termos no Tribunal de Família e Menores, os intervenientes foram encaminhados para acompanhamento no PIAC – Programa Integrado de Apoio à Comunidade de ..., com o objetivo de realizar sessões individuais com os menores e sessões conjuntas de mediação familiar entre a arguida e o ex-cônjuge. Da articulação efetuada com a Técnica do PIAC de ..., decorre a informação que as sessões conjuntas foram diminutas e de curta duração face à existência de elevado grau de litigância, ressalvando, no entanto, a postura e o foco da arguida na resolução dos problemas. AA mantém o acompanhamento em sessões individuais de mediação familiar, onde se promove o desenvolvimento/aquisição de estratégias de práticas educativas e outras abordagens, adotando a arguida uma postura colaborante e de adesão à intervenção técnica, cumprindo com as orientações. Desta articulação interinstitucional, resulta a informação de que AA é avaliada, por aqueles serviços, como uma figura materna responsável, securizante e preocupada.
27. AA descreve-se como uma mãe presente, preocupada, exigente com a responsabilidade e o respeito pelas obrigações escolares, mas que também sempre demonstrou afetividade, por replicação do modelo educativo que teve e que considera ajustado. A arguida manifesta angústia pelo afastamento dos filhos, assim como a ausência de relação daqueles com os avós maternos.
28. O quotidiano de AA é organizado em função das responsabilidades profissionais, às quais despende maior parte do seu tempo, dedicando os tempos livres a atividades de jardinagem e a fazer bordados e rendas.
29. No contacto estabelecido com as fontes familiares e amigos foi projetada uma imagem positiva de AA, valorizando o seu papel no seio familiar e social.
30. A nível profissional, a arguida possui uma imagem pautada pela cordialidade e pelo profissionalismo.
31. Na deslocação ao meio socio residencial da arguida, o elemento vicinal contactado identificou AA como possuindo uma atitude discreta e cordial naquele meio, mencionando que desconhecia que a mesma tivesse filhos.
32. Face ao presente processo AA assume uma postura de colaboração, embora manifeste inconformismo e consternação, descrevendo a sua situação jurídico-penal como penosa, a qual não dissocia do processo da regulação do exercício das responsabilidades parentais e à ausência de relação com os filhos, que estende aos seus progenitores.
33. A nível psicoemocional, recorreu a acompanhamento psiquiátrico desde a retirada dos filhos e instauração da queixa-crime que deu origem aos presentes autos, mantendo acompanhamento médico no Hospital ..., com medicação prescrita do foro antidepressivo. Concomitantemente, manifesta preocupação com a sua imagem e reputação pública face à censurabilidade e estigmatização social da tipologia criminal subjacente aos presentes autos.
34. Conserva o suporte familiar, na figura dos progenitores e do companheiro, ao nível das relações estabelecidas e dos projetos desenvolvidos na esfera profissional.
35. Do certificado de registo criminal da arguida nada consta.

Matéria de facto não provada:
Nada mais foi dado como provado, com relevo para a decisão da causa, designadamente que:
a) Que a arguida apresenta uma personalidade reservada, irritável, podendo mostrar-se zangada ou hostil, e a sua rigidez tende a resultar em frustração e, em certas situações, culmina em desregulação emocional e subsequente adoção de comportamentos e verbalizações impulsivos e inadequados.
b) Que fosse porque faziam barulho, estragavam algum objeto, manifestavam dificuldades de aprendizagem, não realizassem as tarefas escolares propostas ou não apresentassem resultados escolares que ela pretendia, em várias ocasiões em que se encontravam na residência comum, a arguida dirigia-se aos seus filhos apelidando-os de “besta”, “besta do caralho”, “estúpido”, “estúpido de merda”, “sacana”, “burro”, “cabeça de andorinha”, o que os ofendia e rebaixava.
c) Que aquando dos factos aludidos em 3 dos factos provados a arguida, dirigindo-se ao CC, tenha proferido a seguinte expressão: “foda-se, filho da puta, caramba”,
d) Que aquando dos factos aludidos em 5 a arguida tenha agarrado o CC pelo pescoço e apertado o pescoço do CC.
e) Que em data não concretamente apurada, mas anterior a 2017, no interior da residência comum, a arguida apertou o pescoço do filho CC, provocando-lhe dores e mau-estar.
f) Que no final do ano de 2017, em dia não concretamente apurado, a arguida desferiu um soco no corpo de CC, provocando-lhe dores na área atingida e mau-estar.
g) Que em data não concretamente apurada, mas quando o menor BB frequentava o 2º ou o 3º ano de escolaridade, e se encontrava na residência comum a realizar uma ficha de leitura acompanhado pela arguida, ela mostrou-se irritada, gritando disse-lhe que “escrevia mal, que a letra era horrível, mandava-o apagar e voltar a escrever até ficar bem” e desferiu-lhe estalos na face sempre que escrevia com erros ortográficas, o que lhe provocou humilhação, dores e rubor na face.
h) Que em dia não concretamente apurado, no final de umas férias de verão, quando se encontravam na casa da arguida, e o menor BB fazia exercícios de equações, a arguida irritou-se com ele, bateu-lhe em várias partes do corpo, deu-lhe murros, empurrou-o contra a parede, fazendo-o cair e, com ele prostrado no chão, continuou a atingi-lo em várias partes do corpo.
i) Que em consequência direta da atuação da arguida, o menor BB sofreu dores nas áreas atingidas, mau-estar e humilhação.
j) Que em dia não concretamente apurado após a separação dos pais ocorrida em 2020 e antes da factualidade aludida em 3 dos factos provados, quando se encontravam na casa da mãe sita na Rua ..., ..., ..., no Porto, a arguida zangada pelo facto do filho CC desconhecer o paradeiro do passe do metro, bateu-lhe com a mão em várias partes do corpo, atirou-o ao chão, onde o fez embater com a cabeça, provocando-lhe dores.
k) Que ao atuar da forma descrita nos factos provados a arguida quis e conseguiu aterrorizar os menores, diminuir na dignidade e humilhá-los, fazer temer o BB integridade física, bem sabendo que a sua atuação era apta a transtorná-los psiquicamente, o que igualmente sucedeu.
l) A arguida estava ciente que tal tratamento era aviltante e cruel e que punha em crise a segurança e a dignidade pessoal dos seus filhos menores e ao proceder pelo modo descrito, no recesso da residência familiar, impedia que terceiros pudessem assistir ou intervir para proteger as vítimas.
Quanto à demais matéria alegada pelas partes, o tribunal expurgou dos factos provados e não provados aqueles já constantes da acusação pública, bem como os que constituem matéria conclusiva, de direito, ou não se afiguram essenciais ou relevantes para a boa decisão da causa.

Motivação da decisão de facto:
O Tribunal assentou a sua convicção na análise de forma livre, crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, de acordo com o preceituado no art. 127º do Cód. Proc. Penal, e teve por pressuposto o respeito pelos critérios de experiência comum e da lógica do homem médio. Desde logo o Tribunal valorou as declarações da arguida, as declarações do assistente DD, declarações para memória futura prestadas CC e BB constantes de fls. 414 a 418, tudo conjugado com os depoimentod das testemunhas EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV e esclarecimentos prestados em audiência de CC, e conjugado ainda com a prova documental junta aos autos, designadamente, ata de conferência de progenitores do proc n.º ... T8PRt datada de 5.11.2020 de fls. 145 a 147;- E-mails de fls. 165; 219 a 221; Informação clínica de fls. 296 a 297, 334 e ss.; Certidões de assento de nascimento de fls. 374 a 377; Exames médico-Legais de psiquiatria de fls. 463 a 465; relatório de fls. 466 a 471; 472 a 474v.; relatório médico legal de avaliação de dano corporal de 7 de outubro de 2021 de fls. 107 a 109v do apenso D e fotografias de fls. 90 e 91 do apenso D - processo apensado n.º 1408/21.3PIPRT; documentos juntos com a contestação sob a ref.ª 36762940; Cópia do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do proc n.º ... R8PRT junto a 12.2.2012 sob a ref. 38127442; Relatórios sociais com as ref.ª37285114 (15.11.2023) e 37483611 e 37831425 e CRC junto aos autos com a ref.ª 39331335.

Análise crítica da prova:
A factualidade acima elencada derivou de uma análise crítica de toda a prova produzida.
A prova dos factos constantes do ponto 1. da factualidade provada resulta das declarações convergentes da arguida e do assistente DD nesse sentido, bem como do assento de nascimento dos menores juntos a fls. 374 a 377.
Quanto à demais matéria de facto, a arguida negou a prática dos factos, negando qualquer insulto ou agressão aos seus filhos. No que se refere à factualidade de setembro de 2021, refere que recebeu um email do diretor de turma do CC a informar, entre outras coisas, que o mesmo tinha uma ficha de português para fazer e não cumpriu com o trabalho de casa. Refere que lhe deu uma “descompostura porque não era a primeira vez que havia queixas dos trabalhos de casa e já tinha sido alertado várias vezes”. Acrescenta que estava nervosa porque no email também informavam de uma justificação de falta do CC por ter ido com o pai tomar a vacina do Covid-19, sem o seu conhecimento e consentimento.
Questionada sobre a descompostura que deu ao CC refere que estava exaltada, e que lhe berrou, negando que o tenha agredido ou insultado.
No que se refere ao BB, refere que o mesmo dava imensos erros ortográficos e quando cometia erros apagava e dizia para escrever novamente e escrever a palavra que errou várias vezes, mas que nunca o agrediu ou insultou.
Questionada sobre as lesões apresentadas pelo CC aquando da realização do exame no Instituto de Medicina legal refere que o CC lhe disse que tinha feito essas lesões na aula de educação física.
Não obstante as declarações da arguida, no que se refere à factualidade que resultou provada, o Tribunal valorou as declarações para memória futura prestadas pelo menor CC, bem como presencialmente na última sessão de audiência de julgamento, conjugadas com a prova documental e pericial junta aos autos.
Com efeito, o Tribunal ouviu as declarações para memória futura e com base nas mesmas e na demais prova produzida ao longo do julgamento, determinou a prestação de esclarecimentos presenciais por parte do menor CC (cfr. Despacho constante da ata de 17.4.2024 ref.ª 459239778).
No que se refere à factualidade aludidos em 3 a 6 o menor CC relatou a mesma - quer nas declarações para memória futura quer aquando da prestação de esclarecimento em audiência de julgamento -, de forma clara, coincidente, escorreita e credível. Não obstante alguma confusão na fixação do dia concreto – o que se revela normal atento o hiato de tempo entretanto decorrido e a idade jovem do mesmo à data dos factos – o certo é que quanto ao circunstancialismo do episódio ocorrido em Setembro de 2021 é claro e preciso. Explica que, nessa altura os pais já estavam separados e que o regime era uma semana em casa de cada um, tinha 13 anos e estava no início do 8.º ano. Nesse dia, estava em casa da sua mãe e a mesma, após receber um email da professora de Português do CC a dizer que ele não tinha realizado o trabalho de casa da disciplina, exaltou-se aos gritos e repreendeu-o por não ter feito o trabalho e ato contínuo empurrou-o contra os armários da cozinha e para o chão, caindo e desferiu-lhe pontapés nas nádegas, costas e membros inferiores. Mais refere que ao mesmo tempo que agredia a mãe o chamou de “cabrão”, “idiota”.
Acrescenta que também lhe bateu com a parte de trás de um garfo no seu ombro, que não foi como muita força, e que quando se acalmaram foram para a sala imprimiram o material necessário para a aula de português e aí a arguida voltou a exaltar-se e voltou a empurrá-lo, tendo o CC embatido na porta de acesso ao jardim. Acrescenta que ficou com dores nesse dia e com marcas no ombro esquerdo e nádega direita.
No que se refere à matéria de facto aludido em 6 dos factos provados, o Tribunal valorou não só as declarações do menor CC que aludiu às lesões no seu corpo, como o depoimento de HH, companheira do pai do menor, que aludiu ao facto de ter visualizado as marcas no ombro e nádega do CC, tal como o pai deste DD, que o transportou às urgências do Hospital quando visualizou em 24.9.2024, bem como Resumo do episódio de urgência do Hospital ... de fls. 297 a 298, conjugado com o teor do relatório médico legal de avaliação do dano corporal elaborado pelo IML a 7 de outubro de 2021 de fls. 107 a 109v do apenso D (cerca de 15 dias após os facto de onde resulta compatibilidade entre as lesões verificadas e a factualidade relatada pelo CC) e ainda das Fotografias de fls. 90 e 91 do apenso D - processo apensado n.º 1408/21.3PIPRT, onde se visualizam as lesões constantes do relatório médico-legal e as quais foram confirmadas pelo pai do menor, pessoa que tirou as fotografias.
Não obstante o Tribunal denotar conflito interior do menor CC para com a sua mãe, aqui arguida, ao longo da prestação dos seus esclarecimentos – própria e/ou incutida/incentivada por terceiros, sento nítido a tomada de partido do pai em detrimento à mãe (conforme infra se elucidará) -, no que se refere à factualidade provada, não teve o Tribunal qualquer dúvida em dá-la como provada, encontrando as declarações do menor CC quanto à factualidade de 21.9.2021 suporte não só na documentação clínica, designadamente o episódio de urgência de fls. 297 e 298, datado de 24.9.2021 onde é relatado já tal factualidade bem como a descrição das lesões verificadas, como também do relatório médico legal junto aos autos a fls. 107 a 109v do apenso D realizado na sequência da perícia medico legal ocorrida em 7.10.2021, cerca de 15 dias após os factos e onde resulta que as lesões referidas são compatíveis com a informação relatada pelo CC.
Neste conspecto, igualmente o assistente DD, pai do CC, apesar de não ter presenciado os factos, refere, nesta parte, de forma clara e credível, que se separou da arguida na Páscoa de 2020, e que em julho de 2020 foi estabelecido o regime de guarda partilhada quanto aos menores. Acrescenta que no dia 24.9 foi buscar o CC e o BB e viu no banho a pisadura no ombro esquerdo e nádega direita e questionou o CC onde tinha feito e este disse que a mãe se tinha zangado e o tinha empurrado contra o armário e agredido, sendo coincidente com declarações do CC. Mais refere que nesse dia levou o CC até às urgências do Hospital ... (cfr. Fls. 297) e no dia 7 de outubro foi ao IML para o exame médico-legal (fls 107 e 109v).
Acresce ainda que as lesões verificadas são ombro e nádega opostas, compatíveis com a descrição da factualidade e caso as mesmas tivessem sido feitas numa queda em aula de educação física (conforme aludido pela arguida), segundo as regras do normal acontecer, seriam no mesmo lado do corpo, sendo certo que o Colégio do CC não reportou qualquer queda. Não obstante, neste ponto cumpre referir que o próprio CC refere que passado alguns dias, quando voltou a estar com a mãe a mesma questionou-o sobre as lesões que viu, tendo o mesmo, com receio da atitude da mãe, dito que tinha caído numa aula de educação física.
Quanto à factualidade aludida em 7 igualmente o CC relatou a mesma, referindo que em dia não concretamente apurado de 2018, quando tinha 10 anos, a arguida, ficou zangada por o CC ter perdido o passe do metro e bateu-lhe, tendo caído ao chão e embatido com a cabeça no chão. Acresce ainda que pese embora o pai do CC refira que chegou a ver uma marca na face direita junto ao olho, está em clara contradição com o que o CC referiu, explicando que não ficou com qualquer marca.
O CC também relatou que no dia da mãe do ano de 2017, no corredor do Colégio que o CC frequenta, a arguida, na sequência de um desentendimento que não se recorda, deu-lhe uma bofetada na cara. Neste ponto apesar da testemunha FF -, diretora pedagógica do Colégio frequentado pelos menores-, relatar que tal bofetada lhe foi relatada por outras mães que estavam presentes e visualizaram, o certo é que o próprio CC refere foi no corredor e que nenhuma mãe nem alunos viu (à exceção de um aluno que passou).
Quanto à demais matéria de facto, nenhuma prova segura e cabal foi feita quanto a qualquer agressão ao menor BB nem quanto aos demais factos constantes da acusação.
Vejamos.
O assistente DD, na qualidade de legal representante dos menores, não presenciou os factos, dos quais apenas apresenta conhecimento indireto e apenas relata aquilo que refere que lhe foi relatado e a perceção que adquiriu desse relato. Por outro lado, não podemos deixar de aludir à patente animosidade entre o mesmo e a arguida alicerçada em questões conjugais que levaram ao divórcio bem como nas divergências quanto ao exercício das responsabilidades parentais, sendo visível não só na sua postura aquando das declarações - principalmente a instâncias do Ilustre mandatário da arguida -, mas também pelas vicissitudes decorrentes do divórcio entre ambos e na regulação das responsabilidades parentais e processo de promoção e proteção, conforme se afere nos documentos juntos aos autos sob a ref.ª 36656824 de 14.9.2023, que consubstanciam peças processuais extraídas do processo de promoção e proteção n.º ... do juízo de Família e Menores do porto J4, bem como do Acórdão da Relação do Porto de 5.2.2024 junto aos autos sob a ref.ª 38127442 de 12.2.2024 foi onde foi declarada cessada a medida aplicada e ordenado o arquivamento dos autos de promoção e proteção.
Por outro lado, o assistente refere que durante o seu casamento com a arguida sempre teve conflitos e discussões com a mesma, reportando, contudo, o motivo das mesmas a situações do casal e não relacionadas com os filhos. Refere que, após a separação, a guarda partilhada dos menores não funcionou bem desde o início, que qualquer interação era motivo para “quezílias e pontos de discórdia” entre o ex casal relativamente a assuntos dos menores, mas não relacionados com qualquer conduta concreta para com os mesmos. Aliás, antes da separação, o assistente enviou um email à sua sogra em 10.4.2020, mãe da arguida onde expos os motivos da separação e (cfr. Fls. 219 a 221) não se extraindo do mesmo qualquer conduta incorreta da arguida para com os menores, apenas aludindo a problemas do ex-casal.
Quanto ao demais relato do CC, o mesmo é vago e impreciso, referindo que a mãe lhe bateu várias vezes não sabendo circunstanciar concretamente a conduta, quer em termos de espaço, modo e tempo, à exceção dos episódios já aludidos e dados como provados. O CC refere que as “palmadas” eram habituais quer da mãe quer do pai como repreensão a nível de comportamento/educação, acrescentando “que era mais da mãe” mas que o pai também lhe dava bofetadas quando faziam asneira, não dando relevância a tal correção nem valorizando a mesma, justificando logo a conduta do pai referindo que era “casual, uma bofetada e isso” e que “a mãe era mais vezes” e questionado sobre as mesmas, refere que aquelas ocorridas antes da separação “são brancas ou esquecidas”, não sabendo circunstanciar ou relatar as mesmas.
Pese embora tanto o BB como o CC aludirem genericamente que a arguida os agredia, não conseguiram especificar as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram (à exceção da factualidade supra aludida quanto ao CC) e não foram capazes de descrever e circunstanciar a atuação da arguida, mostrando-se nessa parte, declarações vagas, inseguras, sendo certo que não podemos olvidar a data em que as mesmas foram prestadas, em 11.10.2022, quando já não viam a arguida há vários meses (decorrente da medida de promoção e proteção), estando a residir com o pai, denotando uma preterição/rejeição da mãe em relação ao pai.
Dessas declarações para memória futura é patente que os mesmos se mostram mais próximos do progenitor, tomando o seu partido. Aliás, aquando da prestação dos esclarecimentos em audiência, no passado dia 29.5 o CC referiu que atualmente está uma semana em cada progenitor, estando a semana com a mãe a correr dentro da normalidade, referindo que “só estou lá porque sou obrigado”, denotando-se rejeição da mãe, não tendo contudo, concretizado ou sabido justificar o verbalizado.
Por outro lado, quer das declarações do CC como do BB -, denota-se influência externa, utilizando uma linguagem que não se adequa à idade, referindo o CC que “a mãe era assim por ser filha única, não ter uma vida social, crescer numa espécie de bolha muito dura que não vai deixar nada entrar nem sair e sempre que entra reagia violentamente ao que entra”.
Por sua vez, logo no início das declarações para memória futura do menor BB, questionado sobre o tipo de relacionamento que os pais tinham, responde que “o nosso pai nunca teve nada contra a nossa mãe, ele queria proteger-nos sempre”, denotando essa tomada de partido pelo pai ao longo das suas declarações. Começa por referir que os pais estavam sempre a discutir entre eles e questionado sobre o porquê refere que a mãe estava sempre a bater-lhes e que o pai ia lá para os defender. Ora, tal factualidade está em clara contradição com o aludido pelo assistente, que pese embora aluda a discussões com a arguida durante o casamento, explica que as mesmas não eram motivadas pelo modo de tratamento da arguida aos filhos. Antes pelo contrário, refere que sempre considerou que o problema no casamento era apenas consigo e não com os meninos.
Apesar do BB relatar que quando andava no 2.º ou 3.º ano e estava a fazer os deveres em casa a arguida corrigiu o que ele escrevia, e que ficava chateada quando dava erros, e que lhe bateu na cara e que o pai ouviu e foi logo ter ao quarto e assistiu, tendo a mãe agredido também o pai nessa altura porque o pai dizia para parar de lhe bater, tal factualidade não é confirmada pelo pai do menor que refere que nunca assistiu a qualquer episódio de violência física contra o BB. Também relata um episódio em que perdeu o passe do metro e que a mãe obrigou-o a ir de volta pela rua com o CC para o procurar, não tendo relatado qualquer agressão física ou psicológica, apenas dizendo que a mãe estava zangada com tal facto.
Por outro lado, o BB, pese embora refira que a mãe batia várias vezes, não consegue precisar ou circunstanciar qualquer episódio concreto, aludindo genericamente que batia, não conseguindo, mesmo após questionado concretizar qualquer episodio referindo que a mãe “nunca gostou de si nem do CC”. E, embora aluda a agressões ao CC, refere que não presenciou qualquer agressão e que as mesmas lhe foram relatadas pelo CC, não tendo, contudo o CC prestado declarações de forma coincidente com o BB.
As declarações para memória futura do BB foram prestadas de modo desprendido, não coincidente com as emoções adequadas ao relatado, aludindo a agressões de forma genérica, imprecisa e vaga e, quando questionado, não sabia circunstanciar quanto ao modo, tempo e lugar, denotando parcialidade, sendo certo que à data das declarações os menores estavam sem ver a mãe há vários meses, a residir apenas com o pai e sob a sua influência. Aliás, o menor BB a certa altura relata que apenas soube de algumas coisas que relata posteriormente porque lhe foram contadas pelo pai, o que muito se estranha, uma vez que não é conversa para um progenitor ter com o menor com 9/10 anos de idade. Tal comportamento denota a litigiosidade existente entre os progenitores dos menores, com transmissão pelo pai de informações sobre a mãe, que influenciam negativamente a imagem que os filhos têm desta.
Na verdade, o relato do menor BB, à data das declarações para memória futura com 11 anos de idade, não se coaduna com o relato de um jovem dessa idade, aludindo genericamente a agressões da mãe, não demostrando qualquer sentimento aquando desse relato, denotando o tribunal sempre a referência ao pai como o seu “defensor”, com clara tomada de partido pelo progenitor em detrimento da mãe, rejeitando a mãe, não sendo despiciendo aludir aos conflitos interparentais (divórcio, regulação das responsabilidades parentais e processo de promoção e proteção) e ao facto de o menor à data residir com o seu pai, estando sob a sua influência e, sendo claro exemplo disso o modo como relata o facto de ter sido a mãe a pedir o divórcio ao pai, que o pai não queria o divórcio e a mãe disse que “tinha de ser e começou a berrar com ele”, que o pai os abraçou e levou para o quarto, acrescentando mais à frente que a mãe “não queria saber de nós, só queria saber de dinheiro” que “o pai só os queria proteger e por isso o pai discutia com a mãe”, sendo certo que o próprio progenitor DD, refere que durante a constância do casamento as discussões eram devido a questões do casal e não relacionadas com os filhos.
Igualmente se denota que quando relatou que o pai também batia quando faziam “asneiras” desculpabiliza tal conduta, referindo que o CC “estava numa fase pré adolescente e começava a ser um bocadinho insolente”, utilizando vocabulário que não é comum e não se coaduna numa criança com 11 anos de idade.
A certo ponto refere que a mãe batia-lhes porque “o pai dela também era assim quando ela era criança e pelo exemplo ficou assim”, bem como relata o episódio da troca de mails entre o seu pai e a sua avó materna, apresentando um discurso protetor do seu pai, sendo certo que, não tendo o menor BB assistido a qualquer episódio quando a mãe era criança, bem como não tendo os emails sido enviados para si, facilmente se conclui que alguém lhe transmitiu tal informação da forma que quis, o que denota clara influência de terceiros sobre o menor e o seu discurso, designadamente do seu pai, sendo revelador da manipulação a que os menores foram sujeitos.
Relata genericamente, mas como se estivesse presente, que uma vez a mãe estava tão zangada que “ia espetando um garfo no ombro do CC”, não sabendo concretizar a factualidade, sendo certo que tal relato está em clara contradição com o aludido pelo próprio CC refere que a mãe não lhe espetou o garfo nem tentou fazê-lo, batendo no ombro com pancadinhas com a parte de trás do garfo e nesse episódio o BB não se encontrava presente, tendo-lhe sido relatado posteriormente.
Quer das declarações dos menores, quer da análise do teor das peças processuais juntas aos autos extraídas do processo de promoção e proteção n.º ... T8PRT e juntas aos autos sob a ref.ª 366568324, resulta uma influência do pai sobre os menores, exercendo uma conduta negativa junto dos filhos, no sentido de alienação parental, constando do despacho proferido a 17.7.2023 bem como do despacho de 8.9.2023 que o progenitor adota uma postura de colocar em perigo os menores e que “são transmitidas às crianças pelo pai e pela família paterna informações sobre a mãe, que influenciam negativamente a imagem que os filhos têm desta”; (…)” a posição dos jovens perante os contactos com a mãe está muito dependente da relação dos pais um com o outro, bem como da posição do pai em relação a esses contacto, sendo que o mesmo continua a demonstrar oposição quanto aos mesmos (…) causando nestes um conflito de lealdade”.
A testemunha VV, pedopsiquiatra que acompanhou os menores nessa qualidade durante cerca de 4 meses e posteriormente, acompanhou os pais e os menores no âmbito profissional no trabalho de mediação familiar do PIAC durante cerca de 8 meses no âmbito do processo de promoção e proteção, tendo iniciado acompanhamento em Setembro de 2022 - explica que após análise dos menores e conversa com os pais, percebeu que a problemática tinha a ver com a conflitualidade entre os pais. Refere que nos contactos que manteve durante a medicação familiar, a arguida mostrou-se colaborante seguindo as suas indicações, inicialmente ansiosa porque já não estava com os filhos há vários meses e foi promovida a aproximação com calma, acrescentando que denotou amor e carinho da mãe para com os filhos. Por sua vez, o pai não colaborou, tendo sempre uma postura de oposição ativa a qualquer recomeço de contactos entre os filhos e a mãe, chegando a levantar-se e ir-se embora, demonstrando total indisponibilidade para a reaproximação da mãe com os filhos, demonstrando clara animosidade com a ex mulher resultante dos conflitos conjugais e que projetou nas crianças. Alude a técnicas alienantes do pai, explicando que o pai tinha conversas inadequadas com os menores, chegando a dizer ao BB, à data com 10 anco, que a mãe tinha querido fazer a interrupção da sua gravidez e acusando a mãe de ter tido relações extraconjugais. O pai permitia que o BB chamasse “mãe” à sua namorada com 2 anos de relação.
Mais refere que as declarações para memória futura dos menores foram prestadas em pleno período de alienação parental por parte do pai, e que no acompanhamento via os menores com grande conflito interno, diziam que queriam afastar-se da mãe mas ao mesmo tempo queriam aproximar-se da mãe.
Acresce ainda que dos relatórios psicológicos e pedopsiquiátricos juntos aos autos e realizados no âmbito do processo de promoção e proteção com o n.º ... (cfr fls. 463 a 465; 472 a 474v e também junto com a contestação como documento E – relatório da perícia médico-legal de pedopsiquiatria datado de 12.8.2022 e relatório da perícia médico-legal de psicologia datado de 10.8.2022, ou seja, cerca de 11 meses após os factos em causa nos autos de Setembro de 2021), verifica-se que o CC “em termos emocionais reagiu com humor nem sempre congruente ao conteúdo do discurso e revelou dificuldade em descrever os eventos de forma detalhada (pág 3 do relatório medico legal de pedopsiquiatria) “(…) apresenta perturbação do espetro autista (ligeira/hiperfuncionante). Ou seja, apesar de apresentar capacidades cognitivas suficientes para a aprendizagem escolar, tem alterações qualitativas típicas de uma PEA que condicionam a sua perceção do meio ambiente e relações interpessoais, pelo que apresenta limitações na sua capacidade de testemunhas. Sendo certo que descreveu a mãe como sendo uma pessoa que exercia uma educação punitiva fisicamente e ao faze-lo ficou sério (não triste), foi muito generalista na sua descrição, não forneceu detalhes (…)”
Do relatório de avaliação psicologia realizado ao CC e constante de fls. 472 a 474, consta que “ a narrativa do CC centra-se na rejeição da figura da progenitora bem como na desqualificação da sua competência no exercício do poder paternal (…) percebe o conflito interparental e inter-familiar em que se encontra, não se descartando que seja influenciado pelos adultos de referencia sob a forma de instrumentalização direta e/ou indireta. (…) o CC perspetiva que a progenitora o pretere em relação ao irmão BB, agudizando-se um sentimento de rejeição que, segundo o próprio, foi verbalmente visado pelo progenitor.(…).”
A testemunha VV, pedopsiquiátrica que acompanhou os menores no PIAC no âmbito do processo de promoção e proteção que correu termos é perentória em afirmar que o BB tem “falsas memórias” incutidas pelas técnicas de alienação parental exercida pelo seu pai. Igualmente do relatório de avaliação psicológica efetuado no âmbito do proc n.º ... t8PRT- (documento E junto com a contestação e cfr fls. 463 e ss) consta que a narrativa do BB é muito centralizada em denegrir a imagem da mãe e desqualificar a sua competência no exercício do papel parental. Do mesmo relatório pode-se ler: “No que respeita às dinâmicas familiares e particularmente à díade mãe/filho é notória uma sublinhada interferência emocional na sua narrativa, percebendo-se que o BB apresenta um discurso com características grandemente confabulatórias, o que surge como mecanismo de resposta ao conflito pessoal interno, interparental e inter-familiar em que se encontra – não se descartando que seja influenciado pelos adultos de referência sob a forma de instrumentalização direta e/ou indireta. Mais se identifica, na sua narrativa, que o BB terá conhecimento (direto, por parte do progenitor, e indireto, por via de exposição às conversas entre os adultos) e acesso a informação que dele deveria ser resguardada (e-g- emaisl) e é concernente aos adultos. Ao vindo de expor acresce uma dinâmica de aliança com o irmão CC, frequentemente colando-se Às vivências daquele, nivelando-se e demostrando solidariedade e união; o facto de culpabilizar a progenitora (em virtude de comportamentos que narra e caracteriza como adúlteros) pelo término do relacionamento entre os progenitores e a idiossincrasia da própria progenitora, que tenderá a evidenciar rigidez e dificuldade na gestão de circunstâncias stressoras e poderá reagir à frustração de forma inadequada e desproporcional”. De salientar que a forma como as dinâmicas familiares e vivencias do BB têm sido conduzidas, por parte dos adultos, desencadeia perturbação emocional no menor colocando em risco a sua saúde mental, presente e futura. Para “sobreviver”, o menor poderá desenvolver comportamentos potencialmente manipulativos, tornando-se prematuramente astuto para decifrar o ambiente emocional que o rodeia, bem como para eventualmente falar apenas uma parte da verdade e desenvolver conflitos de lealdade, lendo que sse se demarcar de um lado do conflito e se dedicar ao outro, o conflito que se repercute em si mais provavelmente cessará.”
De tais relatórios constata-se que relatado pelos menores no INML quanto tinham 13 anos e meio (CC) e 10 anos e meio (BB) não podia ser de maior animosidade contra a mãe (em especial do BB) e não podiam demostrar mais amplamente a quantidade de informação negativa (irrelevante, para o efeito se verdadeira ou falsa) a que jamais deveriam ter sido expostos, sendo informação para a qual as crianças não têm capacidade de processar, conforme aludido pela testemunha VV.
Assim, considerando o supra aludido e a patente parcialidade e falta de isenção demonstrada, não pode o Tribunal valorar as declarações do menor BB, sendo certo que não há qualquer relatório médico, lesões ou testemunha direta de qualquer agressão ao BB.
Com efeito, as demais testemunhas inquiridas não têm conhecimento direto dos factos.
Vejamos.
A testemunha GG, psicóloga no Colégio frequentado pelos menores (Colégio ...), nunca esteve com os pais do BB e CC, não demonstrando qualquer conhecimento direto dos factos. Alude ao facto de ter estado com o CC no processo de orientação vocacional e com o BB numa sessão da escola Segura e ouviu falar dos mesmos no Conselho de turma, não tendo mais qualquer contacto direto. Por sua vez, a testemunha EE, também psicóloga do Colégio, também não demostrou qualquer conhecimento direto dos factos.
A testemunha HH, companheira do pai dos menores há cerca de 3 anos, vivendo juntos desde novembro de 2021, conhecendo-o desde dezembro de 2020, igualmente não presenciou os factos em causa, só apresentando conhecimento indireto daquilo que lhe foi relatado, sendo certo que do seu depoimento denota-se parcialidade, atenta a relação que mantém com o progenitor dos menores.
A testemunha II, avô paterno dos menores, igualmente não presenciou os factos em causa, apenas aludindo ao relato do neto CC e à visualização das marcas na nádega esquerda e ombro direito em setembro de 2021. Inicialmente refere que desconhecia de qualquer agressividade anteriormente ao relato do CC de setembro de 2021 para mais à frente referir que chegou a ver duas ou três vezes “ralhetes, puxões de orelhas” e “palmadas no rabiote” por parte da arguida aos filhos, e que também lhes berrava quando faziam asneiras, aludindo genericamente a comportamento agressivo, mas questionado o porquê de não ter intervindo se viu esse comportamentos, refere que nunca considerou que fossem maus tratos, acrescentando que “eles é que eram os educadores e se me metesse era desrespeitar os pais” (…) “ a educação é dos pais”, demonstrando que considerava tais situações comportamentos educacionais e adequados ao poder dever de correção dos pais. Acrescenta que igualmente nunca ouviu a arguida a proferir palavrões.
Por sua vez, a testemunha JJ, tio paterno dos menores, não mereceu credibilidade por parte do tribunal atenta essa relação de parentesco com o pai dos menores, e a sua postura titubeante e nervosa. Apesar de referir que assistiu a uma ou duas “punições físicas” em reuniões familiares, não consegue concretizar as mesmas, apresentando discurso vaga e genérico. Alude a um episódio num restaurante em reunião familiar em que um dos filhos estava irrequieto e a arguida “mandou um berro alto que até as mesas só lado ficaram a olhar”, não sabendo concretizar nada, falando de forma vaga em “ralhetes com rispidez” sem qualquer concretização. Refere que a relação da arguida com BB era mais “serena do que o CC”, sendo os ralhetes mais dirigidos ao CC.
Igualmente a testemunha KK, amigo do pai dos menores, demonstrou clara animosidade para com a arguida referindo que mesmo durante a constância do matrimónio, quando se encontrava com o pai dos menores, pedia-lhe para não levar a sua então mulher e que o chegou a aconselhar a não casar. Apresentou um discurso genérico, sem qualquer concretização, aluindo de forma genérica a atitudes agressivas da arguida para com os filhos, não aludindo a qualquer factualidade constante da acusação, referindo que nunca assistiu a qualquer agressão física da arguida aos menores.
A testemunha LL, residente próximo do ex casal, sendo a traseira da moradia do ex casal confinante com a traseira da casa da testemunha, também não serviu para a formação da convicção do tribunal, não apresentando qualquer conhecimento direto dos factos em causa, apenas aludindo a discussões que ouvia do ex casal quando estava no seu quintal, não conseguindo precisar as expressões utilizadas e nunca assistiu a qualquer agressão física
Não obstante estas testemunhas referirem o que o assistente lhes disse, o certo é que não têm qualquer conhecimento direto dos factos, sendo todos são coincidentes quanto ao facto de a arguida e o assistente não se entenderem quanto às responsabilidades parentais dos menores.
Por sua vez, FF, diretora pedagógica do Colégio frequentado pelos menores, igualmente não demostrou qualquer conhecimento direto dos factos.
No que se refere às testemunha indicadas pela defesa – MM, e OO, amigos da arguida e PP, prima em 2.º grau da arguida, não tem conhecimento direto dos factos e apenas aludiram à relação que visualizavam entre a arguida e os menores, aludindo a uma relação normal e carinhosa, tendo a testemunha MM referido que visualizou a arguida várias vezes com os filhos, vendo uma relação normal, sem qualquer violência física ou verbal, demostrando grande interesse e orgulho na formação dos filhos. A testemunha NN, amiga da AA há cerca de 6 anos, tendo um filho da mesma idade do BB e partilhando o ..., tendo-se deslocado a ... e ... para jogos para acompanhar os filhos, aludindo à presença assídua da arguida na atividade extracurricular, apoiando os filhos, nunca tendo visualizado qualquer agressão física ou verbal.
A testemunha TT, primo direito da arguida, igualmente não tem conhecimento direito dos factos, apenas aludindo ao convívio com a mesma e seus filhos cerca de 3 ou 4 vezes ao ano em festas e vindima mas não frequentava a casa do ex casal no Porto.
A testemunha UU, mãe da arguida igualmente não presenciou os factos, referindo que nunca presenciou qualquer agressão física ou verbal da arguido aos filhos, aludindo ao carinho e preocupação da arguida com os filhos e a sua educação e relatando conflitos do ex casal ao longo da constância do matrimónio.
No que se refere à factualidade aludida no ponto 9 a11, de índole subjetiva, o Tribunal atendeu à natureza dos factos em apreço, conjugados não só com as regras da experiência comum, da normalidade e do senso comum e ainda com o facto de ser do conhecimento de qualquer pessoa minimamente avisada que a atuação provada é ilícita e constitui crime.
Refira-se, de resto e quanto à intencionalidade referida, que, pertencendo o dolo à “vida interior de cada um”, sendo portanto de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes das infrações.
No que se refere às condições socioeconómicas da arguida, valorou-se as declarações da própria, não havendo motivo para duvidar das mesmas, conjugadas com o teor do relatório social junto sob a ref.ª37285114 e 37483611 e 37831425 bem como os depoimentos das testemunha UU, sua mãe; QQ, pessoa que trabalhou com a arguida entre fevereiro de 2017 a abril de 2020, sendo a arguida sua chefe; depoimento da testemunha RR – colega de trabalho desde 2013 e amiga; e SS, gerente da sociedade na qual trabalha atualmente a arguida - que de forma coincidente aludiram à inserção social, familiar e à boa relação profissional da arguida com todos os colegas, aludindo á disponibilidade da arguida para ajudar, ao seu brio profissional, e ao seu bom carácter.
Quanto à ausência de antecedentes criminais da arguida, tomou-se em consideração o C.R.C junto aos autos com a ref.ª ª 39331335.

Da matéria de facto não provada:
A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova segura, tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
No que se refere às expressões constantes do ponto b) e c) nenhuma prova segura e cabal foi feita quanto à mesma, não tendo o CC especificado os mesmos, apenas aludindo concretamente à situação constante do ponto 4 dos facto provados. Por sua vez, as declarações do BB, conforme aludido foi, foram vagas e imprecisas, igualmente não contribuindo para a formação da convicção do tribunal no sentido constante da acusação de forma segura e inequívoca.
No que se refere à facticidade aludida em d), e), f) e j), nenhuma prova foi feita quanto à mesma, não tendo o CC aludido a qualquer apertão de pescoço, nem qualquer soco no corpo no final de 2017, nem qualquer agressão ocorrida já após a separação na casa da arguida na Rua ... motivada por qualquer desconhecimento do paradeiro do passe de metro, apenas aludindo concretamente à factualidade ocorrida a 21.9.2021, já constante factos provados.
No que se refere à factualidade atinente ao menor BB, conforme já se deixou ínsito em sede de motivação da matéria provada, nenhuma prova segura e cabal foi feita de modo a permitir sustentá-la. Com efeito, sendo as declarações do BB vagas e imprecisas e não sendo sustentadas de forma segura e clara por qualquer outra prova direta produzida, permanece no espírito do julgador a dúvida quanto à ocorrência dos factos e, naturalmente, essa dúvida, ao abrigo do princípio in dubio pro reo terá necessariamente de ser valorada a favor da arguida, dando-se os factos como não provados.
Caso o julgador se confronte com uma dúvida inultrapassável sobre as provas produzidas, deve fazer funcionar o princípio in dubio pro reo, dando os factos como não provados. O «in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437.
Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
Quanto à matéria de facto não provada aludida em k) e l), cumpre referir que ao longo do depoimento do menor CC no que se refere à factualidade provada não se denotou qualquer propósito de humilhação da dignidade do mesmo. São situações que, não obstante graves e constituírem ilícito criminal, considerando o contexto não podemos concluir que houvesse da arguida o propósito específico de humilhar ou rebaixar a dignidade da pessoa concreta, nem tampouco que tenha previsto tal possibilidade e se tenha conformado com tal resultado. São situações concretas, ao que acresce que do depoimento do CC, atenta a sua postura e a forma como prestou o seu depoimento e o desprendimento e distanciamento verificado no relato dos factos, não se denotou esse propósito da arguida de atentar contra a sua dignidade pessoal ou rebaixamento da sua pessoa, enquanto seu filho, pessoa quem sabia dever uma especial obrigação de respeito, não atentando contra a sua dignidade.
Com efeito, não podemos deixar de concluir, atento todo o circunstancialismo anterior e posterior aos factos, o hiato de tempo de 3 anos decorrido entre as situações dadas como provadas (uma reportada ao ano de 2018 e outra reportada a 2021), que terão sido situações concretas, que embora altamente censurável, ofendendo a integridade física e honra do menor CC, não tinha como resultado humilhar a dignidade pessoal do mesmo. Igualmente quanto à factualidade aludida em 7 dos factos provados, o próprio CC refere que tanto a mãe como o pai davam bofetadas para repreender comportamentos que consideravam errados e “quando faziam asneira”, não valorizando as mesmas.
Salienta-se que os menores residiram com os progenitores até Maio de 2020 sem que nenhuma participação à CPCJ ou à PSP fosse efetuada contra a arguida por maus tratos aos filhos, seja por parte do Colégio ..., que as crianças sempre frequentaram, seja por vizinhos ou mesmo das crianças e do progenitor.»


*

Vejamos então.

É pacífico o entendimento de que quanto à impugnação da matéria de facto pode o recorrente seguir um de dois caminhos: ou invoca os vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, devendo, neste caso, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, ou apresenta uma impugnação alargada, que lhe permite analisar a prova produzida em julgamento, extrapolando o espaço limitado do texto da decisão recorrida.

Em qualquer das opções impõe-se ao recorrente o cumprimento de regras para que o recurso possa ser apreciado e tenha viabilidade de sucesso em termos formais.

Quanto à primeira perspectiva, que abarca, em abstracto, os invocados vícios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, als. b) e c), do CPPenal, respectivamente, reitera-se que são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.

Para se verificar o vício da contradição insanável da fundamentação previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPPenal têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis.

Conforme se firmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2013[2], «[a] contradição insanável de fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada, perceptível, consistente e conjugável harmonicamente entre si, apurada na versão transmitida.»

Segundo a recorrente, há contradição na fundamentação porque «todos os fa[c]tos participados e levados à acusação não obtiveram a credibilidade ansiada pelo assistente e pelos menores (manipulados) nem quanto ao BB, nem quanto ao CC, mas obtiveram credibilidade quanto aos factos que levaram à condenação da arguida».

No fundo, segundo o entendimento da arguida, o Tribunal a quo entra em contradição na sua fundamentação quando cindiu a credibilidade de declarações ou depoimentos, pois impunha-se, na sua perspectiva que a avaliação fosse uniforme.

Nada mais errado, pois nem a vida nem a prova são a preto e branco, o tudo ou o nada. O Julgador pode e deve procurar esmiuçar as narrativas realizadas em julgamento para delas retirar, em face de dados objectivos que os corroboram, os segmentos que exprimem a realidade dos factos.

Corroborando a perspectiva perfilhada, de que o Tribunal de julgamento pode e deve retirar da globalidade de cada declaração ou depoimento aquilo que objectivamente possa validar como verdadeiro, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis in www.dgsi.pt:

Tribunal da Relação do Porto de 18-12-2024, elaborado pela aqui relatora no âmbito do Proc. n.º 396/19.0GAMCN.P1, onde se entendeu que
«O julgador não está obrigado a aceitar ou a rejeitar em bloco as declarações e depoimentos prestados, devendo, antes, procurar esmiuçar as narrativas realizadas em julgamento para delas retirar, em face de dados objectivos que os corroboram, os segmentos que exprimem a realidade dos factos.»

Tribunal da Relação de Coimbra de 28-01-2010, relatado por Ribeiro Martins no âmbito do Proc. n.º 73/08.8GDSCD.C1, onde de firmou que:
«1. A apreciação da prova faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção, a significar que a prova deve ser analisada através da formulação de juízos assentes no bom senso e na experiência de vida temperados pela capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação adquiridos pela experiência.
2. O julgador não está obrigado a aceitar ou a rejeitar acriticamente e em bloco as declarações prestadas, podendo delas respigar aquilo que lhe pareça credível, desde que justifique a sua opção.

Tribunal da Relação do Porto de 10-09-2014, relatado por Neto de Moura no âmbito do Proc. n.º 5509/11.8TDPRT.P1, aí se defendendo que:
«III – Em termos simples e sintéticos, o princípio da livre apreciação da prova pretende exprimir a ideia de que no ordenamento jurídico que o acolhe, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador, como acontecia no sistema da prova legal), pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com a livre convicção do julgador (também designada por íntima convicção).
IV – Por isso, o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
IV - O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
V – Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.»

E também do Tribunal da Relação do Porto de 09-09-2015, igualmente relatado por Neto de Moura, agora no âmbito do Proc. n.º 2/13.7GCETR.P1, perfilhando-se igual entendimento.

Ora, o Tribunal a quo, como se viu da fundamentação supratranscrita, explicou de forma objectiva, e não arbitrária, a razão pela qual a prova dos factos provados 3 a 6 (conduta objectiva) tinha contornos diferentes da quase totalidade dos que constavam da acusação, justificação que aqui relembramos:
«Não obstante as declarações da arguida, no que se refere à factualidade que resultou provada, o Tribunal valorou as declarações para memória futura prestadas pelo menor CC, bem como presencialmente na última sessão de audiência de julgamento, conjugadas com a prova documental e pericial junta aos autos.
Com efeito, o Tribunal ouviu as declarações para memória futura e com base nas mesmas e na demais prova produzida ao longo do julgamento, determinou a prestação de esclarecimentos presenciais por parte do menor CC (cfr. Despacho constante da ata de 17.4.2024 ref.ª 459239778).
No que se refere à factualidade aludidos em 3 a 6 o menor CC relatou a mesma - quer nas declarações para memória futura quer aquando da prestação de esclarecimento em audiência de julgamento -, de forma clara, coincidente, escorreita e credível. Não obstante alguma confusão na fixação do dia concreto – o que se revela normal atento o hiato de tempo entretanto decorrido e a idade jovem do mesmo à data dos factos – o certo é que quanto ao circunstancialismo do episódio ocorrido em Setembro de 2021 é claro e preciso. Explica que, nessa altura os pais já estavam separados e que o regime era uma semana em casa de cada um, tinha 13 anos e estava no início do 8.º ano. Nesse dia, estava em casa da sua mãe e a mesma, após receber um email da professora de Português do CC a dizer que ele não tinha realizado o trabalho de casa da disciplina, exaltou-se aos gritos e repreendeu-o por não ter feito o trabalho e ato contínuo empurrou-o contra os armários da cozinha e para o chão, caindo e desferiu-lhe pontapés nas nádegas, costas e membros inferiores. Mais refere que ao mesmo tempo que agredia a mãe o chamou de “cabrão”, “idiota”.
Acrescenta que também lhe bateu com a parte de trás de um garfo no seu ombro, que não foi como muita força, e que quando se acalmaram foram para a sala imprimiram o material necessário para a aula de português e aí a arguida voltou a exaltar-se e voltou a empurrá-lo, tendo o CC embatido na porta de acesso ao jardim. Acrescenta que ficou com dores nesse dia e com marcas no ombro esquerdo e nádega direita.
No que se refere à matéria de facto aludido em 6 dos factos provados, o Tribunal valorou não só as declarações do menor CC que aludiu às lesões no seu corpo, como o depoimento de HH, companheira do pai do menor, que aludiu ao facto de ter visualizado as marcas no ombro e nádega do CC, tal como o pai deste DD, que o transportou às urgências do Hospital quando visualizou em 24.9.2024, bem como Resumo do episódio de urgência do Hospital ... de fls. 297 a 298, conjugado com o teor do relatório médico legal de avaliação do dano corporal elaborado pelo IML a 7 de outubro de 2021 de fls. 107 a 109v do apenso D (cerca de 15 dias após os facto de onde resulta compatibilidade entre as lesões verificadas e a factualidade relatada pelo CC) e ainda das Fotografias de fls. 90 e 91 do apenso D - processo apensado n.º 1408/21.3PIPRT, onde se visualizam as lesões constantes do relatório médico-legal e as quais foram confirmadas pelo pai do menor, pessoa que tirou as fotografias.
Não obstante o Tribunal denotar conflito interior do menor CC para com a sua mãe, aqui arguida, ao longo da prestação dos seus esclarecimentos – própria e/ou incutida/incentivada por terceiros, sento nítido a tomada de partido do pai em detrimento à mãe (conforme infra se elucidará) -, no que se refere à factualidade provada, não teve o Tribunal qualquer dúvida em dá-la como provada, encontrando as declarações do menor CC quanto à factualidade de 21.9.2021 suporte não só na documentação clínica, designadamente o episódio de urgência de fls. 297 e 298, datado de 24.9.2021 onde é relatado já tal factualidade bem como a descrição das lesões verificadas, como também do relatório médico legal junto aos autos a fls. 107 a 109v do apenso D realizado na sequência da perícia medico legal ocorrida em 7.10.2021, cerca de 15 dias após os factos e onde resulta que as lesões referidas são compatíveis com a informação relatada pelo CC.[3]
Neste conspecto, igualmente o assistente DD, pai do CC, apesar de não ter presenciado os factos, refere, nesta parte, de forma clara e credível, que se separou da arguida na Páscoa de 2020, e que em julho de 2020 foi estabelecido o regime de guarda partilhada quanto aos menores. Acrescenta que no dia 24.9 foi buscar o CC e o BB e viu no banho a pisadura no ombro esquerdo e nádega direita e questionou o CC onde tinha feito e este disse que a mãe se tinha zangado e o tinha empurrado contra o armário e agredido, sendo coincidente com declarações do CC. Mais refere que nesse dia levou o CC até às urgências do Hospital ... (cfr. Fls. 297) e no dia 7 de outubro foi ao IML para o exame médico-legal (fls 107 e 109v).
Acresce ainda que as lesões verificadas são ombro e nádega opostas, compatíveis com a descrição da factualidade e caso as mesmas tivessem sido feitas numa queda em aula de educação física (conforme aludido pela arguida), segundo as regras do normal acontecer, seriam no mesmo lado do corpo, sendo certo que o Colégio do CC não reportou qualquer queda. Não obstante, neste ponto cumpre referir que o próprio CC refere que passado alguns dias, quando voltou a estar com a mãe a mesma questionou-o sobre as lesões que viu, tendo o mesmo, com receio da atitude da mãe, dito que tinha caído numa aula de educação física.»

Estas explicações são objectivas, sustentadas em vários elementos de prova e de modo algum contrárias à avaliação levada à cabo pelo Tribunal a quo quando à matéria de facto não provada, que se pode resumir na afirmação de que «[p]ese embora tanto o BB como o CC aludirem genericamente que a arguida os agredia, não conseguiram especificar as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram (à exceção da factualidade supra aludida quanto ao CC) e não foram capazes de descrever e circunstanciar a atuação da arguida, mostrando-se nessa parte, declarações vagas, inseguras, sendo certo que não podemos olvidar a data em que as mesmas foram prestadas, em 11.10.2022, quando já não viam a arguida há vários meses (decorrente da medida de promoção e proteção), estando a residir com o pai, denotando uma preterição/rejeição da mãe em relação ao pai.»

Não encontramos, pois, na referida análise qualquer contradição.

Alega ainda a recorrente no mesmo seguimento que «[c]omo consta do relatório do exame pericial, o menor, além de outras lesões antigas, apresentava em 07/10/2024 escoriações no ombro e na nádega.

É este o facto provado corroborado pelas fotografias e pelo resumo do episódio de urgência de 24/09/2024.

Atribuir tais lesões a agressões da mãe em 21/09/2021, pelas declarações adaptadas do menor CC, está em contradição com a restante parte da fundamentação da decisão que desacredita todas as testemunhas que foram indicadas para confirmar a acusação, que não viram, que apenas reproduziram o que lhe foi contado pelo CC;

Sendo que também as declarações do CC têm as incongruências, animosidade e falta de fiabilidade explanadas na própria motivação.

Vejamos o depoimento do assistente:

[transcrição de excertos]

Este depoimento do assistente, produzido em audiência, já foi ajustado, dando a entender que o BB é que sabia contar os pormenores, como se estivesse presente, quando já todos sabiam que nada tinha visto, e aumentando o garfo para garfo grande, para poder fazer as equimoses no ombro, mas transfere as pancadas com o garfo para o fim de todas as relatadas agressões, apondo-lhe os dizeres “não se volta a repetir, estuda, faz pela vida” empurrando o tribunal para ver uma espécie de normalidade de umas pancadinhas pequenas a chamar a atenção do filho de que era preciso preparar o futuro.

Este depoimento é visivelmente estratégico e estudado para tentar que o tribunal crie uma meia verdade, compatível com as pequenas pancadas com a parte de trás do garfo, da versão das declarações para memória futura do CC.

Mas ainda faz mais confusão quando volta à versão original e refere:

[transcrição de excertos]»

Ora, como claramente se pode verificar da antecedente alegação, a recorrente não se cinge ao texto da decisão recorrida recorrendo às gravações da prova, extravasando o que consta do texto da decisão recorrida.

Mas, como se referiu, quando alinhamos nos argumentos usados a prova produzida, para além da informação que o texto da sentença recorrido nos dá, já não nos encontramos no âmbito dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, mas sim do erro de julgamento em sede de matéria de facto, ou seja, da impugnação ampla da matéria de facto, a que adiante se fará referência.

Assim, improcede a invocação da contradição insanável da fundamentação.

No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, é uma falha que resulta, como se referiu, do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum, e traduz-se numa deficiência lógica na apreciação da prova, num «erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio.»[4]

É o caso, por exemplo, de as provas tal como se descrevem na decisão apontarem em determinado sentido e depois se concluir em termos opostos, o que revela um juízo ilógico e é passível de ser detectado por qualquer pessoa de mediana formação[5].

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis, ou quando o Tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum.

Contudo, a mera divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do Tribunal não configura qualquer um dos vícios em apreço[6].

Perscrutadas as alegações de recurso não encontramos nelas qualquer referência ao erro notório na apreciação da prova, apenas vindo a ser inserida em sede de conclusões, com o seguinte alinhamento, sequente à avaliação da prova levada a cabo pela recorrente:
«IX- Acabando o tribunal por dar por assente a primeira versão do CC e dizendo que era coincidente com a versão dada em audiência;
X- O que constitui erro notório da apreciação da prova, nos termos do artigo 410, nº 2 al c) do CPP.»

Ultrapassando a limitação de não haver referência no corpo do recurso (alegações) ao erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal, mas tão-somente nas suas conclusões – o que por si só impede a válida configuração da pretensão –, sempre verificaríamos que a argumentação da recorrente se baseia numa análise da prova, que na sua perspectiva não confere com a relatada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, estando, obviamente, para lá dos limites do texto da decisão recorrida, pois extravasa o que dele consta, impondo a análise do conteúdo de meios de prova, área reservada à impugnação ampla da matéria de facto, ao abrigo do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal.

E no que concerne ao argumento de que as agressões dadas como provadas e aqui impugnadas não são congruentes com as regras da experiência comum não lhe assiste qualquer razão, posto que a não demonstração de parte dos factos pelas razões avançadas pelo Tribunal a quo não impede a comprovação de outros com base nos mesmos meios de prova, como já se referiu, sendo certo que não se verifica nenhuma anomalia cronológica, se bem percebemos a crítica, à circunstância de os factos terem ocorrido a 21-09-2021, serem corroborados por fotografias e episódio de urgência a 21-09-2021 (e não 2024 como se alega) e em exame pericial de 07-10-2021 (e não 2024 como se alega).

Assim, também aqui improcede a invocação do apontado vício de lógica da sentença.

Não se vislumbrando igualmente outros vícios de conhecimento oficioso.

Nessa medida, pela via dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, nenhuma modificação cabe introduzir ou determinar seja introduzida na matéria de facto assente.


*

Erro de julgamento em sede de matéria de facto

Na análise desta pretensão do recurso, a segunda das vias que inicialmente identificamos para impugnação da matéria de facto, importa ter presente que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.

As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível. E, na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, e não à consignada pelo Tribunal.

E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[7]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.

Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[8]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, apreciemos a argumentação do recurso.

E o problema que, desde logo, se suscita é o do cumprimento das formalidades legais necessárias à reapreciação da matéria de facto com tal amplitude.

Com efeito, para a perfectibilização do recurso com esta natureza e dimensão, formalmente, têm os recorrentes de cumprir o preceituado no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do CPPenal, isto é:
«3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.»

Assim, devem os recorrentes explicitar relativamente a cada facto impugnado, fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, os elementos de prova que impõem decisão diversa e qual o sentido dessa decisão.

E a referência aos meios de prova que impõem decisão diversa deve ser realizada com menção às concretas parcelas que corroboram a sua posição e com expressa indicação dos elementos relevantes para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 412.º, do CPPenal[9].

Ora, a recorrente começa por impugnar os pontos 3) a 6) e 11) da matéria de facto provada, respeitantes a um episódio de agressão física ocorrido em Setembro de 2021, considerando que deveriam ter sido dados como não provados.

A esta impugnação segue-se, não a desejável e necessária concretização facto a facto, mas uma análise da prova por grosso, onde a recorrente reproduz parcelas seleccionadas das declarações do assistente e do menor CC (identificando aqui erradamente a transcrição da prova com a data em que as mesmas foram realizadas, ou seja, os marcos temporais e segmentos transcritos não respeitam ao dia da gravação indicado, antes ao dia das declarações para memória futura, o que este Tribunal de recurso conferiu, mas não é obrigado a fazer), fazendo recair uma crítica generalizada à apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo, realçando a circunstância de ter dado credibilidade a parte das declarações do menor e não a outra, que como já vimos não constitui por si só erro técnico na avaliação da prova, mas não associa a cada facto impugnado, mas a todos em geral, qualquer particular passagem da prova invocada, como se impunha, em cumprimento do disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal.

Acresce que a estes, poucos, excertos da prova gravada que invoca associa resumos que a mesma faz de outras declarações do menor CC, por isso, também aqui, sem a necessária e exigida concretização imposta pelo n.º 4 do art. 412.º do CPPenal.

Não compete ao Tribunal de recurso respigar dos elementos de prova indicados no recurso as parcelas que em cada caso, isto é, em cada facto impõem a respectiva alteração e porquê.

Como bem argumenta Paulo Pinto de Albuquerque[10], «o grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, visa, precisamente, impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado

Por outro lado, a impugnação da matéria de facto apresentada, nos termos em que foi realizada, equivale à pretensão de um segundo julgamento realizado na Instância de recurso quanto aos factos impugnados, o que a lei, como se viu, claramente não admite, reflectindo apenas uma outra versão dos factos e uma diferente análise e leitura da prova, atribuindo-se diferente credibilidade, mas não identifica qualquer verdadeiro erro de julgamento.

Nesse sentido, é jurisprudência pacífica a que considera que «[a] censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» e que, por isso, «para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.»[11]

A verdade é que o Tribunal a quo foi muito específico na avaliação que realizou do episódio das agressões e da interpretação que fez da prova, como já se deu nota, sendo certo que a argumentação que a recorrente apresenta não tem a potencialidade de modificar a matéria de facto impugnada, porquanto se limita a apresentar uma diferente avaliação da prova, com incidência na cisão que o Tribunal a quo realiza às declarações do menor ofendido, sendo a apreciação realizada na sentença recorrida perfeitamente coerente com as regras da experiência comum e com todo o contexto apurado, não estando verdadeiramente sinalizada a violação de qualquer regra ou lapso na avaliação da prova.

Assim, para além das questões formais enunciadas que inviabilizam a apreciação do recurso por não cumprimento dos requisitos legais necessários a essa pretensão (não correspondência entre meios de prova em concreto e cada facto impugnado em particular, de modo a evidenciar o erro de julgamento relativamente a cada um deles), levando à sua rejeição, o sucesso do recurso sempre estaria inquinado, pois está em causa uma subjectiva análise da prova por parte da recorrente, que realiza tão-somente diferente avaliação dos meios de prova, mas não invoca ou salienta qualquer verdadeiro erro de julgamento, qualquer argumento jurídico objectivado em passagens da prova produzida que pudessem levar o Tribunal de recurso a considerar, perante a análise dos vários elementos de prova invocados, ter ocorrido quanto a cada um dos factos impugnados uma qualquer falha na formação da convicção do Tribunal a quo e que a solução por si [recorrente] proposta seria a única, e não apenas uma outra, que se impunha em face da prova produzida.

Em face do exposto, impõe-se a rejeição do recurso quanto ao segmento da impugnação ampla da matéria de facto, improcedendo quanto ao demais invocado, sendo certo que não foi introduzida qualquer alteração à sentença recorrida que implicasse uma alteração da análise jurídica dos factos, que não foi impugnada e que acompanhamos.


*


III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pela arguida AA, rejeitando-o no segmento respeitante à impugnação ampla da matéria de facto, e em manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas pela recorrente, fixando-se em 3,5 UC a taxa de justiça (arts. 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Notifique.

Porto, 29 de Janeiro de 2025

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)

Maria Joana Grácio

Pedro Maria Godinho Vaz Pato

Maria Ângela Reguengo da Luz

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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Relatado por Pires da Graça no âmbito do Proc. n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1, acessível in www.stj.pt.
[3] Realce a negrito da relatora.
[4] Cf. acórdão do STJ de 28-06-2018, relatado por Souto de Moura no âmbito do Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[5] Cf. acórdão do TRL de 01-06-2016, relatado por Albertina Pereira no âmbito do Proc. n.º 24 781/15.8T8LSB.L1-4, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Cf. acórdão do STJ de 15-01-2015, relatado por Helena Moniz no âmbito do Proc. n.º 92/14.5YFLSB, acessível in www.dgsi.pt.
[7] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[8] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[9] No acórdão do TRP de 02-12-2015, relatado por Artur Oliveira, no âmbito do Proc. n.º 253/06.0GCSTS.P1, acessível in www.dgsi.pt, perfilhou-se o entendimento, estabilizado, de que «[v]isando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida».
[10] In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição actualizada, anotação 9 ao art. 412.º, pág. 1122, com realce a negrito da relatora.
[11] Cf. acórdão do TRL de 10-07-2018, relatado por José Adriano no âmbito do Proc. n.º 485/16.3GDTVD.L1-5, acessível in www.dgsi.pt.