I - O crime de violência doméstica admite a aplicação de qualquer uma das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, respeitados os pressupostos gerais e específicos, aqui se incluindo a mais gravosa de todas, dado que, por efeito do disposto no art.1º al j) o crime de violência doméstica se insere no conceito de criminalidade violenta enquadrando-se no art. 202 nº1 al.b) do CPP.
II - Às medidas de coação urgentes previstas no art. 31 da lei n.º 112/2009, de 16 de setembro aplicam-se como resulta do corpo do artigo os pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal e como tal a sua duração, alteração e extinção, está prevista nos artigos 212 a 218, do mesmo diploma.
III - Sustentar que as medidas de coação aplicadas no âmbito da proteção das vítimas de violência doméstica ao abrigo da lei nº112/2009 não estão sujeitas a prazos de caducidade, colide com o princípio constitucional da proporcionalidade e da presunção de inocência previsto no art. 32 nº2 da CRP e, por isso, tal interpretação seria inconstitucional.
(Da responsabilidade da Relatora)
1. Relatório
Nos autos com o nº 669/23.8PIPRT que corre termos na segunda secção do DIAP do Porto, foi em 6/09/2024, feito o reexame de pressupostos das medidas de coação aplicadas ao arguido AA nos seguintes termos:
«O arguido AA veio requerer a alteração das medidas de coação a que se encontra sujeito, designadamente, mantendo a obrigação de afastamento mas retirando a pulseira eletrónica ficando salvaguardadas as exigências cautelares que o caso requer.
O M.P. opôs-se a tal pretensão promovendo pela manutenção das medidas de coação já aplicadas.
Cumpre apreciar:
O arguido encontra-se fortemente indiciado nos presentes autos pela prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo artº 152º nº1 al.b) e nº2 al.a) e 4 do Cod. Penal.
É consabido, porque pacífico, que as medidas de coação estão sujeitas à condição rebus sic standibus, como claramente se deduz do disposto no n.º 1, al. b) e n.º 3 do art.º 212º do CPP. Quer isto dizer que só podem ser revogadas se deixarem de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação; e só devem ser substituídas por outras menos gravosas se se verificar uma atenuação das exigências cautelares. A medida de coação só pode ser revogada ou substituída se tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou se as exigências cautelares se houverem atenuado.
Com base nos elementos de prova carreados neste fase foi possível apurar que o arguido não reconhece o desvalor da sua conduta tendo-lhe sido aplicadas as medidas de proibição de contactos com a ofendida por qualquer meio e de afastamento da residência e do local de trabalho desta ou de outro local onde a mesma se encontrar por se mostrar elevado o perigo de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas em face do incremento e grau de intensidade da atuação persecutória do arguido em relação à vítima, razão pela qual tais medidas foram aplicadas com a colocação dos meios de vigilância eletrónica para proteção da vítima.
Ocorre que desde que lhe foram aplicadas tais medidas já foram comunicados aos autos vários atos que consubstanciam tentativas de contacto com a ofendida dando por isso continuidade à sua atuação persecutória.
Constata-se deste modo que no caso se mantêm inalterados os fundamentos de facto e de direito que fundamentaram o despacho de fls.185 e s.s. que determinaram a aplicação daquelas medidas de coação.
Consequentemente, por subsistência dos pressupostos e acrescendo ainda que não se verifica qualquer atenuação das exigências cautelares que a determinaram, nº3 do artº 212º do C.P.P., sendo infundado o pedido do arguido, nos termos do artº 212º “a contrario” indefere-se o requerido e, consequentemente, determino que o arguido se mantenha a aguardar os ulteriores termos do processo na situação em que se encontra.
Notifique.»
Inconformado com a decisão veio o arguido interpor o presente recurso.
É o seguinte o teor das conclusões de recurso:
«1a - O recorrente encontra-se, entre outras, sujeito à medida de coação de afastamento com pulseira eletrónica, desde o passado dia 14 de Setembro de 2023.
2a - Salvo o devido respeito, entende-se que as medidas de coação devem ser declaradas extintas, pelo decurso do prazo.
3a - De facto, o arguido foi sujeito às medidas de coação no dia 14-09-2023, tendo passado mais de um ano, sem ter sido proferido Despacho Final do Inquérito.
4a - Devendo, nos termos do art.218, nºs 1; 2 e 3, "ex-vi" arto 215, todos do C.P.P., ser declarada extinta, com todas as legais consequências.
5a - Discorda-se em absoluto, sempre com o devido respeito, da Promoção do M.P., porquanto, consideramos que não mantém qualquer atualidade os perigos de continuação da atividade criminosa, nem de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, devendo ser declaradas extintas as medidas de coação, com exceção do TIR prestado a fls...
6a - De facto, o arguido foi sujeito à presente medida de coação em 1º Interrogatório Judicial de arguido detido, no dia 14-09-2023.
7a - Passou quase um ano e o processo, de natureza urgente, continua em Investigação.
8a - Sendo que o arguido tem a sua vivência diária condicionada pelo uso do Dispositivo Eletrónico.
9a - O arguido tem recusado receber tratamentos médicos e cirúrgicos, devido ao uso do referido dispositivo e à desconfiança que gera nos profissionais de saúde.
10a - De referir que, não obstante tenha passado mais de um ano, não foram verificados os pressupostos que impuseram a aplicação desta medida de coação, nem a sua atualidade, necessidade e adequação.
11a - Pelo que, manter tal medida de coação, nesta data, é violar os princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.
12a - Não correspondem à verdade, os factos vertidos pelo Ministério Público, na sua Promoção, ficando aqui expressamente impugnados os alegados incumprimentos das medidas de coação que lhe foram aplicadas.
13a - Salvo o devido respeito, a Promoção do Ministério Público, padece de nulidade e é inconstitucional, pois alega, sem concretizar factos, incumprimentos do estatuto coactivo, o que impede o arguido de se pronunciar e põe em causa as suas garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
14ª - De facto, reitera-se e mantém-se que o arguido não incumpriu qualquer estatuto coactivo, desconhecendo este o que consta a fls. 185 e 186, pois que não lhe foram enviadas, tais folhas para análise e competente resposta.
15a- De facto, o arguido não utilizou o telefone no ...98 para contactar a Ofendida.
16a - E, salienta-se, que o M.P. apenas fundamenta a sua Promoção na versão da Ofendida, sem cuidar de recolher prova que fundamente, ainda que indiciariamente, a versão da Ofendida.
17a - Na verdade, desde 13-09-2023, está o arguido sujeito às medidas de coação e os autos em Investigação.
18a - Tratando-se de um processo de natureza urgente, que corre termos em Secção do DIAP especializada, parece-nos, salvo o devido respeito, que já decorreu tempo suficiente para todas as diligências investigatórias e a comunicação de factos concretos ao arguido, a fim de garantir a sua defesa.
19a- No caso concreto, passado mais de 10 meses, sem ter sido proferido Despacho Final, verifica-se uma atenuação das exigências cautelares, não sendo atuais os perigos alegados.
20a- Sendo de alterar a medida de coação, retirando o Dispositivo Eletrónico que está a condicionar a vivência diária do arguido.
21a- Sendo suficientes para garantir as necessidades cautelares, as restantes medidas de coação e imposições impostas nos autos.
22a - Aliás, o arguido, em termos de saúde, tem a sua vida condicionada, pois recusou ser submetido a cirurgia de varizes dos membros inferiores, em virtude da existência da pulseira eletrónica.
23a - De referir que o arguido, com o conhecimento da equipa de fiscalização da vigilância eletrónica, o arguido anda a fazer tratamentos Dentários na Universidade ....
24a - O arguido desloca-se em transportes públicos, por não ter meio de transporte próprio.
25a - Tem o passe para deslocação.
26a - Teve conhecimento o arguido, através da equipa de fiscalização da V.E., que o referido autocarro, onde se fazia transportar, passou no perímetro da residência da Ofendida.
27a - Mas, tal passagem, não pode ser imputada a falta do arguido, uma vez que, não é este que escolhe ou fixa a linha trajetória dos transportes públicos, sendo certo que apenas esse autocarro assegura o trajeto para a referida Universidade.
28a - Acresce que, salvo o devido respeito, inexiste, em concreto, qualquer perigo ou risco para a Ofendida.
29a- Mas, mesmo que existisse, o Processo Penal tem meios que permitem garantir a segurança da Ofendida e protegê-la em caso de necessidade, podendo ser avaliado o risco em concreto.
30a-Tudo sem condicionar, a vida diária do arguido, com a aplicação de Dispositivo Eletrónico, que está a perturbar e a prejudicar gravemente a saúde do arguido, uma vez que o mesmo tem recusado tratamentos médicos.
31a - Sem necessidade de mais delongas, reitera-se tudo quanto foi exposto no nosso Requerimento datado de 23-04-2024, reiterado no nosso Requerimento datado de 12-06-2024, dando ambos, por razões de economia processual, integralmente reproduzidos, para todos os efeitos legais.
Então, pelo menos, importa suavizar o seu cumprimento, mantendo a obrigação de afastamento mas retirando a pulseira eletrónica, ficando salvaguardadas, protegidas e atingidas todas as exigências cautelares, que o caso requer.
33a- No dia 14-09-2023, o arguido foi sujeito a Primeiro Interrogatório Judicial, tendo sido aplicadas medidas de coação entre elas, a obrigação de afastamento, controlada por meios eletrónicos.
34a- No dia 06-09-2023, foram reexaminados os pressupostos da prisão preventiva, nos termos do arto 212, do C.P.P.
35a - Pela Decisão recorrida o Tribunal "a quo" manteve as medidas de coação aplicadas.
36a - Não foi solicitada a realização de Relatório Social, a fim de indagar da atenuação das exigências cautelares, que determinaram a aplicação destas medidas de coação. Não se atentou no tempo já decorrido, mais de um ano.
37a- Salvo o devido respeito, discorda-se desta fundamentação, uma vez que inexiste qualquer perigo dos constantes no art. 204, do C.P.P.
38a - Desde o Primeiro Interrogatório Judicial, em 14-09-2023, o arguido sempre cumpriu a Medida de Afastamento da Vítima.
39a- A aplicação desta medida de coação com pulseira eletrónica, que priva o arguido da sua liberdade de movimentos, está dependente da existência de fortes indícios da prática do crime doloso, estando condicionada aos princípios: da legalidade; adequação; subsidiariedade; proporcionalidade; necessidade; pedido; audição prévia do arguido; unidade do prazo e presunção da inocência, tudo nos termos dos ares 27 e 28, da C.R.P., e artos 202, no 1, ai. a) e 193, ambos do C.P.P.
40a - Sendo certo que, no processo se iniciaram as investigações no ano de 2023, e apesar de já terem passado mais de 24 meses sobre o Primeiro Interrogatório Judicial, o processo continua na fase de Inquérito.
41a - Assim não entendeu o Mmº Juiz "a quo" que decidiu manter a medida de coação com vigilância eletrónica.
42a - Cremos, salvo o devido respeito, não assistir razão, ao Tribunal "a quo", pois, durante mais de um ano, o mesmo não se aproximou da vítima, pelo que, não houve incumprimento das Medidas de Coação impostas no Primeiro Interrogatório.
43a- O arguido esteve sempre contactável e sempre compareceu nos atos processuais, para os quais tinha sido legalmente notificado.
44a - Assim, inexiste em concreto o perigo de continuação da atividade criminosa.
45a - As medidas de coação inserem-se dentro de um conjunto de medidas de natureza cautelar com vista a garantir o decurso do processo penal sem incidentes (cfr. art. 27 da Constituição da República Portuguesa e art. 191 do Código do Processo Penal). É perante este circunstancialismo que no instituto da prisão preventiva se afirma com acentuado comprometimento todos estes princípios, especialmente o da necessidade e concomitantemente o seu carácter excepcional, subsidiário e não obrigatório, dando-se, assim, prevalência à aplicação da medida de coacção: obrigação de permanência na habitação (cfr. art. 193 nº 3 do Código do Processo Penal) na senda do disposto nos artigos 27 nº 3 e 28 nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.
46a - Resulta igualmente do nosso ordenamento jurídico o não dever a medida jurídica ser aplicada ou mantida sempre que possa ser substituída por qualquer outra medida de coação, significa que, desde que qualquer das outras medidas seja adequada para acautelar os fins processuais que se pretendem alcançar com a imposição de uma medida de coação, deve ser sempre aplicada a menos gravosa.
47a - Daí o Legislador ter imposto o reexame dos pressupostos que deve ocorrer de forma trimestral.
48a - Em caso de "igualdade de circunstâncias, deve funcionar o princípio da subsidiariedade da prisão, aplicando-se a obrigação de permanência na habitação, por ser, ainda assim, mais favorável (arts. 193 n.º3 do C.P.P e 28 n.º 2 da C.R.P.
49a - Não existe nenhum facto concreto na decisão recorrida que fundamente a decisão de não retirar ao arquido a viqilância eletrónica, também esta uma medida privativa da liberdade de movimentos e condicionadora da sua vida diária.
50a- Ora, como se sustenta aliás no douto aresto do Tribunal da Relação do Porto de 19.09.2012 - in www.dgsi.pt), "Exige-se, então, ao aplicador do direito, que comprove nos factos e justifique na argumentação porquê, em concreto, não é dada preferência à obrigação de permanência na habitação, porque esta se mostra, ainda insuficiente".
51a- O perigo de perturbação do inquérito invocado, pelo tempo já decorrido, tendo presente a data em que o inquérito se iniciou as diligencias que foram realizadas que no entender do Sr. Magistrado Titular conduziram à existência de fortes indícios, permitem, nesta fase, afirmar perentoriamente não existir perigo na aquisição, conservação e veracidade da prova, pois esta, alegadamente a existir, está na posse e à disposição do titular do inquérito, que aliás, quando remeteu o inquérito para primeiro Interrogatório Judicial (TIC), tinha promovido, a aplicação de medidas de coação, não detentivas e que foram aplicadas.
52a- Como é consabido, "Indícios Fortes" são as razões que sustentam e revelam uma convicção indubitável de que, de acordo com os elementos conhecidos no momento da prolação de uma decisão interlocutória, um facto se verifica. Este grau de convicção é o mesmo que levaria à condenação se os elementos conhecidos no final do processo fossem os mesmos do momento da decisão interlocutória.
53a - Pelo que, cremos que poderá haver indícios, mas que não são fortes, e os perigos do art. 204, do C.P.P., ficam acautelados com a aplicação do TIR e obrigação de afastamento sem Vigilância Eletrónica.
54a - O fundamento da alínea c), do arto 204, do C.P.P., deve ser cuidadosamente interpretado, em termos do seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada.
55ª- O perigo de continuação da actividade criminosa, não pode ser invocado para justificar medidas privativas da liberdade, por a isso se opor o art. 5, da CEDH, que foi violado, pois tal Convenção só permite que sejam invocados o perigo de cometimento de novas infracções ou o perigo de
56ª - Também não existe em concreto qualquer perigo de continuação da actividade criminosa, pois a existência do Inquérito, o tempo já passado, intimidam o recorrente no sentido de não praticar qualquer facto ilícito e de cumprir as Medidas de Coação.
57a - Acresce que, o titular do Inquérito que investiga os factos desde 2023, em Promoção a fls..., quando remeteu os autos e o detido ao TIC para Primeiro Interrogatório Judicial e aplicação de medida de coação promoveu como adequadas e proporcionais aos indícios recolhidos, medidas de coação não detentivas da liberdade, por essas serem suficientes.
58a- Cremos que, no despacho recorrido e salvo o devido respeito, não está convenientemente demonstrada a necessidade da medida coactiva cumulada com a vigilância eletrónica, nem que as restantes medidas coactivas não sejam suficientes para ultrapassar os eventuais perigos.
59a- Os perigos do art. 204, do C.P.P., podem ser acautelados e banidos por aplicação ao recorrente de qualquer outra medida de coação, sendo o TIR suficiente para acautelar os perigos e adequada às exigências cautelares.
60a- O TIR é mais proporcional, evita os efeitos criminógenos das medidas detentivas e incentiva a união familiar, previne e afasta os perigos do art. 204, do C.P.P. e satisfaz plenamente as necessidades cautelares, que o caso requer.
61a - A decisão recorrida, para além de outras normas e princípios, violou os ares 191 a 193; 196; 202; 204; 215 e 218, todos do C.P.P; e ainda, os arts 18; 27; 28 e 32, todos da C.R.P., e ainda o art. 5, da C.E.D.H.»
Conclui pedindo que na procedência do recurso sejam extintas, pelo prazo entretanto decorrido, as medidas de coação impostas, e/ou revogando a medida de coação de afastamento controlado por vigilância eletrónica, e substituindo-a por qualquer outra menos gravosa, como seja o TIR, e/ou quaisquer outras medidas julgadas convenientes, - mas onde não se inclua, qualquer controlo pelos meios tecnológicos de controlo à distância -, dado que estas são mais adequadas às circunstâncias do caso e à personalidade do recorrente e contribuem para a união familiar, satisfazendo, plenamente, as necessidades cautelares.
O recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 24/10/2024.
Em primeira instância o MP respondeu ao recurso defendendo que face ao art. 35 da lei 112/2009, - a qual assume caracter de lei especial face às regras do CPP -, não se aplica às medidas de coação aplicadas nos autos os prazos previstos no art. 218 do CPP.
Alega que em incidente a ofendida queixou-se de receber chamadas do nº ...98 cujo titular não se encontra identificado mas que se apurou que no dia 30 de Janeiro de 2024, coincidente com o período em que a ofendida recebeu as tais chamadas, fora carregado, através da conta bancária com o nº ..., aberta na Banco 1..., que é titulada, precisamente pelo recorrente conforme folhas 356 a 360 dos autos.
Perante tal realidade conclui o MP que não se verificou qualquer atenuação das exigências cautelares, bem pelo contrário, e que os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade pública se mantêm absolutamente atuais, legitimando o Tribunal a quo a manter o estatuto coativo do recorrente.
Defende a correção do despacho recorrido que considera não ter violado quaisquer princípios, designadamente, os da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, assim como dos artigos 18, 27, 28 e 32, da Constituição da República Portuguesa, e do artigo 5, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Pugna pela manutenção do despacho recorrido.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto subscreve as considerações da resposta do MP em primeira instância e emite parecer no sentido da improcedência do presente recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.
2. Fundamentação
A) Circunstâncias com interesse para a decisão:
A promoção que antecedeu o despacho recorrido é referida pelo arguido nas suas conclusões de recurso motivo porque se me afigura necessário transcrevê-la:
«Atento o estado da investigação e as diligências em curso, o MP entende que devem ser mantidas as medidas aplicadas aquando do interrogatório judicial, pois não se vislumbra que outras medidas de coação possam proteger a ofendida.
Na verdade, como afirma Frederico Isasca, in “A prisão preventiva e restantes medidas de coacção”, “se é certo que a reposição do direito se não pode fazer à custa da negação ou da limitação dos direitos de defesa, não é menos verdade que “do outro lado” existe uma vítima que é o suporte individual de um bem jurídico fundamental que foi violado e que espera uma resposta célere e em conformidade com as expectativas – tanto substantivas, quanto adjectivas - criadas pela Ordem Jurídica. Não podemos pois correr o risco de imolar a realização da justiça na ara dos direitos do arguido, sob pena de total descredibilização do Sistema. Uma tal atitude criaria na vítima e na colectividade um sentimento de absoluta frustração e compreensível revolta, pondo em causa o próprio Estado de Direito. Neste contexto, as medidas de coacção – expressão máxima da restrição de direitos, liberdades e garantias, em Processo Penal – emergem como condição indispensável, embora num quadro de excepcionalidade, a realização da justiça. E traduzem, nessa exacta medida, uma das vertentes do conteúdo útil do princípio do equilíbrio”.
As medidas que o arguido se encontra sujeito são adequadas, proporcionais e necessárias à protecção da vitima, razão pela qual devem ser mantidas, o que se promove.»
Foi o seguinte o teor do despacho proferido após primeiro interrogatório judicial que em 14/09/2023 aplicou medidas de coação ao recorrente:
«Mostra-se fortemente indiciada a prática pelo arguido da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a) e nº 4 e 5 do CPenal, atentos os elementos já coligidos nos autos, concretamente a prova de fls. 163 e vº) e que ora se dá por integralmente por reproduzido.
O arguido remeteu-se ao silêncio no uso de um direito que lhe assiste.
Todavia, ao optar por não prestar declarações o arguido perdeu a oportunidade de infirmar a factualidade que indiciariamente lhe é imputada.
Com efeito, mostra-se coligido um conjunto de indícios probatórios entretanto recolhidos no decurso do presente inquérito, nomeadamente aqueles elencados a fls. 163 e vº e que ora se dão por integralmente reproduzidos.
Da conjugação de uns e outros resulta que o arguido e a ofendida mantiveram uma relação afetiva e íntima, com co-habitação e que durante e após o término dessa essa relação o arguido manteve para com a ofendida um comportamento hostíl, violento e pressecutório, forçando contactos não desejados pela ofendida, desrespeitando a vontade desta, indiciando que não se conformou com a decisão do final do relacionamento.
Por outro lado, inexiste qualquer motivo para que o arguido insista em falar e privar com a ofendida, tanto mais que não chegaram a oficializar o casamento, a relação já findou há algum tempo e não existem filhos desse relacionamento.
É, assim, elevado o perigo de continuação da atividade criminosa e bem ainda da ordem e tranquilidade pública, já que é o próprio arguido que não reconhece o desvalor da sua conduta, conforme resulta, desde logo, das declarações que prestou a propósito das suas condições socioeconómicas e, bem ainda, na falta de consentimento para os meios de controlo à distância que nas suas palavras, não tem qualquer fundamento.
A mera sujeição de TIR já imposto ao arguido certamente se revelará insuficiente para afastar o perigo de continuação da atividade delituosa, razão pela qual as promovidas medidas coativas de proibição de contacto do arguido com a ofendida (nomeadamente, pessoalmente ou através de telefone ou redes informáticas); proibição de se aproximar da ofendida, da residência ou local de trabalho da mesma, ou outro local onde a mesma se encontre; tudo fiscalizado por meios eletrónicos à distância se mostram, além de proporcionais e adequadas a afastar tal perigo, como necessárias para o efeito, o que ora se determina nos termos dos art.ºs 191º a 193º, 194º, 196º, 204º, al. c) do CPP e art. 31º, al. a), b) e c) e n.º 2 da Lei 112/09 de 16/9 e art. 26º da lei 33/2010 de 2/9 e art. 35º e 36º, nº 7 da Lei 112/09 de 16/9.
Considerando o incremento do grau e intensidade da atuação persecutória por parte do arguido em relação à ofendida, afigura-se imprescindível para a proteção da vítima a colocação de meios de vigilância electrónica para efeitos de fiscalização das medidas de coacção ora aplicadas, o que se determina.»
São os seguintes os factos que foram considerados fortemente indiciados e que constam do requerimento do MP para primeiro interrogatório judicial:
«1. No mês de Outubro de 2016, o denunciado e a ofendida BB iniciaram uma relação de namoro.
2. Ainda no ano de 2016, até ao mês de Outubro de 2019, os mesmos passaram a manter uma relação amorosa semelhante à existente entre casal, em comunhão de cama, mesa e habitação.
3. O agregado familiar fixou residência habitual na Rua ..., entrada ...6, casa ...2, nesta Cidade do Porto, habitação da ofendida.
4. A partir do ano de 2017 até ao mês de Outubro de 2019, no interior da casa de morada de família, o denunciado despoletou discussões com a ofendida, maioritariamente na sequência de ser confrontado por ela com o facto de não contribuir para as despesas do agregado familiar e continuar a manter um vínculo afectivo com a ex-cônjuge.
5. No decurso de tais discussões, que ocorreram com frequência ainda indeterminada, o denunciado insultou a ofendida, dirigindo-lhe expressões ainda não concretizadas.
6. No mês de Agosto de 2021, o denunciado voltou a contactar a ofendida, dizendo-lhe que tinha terminado a relação amorosa que mantinha com a ex-mulher, manifestando vontade em reatar o relacionamento que tiveram, pedido a que a ofendida não anuiu.
7. A partir do mês de Outubro de 2021, o denunciado passou a telefonar para o telemóvel da ofendida com mais frequência, que continuou a não atender as suas chamadas.
8. Em face da sua insistência, a ofendida bloqueou o número do cartão do denunciado no seu telemóvel.
9. Ao se aperceber disso, o denunciado passou a contactá-la através de outros cartões de telemóvel.
10. Ciente que perturbava a ofendida, dirigiu-se por várias vezes para a junto do Bloco onde a mesma residia, aguardando a sua chegada.
11. Nos dias 20 e 21 de Fevereiro de 2022, identificando-se como AA no primeiro, e CC no segundo, o denunciado remeteu dois e-mails para endereço de correio electrónico profissional da ofendida, ..........@....., alegando que desejava ser contactado, simulando, dessa forma, interesse em adquirir imóveis cuja venda a mesma mediava.
12. Na sequência de tais e-mails, a ofendida, convicta que se trataria de terceiros interessados na compra dos imóveis, contactou os números de telemóvel indicados pelo denunciado, sendo nessa altura surpreendida ao se aperceber que se tratava dele.
13. Telefonicamente, pelo menos durante o mês de Fevereiro de 2022, o denunciado exigiu à ofendida que a mesma fosse testemunhar num processo que figurava como arguido e vítima a sua ex-mulher.
14. Ainda no mês de Fevereiro de 2022, através das redes sociais “Messenger” e “WhatsApp”, assim como para os endereços de correio electrónico da mesma, tanto pessoal, como profissional, o denunciado remeteu inúmeras mensagens escritas à ofendida.
15. Saturada de tais comportamentos e com receio do denunciado, no dia 22 de Fevereiro de 2022, a ofendida apresentou queixa contra o denunciado, que deu lugar à instauração do Processo N.º 337/22.8PIPRT.
16. Contudo, desde o final do mês de Novembro de 2022 até à actualidade, através de redes sociais e de outros números para além do seu, o denunciado voltou a remeter mensagens escritas à ofendida, com uma frequência quase diária.
17. Nas várias mensagens que lhe remeteu, o denunciado dirigiu as seguintes expressões à ofendida, entre outras: “ingrata”, “…o falsa como judas”, “…es pobre de espirito”, “…sempre gostaste de usar as pessoas, para teu proveito!! Falta de …e ética”.
18. Na sequência da ofendida bloquear os contactos e perfis nas redes sociais do denunciado, este cria outros perfis, e obtém outros cartões, e contacta a ofendida.
19. Persiste em remeter e-mails para o endereço de correio electrónico profissional da ofendida.
20. A título de exemplo, destacam-se os e-mails remetidos nos dias 11 e 13 de Abril de 2023, através dos endereços de correio electrónico que criou, ..........@..... e ..........@....., para endereço de correio electrónico profissional da ofendida, ..........@....., no âmbito dos quais alega que a mesma é uma ingrata.
21. Desde o final do mês de Novembro de 2022 até à actualidade, o denunciado entrou em contacto com colegas de trabalho da ofendida, questionando-os sobre a vida íntima dela e se algum deles mantem um relacionamento amoroso com ela.
22. Desde o final do mês de Novembro de 2022 até à actualidade, o denunciado adquiriu cartões através dos quais telefonou para a ofendida.
23. Durante tais telefonemas, o denunciado vem-lhe dirigindo as seguintes expressões: “puta”, “vaca”, “filha da puta”, “a tua mãe é uma grande vaca”, “o teu pai foi um grande corno”, “se te apanhar na rua eu vou-te foder”, “vou-te partir toda”, “vou entrar em contacto com os teus clientes e vou-te difamar”
24. Desde o final do mês de Novembro de 2022 até à actualidade, o denunciado vem dirigindo-se para as imediações da residência da ofendida, o que já sucedeu em várias ocasiões, questionando os funcionários de um estabelecimento aí situado pela mesma, referindo-se a ela nos seguintes termos: “onde está a vaca?”.
25. Pelo menos no mês de Março de 2023, o denunciado criou uma conta na rede social “Facebook”, fazendo constar do seu perfil uma fotografia da ofendida, sem que a mesma alguma vez lhe tenha dado autorização para o efeito.
26. Em tal perfil, o denunciado fez constar o seguinte: “Sou uma cadela com Dono, no entanto cresci muito. Preciso de espaço. Mínimo 500m2, sou sociável”.
27. No dia 18 ou 19 de Julho de 2023, o denunciado elaborou um documento escrito, o qual introduziu na caixa de correio correspondente ao apartamento da ofendida, no prédio onde a mesma reside.
28. Depois de o fazer, no dia 19 de Julho de 2023, pelas 10:00 horas, o mesmo dirigiu-se para a porta do apartamento da ofendida, tendo tocado à campainha.
29. Como a ofendida não lhe abriu a porta, o mesmo desceu as escadas e tocou no botão do intercomunicador correspondente ao apartamento dela.
30. Dado que voltou a não chegar à fala com a ofendida, remeteu-lhe então uma mensagem escrita, com o seguinte teor: “bom dia podes ler o papel”.
31. No final desse dia, pelas 19:00 horas, quando a ofendida chegou ao prédio onde reside, abriu a caixa do correio, na qual se encontrava o referido documento.
32. Ainda nesse dia, depois disso, o denunciado voltou a dirigir-se para o prédio da ofendida, tendo tocado à campainha correspondente ao apartamento dela.
33. Com receio, a mesma não abriu a porta.
34. Face a todos os factos descritos, a ofendida teme seriamente o que o denunciado lhe possa vir a fazer, receando que a continue a sujeitar a comportamentos como os relatados e que chegue mesmo a atentar contra a sua integridade física e vida.
35. O denunciado agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de humilhar, intimidar e importunar a sua ex-companheira, a quem sabe dever uma especial obrigação de respeito, bem como com o intuito de a atingir na sua integridade física e psíquica, o que logrou concretizar, criando-lhe um estado permanente de medo, inquietação e insegurança, atentando assim contra a sua saúde física, psíquica e emocional.
36. Sempre teve, além disso, perfeito conhecimento que os seus comportamentos são proibidos e puníveis por Lei Penal.»
B) Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto dos presentes autos o recorrente suscita a questão da caducidade das medidas de coação por decurso do prazo máximo previsto nos artigos 218 e 215 do CPP.
Mais alega não se verificarem os perigos exigíveis pelo art. 204 do CPP para aplicação de medidas de coação diversas do termo de identidade e residência e terem sido violados os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade.
Vejamos a primeira questão que é a de saber se os artigos 31 e 35 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, consagram ou não um regime especial sobre os prazos de medidas de coação e, nesse âmbito, se estas medidas de coação estão sujeitas aos prazos previstos no 215 nº 2 aplicáveis por força do artigo 218 nº 2 do CPP.
No caso dos autos o recorrente foi detido em 13/09/2023 para ser submetido a primeiro interrogatório judicial e, em 14/09/2023, foram-lhe aplicadas as medidas de coação de que o despacho recorrido fez o reexame.
Ora, continuando os autos em investigação sem ter sido ainda proferido o despacho final do inquérito, verificamos que há muito foi excedido o prazo máximo de duração das medidas de coação aplicadas nos autos, tendo em conta o disposto nos artigos 200, 215 nº2 e 218 nº2, todos do CPP, que seria de seis meses.
Em defesa do despacho recorrido o MP argumenta que as medidas previstas nos artigos 31 e 35 da Lei 112/2009 de 16 de setembro, não estão sujeitas aos prazos de caducidade das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, por considerar que se trata de medidas urgentes excecionais para proteção das vítimas especialmente vulneráveis nos termos da Convenção de Istambul.
O citado 31 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, prevê aquilo que designa, em epígrafe, de medidas de coação urgentes.
Estatui que, após a constituição de arguido pela prática do crime de violência doméstica, o tribunal pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, sem prejuízo das demais medidas de coação previstas no Código de Processo Penal e com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação nele referidos, de medida ou medidas de entre as seguintes:
«a) Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa;
b) Sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica;
c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar;
d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família;
e) Restringir o exercício de responsabilidades parentais, da tutela, do exercício de medidas relativas a maior acompanhado, da administração de bens ou da emissão de títulos de crédito.»
O preceito prevê medidas que, genericamente, podemos qualificar como de proibição e imposição de condutas; as quais quanto ao seu conteúdo, correspondem às já previstas no artigo 200 do CPP. A única especificidade reporta-se ao n.º 2 do mesmo artigo que refere que as medidas previstas nas alíneas c) e d) mantém relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento de violência doméstica.
Aqui chegados cumpre referir que o crime de violência doméstica admite a aplicação de qualquer uma das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, respeitados os pressupostos gerais e específicos, aqui se incluindo a mais gravosa de todas, dado que, por efeito do disposto no art.1º al j) o crime de violência doméstica se insere no conceito de criminalidade violenta enquadrando-se no art. 202 nº1 al.b) do CPP.
É certo que no regime específico instituído pela Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, nada é dito quanto ao prazo máximo de duração das medidas, para além do que se prevê no artigo 35, nº5, do diploma. Porém, ao remeter, no corpo do citado art. 31, para os pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, nada mais teria de ser dito; porquanto, as medidas de coação previstas no Código de Processo Penal têm a sua regulamentação, quanto à duração, alteração e extinção, prevista nos artigos 212 a 218, desse diploma, e o art. 3º do mesmo diploma indica-o para integração de lacunas relativamente a processos de natureza penal regulados em legislação especial.
E, por outro lado o art. 35 nº5 da lei nº112/2009 de 16 de setembro remete quanto à extinção da medida de vigilância por meios técnicos de controle à distância para o art. 212 do CPP, o que se deverá interpretar como extensivo às demais medidas aplicadas no âmbito desta lei.
Sustentar que as medidas de coação aplicadas no âmbito da proteção das vítimas de violência doméstica ao abrigo da lei nº112/2009 não estão sujeitas a prazos de caducidade, colide com o princípio constitucional da proporcionalidade e da presunção de inocência previsto no art. 32 nº2 da CRP:
«Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.»
Na verdade, e no sentido por nós defendido passamos a citar o Acórdão desta Relação e Secção, relatado por Nuno Pires Salpico com data de 22/02/2023, onde se pode ler:
«… no plano da vitimologia, atualmente com ampla receção, e bem, no ordenamento jurídico português, não só o crime de violência doméstica, justifica ampla proteção, como igualmente outra criminalidade violenta, como são o caso dos abusos sexuais, e em toda ela, não obstante a justeza do estatuto da vítima, ninguém pretenderá, converter as medidas cautelares, num sistema processual cautelar abnorme, com medidas de coação sem limite temporal, (que não o trânsito), com transfiguração da natureza cautelar das medidas de coação.
Se as vítimas merecem os especiais cuidados que a lei atualmente lhes consagra, o funcionamento da justiça processual continua a reclamar proporcionalidade na compressão dos direitos fundamentais, o que para além do mais, é conseguido pela duração limitada das medidas de coação, competindo ao Ministério público a gestão dos prazos processuais do inquérito, (tarefa nem sempre fácil), para que o equilíbrio não seja rompido.»
E também neste sentido o Ac. desta Relação relatado por William Themudo Gilman com data de 4/01/2023:
«Da Lei 112/2009 não resulta que tenha sido intenção do legislador afastar do regime das medidas de coação do artigo 31º a aplicação de prazos máximos de duração das medidas de coação, que as ‘medidas de coação urgentes’ previstas nesse artigo não têm qualquer limitação temporal.
Com efeito, do facto de em tal lei se ter omitido a referência a qualquer forma ou prazo de extinção ou de duração máxima das medidas de coação nela previstas não quer dizer que a intenção do legislador ou da lei tenha sido a da ‘eternização’ de tais medidas, pois que, tratando-se de legislação especial, as disposições do Código de Processo Penal são, nos termos do artigo 3º deste diploma, subsidiariamente aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos processos de natureza penal regulados em lei especial.»
E ainda no mesmo sentido veja-se o Ac. desta Relação, de 31/05/2023, relatado por Maria Deolinda Dionísio.
Aqui chegados, temos de concluir que tendo decorrido mais de seis meses desde a aplicação das medidas de coação sem que exista despacho final do inquérito as medidas aplicadas ao recorrente em 14/09/2023, se encontram extintas pelo decurso do prazo, o que tem de ser declarado, cumprindo em primeira instância avaliar de novo o estatuto processual do arguido nos termos do disposto nos artigos 212 nº2 e 194 nº4 do CPP.
Face à declaração de extinção das medidas de coação diversas do TIR fica prejudicado o conhecimento dos restantes argumentos recursivos.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expostos, acordam os juízes na 1ª secção criminal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, declaram-se cessadas as medidas de coação aplicadas ao arguido em 14/09/2023, por ter sido excedido o prazo máximo da sua duração.
Sem tributação.
Porto, 29/1/2025.
Relatora: Paula Cristina Guerreiro
1º adjunto: Pedro Vaz Pato
2ª adjunta: Madalena Caldeira.