CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONVERSÃO DO PROCESSO CRIMINAL EM PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
Sumário

I - Aquele que, estando habilitado com carta de condução da categoria AM, for encontrado a conduzir veículo automóvel, não comete o crime de condução sem habilitação legal previsto no artigo 3º do D.L. 2/98, de 03.01, mas sim a contraordenação prevista no artigo 123º, n.º 3, al. b) do Código da Estrada (na redacção introduzida pelo D.L. 102-B/2020, de 09.12).
II - A decisão de conversão do processo criminal em processo contaordenacional terá lugar no Tribunal de 1ª Instância atento o disposto no artigo 77º do RGC e a necessidade de acautelar o duplo grau de jurisdição.

Texto Integral

Processo 628/20.2T9AGD.P1
Comarca de Aveiro
Juízo Local Criminal de Águeda

Acordam em conferência os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
I.1 Por sentença proferida em 03.07.2024 o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do D.L. n.º 2/98, de 03.01, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão.

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I.2 Recurso da decisão
O arguido AA interpôs recurso da decisão, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral):
“1ª O presente recurso tem como objeto a matéria de facto dada como provada na douta Sentença recorrida, com fundamento em:
● Nulidade da douta Sentença recorrida, prevista na alínea c), do n°1, do art.379, CPP.
● Erro na apreciação da prova (art. 412° n.° 3 als. a) e b) e n.° 4 do CPP).
● Erro de julgamento.
2ª Tem ainda o presente Recurso, por objeto, a matéria de direito, com fundamento em:
● Erro na qualificação jurídica dos fatos, e na determinação da norma aplicável, pois deveria (e deve) ser atendido e aplicado o disposto no artigo 123.° n.° 3 alínea b) do Código da Estrada, na redação atribuída pelo Decreto-Lei n.° 102-B/2020.
● Violação do disposto nos artigos 40.° n.° 1, 71°, e 77.° n.° 1, 2a Parte, todos do Código Penal.
Desde logo, verifica-se a existência de nulidade da douta Sentença recorrida, prevista na alínea c), do n°1, do art. 379, CPP, porquanto: Consta a fls. dos autos, a existência do resultado da pesquisa na base de dados "Página IMTT - Consulta de Condutores". Em tal documento consta que o arguido é possuidor de carta de Carta de condução "...", para categoria AM, válida até 09-08-2029. Mais, consta da douta acusação pública, como prova documental, "o Print do IMTT - fls. 37 e 78".
O Tribunal a quo sabia da existência de tal documento provatório nos autos, e atuou como se o mesmo não existisse. Este elemento de prova devia ter sido considerado pelo Tribunal a quo, mas ao invés disso, não foi tido em consideração para a tomada da douta Sentença recorrida.
4ª Verifica-se a existência de grave erro de julgamento, e de erro na apreciação da prova gravada, porquanto: Consta da douta Sentença recorrida que "No que aos factos respeita, o Tribunal valorou positivamente a confissão integral e sem reservas do arguido quanto à condução daquele veículo naquele dia e local."
- Ou seja, a Sentença recorrida teve por base, unicamente, a suposta confissão do arguido daqueles fatos. No entanto, não existiu qualquer confissão do arguido. Vejamos as declarações do arguido, prestadas em sessão de discussão e julgamento do dia 21-05-2024, com inicio em 10:21 e termo às 10:52, mais concretamente:
- [minuto 19:10 até 19:13] Meritíssima Juiz: "Olhe, o Senhor não tem carta de condução, pois não?"
Em resposta o arguido declarou:
- [minuto 19:14 até 19:16] Arguido: " Tenho, categoria AM, só."
5ª Por força da prova documental existente nos autos, e da audição das declarações do arguido verificamos que não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado os fatos vertidos nos pontos 2. e 10. da fundamentação de fato dada como provada na douta Sentença Recorrida.
Ou seja, não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que arguido não tinha carta de condução, e muito menos que confessou esse fato (não ter carta de condução).
6ª Deveria o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido é titular de carta de condução para categoria AM, daí resultando, deste fato, conforme infra, que o arguido não praticou qualquer crime, mas antes uma mera infração contraordenacional.
O Tribunal a quo, para além dos vícios supra apontados, também errou na qualificação jurídica dos fatos, e na determinação da norma aplicável, já que os mesmos não constituem a crime, mas sim contraordenação, prevista no artigo 123.° n.° 3 al. b) do Código da Estrada, na redação atribuída pelo Decreto-Lei n.° 102-B/2020, nos termos do qual:
"3 - Quem conduzir veículos de qualquer categoria ou tipo de veículo para os quais a respetiva carta de condução não confira habilitação ésancionado:
b) Com coima de (euro) 700 a (euro) 3500, se for apenas titular de carta de condução da categoria AM ou A1;"
8a Pelo que, devia (e deve) o arguido ser absolvido do crime pelo qual foi erroneamente condenado pelo Tribunal a quo.
SEM prescindir, caso assim se não entenda (o que não se admite):
9ª A pena aplicada é injusta, por excessiva e desproporcional, porquanto: O Recorrente nunca foi condenado, isoladamente, a uma pena de prisão pela prática do crime de condução sem habilitação legal, mas tão-somente a pena de multa. Não se justifica razoável, mas antes desproporcional, que das condenações em multa se passe para a aplicação de 18 meses de pena de prisão efetiva.
10ª Acresce que, o Tribunal recorrido não valorou corretamente o fato do arguido ter prestado esclarecimentos, nem o fato do arguido apresentar um comportamento adequado e sem registo de infrações, conforme consta do ponto 9. dos fatos provados.
11ª Por outro lado, na douta Sentença recorrida consta que:
"- o grau de ilicitude do facto é mediano;
- a intensidade do dolo foi na sua forma mais grave - dolo directo- o arguido quis praticar os factos, o que implica um grau de censura acrescido; que estas condutas tendem."
Sendo o grau de ilicitude mediano, tendo o arguido prestado esclarecimentos acerca dos fatos, estando a apresentar um comportamento adequado e sem registo de infrações, nunca poderia ter sido aplicada uma pena de 18 meses de prisão efetiva, muito próxima da pena máxima de prisão aplicável (2 anos de prisão).
12ª Mais, na douta Sentença recorrida consta que a intensidade do dolo foi na forma mais grave, mas o Tribunal a quo não fundamentou essa conclusão.
13ª Pelo que, ter-se-á de entender que a pena aplicada ao recorrente violou o disposto no artigos 40.° n.° 1, 71°, e 77.° n.° 1, 2a Parte do C.P, devendo agora ser substituída por multa, ou reduzida.”
Pugna pela alteração da sentença nos termos propugandos nas conclusões que antecedem.
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I.2 Resposta do Ministério Público
O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua procedência, pugnando pela alteração da sentença recorrida, que absolva o arguido do crime pelo qual foi condenado e o condene na contraordenação prevista no artigo 123°, n.º 3, al. a), do Código da Estrada (doravante CE), concluindo nos seguintes termos (transcrição integral):
“1° O arguido, aquando da prática dos factos em causa nos autos, era titular de carta de condução da categoria AM, sendo certo que foi dado como provado que conduzia um veículo automóvel, sem que fosse titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo na via pública.
2° A conduta não integra a prática do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.°, n.°s 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro, passando a subsumir-se na contra-ordenação prevista e punida no artigo 123.°, n.° 3 alínea a), do Código da Estrada na redação atribuída pelo DL 102-B/2020.
3° Por assim ser, entendemos que o facto de o arguido ser titular de uma carta de condução de condução categoria AM, a qual apenas lhe permite conduzir "motociclos de cilindrada não superior a 50 cm3 e veículos agrícolas da categoria I.", e no dia em causa nos autos, conduzir um veículo ligeiro de passageiros, para o qual a carta de que é titular (AM), não o permitir, não o faz incorrer num crime de condução sem habilitação legal mas, antes, na contraordenação prevista no artigo 123.°, n.° 3 alínea a), do Código da Estrada, (na redação atribuída pelo DL 102-B/2020).
4° E, assim sendo, dentro da moldura abstracta da coima de € 700,00 (setecentos euros) a € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) deverá o arguido sem condenado numa coima de no mínimo 1500,00€ (mil e quinhentos euros), atendendo que consta dos factos dados como provados que o mesmo «No dia 17 de Maio de 2021 o arguido conduziu o veículo de marca Ford, modelo ..., matrícula ..-..-MO, pela Rua ..., tendo, de seguida, entrado em despiste e imobilizado o veículo contra uma árvore.»”
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I.3. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, pugnando pela alteração da sentença recorrida nos termos da resposta apresentada pelo Ministério Público.
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I.4. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.5. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do CPP (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Assim, face às conclusões apresentadas no presente recurso as questões que importam apreciar e decidir são os seguintes:
1ª Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
2ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada por erro de julgamento;
3ª Errada qualificação jurídica dos factos;
Subsidiariamente,
4ª Substituição da pena de prisão pela pena de multa ou, se assim não se entender, redução da pena de prisão por ser excessiva.
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Conheceremos os fundamentos do recurso pela sua ordem lógica das consequências da sua eventual procedência e influência preclusiva.
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II.2. Sentença recorrida (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes)
“Fundamentação de Facto:
Após a realização da audiência de discussão e julgamento, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 17 de Maio de 2021 o arguido conduziu o veículo de marca Ford, modelo ..., matrícula ..-..-MO, pela Rua ..., tendo, de seguida, entrado em despiste e imobilizado o veículo contra uma árvore.
2. O arguido sabia que, para conduzir aquele veículo automóvel, cujas características conhecia, na via pública, necessitava de ser titular e portador de carta de condução, bem sabendo que não possuía título de condução e, ainda assim, quis conduzir, como conduziu, o veículo em questão.
3. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
4. O arguido iniciou o consumo de produtos estupefacientes aos 15 anos, após o falecimento do irmão e, dois anos depois, do progenitor, com quem vivia.
5. O arguido encontra-se, presentemente, abstinente e com acompanhamento do Centro de Respostas Integradas, em articulação com o Estabelecimento Prisional onde está detido.
6. O arguido, no período em que esteve em liberdade condicional, vivia em casa que foi do pai, com uma companheira.
7. Actualmente beneficia do apoio da companheira e dos seus tios.
8. Em contexto prisional trabalhou como faxina e a partir de Setembro de 2023 na serralharia.
9. Apresenta um comportamento adequado e sem registo de infrações.
10. O arguido confessou os factos.
O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
- por factos praticados em 7.1.2008 foi condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 130 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 19.3.2009 (P. n.° 21/08.5GBAGD);
- por factos praticados em 16.12.2010 foi condenado por um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, por decisão transitada em julgado em 22.3.2013 (P. n.° 573/10.0JAAVR);
- por factos praticados em 5.12.2007 foi condenado por um crime de condução sem habilitação legal na pena de 40 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 29.6.2006 (P. n.° 342/07.4TAMLD);
- por factos praticados em 19.10.2008 foi condenado pelo crime de furto qualificado na forma tentada na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, transitada em julgado em 10.2.2010 (P. n.° 1306/08.6GBAGD), tendo sido, posteriormente, revogada a suspensão da execução da pena;
- por factos praticados em 13.10.2007 foi condenado por um crime de condução sem habilitação legal e um crime de detenção de arma proibida, tendo sido condenado na pena única de 150 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 21.9.2010 (P. n.° 1013/07.7PSPRT)
- por factos praticados em 5.3.2008 foi condenado por um crime de furto qualificado na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, por decisão transitada em julgado em 27.7.2009 (P. n.° 259/08.5GBAGD), tendo sido, posteriormente, revogada a suspensão da execução da pena;
- por factos praticados em 30.3.2008 foi condenado por um crime de desobediência na pena de 85 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 21.10.2009 (P. n.° 228/08.5GAMLD);
- por factos praticados em 22.9.2008, 3.4.2008, 30.7.2008, 28.11.2008, 8.7.2008, 18.4.2018, 31.8.2008, 30.9.2008, 5.7.2008 e 29.4.2008 foi condenado por, respectivamente, um crime de furto qualificado na forma tentada, um crime de furto qualificado, um crime de furto qualificado, um crime de furto qualificado na forma tentada, um crime de furto qualificado na forma tentada, um crime de condução sem habilitação legal, um furto qualificado, um furto qualificado na forma tentada, um furto qualificado e um furto qualificado na pena única de 5 anos de prisão, por decisão transitada em julgado em 24.2.2011 (P. n.° 11/08.8GAAND);
- por factos praticados em 28.10.2008 foi condenado por um crime de furto na pena de 140 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 11.3.2010 (P. n.° 1314/08.7GBAGD);
- por factos praticados em 26.3.2010, 14.3.2010 e 30.3.2010 foi condenado, respectivamente, por um crime de receptação, um furto qualificado e um crime de furto qualificado na pena única de 5 anos, por decisão transitada em julgado em 24.3.2011 (P. n.° 193/10.9GBAND);
- por factos praticados em 25.5.2008 foi condenado por um crime de furto qualificado na pena de 1 ano de prisão, por decisão transitada em julgado em 12.9.2012 (P. n.° 217/08.0GB0BR);
- em cúmulo jurídico foi condenado numa pena única de 11 anos de prisão, e em 26.8.2016 foi-lhe concedida liberdade condicional, a qual veio a ser revogada em 28.6.2022;
- por factos praticados em 14.7.2021 foi condenado por um crime de homicídio qualificado na forma tentada, um crime de introdução em lugar vedado ao público, um crime de condução perigosa de veículo e um crime de dano na pena única de 5 anos de prisão, por decisão transitada em julgado em 2.3.2022 (P. n.° 239/21.5GB0BR);
- por factos praticados em 1.8.2021 e em 2020 foi condenado por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e um crime de falsificação ou contrafacção de documento na pena única de 3 anos de prisão, por decisão transitada em julgado em 8.4.2022 (P. n.° 308/20.9GBAND);
- por factos praticados em 14.5.2021 foi condenado por um crime de furto na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por decisão transitada em julgado em 27.9.2022 (P. n.° 383/21.9GBVNG);
- por factos praticados em 14.5.2014 foi condenado por um crime de furto qualificado na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, por decisão transitada em julgado em 19.12.2022 (P. n.° 382/21.0GBVNG);
- por factos praticados em 25.3.2021 foi condenado por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por decisão transitada em julgado em 2.5.2023 (P. n.° 168/21.2GBAGD);
- por factos praticados em 12.9.2020, 3.9.2020 e 12.12.2020 foi condenado, respectivamente, por um crime de furto qualificado na forma tentada, um crime de furto qualificado e um crime de furto qualificado na pena única de 4 anos de prisão, decisão transitada em julgado em 22.6.2023.
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Foram estes os factos provados, mais nenhum outro se provou com relevância para a decisão da causa, nomeadamente não se provou:
- no dia 30 de Outubro de 2020, pelas 14h11, o arguido AA, fazendo-se transportar no veículo de marca Mazda, modelo ..., cor vermelha e matrícula ..-GX-.., conduzido por aquele, deslocou-se ao Posto de Abastecimento da A..., sito no Lugar ..., em ... - Águeda, a fim de fazer seu o combustível que conseguisse abastecer directamente nas bombas;
- na concretização de tal plano, o arguido parou o veículo junto da bomba, abriu o tampão do depósito do veículo referido em 1., abasteceu 31,49 litros de gasolina, no valor de 45,00€ e colocou-se em fuga sem efectuar o pagamento devido.
- no dia 17 de Maio de 2021 o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, modelo ..., cor cinzenta e matrícula ..-..-QS desde os Estaleiros da Junta de Freguesia ..., sitos na Rua ..., em ... até à Rua ..., em Águeda.
- o arguido, ao abastecer o veículo sem efectuar o pagamento devido, sabia que actuava contra a vontade do seu proprietário, tendo concretizado o seu propósito.
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Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados, ou contém expressões conclusivas ou de direito, ou são irrelevantes para a decisão da causa.
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A convicção do tribunal alicerçou-se na análise e ponderação crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
No que aos factos respeita, o Tribunal valorou positivamente a confissão integral e sem reservas do arguido quanto à condução daquele veículo naquele dia e local.
Quanto aos antecedentes criminais, foi valorado o certificado de registo criminal que foi junto aos autos em 19.4.2024.
No que respeita às condições de vida do arguido, foi valorado o relatório social junto em 6.5.2024.
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Já no que diz respeito aos factos dados por não provados a sua resposta deveu-se à ausência de prova bastante e suficiente sobre os mesmos.
Quanto à condução do veículo Mazda ... e ida ao posto de combustível no dia 30.10.2020 o arguido negou ter tido qualquer participação nesses factos, indicando que foi o seu amigo e também consumidor - BB - quem subtraiu aquele veículo e se deslocou nele, tendo confirmado que o mesmo foi ter consigo à ..., conduzindo-o. Que nada sabe sobre a ida ao posto de abastecimento. Ouvido BB como testemunha, o mesmo admitiu que, efectivamente, havia utilizado este veículo, se deslocou às bombas de combustível e abasteceu sem pagar e foi ter com o arguido à .... Quer das imagens de videovigilância de fls. 3v e 34 quer da imagem a cores constante de fls. 34 (no despacho de 16.4.2021) não é perceptível a identificação do arguido (uma vez que se encontra de máscara, óculos escuros e boné), apesar das declarações do militar da GNR CC, que afirmou em audiência reconhecer o arguido nessas mesmas fotografias através da fisionomia. Porém, não foi capaz de explicar as características individualizadoras do arguido de forma a se compreender essa mesma identificação pelo que as suas declarações, por si só, sem razão de ciência atendível, não permitem ao tribunal ultrapassar a dúvida sobre a identidade da pessoa que se vê nas imagens e que abasteceu no posto de combustível da A..., no dia 30 de Outubro de 2020, sem pagar.
Quanto à factualidade do dia 17 de Maio de 2021, pelas 11h, na Rua ..., em ... - de o arguido ter conduzido o veículo VW ... - o mesmo nega que o tenha feito e as testemunhas ouvidas também não souberam descrever tal factualidade: DD, proprietário do carro, sabia apenas que tinha o carro estacionado e que uma senhora lhe ligou a dizer que havia visto o seu carro passar na rua. EE, a senhora que viu o carro passar, apenas sabia isso: que ouviu um indivíduo a passar três vezes na rua, a pé e que, a certa altura, o vê passar ao volante do carro de DD e, por ter achado estranho, lhe ligou. Não conhecia a pessoa e não reconheceu o arguido como sendo essa pessoa, em audiência de discussão e julgamento. Do auto de notícia de fls. 104 nada resulta sobre a autoria dos factos e o militar da GNR ouvido também nada sabia sobre essa factualidade, assim como a testemunha FF, pessoa que viu o carro parado à sua porta e telefonou para a GNR a dar conta do sucedido, nada mais sabendo também.
Do exposto resulta que, feita a produção da prova produzida na audiência, se suscita uma dúvida razoável sobre a imputação ao arguido dos factos constantes da acusação acerca do furto e da condução de veículo nos dias 30.10.2020 e 17.5.2021 (às 11h, do ...), sendo consabido que o tribunal só poderá criar a convicção da veracidade dos factos quando a mesma esteja para além de toda a dúvida razoável, não se tratando de uma mera opção voluntarista pela certeza do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável tenha logrado afastar qualquer dúvida. Ora, não sendo esse o vertente caso e tendo por princípio norteador que em processo penal vigora o princípio in dubio pro reo, outra alternativa não resta ao Tribunal se não o de dar tais factos como não provados.”
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II.3. Apreciação do recurso
II.3.1. Da nulidade da sentença – artigo 379º/1/c) do CPP
§1. O recorrente entende que a sentença recorrida padece de nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. c) do CPP por não ter ponderado e valorado todos os meios de prova carreados para os autos, designadamente a prova documental junta fls. 37 e 78 dos autos respeitante ao print do IMTT.
Invoca como norma violada o artigo 379º, n.º 1, al. c) do CPP.
Não assiste razão ao recorrente.
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§2. O artigo 379º do CPP preceitua (na parte que aqui interessa, com sublinhado aposto) que: “1. É nula a sentença:
a) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta sanção da nulidade, exclusivamente prevista para as sentenças (atento o princípio da legalidade em matéria de nulidades, ínsito no artigo 118º nºs 1 e 2 do CPP), visa garantir a completude ou exaustividade da decisão, de acordo com o qual, uma sentença deve conter, de forma esgotante, a apreciação dos factos e o respectivo enquadramento jurídico, mas sempre em estreita coerência com o que foi alegado pelos sujeitos processuais; com a prova produzida e com o direito aplicável, segundo as várias soluções jurídicas possíveis e segundo os seus poderes de cognição, resultantes das regras do processo ou dos temas pertinentes à decisão de mérito sobre o objecto do processo ou sobre a tramitação do mesmo, que tenham sido colocadas à apreciação do tribunal, pelos sujeitos processuais.
É fundamental aqui realçar que a expressão “questões que devesse apreciar” não se confunde com os simples argumentos, teses doutrinárias ou jurisprudenciais, razões, ou opiniões invocados pelos sujeitos processuais para sustentar a sua pretensão, reconduzindo-se antes a problemas concretos com incidência e influência directa no desfecho do processo, esteja em causa uma decisão de mérito sobre o seu objecto, ou apenas a aplicação de normas de direito adjectivo que obstem ao conhecimento do fundo da causa.
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§3. Transpondo estas breves considerações para o caso em concreto, o recorrente enfoca a omissão de pronúncia na falta de ponderação de meios de prova por parte do tribunal recorrido.
Como se depreende categoricamente dos fundamentos do recurso, a discordância manifestada pelo recorrente diz respeito, tão só, à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, questão que se localiza no erro de julgamento (e que será apreciada infra). Entende que, por erro de apreciação de determinados meios de prova (que indica), os factos dados como provados sob os pontos 2 e 10 não deveriam ter sido considerados como provados nos termos constantes na sentença recorrida.
Neste conspecto, ao contrário do que entende o recorrente, atentas as questões que importavam apreciar e decidir nos presentes autos, não vislumbramos a invocada patologia.
Improcede a nulidade invocada pelo recorrente.
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II.3.2. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada
§1. O recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto provada, alegando que a prova produzida impõe decisão diversa da recorrida, existindo factos incorrectamente julgados.
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§2. Nos termos do artigo 428º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º do CPP “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova”.
Por sua vez, o artigo 412º, n.º 3 do CPP dispõe que “Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
E, o seu n.º 4 estabelece que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
A impugnação da matéria de facto por o tribunal a quo ter efectuado uma incorrecta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não pode confundir-se com discordância na apreciação da prova que invada o espaço da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do CPP, que é de estrito domínio do julgador.
Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova que consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, por outro lado, em não haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.
Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objectivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material.
Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há-de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cfr. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207).
Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum.
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§3. Transpondo estas considerações para o caso em concreto, o recorrente sustenta que o tribunal recorrido não poderia ter dado com provado no ponto 2 dos factos provados que o arguido não tinha carta de condução e no ponto 10 dos factos provados que o arguido confessou não ter carta de condução.
Acrescenta que se deveria ter dado como provado que o arguido é titular de carta de condução para a categoria AM.
Afigura-se-nos que o recorrente cumpriu as exigências do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
Adiantamos, desde já, que assiste razão ao recorrente.
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§4. Como concretas provas que impunham decisão diversa o recorrente indicou:
a) As declarações do arguido AA;
b) O documento – print do IMTT – junto a fls. 37 e 78 dos autos.
Passemos de seguida a analisar os meios de prova ora elencados.
Da audição integral das declarações do arguido AA prestadas no dia 21.05.2024 (com início às 10:21:22 e duração de 00:31:04) resulta efectivamente que o mesmo admitiu a condução do veículo automóvel nas circunstâncias de tempo e lugar dados como provados. Porém, à pergunta “Não tem carta de condução?” respondeu “Tenho, categoria AM” e à pergunta “Não lhe permite conduzir carro?” respondeu “Não. Só veículos motorizados”, esclarecendo que sabia não ter carta de condução para conduzir veículos automóveis.
Daqui resulta que, ao contrário do que se extrai dos factos provados da decisão recorrida, o arguido apenas admitiu não ser titular de carta de condução que o habilitasse a conduzir veículos automóveis.
Acresce que do teor do documento junto aos autos a 30.06.2021 (referência 116966861) – informação da base de dados do IMTT – consta que o arguido é titular de carta de condução n.º ..., da categoria AM (motociclos), emitida em 17.09.2016 e válida até 09.08.2029.
Assim, a prova documental não permite concluir no sentido apurado na sentença recorrida. Isto é, dar como provado tão somente que o arguido não era titular e portador de carta de condução, sem se fazer qualquer referência ao tipo de veículo que o arguido não estaria de facto habilitado a conduzir.
Deste modo, os referidos meios de prova impõem alterar o ponto 2 dos factos provados e aditar um ponto aos factos provados nos termos a seguir consignados.
E, dada a modificação da matéria de facto provada ora determinada, mantém-se integralmente o teor do ponto 10. dos factos provados por os factos provados entretanto modificados corresponderem exactamente ao sentido das declarações prestadas pelo arguido.
Consequentemente, cumprirá também efectuar uma correcção na parte final do ponto 3 da matéria de facto provada, por forma a eliminar-se a expressão “penal”.
Nestes termos, em conformidade com os referidos meios de prova que impõem decisão diversa, nos termos do artigo 431º, al. b) do CPP determina-se a modificação da matéria de facto provada nos termos seguintes:
i) Alteração dos pontos 2 e 3 dos factos provados que passam a ter a seguinte redacção:
2. O arguido sabia que, para conduzir aquele veículo automóvel, cujas características conhecia, na via pública, necessitava de ser titular e portador de carta de condução, bem sabendo que não possuía título de condução que o habilitasse a conduzir aquele veículo e, ainda assim, quis conduzir, como conduziu, o veículo em questão.”;
“3. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”
ii) Aditamento do ponto 12. aos factos provados com a seguinte redacção:
“12. O arguido é titular de carta de condução da categoria AM (motociclos) emitida a 17.09.2016 e válida até 09.08.2029.”
É, pois, procedente, nesta parte, o recurso.
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II.3.3. Errada qualificação jurídica dos factos
§1. O arguido AA entende que, com a pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto provada, a sua conduta integra apenas a prática de uma contraordenação prevista no artigo 123°, n.º 3, al. b) do CE.
Argumenta que sendo o arguido titular de carta de condução da categoria AM, não obstante não o habilitar a conduzir veículos automóveis, deveria ter sido atendido o disposto no artigo 123º, n.º 3, al. b) do CE que sanciona esta situação como sendo uma contraordenação.
Tem razão o recorrente.
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§2. A matéria de facto provada alterada nos termos supra determinados é insusceptível de configurar a prática por parte do arguido/recorrente do crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do D.L. n.º 2/98, de 03.01 pelo qual foi condenado.
Senão vejamos.
Dispõe o artigo 121º com a epígrafe “Habilitação Legal para conduzir” (na redacção introduzida pelo D.L. 102-B/2020, de 09.12 e na parte que aqui interessa):
“1- Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.
(…) 4 - O documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos, automóveis e veículos agrícolas, exceto motocultivadores operados a pé, designa-se carta de condução.”
Sobre a carta de condução rege o artigo 123º do CE (na redacção introduzida pelo D.L. 102-B/2020, de 09.12 e na parte que importa):
“1 - A carta de condução habilita o seu titular a conduzir uma ou mais categorias de veículos e respetivos tipos fixadas no RHLC, sem prejuízo do estabelecido nas disposições relativas à homologação de veículos.
(...) 3- Quem conduzir veículos de qualquer categoria ou tipo de veículo para os quais a respetiva carta de condução não confira habilitação é sancionado:
(…) b) Com coima de (euro) 700 a (euro) 3500, se for apenas titular de carta de condução da categoria AM ou A1;”.
De acordo com a matéria de facto provada supra alterada na data da prática dos factos, em 17.05.2021, o arguido era titular de carta de condução da categoria AM emitida a 17.09.2016 e válida até 09.08.2029, porém, não era possuidor de carta de condução necessária para a condução de veículos automóveis ligeiros de passageiros, como aquele que o arguido conduzia.
Perante esta factualidade e tendo presente as normas aplicáveis é inegável que a conduta do arguido não integra a previsão do tipo legal de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do D.L. 2/98, antes é susceptível, tão só, de integrar a previsão da contraordenação cominada no referido artigo 123º, n.º 3, al. b) do CE, na redacção introduzida pelo D.L. 102-B/2020, de 09.12 (veja-se acórdãos do TRP de 18.04.2007, relatado por Ernesto Nascimento e do TRC de 09.04.2008, relatado por Jorge Raposo, ambos acessíveis em www.dgsi.pt e, ainda, Francisco Marques Vieira, in “Direito Penal Rodoviário”, pág. 164).
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§3. Perante o exposto, a conduta do arguido AA não integra a prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do D.L. n.º 2/98, de 03.01 por que foi condenado, mas apenas a contraordenação prevista n.º 3, al. b) do artigo 123º do CE, na sua actual redacção.
Atento o disposto no artigo 77º do RGC e a necessidade de acautelar o duplo grau de jurisdição, a decisão de conversão do procedimento criminal em procedimento contraordenacional terá lugar no tribunal da 1ª instância, que deverá condenar o arguido na coima que entender adequada dentro dos limites previstos no artigo 123º, n.º 3, al. b) do CE.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência:
a) Alterar os pontos 2 e 3 dos factos provados da sentença recorrida, nos termos decididos no ponto II.3.2.§4. da presente decisão;
b) Aditar o ponto 12 aos factos provados da sentença recorrida, nos termos decididos no ponto II.3.2.§4. da presente decisão;
c) Revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido do crime de condução sem habilitação legal por que foi condenado na 1ª instância;
d) Determinar a remessa do processo ao Tribunal da 1ª instância para a conversão do procedimento criminal em procedimento contraordenacional nos termos determinados no ponto II.3.3.§3.
Sem custas.
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Porto, 29.01.2025
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão
Pedro M. Menezes