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PRINCÍPIO DE ÚLTIMA RATIO DO DIREITO PENAL
CRIME CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA
OFENSAS INSIGNIFICANTES
Sumário
I - Como expressão, designadamente, do princípio de ultima ratio do direito penal, não são, em princípio, de considerar jurídico-penalmente relevantes, na aceção dos crimes contra a integridade física, as «ofensas no corpo» ou «na saúde» (física) que se mostrem «insignificantes». II - Para este efeito, não são de considerar insignificantes as ofensas que – nomeadamente pelas suas respetivas características, incluindo a sua intensidade e/ou duração – ultrapassem o nível geralmente habitual e socialmente tolerado de impacto físico no corpo de outrem.
Texto Integral
Processo n.º:10976/22.1T9PRT.P1 Origem: Juízo de Instrução Criminal do Porto (Juiz 4) Recorrente: Ministério Público Referência do documento: 18964497
I
1. O presente recurso – intentado pelo Ministério Público – vem interposto de decisão instrutória proferida no Juízo de Instrução Criminal do Porto (Juiz 4) que, após a competente instrução – requerida pelo arguido no tocante aos factos por que foi, findo o inquérito, acusado pelo Ministério Público – concluiu pela não pronúncia do acusado pelos factos em causa nos autos.
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida: «[...] Relatório. Finda a fase do inquérito decidiu o Ministério Público deduzir acusação pública[], imputando ao arguido AA a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido, à data dos factos, pelos artigos 33.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, e 143.º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e n), da referida Lei n.º. 39/2009, bem como, em relação à pena acessória, pelo artigo 35.º, n.º 1, deste mesmo diploma, e, actualmente, pelos artigos 33.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, e 143.º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e n), da referida Lei n.º 39/2009, bem como, em relação à pena acessória, pelo artigo 35.º, n.º 1, deste mesmo diploma. Na sequência, veio o Arguido requerer a abertura da instrução.[] No requerimento de abertura da instrução que apresentou refere o Arguido a não aplicabilidade ao caso dos autos do regime jurídico previsto na Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, bem como a natureza semi-pública do crime alegadamente cometido e a inexistência da necessária queixa. Por fim, refere-se à falta de preenchimento da factualidade típica e a uma eventual nulidade da acusação, por falta de indicação das normas legais aplicáveis.
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A fase da instrução foi declarada aberta por despacho judicial datado de 24/04/2024 e constante de fls. 160 dos autos.
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Não se tendo vislumbrado qualquer acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal.
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Mantendo a instância a sua integral validade e regularidade, nada obstando a que se conheça do mérito, cumpre, nos termos do artigo 308.º do Código de Processo Penal, proferir decisão instrutória.
Questões a decidir. Da conjugação do que se acaba de deixar escrito com tudo quanto vem alegado no requerimento de abertura da instrução, podemos afirmar que as questões a decidir na presente instrução serão as seguintes: - Não aplicabilidade ao caso dos autos do regime jurídico previsto na Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho; - Natureza semi-pública do crime alegadamente cometido e a inexistência da necessária queixa; - Falta de preenchimento da factualidade típica; - Nulidade da acusação, por falta de indicação das normas legais aplicáveis. - Qualificação jurídica dos factos que se vieram a ter por suficientemente indiciados.
Do âmbito e objectivo da fase da instrução. Começando, por uma questão de lógica interpretativa da presente decisão, por delimitar o âmbito da fase da instrução, importa referir que esta fase processual visa, segundo o que nos diz o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida. Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal. Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia». Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual. Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação. Depois, no n.º 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.º 2 do artigo 283.º, nos termos do qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento. Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado. Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal. Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Neste sentido, segue-se Castanheira Neves[], quando perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final» apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».
Da fundamentação de facto. Na acusação pública é imputada ao Arguido a prática dos seguintes factos:
«No dia 20 de agosto de 2022, no Estádio ..., no ..., decorreu um jogo de futebol, que teve início pelas 20.30 horas, oficialmente identificado sob o número ..., a contar para a terceira jornada da ..., entre a A..., SAD e a B..., SAD.
O arguido participou no referido jogo enquanto jogador da B..., SAD.
O ofendido BB, nascido em 8 de setembro de 2008 e, à data dos factos, com treze anos de idade, era, no mencionado jogo, um dos denominados “apanha bolas” da A..., SAD, e encontrava-se na área situada entre as linhas exteriores do terreno de jogo e as bancadas destinadas aos espetadores.
No desenrolar desse jogo, entre ao minuto e segundos 34.17 e 34.18, quando o ofendido pousou no chão uma bola que ia entregar ao arguido para substituir a que antes tinha saído do campo de futebol, o arguido apanhou essa bola, embateu propositadamente com a sua cabeça e antebraço esquerdo contra o tronco do corpo de BB e empurrou-o, o que lhe causou incómodo.
Da referida agressão física não resultaram lesões físicas.
O arguido, agiu de livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a integridade física de BB, bem sabendo que o mesmo era menor de idade, e, bem assim, que o seu comportamento era proibido e punido por lei.».
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Para fundamentar a imputação desta matéria de facto, o Ministério Público socorreu-se da prova produzida durante a fase do inquérito, a saber: documental (Imagens constantes do link «…»; relatório de fls. 3 e anexos de fls. 4 a 6); e testemunhal (BB, id. a fls. 60).
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Na fixação da matéria de facto que se deve ter por suficientemente indiciada e não indiciada relevam essencialmente as imagens constantes do link «…», visualizadas por mais do que uma vez por este Tribunal de Instrução Criminal. Da análise das referidas imagens constata-se a existência que o arguido AA, no momento em que vai apanhar a bola de jogo, embate efectivamente com a sua cabeça na zona lateral direita do corpo do Ofendido, provocando-lhe um ligeiro desequilíbrio. Conforme referido pelo próprio ofendido, afigura-se também a este Tribunal de Instrução Criminal que tal contacto foi intencionalmente provocado pelo Arguido, no calor do evento, mas sem que a sua conduta tenha provocado no Ofendido mais do que aquele ligeiro desequilíbrio. O Ofendido refere que não sofreu qualquer lesão, nem tão pouco dores.
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Ao contrário do entendimento sufragado pelo Ministério Público no despacho de acusação, cremos que a prova produzida nos autos não permite afirmar que «o arguido, agiu de livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a integridade física de BB e, bem assim, que o seu comportamento era proibido e punido por lei.». Com efeito, é convicção deste Tribunal de Instrução Criminal que a prova recolhida aponta para um comportamento desconforme, indelicado, eventualmente até violador das regras do jogo, mas não permitem afirmar, atenta o circunstancialismo do momento, a intensidade da conduta e o resultado da mesma, aquela vontade e consciência de magoar ou ofender fisicamente o menor BB.
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Tudo conjugado conduz à conclusão de ser juridicamente inviável a sustentação da suficiente indiciação da matéria de facto descrita no último parágrafo da acusação pública, a saber:
«O arguido, agiu de livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a integridade física de BB e, bem assim, que o seu comportamento era proibido e punido por lei.».
Fundamentação de direito. Com base na matéria de facto descrita na acusação pública, o Ministério Público imputa ao Arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física.
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Nos termos do disposto no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, que «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa». Constituem, assim, elementos típicos do crime de ofensa à integridade física a produção de uma acção, por qualquer modo, que cause, como consequência directa e necessária, uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, entendendo-se por ofensa corporal toda a acção violenta que perturbe, modifique ou altere desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa. A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta. A apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendido, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes devera partir de critérios objetivos (duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade da tutela penal), se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais (sem se confundir com hipersensibilidade ou embotamento do lesado). Ora, no caso em apreço, tendo presente os considerandos supra vertidos que conduziram à fixação da matéria de facto indiciada e não indiciada e por pressuposto as imagens juntas aos autos, cremos poder ser afirmado com total convicção que a conduta assumida pelo Arguido e as consequências dela resultantes não podem ser consideradas relevantes, ao ponto de exigirem tutela penal. No raciocínio que desenvolvemos e que serve de fundamento à presente decisão seguimos de perto aquilo que ficou escrito no acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 28/04/2021, proferido no âmbito do processo n.º 1132/18.4PBMTS.P1, e cujo texto integral pode ser consultado em www. dgsi.pt. Referiu-se nesse douto acórdão que «o legislador nacional prevê neste preceito a ofensa à integridade física e define o tipo como a conduta de quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa. Trata-se da tutela do bem jurídico integridade física da pessoa humana, obedecendo ao comando constitucional do artigo 25º nº1 da CRP: A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
Como refere Paula Ribeiro de Faria "o tipo legal em análise supõe a produção de um resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde, de outra pessoa, que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade".
E acrescenta a ilustre Professora que "o tipo legal do artº 143º preenche-se através de uma ofensa no corpo ou na saúde, da vítima, independentemente da dor ou sofrimento causados (existe uma ofensa no corpo mesmo quando a vítima, mercê da ingestão em excesso de bebidas alcoólicas, não se encontra em condições de sentir qualquer dor)". ... "Por ofensa no corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante". … "A ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não podem ser insignificantes. A exclusão das lesões bagatelares do âmbito deste tipo legal de crime é imposta por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não se poderá considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde, onde a lesão seja insignificante ou irrelevante. A relevância da lesão é avaliada por critérios objetivos, de acordo com um padrão objetivo médio". … "entre nós, entendem Leal Henriques/Simas Santos, artº 143º 226, que x"o dano produzido pela ação do agente deve ser juridicamente apreciável, o que não acontece, por exemplo, com um beliscão, um resfriado ligeiro, uma dor de cabeça passageira".
O Prof. Figueiredo Dias entende, igualmente, que as lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor.
Como explicava o Cons.º Maia Gonçalves, “As ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insignificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a ultima ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo de minimis non curat paetor”.
Também a jurisprudência das Relações tem entendido que o resultado previsto pelo tipo legal de crime de ofensa à integridade física tem que estar presente e que isso só sucede quando o bem jurídico é afetado de forma não insignificante – veja-se, entre outros, Ac. R.Porto de 08.06.2005 (Proc. nº 0510382, Des. Fernando Monterroso), Ac. R. Porto de 11.06.2003, (Proc. nº 1470/03, Des. Manuel Braz), Ac R.E. de 21.05.2013 (Proc. nº 74/09.9GBGLG.E1, Des. António Latas), Ac. R.E. de 15.12.2015 (Proc. nº 169/13.4PBPTG.E1, Des. António Latas), Ac. R.E. de 22.09.2015 (Proc. nº 1157/10.8PBFAR.E2, Des. António Latas) e Ac. R. E. de 07.03.2017 (Proc. nº 160/16.9 GAVRS.E1, Des. António Condesso), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Com efeito, em face do princípio da subsidiariedade, vertido no art. 18° n° 2 da CRP, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do art. 143°, n° 1 do CP deve ser determinada objetivamente e não pode ser insignificante, diminuta ou ligeira.
No caso em apreço, como resulta da matéria de facto provada, "No seguimento dessa discussão, o arguido colocou ambas as mãos nos ombros da ofendida, empurrando-a para trás. A ofendida não sofreu dores."
Ora, no léxico comum o verbo empurrar contém sempre a ação forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto. Logo, na representação e valorização coletiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem, constitui uma forma de violência. Violência essa que, sem perder tal caracterização, pode assumir muitas e diversas graduações, algumas em que a discussão sobre a tipicidade encontra relevo.
Efetivamente, no significado mínimo comum às diversas formas e intensidade que pode assumir, empurrar alguém é suscetível de provocar ofensas no corpo ou na saúde de outrem mas, igualmente de acordo com as regras da experiência comum, tal não se verifica necessariamente.
No caso sub judice, como vimos, a ofendida não sofreu dores na sequência do ato de empurrar perpetrado pelo arguido.
Ora, como se refere no Ac. R. Évora de 22.09.2015 (acima citado), «O art. 143º do C.Penal prevê um crime de dano e de resultado, pois a lei exige a verificação de um evento separado espácio-temporalmente da conduta do agente que se traduza na lesão efetiva do bem jurídico protegido (a integridade física), quer se trate de lesão efetiva no corpo ou na saúde de outrem. Ou seja, é suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo que a integridade física seja atingida em resultado da conduta do arguido, sem que a lei penal faça depender a verificação do resultado típico de formas determinadas da lesão, pelo que se entende que o tipo legal pode preencher-se independentemente da dor ou sofrimento causados, como sucederá quando a vítima não se encontra em condições de sentir qualquer dor ou quando a ofensa é completamente indolor como sucede com o corte de cabelo.
O caso concreto, porém, convoca, ao nível do preenchimento do tipo de ilícito, a temática das chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, ou seja, na definição de Luzón Peña (que seguimos de parte nesta matéria), circunstâncias que, por razões materiais, excluem a tipicidade da conduta apesar de esta formalmente encaixar-se na descrição legal, supondo, portanto, a negação do tipo.
Partindo da distinção de Luzón Peña entre causas de exclusão do tipo indiciário e causas de exclusão da tipicidade penal ou do ilícito penal, verificam-se estas últimas quando concorrem circunstâncias que operam como causas, tacitamente subentendidas no sentido dos tipos penais, de restrição e portanto de exclusão da tipicidade penal: embora haja uma perturbação ou lesão de bens jurídicos que em princípio é juridicamente relevante, no entanto não é grave o suficiente para considerar-se jurídico-penalmente relevante; portanto, a conduta será de algum modo ilícita, mas não é penalmente típica e ilícita.
De entre estas circunstâncias importa-nos no caso concreto o princípio da insignificância, que Luzón Peña diz ter sido concebido por Roxin como causa de atipicidade, e que também se designa como casos de ilícito bagatela. Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. O princípio da insignificância, conclui L. Peña, significa uma restrição tácita dos tipos que, no entanto, só opera quando numa conduta típica que, em princípio, é suficientemente grave, podem encaixar-se casos concretos cujo desvalor seja insignificante, o que pode suceder por ser mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado ou também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação».» É o que também se passa na situação em apreço nos presentes autos. O Arguido encostou a cabeça à zona lateral direita do corpo do Ofendido, provocando-lhe um pequeno desequilíbrio, sem que daí resultasse qualquer transtorno de relevo, nomeadamente lesões ou sequer dor. Não pode, pois, tal empurrão deixar de se considerar insignificante do ponto de vista da afectação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime pelo qual o Arguido vem acusado. Conclui-se, também no caso dos presentes autos, que o concreto contacto físico, apesar de provocado voluntariamente pelo Arguido, foi de pequena intensidade e sem quaisquer consequências para o Ofendido, pelo que se impõe considerar não ser a conduta suficientemente relevante para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respectivo grau de ilicitude, revelando-se atípica a referida conduta e impondo-se consequentemente a não pronúncia do arguido.
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Fica, desta forma, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
Decisão. Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido conceder provimento ao requerimento de abertura da instrução e, em consequência, não pronuncio o arguido AA.
[...]».
3. Esta decisão tinha, por referência, a seguinte acusação: «[...] No dia 20 de agosto de 2022, no Estádio ..., no ..., decorreu um jogo de futebol, que teve início pelas 20.30 horas, oficialmente identificado sob o número ..., a contar para a terceira jornada da ..., entre a A..., SAD e a B..., SAD. O arguido participou no referido jogo enquanto jogador da B..., SAD. O ofendido BB, nascido em 8 de setembro de 2008 e, à data dos factos, com treze anos de idade, era, no mencionado jogo, um dos denominados “apanha bolas” da A..., SAD, e encontrava-se na área situada entre as linhas exteriores do terreno de jogo e as bancadas destinadas aos espetadores. No desenrolar desse jogo, entre ao minuto e segundos 34.17 e 34.18, quando o ofendido pousou no chão uma bola que ia entregar ao arguido para substituir a que antes tinha saído do campo de futebol, o arguido apanhou essa bola, embateu propositadamente com a sua cabeça e antebraço esquerdo contra o tronco do corpo de BB e empurrou-o, o que lhe causou incómodo. Da referida agressão física não resultaram lesões físicas. O arguido, agiu de livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a integridade física de BB, bem sabendo que o mesmo era menor de idade, e, bem assim, que o seu comportamento era proibido e punido por lei. Cometeu, assim, o arguido, em autoria material e na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física, p. e p., à data dos factos, pelos artigos 33º da Lei n.º. 39/2009, de 30/07 e 143º, nº. 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, nº. 1, alíneas a) e n) da Lei n.º. 39/2009, de 30/07, bem como na pena acessória prevista no artigo 35.º, nº. 1, desse diploma e, atualmente, p. e p. pelos artigos 33º, nº. 2, alínea a) da Lei n.º. 39/2009, de 30/07 e 143º, nº. 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, nº. 1, alíneas a) e n), da Lei n.º. 39/2009, de 30/07, bem como na pena acessória prevista no artigo 35.º, nº. 1, desse diploma. [...]».
4. O Ministério Público, aqui recorrente, censura à decisão instrutória supratranscrita (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado): «1 – O crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem. 2 – Esse crime abrange qualquer ofensa no corpo ou na saúde de outrem, independentemente de provocar ou não lesão corporal, dor ou incapacidade para o trabalho, conforme se decidiu no Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/92 do STJ de 18 de dezembro de 1991, in DR, série I-A, de 8 de fevereiro de 1992; 3 – No caso em concreto, mostra-se indiciado que o arguido, jogador do B..., aos minutos 34.17 e 34.18 do jogo de futebol realizado no dia 20 de agosto de 2022, no Estádio ..., no ..., embateu de livre vontade e intencionalmente com a sua cabeça e antebraço esquerdo contra o tronco do corpo do ofendido BB, menor de idade, com força suficiente para o empurrar e obrigar a dar uns passos para a frente em desequilíbrio, ainda que ligeiro; 4 – O arguido, ao proceder da forma descrita, ofendeu o corpo do ofendido, molestou-o fisicamente, ainda que não lhe tenha causado quaisquer lesões ou dor; 5 – Tal conduta, analisada à luz da adequação social, cometida por um jogador de futebol contra menor de idade, no âmbito de um jogo de futebol, assume um grau de violência que não pode ser menosprezado, por ser reprovável sob o ponto de vista ético-social e atingir o bem jurídico-penal da integridade física do ofendido de forma significante, pelo que é penalmente relevante. 6 – Assim, e inexistindo dúvidas que o arguido agiu de livre vontade e com a intenção ou, pelo menos, a consciência de ofender o bem estar físico do ofendido, o seu comportamento integra a prática do crime de ofensa à integridade física, p. e p., à data dos factos, pelos artigos 33.º da Lei n.º 39/2009, de 30/07 e 143º, nº. 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e n) da Lei n.º 39/2009, de 30/07, bem como na pena acessória prevista no artigo 35.º, n.º 1, desse diploma e, atualmente, p. e p. pelos artigos 33º, nº. 2, alínea a) da Lei n.º 39/2009, de 30/07 e 143º, nº. 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e n), da Lei n.º 39/2009, de 30/07, bem como na pena acessória prevista no artigo 35.º, n.º 1, desse diploma, pelo que deve ser pronunciado pela prática desse ilícito penal. 7 - O despacho recorrido violou o disposto os artigos 33º e 35º da Lei n.º 39/2009, de 30/07, 143º, n.º 1, do Código Penal, 283º, n.º 2 e 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 25º, da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos e nos demais que V. Exas se dignarão suprir, deve o despacho recorrido ser revogado e ser substituído por outro que pronuncie o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p., à data dos factos, pelos artigos 33° da Lei n.º 39/2009, de 30/07 e 143º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, nº. 1, alíneas a) e n) da Lei n.º. 39/2009, de 30/07, bem como na pena acessória prevista no artigo 35.º, n.º 1, desse diploma e, atualmente, p. e p. pelos artigos 33º, n.º 2, alínea a) da Lei n.º 39/2009, de 30/07 e 143º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e n), da Lei n.º 39/2009, de 30/07, bem como na pena acessória prevista no artigo 35.º, n.º 1, desse diploma.»
5. Em resposta, concluiu o arguido: «1. A análise dos factos na base do presente recurso reduz-se à visualização (comentada) das imagens disponíveis em ...- encontrao-a-apanha-bolas-no-classico. 2. Do seu visionamento resulta claramente que o ofendido não foi molestado fisicamente pelo arguido, mas foi apenas empurrado, o que lhe causou não mais do que um "ligeiro" "desequilíbrio". 3. O próprio ofendido declarou que: "não ficou com lesões, nem com dores" e o seu pai, na qualidade de representante legal, declarou que, pelo facto de "não ter havido consequências para o filho" decorrentes deste episódio, "não deseja procedimento criminal contra o jogador AA" (auto de fls 61). 4. A conduta em apreciação foi praticada por um atleta no contexto de uma competição desportiva de contacto físico: no decurso de um "jogo grande" de futebol, com o que isso acarreta de perturbação dos níveis de adrenalina e do próprio discernimento do praticante desportivo, ao nível da sua cortesia social. 5. Ao jogador, durante ·o jogo, é permitido (no plano ético-social, no plano desportivo, disciplinar e no plano jurídico) um nível de contacto físico que não se admite noutros contextos, o que se justifica por vários factores, desde logo relacionados com o próprio risco da actividade, o consentimento envolvido no âmbito da competição desportiva, etc. 6. No caso dos autos, o arguido/jogador tinha o seu "foco" na concretização do seu objectivo desportivo, e, nesse contexto, para rapidamente repor a bola em campo, empurrou o menor que desempenhava as funções de apanha-bolas. 7. Os factos que vêm captados nas imagens que instruem os presentes autos reflectem uma falta que se coloca ao nível da cortesia, do decoro social e que não se coloca ao nível da violação do dever-ser jurídico-penal, por não acarretarem qualquer desvalor jurídico-penal, nem do ponto de vista objectivo – quanto à conduta em si mesma considerada-, nem do ponto de vista subjectivo – quanto ao contexto em que se verificou. 8. Para além de intrinsecamente contraditório, apresentado é inconciliável com a doutrina perfilhada pelo próprio DIAP do Porto. 9. Como se decidiu, entre outros, no Acórdão da Relação de Coimbra, processo no 800/18. 5PBCLD.C2, pese embora para preencher o tipo objetivo do crime de ofensa à integridade física seja admissível qualquer meio de ofender o corpo ou a saúde, é necessário que se verifique, como resultado, a lesão do corpo ou da saúde de alguém com alguma expressão ou significado isto é, é necessário que o dano produzido pela ação do agente seja juridicamente apreciável. 10. "Não adquirem dignidade penal, bem jurídico tutela'do, as situações consequências da agressão ou insignificantes. sob o ponto de vista do em que ocorre ausência de em que estas sejam insignificantes. 11. Por isso o crime de ofensa à integridade física configura-se como um crime de dano quanto ao bem jurídico tutelado, uma vez que o tipo exige a verificação do resultado lesão do corpo ou da saúde de outrem sendo, por isso, necessário fazer a imputação objectiva desse resultado à conduta ou à omissão do agente, nos termos do artigo 10, do Código Penal", o que não se verifica. [...]».
6. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se pelo provimento do presente recurso.
7. A este «Parecer» respondeu o arguido, insistindo na manutenção do decidido pelo Tribunal recorrido.
8. Cumpridos os legais trâmites importa decidir. II
9. O presente recurso merece parcial provimento.
10. 1. O comportamento protagonizado pelo arguido e em causa nos presentes autos é suscetível de configurar uma ofensa (à integridade física) jurídico-penalmente relevante.
11. a) Constitui «ofensa no corpo», na aceção do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal – única modalidade típica que aqui poderá estar em causa – todo o mau trato que prejudique a integridade ou o bem-estar físicos de uma pessoa de um modo não meramente insignificante (assim, v. g., Anette Grünewald, em Leipziger Kommentar, 13.ª ed., § 223, n. m. 21; Thomas Fischer, Strafgesetzbuch Kommentar, 65.ª ed., § 223, n. m. 5;entre nós, vd. Paula Ribeiro de Faria, anotação ao artigo 143.º do Código Penal em Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, 2.ª ed., § 15, pág. 305; oferece uma definição alternativa, com base nos critérios da doutrina da imputação objetiva, Uwe Murmann, Grundkurs Strafrecht, 8.ª ed., § 22, n. m 8).
12. Este conceito – que deve ser entendido de uma forma lata (Johannes Wessels/Michael Hettinger, Strafrecht, Besonderer Teil 1, 40.ª ed., § 5, n. m. 256) – não pressupõe que, na sequência da conduta do agente, a vítima sofra qualquer «lesão, dor ou incapacidade para o trabalho» («assento» n.º 2/92, Diário da República, I Série, de 08/02/1992), podendo o resultado da ofensa perpetrada consistir, designadamente, em meras modificações corporais, como o corte de cabelo, ou na afetação de funções corporais, como o sentido da visão ou da audição (A. Grünewald, em cit., n. m. 21 e segs.; Murmann, cit., n. m. 7; P. Faria, ob. loc. cit.).
13. Em contrapartida, vem-se entendendo não bastar, para configurar uma «ofensa ao corpo», a simples «dor psíquica, o sofrimento moral, ou o medo, uma vez que não produz[a]m efeitos sobre o corpo, nem cheg[ue]m a constituir doença» (P. Faria, § 16, pág. 306; A. Grünewald, cit., n. m. 24; T. Fischer, cit., n. m. 12).
14. b) Por outro lado – e mais relevantemente aqui – de forma a excluir o caráter típico de ofensas de natureza bagatelar, que se entende não assumirem dimensão bastante para justificar, no caso, a intervenção do direito penal, exige-se, ainda, como se viu, que a ofensa perpetrada assuma uma certa relevância (ou não se mostre insignificante; vd. A. Grünewald, cit., n. m. 25; Murmann, cit., n. m. 7, salienta tratar-se aqui de expressão do princípio de ultima ratio do direito penal).
15. É, porém, evidente que uma clara demarcação entre as ofensas que devam ter-se por suficientemente relevantes e as que devam ter-se por (não) «meramente insignificantes» pode ser de difícil, para não dizer quase impossível, concretização, acabando – pese embora a exigência de que o critério de diferenciação seja estabelecido a partir de uma perspetiva objetiva (vd., v. g., DetlevSternberg-Lieben, anotação ao § 223 do código penal alemão, em Schönke/Schröder, Strafegesetzbuch Kommentar, 30.ª ed., n. m. 4a; T. Fischer, cit., n. m. 4) – por depender, as mais das vezes, da valoração (necessariamente subjetiva) do julgador (Karl Heinz Gössel/Dieter Dölling, Strafrecht– Besonderer Teil 1, 2.ª ed., § 12, n. m. 18; A. Grünewald, cit., n. m. 25; coloca mesmo em questão a conformidade da definição tradicional na ordem jurídica alemã com o princípio da legalidade, precisamente pelo caráter vago de vários dos seus elementos, incluindo o da relevância da ofensa, v. g., Diethelm Klesczewski, Strafrecht Besonderer Teil, § 3, n. m. 17, pág. 146).
16. A este respeito importa não olvidar, no entanto, que ao caracterizar uma ofensa (corporal) como «insignificante», e ao negar à respetiva vítima a proteção do ordenamento jurídico-penal contra o agressor, se está, por consequência, a admitir, ao menos de um modo implícito, que as pessoas devem suportar, contra a sua vontade e em prejuízo do seu direito à integridade e bem-estar físicos, determinadas intervenções corporais que socialmente se mostram intoleráveis, assim se potenciando reações que podem conduzir à perturbação da paz social, cujo asseguramento é, afinal, missão precípua do Direito Penal (vd., por todos, as considerações de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, t. I, 3.ª ed., 4.º capítulo, §§ 63 e segs., págs. 89 e segs.).
17. Por consequência, a «relevância» (ou falta dela) de uma «ofensa no corpo» não pode, assim, ser decidida apenas com base nas suas respetivas características intrínsecas; importante é ainda – para tomar de empréstimo uma formulação da jurisprudência suíça para a delimitação das ditas (nesse ordenamento) «vias de facto» – saber se, no caso concreto, se mostra, ou não, ultrapassado o nível geralmente habitual e socialmente tolerado de impacto físico no corpo de outrem (vd. as decisões do Tribunal Fédéral (Bundesgericht) publicadas nos Arrêts du Tribunal federal, vols. 117 IV 14, 17; 119 IV 25, 26, e 134 IV 189, 191; as citações são tomadas de Gudrun Hochmayr, Die Strafbarkeit der schlichten körperlichen Misshandlung im Rechtsvergleich: Reformüberlegungen für die Körperverletzung in Deutschland und Österreich, em Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 130(1), pág. 59, nota 21; o texto integral das decisões mencionadas pode ser consultado no website do referido Tribunal, no endereço https://www.bger.ch/fr/index.htm, seguindo a ligação «Jurisprudence»); ali onde o agente ultrapasse os limites do contacto físico que comunitariamente ainda seja de se ter por legítimo, estar-se-á no domínio do mau trato jurídico-penalmente relevante.
18. A doutrina germânica predominante considera antes decisivas, como critério da relevância (ou não) da ofensa – de modo não necessariamente cumulativo – as respetivas duração e intensidade (Gössel/Dölling, cit., n. m. 18; A. Grünewald, cit., n. m. 25; Sternberg-Lieben, cit., n. m. 4a; Armin Engländer, em Holger Matt/Joachim Renzikowski, Strafgesetzbuch Kommentar, § 223, n. m. 6, defendendo igualmente uma consideração, no juízo a formular, da concreta constituição corporal da vítima; Hans Lilie, em Leipziger Kommentar, 11.ª ed., § 223, n. m. 9, rejeita que a relevância de uma ofensa corporal dependa da sua respetiva duração), sugerindo ainda alguns autores o recurso aos critérios desenvolvidos no âmbito do crime de dano (sobre tais critérios, entre nós, vd. Manuel da Costa Andrade, anotação ao artigo 212.º do Código Penal, em Comentário Conimbricense do Código Penal, §§ 49-50, págs. 269-271; vd., ainda, A. Grünewald, id.; para uma crítica da proposta em apreço, v. g., Gössel/Dölling, id.), ou a certos elementos internos (para uma crítica desta posição minoritária, que considera abrir caminho a um direito penal de mera «atitude interna», ou de mero «pensamento», vd. A. Grünewald, id., n. m. 28; H. Lilie, cit., n. m. 6), sugestões, estas duas últimas, que a generalidade dos autores rejeita, porventura com alguma razão.
19. Naturalmente, as características intrínsecas do mau trato porventura infligido constituem elemento relevante na determinação dos limites do impacto físico comunitariamente (in)admissível; esta, porém, não pode esgotar-se na sua consideração, sob pena de se perder de vista o sentido social de que, apesar de tudo, os tipos legais de crime se revestem.
20. c) O arguido nos autos encontra-se acusado, pelo Ministério Público, da prática «em autoria material e na forma consumada, [de] um crime de ofensa à integridade física» por, no decurso de um jogo de futebol, ter embatido «propositadamente com a sua cabeça e antebraço esquerdo contra o tronco do corpo» do ofendido no processo, «o que lhe causou incómodo» (embora sem lhe produzir quaisquer lesões físicas), o que terá feito «com o propósito concretizado de ofender a integridade física» deste, «bem sabendo que o mesmo era menor de idade, e, bem assim, que o seu comportamento era proibido e punido por lei»
21. Pese embora a escassez de factos, no texto da acusação, que permitam caracterizar o «incómodo» produzido pela conduta do arguido, o certo é que das imagens para as quais o mesmo libelo expressamente remete (e que, nessa medida, permitem caracterizar mais pormenorizadamente o ocorrido) resulta que, na sequência do embate verificado, o ofendido se desequilibrou e moveu lateralmente, após o que ergueu os braços em protesto pelo sucedido, não tendo recebido qualquer resposta ou reação por parte do arguido, que prosseguiu a jogada que protagonizava (perante a reação indignada das pessoas que, nas bancadas do estádio junto ao local onde ocorreram os factos aqui sob apreciação, assistiam à partida).
22. Das imagens em questão, ademais, retira-se ainda, de forma clara a nosso ver, que o arguido quis efetivamente produzir o embate verificado, pois que lhe era perfeitamente possível evitá-lo, como logo a seguir ao mesmo demonstrou, ao rodear o corpo do ofendido de forma expedita e sem qualquer dificuldade.
23. Verifica-se, assim, em primeiro lugar, que o comportamento do arguido nos autos não pode deixar de ser tido com um mau trato físico, já que implicou um impacto de parte do seu corpo (mais concretamente do seu crânio) sobre o corpo do aqui ofendido, levando-o a desequilibrar-se.
24. Em segundo lugar, a pancada desferida pelo arguido sobre o corpo do aqui ofendido revestiu-se de suficiente força (portanto, para o que aqui nos interessa, intensidade) para o desequilibrar (embora ligeiramente) e o obrigar a mover-se lateralmente, não tendo, pois, sido um toque ligeiro, praticamente inconsequente.
25. Finalmente – e como até a reação das pessoas que assistiram ao sucedido na altura demonstra – este tipo de conduta relativamente a outra pessoa, ainda para mais quando está em causa um menor de 13 anos de idade, não é seguramente um contacto físico que possa ter-se por socialmente tolerado, ou que caia ainda dentro do círculo de contactos físicos que possam ser comunitariamente considerados aceitáveis; e isto mesmo no contexto de um jogo de futebol, e do calor da disputa que nele se desenrola, sobretudo porque o ofendido nem sequer participava diretamente do jogo, tendo nele papel completamente secundário (era mero «apanha-bolas»), nenhuma razão havendo para que o arguido promovesse qualquer contacto entre ambos, mormente do género daquele que protagonizou.
26. Sendo assim as coisas, mister é agora concluir que a ofensa no corpo do ofendido aqui em causa, ainda que não lhe tenha provocado dores ou qualquer lesão da sua substância corporal, não pode ter-se por meramente «insignificante», sendo, por consequência, tipicamente relevante no sentido do crime de ofensa à integridade física.
27. Ou se se preferir, com o referido fundamento da sua «irrelevância» não pode negar-se, à ofensa corporal perpetrada pelo arguido, relevo jurídico-penal e, portanto, afastar-se o caráter típico da sua conduta no sentido da aludida incriminação.
28. 2. Da procedência do presente recurso quanto à questão aludida não decorre necessariamente, como pretendido pelo recorrente, a pronúncia do arguido pelo crime de que se encontra acusado.
29. O Tribunal a quo, de todas as questões que lhe foram apresentadas para apreciar, em especial pelo arguido, limitou-se a tomar posição quanto à questão da eventual (a)tipicidade da conduta em causa nos autos, por entender que a mesma era decisiva para a resolução do pleito.
30. Não sendo esse o caso, e antes de decidir pela pronúncia (ou não pronúncia) do arguido nos autos, impõe-se agora, ainda, apreciar as demais questões que foram suscitadas na instrução, tarefa que cabe, naturalmente, à 1.ª instância, de modo a preservar o duplo grau de jurisdição em relação ao conhecimento que das mesmas venha a ser efetuado.
31. Deste modo, é o Tribunal recorrido, após a descida dos autos à 1.ª instância, que deverá decidir, apreciando previamente as demais questões que se suscitem nos autos e que sobre o seu destino possam ser relevantes, se cabe, ou não, pronunciar o arguido para julgamento.
32. 3. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigos 513.º, n.º 1, alínea a), a contrario, e 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). III
33. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo parcial provimento ao presente recurso, revogar a decisão recorrida e determinar a descida do processo ao Tribunal recorrido para demais tramitação não incompatível com a presente decisão.
34. Sem custas (artigos 513.º, n.º 1, a contrario, e 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Porto, 29 de janeiro de 2025
(acórdão assinado eletronicamente)
Pedro M. Menezes
Maria do Rosário Martins
José Quaresma