I - A falta de tradução de procurações não deveria ter levado à extinção do procedimento criminal, pois trata-se de meras procurações e não meios de prova.
Se a tradução fosse imprescindível, o tribunal deveria ter ordenado a tradução ao abrigo do artigo 92.º, n.º 6, e 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
II - A omissão de uma diligência essencial para a descoberta da verdade, como a solicitação da prova de registo das marcas ao INPI, constitui uma nulidade processual nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP.
III - A decisão a quo não só revela incoerências e contradições como bate manifesta e ostensivamente contra o senso comum e regras da experiência, ocorrendo erro notório na apreciação da prova.
O tribunal a quo ignorou a relação lógica entre a posse de artigos contrafeitos para venda e o conhecimento da sua natureza pelos arguidos.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular em epígrafe id. a correr termos no Juízo Local Criminal de ..., por sentença foi decidido:
« A) Absolver os arguidos AA e BB da prática, em autoria material, de um crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca, p. e p. no art.º 323.º, al. a), por referência aos arts. 224.º, n.º 1 e 245.º, nº 1, al. c), todos do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo D. L. nº 36/2003 de 05-03.
B) Isento de custas.
Constata-se assim existir um elemento de risco, mais a mais, o carácter de notoriedade pública de que os sinais em causa gozam junto da população em geral, sendo que a entrada no mercado de tais bens poderá importar a prática de ilícito criminal (ainda que nestes não comprovado).
Em face do exposto, considerando a sua natureza, entende-se que os bens apreendidos representam um perigo para a ordem pública e oferecem um risco sério de virem a ser utilizados para o cometimento de factos ilícitos típicos, tendo-se por preenchido o disposto no art. 109.º n.ºs 1 e 2 do CP.
«1) Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu os arguidos AA e BB, da acusação pela prática de um crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca.
2) Insurge-se o Ministério Público, antes de mais, contra a questão prévia na sentença recorrida que julgou extinto o procedimento criminal em relação à conduta de ambos os arguidos quanto às sapatilhas com as marcas Lacoste e Fila, bem como quanto aos relógios Casio, por falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução da ação penal, nesta parte, na medida em que as procurações (Power of Attorney) dos titulares das marcas não foram traduzidas de inglês para português, o que, no entender da decisão recorrida, traduz nulidade nos termos do artigo 92.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
3) Ainda que se tratem, apenas, de documentos que corporizam a existência de poderes de representação para apresentar queixa por crime de natureza semipública, e não de meios de prova dos factos submetidos a julgamento, sucede que a nulidade do artigo 92.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é instituída no interesse do arguido e está sujeita ao regime das nulidades dependentes de arguição, previsto no artigo 121.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processos Penal.
4) Tratando-se de ato referente ao inquérito, a defesa dos arguidos nunca arguiu a eventual referida nulidade dentro do prazo legal, pelo que, na fase de julgamento, há muito que se encontrava sanada; acresce que se trata de um documento que exprime uma declaração de vontade – e não uma declaração de ciência – no sentido de ser instaurado procedimento criminal, não contendendo com qualquer vertente do direito de defesa dos arguidos.
5) Ainda que assim se não entenda, da conjugação dos números 1 e 6 do artigo 92.º do Código de Processo Penal não resulta a obrigatoriedade de tradução de todos os documentos dos autos redigidos em língua estrangeira, na medida em que o n.º 6 estabelece que é “igualmente nomeado intérprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada”.
6) Assim, se e quando o juiz considerar ser necessário traduzir algum documento, deve nomear tradutor e determinar a sua tradução de inglês para português.
7) Sem prejuízo de ter sido proferido despacho na audiência de 23-11-2021 a notificar a A... para proceder à junção das traduções das procurações em causa, a consequência, salvo melhor entendimento, nunca poderia ter a adotada pela decisão recorrida, porquanto está em causa apenas a tradução de meras procurações e não de documentos que constituam meios de prova; e caso tal tradução fosse imprescindível, então o Tribunal deveria ter determinado a sua tradução, ao abrigo do artigo 92.º, n.º 6, conjugado com o artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
8) Verifica-se, deste modo, erro de interpretação e aplicação do regime dos artigos 92.º, n.º 1 e 6, e 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, devendo a decisão proferida a título de questão prévia ser anulada e ordenada a reabertura da audiência, por se verificar legitimidade por parte do Ministério Público no que se refere às marcas Lacoste, Fila e Casio, prosseguindo o julgamento, nesta parte, no Tribunal recorrido – cf. artigos 431.º, alínea a), a contrario, e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
9) Quanto à impugnação da decisão em sede de matéria de facto, foram incorretamente julgadas as alíneas a), b), c), d), e), f) e g) dos factos não provados, as quais deveriam e devem passar a ser todas julgadas como provadas.
10) Em suporte da pretensão de recurso do Ministério Público, são as seguintes as concretas provas que impõem decisão da matéria de facto diversa da recorrida:
a. o auto de notícia, auto de apreensão e fotogramas, de fls. 3 a 19;
b. a prova pericial de fls. 41, 167, 168 e 181 a 183;
c. documentos de fls. 35 a 38, 41, 55 a 68, 71 a 82, 84 a 96, 99 a 110 e 130
a 132;
d. depoimento da testemunha CC, militar da GNR, passagens de 00:25m a 10:24m (sessão de julgamento de 22/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática Media Studio, com referência à ata da sessão de julgamento de 22/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 56 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 06 minutos.
11) Acresce sublinhar que as marcas Adidas, Nike e Converse AllStar (bem como Lacoste, Fila e Casio), constam de registos públicos de marcas no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, de acesso livre e disponível inclusive no sítio público daquele instituto, o que as insere na categoria dos factos públicos e notórios, não carecendo de alegação e prova concreta quanto à sua existência.
12) Da análise destes meios probatórios, que ficou feita na Motivação e para onde se remete, resulta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por incorreta avaliação e valoração da prova e ofensa irreparável das regras da experiência comum, afastando-se e violando os critérios da livre apreciação, tal como estão prescritos no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
13) Alterando-se a decisão da matéria de facto nos termos sobreditos e julgando-se provada toda a factualidade da acusação pública, deve ser proferida uma decisão de Direito em conformidade, necessariamente condenatória ou, em alternativa, na falta de todos os elementos necessários para determinação da sanção, ordenar-se o reenvio à primeira instância para esse efeito.
14) O erro de julgamento em sede de matéria de facto radica ainda na circunstância de, em violação do princípio da investigação e da descoberta da verdade material, o Tribunal recorrido não ter oficiosamente solicitado ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial a prova do registo das marcas Adidas, Converse AllStar e Nike (nem Lacoste, Fila e Casio), o que contende diretamente com a alínea f) dos factos não provados e indiretamente com as demais alíneas dos factos não provados.
15) A decisão recorrida enferma de nulidade, por não ter observado o regime que resulta do artigo 340.º, n.º 1, conjugado com o artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, nulidade processual que ficou coberta pela decisão recorrida, com sentido absolutório, sendo o presente recurso o meio adequado de reação.
16) Quanto aos elementos subjetivos do crime, a decisão recorrida deu como não provada a matéria constante nas alíneas c), e) e g) dos factos não provados.
17) Considerando os registos das marcas que deveriam ter sido dados como assentes, por se tratarem de factos públicos e notórios – ou porque deveriam ter sido investigados, ao abrigo do artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e não o foram – entende o recorrente estar-se perante erro notório na apreciação da prova, o que configura causa de nulidade da sentença – artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
18) Os factos que integram o dolo e os demais elementos subjetivos, por respeitarem à vida psíquica e serem intangíveis, raramente se provam diretamente, pelo que a prova far-se-á então por ilações, retiradas de indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente, num exemplo de demonstração por prova indireta.
19) Os elementos subjetivos do crime, incluindo a atuação voluntária e livre determinação do agente, poderão e deverão ser extraídos da demais factualidade, sendo o estado interior dos arguidos resultante a partir de inferência das regras da experiência e da normalidade.
20) Há que atender sobretudo aos elementos objetivos que resultam provados nos factos 1 a 5 e daí retirar as devidas inferências conjugadas com a existência dos registos das marcas Adidas, Nike e Converse AllStar, sob pena de se incorrer em contradição.
21) Assim, ao julgar não provados os elementos subjetivos do crime (alíneas c), e) e g) da matéria de facto não provada), a sentença recorrida, nos termos sobreditos e tendo ainda em consideração a existência de registo das aludidas marcas, enquanto facto público e notório, incorreu em erro notório na apreciação da prova, o que configura, nesta parte, causa de nulidade da sentença - artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
22) Tal nulidade será suscetível de suprimento pelo Tribunal superior, mediante renovação da prova, ao abrigo do artigo 430.º do Código de Processo Penal.
23) Assim não se entendendo, sem prejuízo das antecedentes questões invocadas em sede recursória, deve determinar-se o reenvio do processo para o tribunal de primeira instância para novo julgamento relativamente às alíneas c), e) e g) da matéria de facto não provada.
24) Foram violados, incorretamente interpretados e aplicados os artigos 92.º, n.º 1 e 6, 127.º, 340.º, n.º, 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, ser:
A) Anulada a decisão a título de questão prévia que extinguiu o procedimento criminal quanto à parte dos artigos sob as marcas Lacoste, Fila e Casio, por não tradução das procurações de inglês para português de representação dos titulares das marcas, e consequente falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução da ação penal,
ordenando-se o reenvio do processo para repetição do julgamento na primeira instância;
Sem prescindir, se assim não for entendido,
B) Alterada a decisão da matéria de facto nos termos sobreditos, julgando-se provada toda a factualidade da acusação pública, proferindo-se decisão de Direito em conformidade, necessariamente condenatória ou, em alternativa, na falta de todos os elementos necessários para determinação da sanção, ordenar-se o reenvio à primeira instância para esse efeito;
Caso assim se não entenda,
C) Determinado o reenvio à primeira instância por omissão de diligência tida por essencial, a fim de ser solicitada ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial a prova de registo das marcas que a decisão recorrida refere não constarem nos autos;
D) Declarada a nulidade da sentença, por erro notório na apreciação da prova quanto às alíneas c), e) e g) da matéria de facto não provada, nos termos e para os efeitos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, com suprimento mediante renovação da prova ou reenvio do processo para o tribunal de primeira instância para novo julgamento, assim se fazendo a habitual J U S T I Ç A.»
« 1. Na sentença recorrida é manifestamente exaustiva a analise que o Tribunal a quo fez da matéria de facto, tendo apreciado corretamente as poucas provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, cabendo tal apreciação de maneira adequada na margem de liberdade de que o julgador sempre dispõe na apreciação da matéria de facto e que o legislador processual penal expressamente consagrou no artigo 127º do C.P.P.,
2. Inexististe qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova e da oficiosidade de averiguação de prova.
3. Há efetivamente nulidade no que diz respeito à falta de tradução da procuração, que de resto, tendo sido notificados para sanar a mesma, não o fizeram.
4. Assim, o Acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal, mostrando-se devidamente fundamentado, justo e adequado, em consequência, deve o recurso interposto ser declarado improcedente, por infundado, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.»
Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde pugnou pela procedência do recurso, subscrevendo o recurso do M.P. a quo.
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
-Erro de interpretação e aplicação do artigo 92.º do Código de Processo Penal, no que diz respeito à legitimidade do Ministério Público para prosseguir com a ação penal relativamente às marcas Lacoste, Fila e Casio, porquanto a decisão considerou que a falta de tradução das procurações (Power of Attorney) apresentadas pela A..., representante dessas marcas, constituía uma nulidade, impedindo o prosseguimento da ação penal.
-Nulidade processual, por violação do princípio da investigação previsto no artigo 340.º do Código de Processo Penal.
-Erro notório na apreciação da prova no que diz respeito aos elementos subjetivos do crime.
-Impugnação da matéria de facto, alegando que a sentença recorrida errou ao considerar como não provados alguns factos relacionados com a venda de artigos contrafeitos, nomeadamente no que diz respeito à venda de artigos com marcas falsificadas (Adidas, Nike e Converse All Star).
« II - QUESTÕES PRÉVIAS
- DA (I)LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Os arguidos vêm ademais acusados do crime imputado relativamente a “- dezoito pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Lacoste”,
- três pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Fila” que destinavam à venda em festas e feiras, pelo valor unitário que variava entre os € 10,00 e os € 15,00 e
- nove relógios com a ostentação da marca “Casio”, que destinavam à venda em festas e feiras, pelo valor unitário de € 5,00.”.
Bem assim,
é imputado ao arguido BB o crime em causa relativamente a “- dez pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Nike”,
- um par de sapatilhas com a ostentação da marca “AllStar””.
Juntou expediente de fls. 130 a 132 em língua estrangeira.
Notificada nos termos sobreditos, não regularizou os autos mediante a junção de documentos traduzidos.
Ora, considerando que a apresentante A... não procedeu à apresentação das procurações, redigidas em língua estrangeira, devidamente traduzidas para língua portuguesa, tal apresentação é nula, nos termos da disposição citada.
Em face de tal circunstancialismo, não se vê que a apresentante tenha poderes para representar as marcas em causa – Lacoste, Fila e Casio.
Por outro lado, não se vê apresentada queixa contra o arguido BB relativamente aos artigos das marcas “Nike” e “Converse All Star”.
Ora, o procedimento criminal no caso do crime pelo qual os arguidos vêm acusados é de natureza semi-pública, dependendo, por isso, a legitimidade do Ministério Público que o titular do direito visado com a actuação em causa apresente queixa – cfr. 328º CPI na versão do DL 110/2018, de 10.12, vigente à data dos factos descritos como tendo ocorrido a 26.07.2019, tendo o diploma iniciado a sua vigência a 01.07.2019 – cfr. art. 16.º n.º3 do DL 110/2018, de 10.12 que aprova o CPI (já o sendo também nos termos do art. 329º CPI na versão do DL 36/2003, de 5 de Março).
Trata-se de uma limitação à legitimidade processual do Ministério Público, como decorre dos arts. 48º a 52º do CPP.
De facto, o legislador consagrou no art. 48º o chamado princípio da oficialidade, nos termos do qual o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal.
Não será assim, porém, quando, para o que nos importa, o procedimento criminal depender de queixa. Nestes casos, é necessário que os titulares do direito de queixa dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. – cfr. art.49º nº1 do CPP.
Ora, no caso concreto em apreço não se vê que a visada com os actos imputados aos arguidos relativamente aos “- dezoito pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Lacoste”, - três pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Fila” que destinavam à venda em festas e feiras, pelo valor unitário que variava entre os € 10,00 e os € 15,00 e - nove relógios com a ostentação da marca “Casio”, que destinavam à venda em festas e feiras, pelo valor unitário de € 5,00.”” tenha apresentado queixa, nem o fez a visada com os actos imputados ao arguido BB quanto aos artigos das marcas “Nike” e “Converse AllStar”.
Falha, assim, neste particular, um dos pressupostos processuais para que a acusação do Ministério Público possa ser atendida nesta parte, qual seja, precisamente a sua legitimidade.
O que importa, por isso e em consequência, a extinção do procedimento criminal e o seu arquivamento quanto
- à conduta de ambos os arguidos respeitante aos “dezoito pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Lacoste”, - três pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Fila” que destinavam à venda em festas e feiras, pelo valor unitário que variava entre os € 10,00 e os € 15,00 e - nove relógios com a ostentação da marca “Casio”, que destinavam à venda em festas e feiras, pelo valor unitário de € 5,00.”
e
- quanto à conduta do arguido BB respeitante a “- dez pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Nike” e - um par de sapatilhas com a ostentação da marca “AllStar””.
A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A.1) FACTOS PROVADOS
Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. No dia 26 de Julho de 2019, às 12h10, os arguidos AA e BB tinham na sua posse, no interior do veículo de matrícula ..-..-DP, quando circulavam na Rua ..., em ..., área desta cidade ...:
- dois pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Adidas”, que destinavam à venda em festas e feiras.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. e com a mesma finalidade o arguido AA tinha na sua posse
- dez pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Nike”,
- um par de sapatilhas com a ostentação da marca “AllStar”.
3. Nenhuma das sapatilhas haviam sido fabricadas e distribuídas pelas marcas que ostentavam e apresentavam características diversas dos produtos efetivamente fabricados e comercializados pelas aludidas marcas, ainda que com elementos identificativos semelhantes aos originais das marcas “Nike”, “AllStar” e “Adidas”.
4. As marcas em causa gozam de reputação junto dos consumidores.
5. Os arguidos quiseram, como conseguiram, ter na sua posse os artigos referidos em 1. e 2. com a intenção de os venderem a todas as pessoas que se mostrassem interessadas em adquiri-los em festas e feiras.
6. O arguido AA não tem antecedentes criminais.
7. O arguido BB foi condenado no PCS n.º ... que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Baião por sentença de 06.11.2017, transitada em 05.02.2018 pela prática em 14.07.2014 de um crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca na pena de 185 dias de multa à taxa diária de €5,00, já extinta.
a) A venda referida em 1. seria pelo valor unitário que variava entre os €10,00 e os € 15,00
b) Nenhuma das sapatilhas foram fabricadas e distribuídas com a autorização das marcas Nike”, “AllStar”, “Adidas” ou de qualquer representante oficial dessas marcas, tratando-se de peças fabricadas e comercializadas à revelia dos seus titulares.
c) Os arguidos pretendiam aproveitar a reputação referida em 4. e levar os consumidores a adquirir esses artigos pela combinação de preços mais baixos
d) Os arguidos não tinham consentimento dos titulares dos respetivos direitos para fabricar e vender artigos com as marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” e apostas, como eles bem sabiam.
e) Os arguidos agiram como referido em 5. apesar de saberem que os artigos eram imitações dos verdadeiros, das marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas”, que continham sinais idênticos aos usados por estas marcas e que não o podiam fazer sem a autorização dos seus titulares ou representantes, que detinham a sua propriedade e exclusivo, por se tratarem de marcas registadas cujas insígnias ou sinais não podiam ser utilizados sem os seus consentimentos e se destinavam a distinguir os seus produtos de outros.
f) As marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” encontram-se registadas no nosso país e, por isso, os seus produtos só podem ser confecionados e transacionados pelos detentores das marcas ou por quem estiver devidamente autorizado por aqueles para tal, o que era do conhecimento do arguido.
g) Os arguidos atuaram livre, voluntária e conscientemente, com o objetivo alcançado de obterem um benefício económico ao qual se sabiam sem direito e embora conhecessem que agiam contra a vontade e sem a autorização dos titulares das marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” e que praticavam factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiram de os concretizarem.
Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
Assim, enunciados os factos, cumpre apreciar criticamente as provas, não bastando uma mera enumeração dos meios de prova, sendo necessária “ a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal” - cfr. Ac. TC nº680/98, de 02.12, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980680.html, por forma a resultar claro para os destinatários a compreensão do porquê da decisão e do processo lógico - mental que permitiu alcançar a decisão proferida.
Na fixação da matéria de facto, o Tribunal atendeu criticamente à prova produzida de forma conjunta e contatenada.
Assim, quanto à factualidade respeitante em 1. e 2. o Tribunal formou a sua convicção por apelo ao depoimento da testemunha CC, militar da GNR, a qual prestou a esse propósito depoimento circunstanciado e revelando razão de ciência e na qual pelas apontadas razões e pelas funções desempenhadas se fez fé, não se vendo que a mesma tenha qualquer interesse no desfecho da causa, suportado ainda pelo auto de notícia, o qual faz fé em juízo quanto aos factos directamente percepcionados pela entidade documentadora – cfr. art. cfr. art. 169.º CPP e 363.º n.º2 CC – e bem assim, sendo ainda considerado o auto de apreensão e fotos de fls. 7 a 19.
Quanto à factualidade constante de 3. a convicção do Tribunal assentou nas manifestações de procedimento criminal de fls. 34 a 38, 83 a 110, exames periciais de fls. 41 e 167 e 168.
O factos 4. e 5. resultaram provados por apelo às regras da experiência e livre apreciação, considerando o normal acontecer das coisas em situações similares.
Os antecedentes criminais resultaram dos CRC´s.
Note-se desde logo que o julgamento decorreu na ausência dos arguidos, os quais, por isso, não prestaram declarações (não sendo, contudo, a sua presença garantia de que o fizessem, pois sempre lhes assistiria o direito ao silêncio).
Por outro lado, não foi arrolada qualquer outra testemunha que não os militares da GNR que elaboraram o auto de notícia e procederam à apreensão do material, não tendo sido indicada qualquer testemunha directamente relacionada com as queixosas e que pudesse elucidar o Tribunal quanto à factualidade imputada e não provada.
Acresce que não se vê em parte alguma dos autos qualquer documento comprovativo do registo das marcas.
Ora, ainda que mundanamente – pelo carácter público e notório de sinais distintivos e a sua associação a determinadas empresas de especialidade - se possa dizer que se trata de marcas conhecidas, tal não basta intraprocessualmente para prova do registo das mesmas, ou seja, para prova dos direitos de marca na ordem jurídica nacional e da sua vigência à data dos factos em apreço.
De facto, melhor compulsado o regime jurídico que se entende ser de aplicar (Código da Propriedade Industrial aprovado pelo DL 110/2018, de 10.12, considerando a data dos factos, nos termos já explanados supra) resulta do disposto no art. 7.º sob a epígrafe “Prova dos Direitos” que
“1 - A prova dos direitos de propriedade industrial faz-se por meio de títulos, correspondentes às suas diversas modalidades.
2 - Os títulos devem conter os elementos necessários para uma perfeita identificação do direito a que se referem.
3 - Os certificados de direitos de propriedade industrial emitidos por organizações internacionais para produzir efeitos em Portugal têm o valor dos títulos a que se referem os números anteriores.
4 - Aos titulares dos direitos podem ser passados certificados de conteúdo análogo ao do respetivo título.
5 - A solicitação do requerente do pedido ou do titular são passados, de igual modo:
a) Certificados dos pedidos;
b) Certificados de proteção de direitos de propriedade industrial concedidos por organizações internacionais para produzir efeitos em Portugal.”.
Ora, em parte alguma dos autos se vêm tais títulos em relação às marcas “Adidas”, “Nike” e “Converse All Star”, sequer a tal fim se bastando a mera menção feita a fls.41, 167 e 168.“
Decidindo.
Erro de interpretação e aplicação do artigo 92.º do Código de Processo Penal, no que diz respeito à legitimidade do Ministério Público para prosseguir com a ação penal relativamente às marcas Lacoste, Fila e Casio.
A decisão a quo considerou que a falta de tradução das procurações (Power of Attorney) apresentadas pela A..., representante dessas marcas, constituía uma nulidade, impedindo o prosseguimento da ação penal.
Efetivamente como afirma o Ministério Público a quo essas procurações são meras declarações de vontade e não meios de prova, e por si só ausência de tradução não afeta o direito de defesa dos arguidos.
A questão da legitimidade do Ministério Público para prosseguir a ação penal é um dos pontos centrais do recurso apresentado. O tribunal a quo extinguiu o procedimento criminal em relação às marcas Lacoste, Fila e Casio, justificou a extinção do procedimento criminal devido à falta de legitimidade do Ministério Público.
Para o efeito aduz a seguinte argumentação:
• A A..., representante das marcas, apresentou procurações ("Power of Attorney") em língua estrangeira (inglês).
• Apesar de notificada, a A... não apresentou as procurações traduzidas na fase de julgamento.
•O tribunal considerou esta falta de tradução como uma nulidade, nos termos do artigo 92.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
•Concluindo depois que não houve queixa validamente apresentada no âmbito de um crime semipúblico.
Ora, concorda-se com o M.P a quo quando refere que as procurações são meras declarações de vontade para apresentar queixa, e não meios de prova dos factos em julgamento.
A língua dos atos processuais e comunicação é a língua portuguesa.
A nulidade sanável do artigo 92.º, n.º 1, do Código de Processo Penal é estabelecida no interesse do arguido e está sujeita ao regime das nulidades dependentes de arguição, conforme o artigo 12o.º, n.º 3, alínea c), do mesmo código.
Como o ato, procuração foi junta na fase de inquérito, se refere ao inquérito, e a defesa dos arguidos não levantou a questão da nulidade dentro do prazo legal, até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito, art. 120º, n º 3 al. c) do CPP a nulidade estava já sanada na fase de julgamento.
Uma declaração de vontade para instauração de procedimento criminal não coloca em causa o direito de defesa dos arguidos na medida em que não foram impossibilitados ou lhes foi dificultado em grau injustificado a compreensão do libelo acusatório ou que tal fosse gerador de grave dúvida sobre a justiça da decisão e afastamento do direito a um processo justo e equitativo.
O tribunal a quo considerou que a falta de tradução das procurações (Power of Attorney) do inglês para português constituía uma nulidade, nos termos do artigo 92.º, n.º 1, do CPP, e que, consequentemente, não havia legitimidade do Ministério Público para prosseguir com a ação penal relativamente às referidas marcas.
As procurações são meras declarações de vontade para apresentar queixa, e não meios de prova dos factos submetidos a julgamento. O documento expressa a intenção de iniciar um procedimento criminal, não sendo uma declaração de ciência, mas sim a expressão da vontade de iniciar um procedimento criminal.
A nulidade prevista no artigo 92.º, n.º 1, do CPP, é estabelecida no interesse do arguido e está sujeita ao regime das nulidades dependentes de arguição, previsto no artigo 121.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Como a defesa não arguiu a nulidade dentro do prazo legal, a mesma estava sanada na fase de julgamento.
Por sua vez, a conjugação dos números 1 e 6 do artigo 92.º do Código de Processo Penal não obriga à tradução de todos os documentos em língua estrangeira.
O n.º 6 do artigo 92.º estabelece que um intérprete é nomeado quando é necessário traduzir um documento em língua estrangeira que não esteja acompanhado de tradução autenticada.
A tradução só se torna necessária quando o juiz assim o considera, pelo que deveria o tribunal, considerando-a necessária, ter nomeado um tradutor para esse efeito, em vez de cominar a nulidade e consequente falta de uma condição do procedimento penal.
Em suma, a falta de tradução de procurações não deveria ter levado à extinção do procedimento criminal, pois tratam-se de meras procurações e não meios de prova. Se a tradução fosse imprescindível, o tribunal deveria ter ordenado a tradução ao abrigo do artigo 92.º, n.º 6, e 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Por conseguinte, a decisão de extinguir o processo relativamente às marcas Lacoste, Fila e Casio carece de fundamento legal, sendo de revogar, devendo manter-se a legitimidade do M.P para prosseguir com o procedimento legal e consequente julgamento da matéria em questão em relação a essas marcas.
Tem razão o M.P.
Quanto à segunda questão.
A nulidade processual, por violação do princípio da investigação previsto no artigo 340.º do Código de Processo Penal (CPP), é um dos argumentos apresentados pelo Ministério Público para impugnar a decisão do tribunal a quo.
Esta alegação surge no contexto da discussão sobre a necessidade de prova do registo das marcas Adidas, Nike e Converse All Star2.
O tribunal a quo considerou que não existia nos autos qualquer documento comprovativo do registo destas marcas, e que a notoriedade pública das marcas não era suficiente para provar o seu registo em termos processuais.
Assim, o tribunal decidiu que não foram reunidos os elementos de prova necessários para a condenação dos arguidos.
Vejamos
Os registos das marcas Adidas, Nike e Converse All Star são públicos e estão disponíveis no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), o que as insere na categoria de factos públicos e notórios, não carecendo de alegação e prova concreta no processo.
De todo o modo, Mesmo que não se entenda que são factos notórios, o tribunal recorrido tinha o poder-dever de solicitar oficiosamente ao INPI os elementos que considerava em falta, em vez de não considerar provada a factualidade relacionada com o registo das marcas.
O processo penal português obedece a um princípio de investigação da verdade material, o que implica que o juiz tem o dever de realizar todas as diligências necessárias para a boa decisão da causa.
O artigo 340.º, n.º 1, do CPP estabelece que o juiz deve realizar as diligências necessárias para a descoberta da verdade.
No processo penal, não existe ónus da prova como no processo civil, pelo que o tribunal tem o poder-dever de investigar e obter as provas necessárias para a decisão.
A omissão de uma diligência essencial para a descoberta da verdade, como a solicitação da prova de registo das marcas ao INPI, constitui uma nulidade processual nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP.
E efetivamente, tal como o Ministério Público a quo argumenta, neste caso, se a prova do registo das marcas é "indispensável à descoberta da verdade" a omissão desta diligência é causa de nulidade, na medida em que o tribunal a quo deveria tê-lo solicitado.
O tribunal deveria ter realizado as diligências necessárias para obter a prova do registo, em vez de considerar a factualidade como não provada e absolver os arguidos por falta de prova.
O tribunal a quo violou o princípio da investigação ao não solicitar oficiosamente ao INPI a prova do registo das marcas, o que constitui uma nulidade processual, o que se declara com a consequente necessidade de repetição do julgamento na medida em que esta omissão levou a um erro de julgamento na matéria de facto e a uma decisão que não reflete a verdade material do caso.
Do erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP).
O MP argumenta que o tribunal a quo errou ao não considerar provados os elementos subjetivos do crime, nomeadamente o dolo, com base nos factos objetivos já provados e nas regras da experiência.
Para tal argumenta:
-O tribunal considerou não provado que os arguidos sabiam que os artigos eram imitações e que pretendiam vendê-los com o objetivo de obter benefício económico.
-O MP defende que os elementos subjetivos podem ser inferidos dos factos provados, conjugados com as regras da experiência.
-Ao não o fazer, o tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova.
Efetivamente o M.P a quo tem razão na medida em que o tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova no que diz respeito aos elementos subjetivos do crime, nomeadamente o dolo.
O tribunal não retirou as devidas inferências dos factos provados e das regras da experiência, considerando como não provados factos que deveriam ter sido considerados provados.
Reconhecendo que os elementos subjetivos do crime, como o dolo (intenção), são estados mentais e, por isso, raramente podem ser provados de forma direta, sendo difícil demonstrar o conhecimento e a vontade dos arguidos relativamente aos factos, exceto em casos de confissão.
A verdade é que na ausência de confissão, a prova do dolo deve ser feita por ilações e inferências retiradas de indícios e do comportamento exterior dos arguidos, através de prova indireta. No caso, existem indícios que apontam para o conhecimento e a intenção por parte dos arguidos, que foram ignorados pelo tribunal.
O tribunal deve usar as regras da experiência e da normalidade para inferir o estado interior dos arguidos a partir dos factos objetivos provados. Os elementos subjetivos podem e devem ser extraídos da factualidade, pois são a consequência lógica do comportamento dos arguidos.
Ora, os factos objetivos dados como provados (posse de artigos contrafeitos destinados à venda em feiras) já apontam para a intenção dos arguidos. O tribunal a quo deveria ter inferido a intenção de vender os artigos contrafeitos com o conhecimento da sua natureza.
O tribunal a quo ignorou a relação lógica entre a posse de artigos contrafeitos para venda e o conhecimento da sua natureza pelos arguidos.
Atentemos ao que diz a decisão a quo:
Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. No dia 26 de Julho de 2019, às 12h10, os arguidos AA e BB tinham na sua posse, no interior do veículo de matrícula ..-..-DP, quando circulavam na Rua ..., em ..., área desta cidade ...:
- dois pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Adidas”, que destinavam à venda em festas e feiras.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. e com a mesma finalidade o arguido AA tinha na sua posse
- dez pares de sapatilhas com a ostentação da marca “Nike”,
- um par de sapatilhas com a ostentação da marca “AllStar”.
3. Nenhuma das sapatilhas haviam sido fabricadas e distribuídas pelas marcas que ostentavam e apresentavam características diversas dos produtos efetivamente fabricados e comercializados pelas aludidas marcas, ainda que com elementos identificativos semelhantes aos originais das marcas “Nike”, “AllStar” e “Adidas”.
4. As marcas em causa gozam de reputação junto dos consumidores.
5. Os arguidos quiseram, como conseguiram, ter na sua posse os artigos referidos em 1. e 2. com a intenção de os venderem a todas as pessoas que se mostrassem interessadas em adquiri-los em festas e feiras.
6. O arguido AA não tem antecedentes criminais.
7. O arguido BB foi condenado no PCS n.º ... que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Baião por sentença de 06.11.2017, transitada em 05.02.2018 pela prática em 14.07.2014 de um crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca na pena de 185 dias de multa à taxa diária de €5,00, já extinta.
a) A venda referida em 1. seria pelo valor unitário que variava entre os €10,00 e os € 15,00
b) Nenhuma das sapatilhas foram fabricadas e distribuídas com a autorização das marcas Nike”, “AllStar”, “Adidas” ou de qualquer representante oficial dessas marcas, tratando-se de peças fabricadas e comercializadas à revelia dos seus titulares.
c) Os arguidos pretendiam aproveitar a reputação referida em 4. e levar os consumidores a adquirir esses artigos pela combinação de preços mais baixos
d) Os arguidos não tinham consentimento dos titulares dos respetivos direitos para fabricar e vender artigos com as marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” e apostas, como eles bem sabiam.
e) Os arguidos agiram como referido em 5. apesar de saberem que os artigos eram imitações dos verdadeiros, das marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas”, que continham sinais idênticos aos usados por estas marcas e que não o podiam fazer sem a autorização dos seus titulares ou representantes, que detinham a sua propriedade e exclusivo, por se tratarem de marcas registadas cujas insígnias ou sinais não podiam ser utilizados sem os seus consentimentos e se destinavam a distinguir os seus produtos de outros.
f) As marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” encontram-se registadas no nosso país e, por isso, os seus produtos só podem ser confecionados e transacionados pelos detentores das marcas ou por quem estiver devidamente autorizado por aqueles para tal, o que era do conhecimento do arguido.
g) Os arguidos atuaram livre, voluntária e conscientemente, com o objetivo alcançado de obterem um benefício económico ao qual se sabiam sem direito e embora conhecessem que agiam contra a vontade e sem a autorização dos titulares das marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” e que praticavam factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiram de os concretizarem. “
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que não se confunde com insuficiência de prova.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
Relativamente a um eventual erro notório na apreciação da prova, importa considerar que é um vicio endógeno da sentença, que se encontra previstos no art. 410º-2-c), isto é, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras do conhecimento e da experiência comum ou das máximas do conhecimento especializado.
Nada tem a ver com lapsos materiais da sentença, que são corrigíveis a todo o tempo, inclusive no tribunal de recurso (v. art. 380º).
O «erro notório na apreciação da prova, basicamente existe, quando se dá como provado (ou não provada) uma realidade que, à luz do conhecimento e das regras da experiência geral (presunções naturais) ou das máximas do conhecimento especializado, manifestamente, na apreciação do comum dos observadores, não podia ter acontecido (ou tinha de ter acontecido). É um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer especial exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela, algum facto essencial com o qual ou sem o qual, o julgado não faz sentido. Constitui «erro notório na apreciação da prova», por exemplo, a violação de regras sobre prova vinculada, ou o erro sobre factos históricos de conhecimento geral, ou a ofensa de leis da natureza ou da lógica ou de conhecimentos criminológicos e vitimológicos comuns (neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in, CPP anotado, notas ao artigo e P.P. Albuquerque, in, Comentário do C.P.P., notas ao artigo).
Portanto, se os factos descritos na sentença e considerados provados e não provados, se apresentam, aos olhos de um observador dotado de mediana inteligência e experiência da vida, contraditórios ou de verificação impossível, no contexto daquela descrição, e a respetiva análise crítica alcançada pelo juiz não obedece a claros princípios de racionalidade, então haverá erro notório na apreciação da prova. Igualmente haverá se violar regras de prova vinculada. Na invocação deste vicio da sentença, importa que o recorrente desmonte o erro de forma a evidenciar a sua notoriedade, sem invocação de elementos exteriores. O vicio é puramente de raciocínio do Juiz e puramente endógeno da sentença. Obviamente, nada tem a ver com eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo recorrente. Se a sentença é clara, encontrando-se todas as premissas concatenadas e concordantes entre si, sem vislumbre de contradições ou discrepâncias ou ilegalidades probatórias, assente num raciocínio lógico corretamente explanado, então não há erro notório na apreciação da prova.
O conceito de erro notório na apreciação das provas tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório. (Ac. STJ de 06.04.94, in, CJ-II-86).
Posto isto, resulta que a decisão a quo não só revela incoerências e contradições como bate manifesta e ostensivamente contra o senso comum e regras da experiência.
Os arguidos possuíam artigos que imitavam marcas conhecidas para vender em feiras e sabiam que o que estavam a vender eram imitações que não correspondiam às marcas originais e faziam-no para obter beneficio económico em prejuízo dos titulares das marcas em questão e não o poderiam ignorar tendo em conta que os preços de produtos de marca são bem mais elevados e o comércio de tais bens não se faz em feiras ou numa banca de rua e logicamente os legais detentores das marcas em questão e devidamente registadas necessariamente não autorizam a venda de bens que imitam os originais em locais como os escolhidos pelos arguidos.
E, portanto, não se percebe como é que o tribunal a quo deu como não provado que Nenhuma das sapatilhas foram fabricadas e distribuídas com a autorização das marcas Nike”, “AllStar”, “Adidas” ou de qualquer representante oficial dessas marcas, tratando-se de peças fabricadas e comercializadas à revelia dos seus titulares. Sendo meras imitações como é que se pode concluir tal.
c) Os arguidos pretendiam aproveitar a reputação referida em 4. e levar os consumidores a adquirir esses artigos pela combinação de preços mais baixos . Sendo imitações, produtos não produzidos necessariamente pelas marcas é insano concluir que não pretendiam aproveitar a reputação das marcas e vendê-los a preços mais baixos.
d) Os arguidos não tinham consentimento dos titulares dos respetivos direitos para fabricar e vender artigos com as marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” e apostas, como eles bem sabiam. Tratando-se de marcas conhecidas e de produtos que procuram passar como sendo originais, apondo elementos identificativos daquelas, como se pode concluir que eles não sabiam que era preciso o consentimento dos titulares.
e) Os arguidos agiram como referido em 5. apesar de saberem que os artigos eram imitações dos verdadeiros, das marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas”, que continham sinais idênticos aos usados por estas marcas e que não o podiam fazer sem a autorização dos seus titulares ou representantes, que detinham a sua propriedade e exclusivo, por se tratarem de marcas registadas cujas insígnias ou sinais não podiam ser utilizados sem os seus consentimentos e se destinavam a distinguir os seus produtos de outros. Este teor entra em contradição com o provado em 3,4 e 5 dos factos provados e demais regras da experiência.
f) As marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” encontram-se registadas no nosso país e, por isso, os seus produtos só podem ser confecionados e transacionados pelos detentores das marcas ou por quem estiver devidamente autorizado por aqueles para tal, o que era do conhecimento do arguido. Este facto está intrinsecamente ligado à obrigação que o tribunal quo tinha de investigar acerca do registo. Comprovado o registo e para quem vende em feiras material contrafeito, sabe perfeitamente que não o pode fazer.
g) Os arguidos atuaram livre, voluntária e conscientemente, com o objetivo alcançado de obterem um benefício económico ao qual se sabiam sem direito e embora conhecessem que agiam contra a vontade e sem a autorização dos titulares das marcas “Nike”, “AllStar”, “Adidas” e que praticavam factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiram de os concretizarem. Trata-se de factos que entram em choque com a realidade de quem se dedica à venda de material contrafeito em feiras.
O tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, o que, por si só, constitui motivo para o reenvio do processo para novo julgamento, porquanto não é possível já decidir da causa.
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide conceder provimento ao recurso interposto pelo M.P e, em consequência, declarar nula a sentença recorrida por o tribunal a quo não ter investigado como devia violando o disposto no artigo 340º do CPP, devendo obter os certificados das marcas registadas, revogar a decisão de extinção do procedimento criminal por falta de legitimidade do M.P. por se não ter procedido à tradução das procurações, devendo o tribunal a quo fazê-lo, e consequência decide-se manter a legitimidade in totum do M. P para o prosseguimento da ação penal, declarando-se ainda a verificação do vício do erro notório na apreciação da prova do art. 410º. n º 2 al. c) do CPP e em consequência determinar o reenvio do processo a fim de se proceder a novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo com intervenção de juiz diferente da Srª juíza a quo que proferiu asentença.
Sem custas.
Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.
Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 29 de janeiro de 2025
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Castela Rio
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.