REGIME GERAL DAS CONTRAORDENAÇÕES
TRIBUNAL COMPETENTE
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Sumário

I - O regime geral das contraordenações previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, mais vulgarmente designado por RGCO, não estabelece qualquer norma quanto à competência do tribunal para conhecer dos recursos das decisões administrativas que determinam a cassação da carta de condução com fundamento na perda de pontos.
II - Não faz qualquer sentido aplicar-se o disposto no artigo 61.º, n.º1 do RGCO e impor-se como tribunal competente o tribunal onde ocorreu a prática do crime que determinou a última das condenações que levou à última perda de pontos, pois não está em causa apreciar o acto que determinou cada uma das condenações, mas antes, as consequências resultantes dessas condenações relativamente à manutenção da validade da carta de condução do condenado.
III - A solução para a lacuna existente deve ser encontrada, de acordo com o acórdão deste tribunal de 1/02/2022, no recurso n.º 220/21.4Y5LSB.L1-5 (acessível em www.dgsi.pt) no quadro do próprio RGCO, designadamente no seu artigo 35.º, n.º1, alínea b) (ainda que respeitante à competência da autoridade administrativa), que estabelece a competência em função do domicílio do arguido, considerando-se como territorialmente competente para conhecer da impugnação judicial da decisão de cassação da carta o tribunal onde o recorrente/impugnante tiver o seu domicílio.

Texto Integral

I –Relatório:

1. No âmbito da impugnação judicial da decisão administrativa da ANSR (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária), que determinou a cassação da carta de condução da titularidade de AA, intentada por este junto do Juízo Local Criminal de Oeiras, veio o senhor juiz, a quem o processo foi distribuído (juiz 3), declarar territorialmente incompetente aquele tribunal e competente o Juízo Local Criminal de Loures, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, para o qual determinou a remessa imediata dos autos.
2. A senhora juíza a quem o processo foi distribuído no Juízo Local Criminal de Loures (Juiz 4) declinou a competência e suscitou, perante este tribunal, a resolução do conflito negativo de competência que opõe ambos os tribunais, nos termos dos artigos 12.º, n.º 5, alínea a) e 35.º, n.º1 do Código de Processo Penal e 76.º, n.º2 da LOSJ.
3. Cumprido que foi o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de se atribuir a competência para julgar o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa em causa ao Juízo Local Criminal de Oeiras, com fundamento de que é aplicável o disposto no artigo 35.º, n.º1, al. b), do RGCO e não o artigo 61.º do mesmo diploma em função da natureza da decisão impugnada.
4. O arguido, recorrente na impugnação judicial, nada veio alegar sobre o conflito.
5. Sendo este o tribunal competente para conhecer do conflito, nos termos do artigo 12.º, n.º5, alínea a) do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Despachos em conflito:
O despacho proferido em 15/07/2024, mediante o qual o Exmo. Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Oeiras se declarou incompetente é do seguinte teor: (transcrição)
«O artigo 61.º do Regime Geral das Contraordenações, ex vi artigo 148.º, n.º 3, do Código da Estrada, estabelece a competência para decidir do recurso de impugnação de judicial de decisão de cassação de carta nos seguintes termos:
1 - É competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção.
2 - Se a infracção não tiver chegado a consumar-se, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto de execução ou, em caso de punibilidade dos actos preparatórios, o último acto de preparação.”
Sendo certo que a cassação de carta de condução é decisão que se funda em infrações que acarretaram a perda de pontos para o seu titular, nos termos do artigo 148.º, do Código da Estrada, aplicação mutatis mutandis ao recurso da cassação do elemento literal do artigo 61.º do Regime Geral das Contraordenações não arrima outro entendimento que não seja o de que é territorialmente competente para decidir o seu recurso o Tribunal da área da infração que fundamentou a cassação.
Daí ser territorialmente competente para a decisão do recurso de impugnação judicial da cassação o tribunal competente pela área da última infração que, acarretando a perda total de pontos da carta de condução, fundamentou a cassação.
A última infração que fundamentou a decisão administrativa de cassação de carta corresponde ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez que foi praticado a ........ 2021 em via rodoviária sob a jurisdição do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Oures – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, que a puniu por sentença proferida no Processo Abreviado n.º 536/21.0PKLRS, conforme resulta do teor da decisão administrativa e da referida sentença (v. fls. 7).
Pelo exposto declaro este Tribunal territorialmente incompetente para decidir o presente recurso de contraordenação, declarando o Juízo Local Criminal de Loures, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, competente para esse efeito.
Notifique-se, dê-se baixa dos autos e proceda-se de imediato à sua remessa para o Tribunal dirimido como sendo o territorialmente competente.»
O despacho proferido em 18/09/2024, mediante o qual a Exma. Juíza 4 do Juízo Local Criminal de Loures que declinou a competência territorial atribuída pelo Juízo Local criminal de Oeiras é do seguinte teor: (transcrição)
«Foi distribuído ao presente Juízo os autos em epígrafe, após declaração de incompetência do Juízo Local Criminal de Oeiras para o conhecimento da matéria dos autos.
O Mm.º Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Oeiras proferiu despacho em 15/07/2024 (ref.ª 152194255), aduzindo os seguintes argumentos: “O artigo 61.º do Regime Geral das Contraordenações, ex vi artigo 148.º, n.º 3, do Código da Estrada, estabelece a competência para decidir do recurso de impugnação de judicial de decisão de cassação de carta nos seguintes termos:
1 - É competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção.
2 - Se a infracção não tiver chegado a consumar-se, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto de execução ou, em caso de punibilidade dos actos preparatórios, o último acto de preparação.”
Sendo certo que a cassação de carta de condução é decisão que se funda em infrações que acarretaram a perda de pontos para o seu titular, nos termos do artigo 148.º, do Código da Estrada, aplicação mutatis mutandis ao recurso da cassação do elemento literal do artigo 61.º do Regime Geral das Contraordenações não arrima outro entendimento que não seja o de que é territorialmente competente para decidir o seu recurso o Tribunal da área da infração que fundamentou a cassação.
Daí ser territorialmente competente para a decisão do recurso de impugnação judicial da cassação o tribunal competente pela área da última infração que, acarretando a perda total de pontos da carta de condução, fundamentou a cassação.
A última infração que fundamentou a decisão administrativa de cassação de carta corresponde ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez que foi praticado a ........ 2021 em via rodoviária sob a jurisdição do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Oures – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, que a puniu por sentença proferida no Processo Abreviado n.º 536/21.0PKLRS, conforme resulta do teor da decisão administrativa e da referida sentença (v. fls. 7).”
Não obstante o despacho proferido e a argumentação expendida pelo Mm.º Juiz do Juízo Local Criminal de Oeiras, o Tribunal entende não ser o territorialmente competente para apreciar os autos.
Vejamos.
O recorrente AA intentou o presente recurso de impugnação judicial (que constitui fls. 111 e ss.), da decisão proferida, no dia 01/04/2024, pela autoridade administrativa Autoridade Nacional Segurança Rodoviária - doravante, designada apenas por “ANSR” (que constitui fls. 97 e ss.), que determinou a cassação do seu título de condução n.º L-2096003, ao abrigo do disposto no artigo 148.º n.ºs 4 c) e 10 do CE.
Quer o Código da Estrada, que prescreve no n.º 13 do arriba citado normativo legal “A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.”, quer o DL n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCOC), não prevê qual o tribunal competente, em razão do território, para apreciar um recurso de impugnação judicial do tipo em apreço, pelo que, se verifica uma lacuna na lei, sendo certo que, o preceituado no artigo 61.º do RGCO que prescreve “1 - É competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração.”, não é aplicável à situação em causa, uma vez que não se está perante uma situação de “infração”, mas, sim, perante uma decisão administrativa de cassação de um título de condução.
Deste modo, entende-se que a integração da lacuna em causa deve ser preenchida com a norma legal que, dentro do RGCOC (porque para este regime o CE remete expressamente - vide acima citado n.º 10 do artigo 148.º) se harmonize com tal regime e que se entende ser o artigo 35.º, que prescreve “1 - É territorialmente competente a autoridade administrativa concelhia em cuja circunscrição. (…) b) O arguido tem o seu domicílio ao tempo do início ou durante qualquer fase do processo. (…).”
No mesmo sentido, vide Ac. da Relação de Lisboa de 01/02/2022 (proc. 220/21.4Y5LSB.L1-5), disponível in www.dgsi.pt, cujo trecho da respetiva fundamentação se transcreve para alumiar a questão em apreço:
“Em primeiro lugar, afigura-se-nos não ser de invocar o artigo 61.º do RGCO – competência do tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção -, porquanto não está em causa uma infracção contraordenacional, mas antes a decisão de cassação que, por sua vez, tem fundamento na acumulação de perda de pontos decorrente dos dois crimes de condução em estado de embriaguez que foram cometidos pelo recorrente.
Por que razão haveria o recorrente, que tem o seu domicílio em Lisboa, de ter de impugnar a decisão em causa no Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre – Juízo Local Criminal de Elvas, apenas por ser aquele por onde correu o processo que levou à última condenação? E se a última perda de pontos decorresse de uma infracção criminal ou contraordenacional praticada, por exemplo, nos Açores ou na Madeira: teria o recorrente de impugnar a decisão de cassação no Tribunal Judicial dos Açores ou no Tribunal Judicial da Madeira?
Daí que nos pareça que, da conjugação do referido normativo com o artigo 35.º, n.º 1, al. b), do RGCO (ainda que respeitante à competência da autoridade administrativa), será mais curial integrar a lacuna no quadro do próprio RGCO, entendendo como territorialmente competente o tribunal onde cada recorrente/impugnante tiver o seu domicílio. (…).” (sublinhado nosso).
Ora, o recorrente AA tem residência sito na área do concelho de Oeiras, mais concretamente em Algés (cf. fls. 29).
Destarte, salvo melhor opinião, o tribunal territorialmente competente para apreciar o presente recurso de impugnação judicial, não é o Juízo Local Criminal de Loures, sendo, ao invés, o Juízo Local Criminal de Oeiras do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
Pelo exposto, declara-se o Juízo Local Criminal de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, incompetente em razão do território, configurando-se, assim, um conflito negativo de competência, nos termos do artigo 34.º n.º 1 do CPP, a dirimir pelo Exmo. Sr. Presidente da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do preceituado nos artigos 12.º n.º 5 a), 35.º n.º 1 e 36.º n.º 1, todos do CPP e 76.º n.º 2 da LOSJ.
Notifique.»
*
Não há dúvida que estamos perante um conflito negativo de competência em razão do território, na medida em que estamos perante uma divergência entre dois tribunais da mesma espécie em que cada um deles não se reconhece competente para conhecer quanto à impugnação judicial respeitante a uma decisão de uma autoridade administrativa que afecta o mesmo arguido.
Trata-se da impugnação judicial de uma decisão de cassação da carta de condução com fundamento na subtração de perda de pontos ao condutor, nos termos previstos no artigo 148.º do Código da Estrada.
Sendo inquestionável que a decisão de cassação é impugnável para os tribunais judiciais, a questão que se coloca, perante as decisões em confronto, é a de saber qual o tribunal territorialmente competente para conhecer de tal impugnação – se o tribunal da área da infração que fundamentou a cassação, como se decidiu no despacho do senhor juiz do Juízo Local Criminal de Oeiras, se o tribunal do local do domicílio do impugnante, como se considerou no despacho da senhora juíza do Juízo Local Criminal de Loures.
Estabelece o artigo 148.º, n.º 13 do Código da Estrada que a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.
O regime geral das contraordenações previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, mais vulgarmente designado por RGCO, não estabelece qualquer norma quanto à competência do tribunal para conhecer dos recursos das decisões administrativas que determinam a cassação da carta de condução com fundamento na perda de pontos. Apenas estabelece no seu artigo 61.º, com a epígrafe “Tribunal competente” respeitante ao recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima:
«1 - É competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção.
2 - Se a infracção não tiver chegado a consumar-se, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto de execução ou, em caso de punibilidade dos actos preparatórios, o último acto de preparação.»
Esta norma, como dela resulta e da sua inserção sistemática, está prevista para a competência do tribunal quando esteja em causa a impugnação judicial de uma condenação em coima, pela autoridade administrativa, em resultado da prática de uma contraordenação.
Porém, não está aqui em causa a impugnação de uma infracção contraordenacional, mas antes a impugnação da decisão de cassação que, por sua vez, tem fundamento na acumulação de perda de pontos decorrentes da prática pelo impugnante de uma contraordenação muito grave, pela autoridade administrativa e pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, cuja condenação ocorreu em tribunais diversos.
Não faz qualquer sentido aplicar-se o disposto no artigo 61.º, n.º1 do RGCO e impor-se como tribunal competente o tribunal onde ocorreu a prática do crime que determinou a última das condenações que levou à última perda de pontos, pois não só a norma não está prevista quando esteja em causa a prática de crimes, como não está em causa apreciar o acto que determinou cada uma das condenações, mas antes, as consequências resultantes dessas condenações relativamente à manutenção da validade da carta de condução do condenado.
O que se constata neste caso, tal como se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa de 1/02/2022, no recurso n.º 220/21.4Y5LSB.L1-5, em que é relator Jorge Gonçalves (acessível em www.dgsi.pt) é a existência de uma lacuna, cuja solução deve ser encontrada no quadro do próprio RGCO, designadamente no seu artigo 35.º, n.º1, alínea b) (ainda que respeitante à competência da autoridade administrativa), que estabelece a competência em função do domicílio do arguido, considerando-se como territorialmente competente para conhecer da impugnação judicial da decisão de cassação da carta o tribunal onde o recorrente/impugnante tiver o seu domicílio.
Com efeito, e na esteira do decidido no acórdão supra citado, não faria qualquer sentido que se o impugnante residisse em Lisboa ou em qualquer outro local de Portugal continental, e a última perda de pontos ocorresse de uma infração criminal praticada, por exemplo, nos Açores ou na Madeira, tivesse o recorrente de impugnar a decisão de cassação, para a qual é competente a ANSR, com sede em Lisboa, no Tribunal Judicial dos Acores ou no Tribunal Judicial da Madeira.
Em face do exposto, tendo o recorrente/impugnante o seu domicílio na área de competência territorial do Tribunal Judicial de Oeiras é este tribunal o competente para conhecer da impugnação judicial que o mesmo aí interpôs, assim se dirimindo o conflito.
III – Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência para o julgamento da impugnação judicial interposta por AA, nos autos principais em que este conflito foi suscitado, ao Juízo Local Criminal de Oeiras (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
Sem tributação.
*
Cumpra-se o disposto no artigo 36.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 29/10/2024
(processei e revi – art.º 94, n.º 2 do C.P.P.)
Maria José Machado