INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
IMPEDIMENTO DO JUIZ
Sumário

I – A lei é clara quanto aos pressupostos legais do conflito. Traduz-se numa divergência entre dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal e surge, em processo penal, quando mais do que um tribunal se reconhecem ou não se reconhecem competentes para conhecer quanto à existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
II - A incompetência do tribunal não se confunde com o impedimento do juiz, que se traduz numa incapacidade de exercício da função jurisdicional num determinado processo – o juiz é competente para tramitar determinado processo, mas não é subjectivamente capaz, por existir uma determinada situação, imposta legalmente por razões de imparcialidade, que impede que o mesmo possa ter participação num determinado processo.
III - A declaração de impedimento por parte da senhora juíza que havia realizado o julgamento e proferido a sentença declarada nula pelo Tribunal da Relação não acata o dever de obediência a que estão sujeitos os juízes, das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, previsto no artigo 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais e no artigo 4.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 6272013, de 26/08).
IV - Não tem qualquer razão de ser o conflito de competência que foi suscitado pela senhora juíza (juiz 2) pois não existe qualquer conflito de competência entre tribunais, que cumpra conhecer ou dirimir. O que temos é uma decisão proferida pelo Tribunal da Relação em via de recurso de uma decisão proferida pela senhora juíza, que esta deverá acatar, prolatando a nova sentença que aquele tribunal superior determinou que fosse proferida pelo tribunal recorrido, isto é, pelo tribunal presidido pela senhora juíza que suscitou o alegado conflito.

Texto Integral

I –Relatório:

1. No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal singular n.º 1809/19.7JFLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa, juiz 2, a senhora juíza proferiu, em 7/03/2024 o seguinte despacho:
«Em face do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do disposto no art.º 40º, do C.P. Penal, declaro-me impedida.
Notifique.
Remeta os autos à distribuição, com exclusão do J2 e do J10, com o qual nos encontramos em integral acumulação de funções.
Dê baixa.»
O acórdão da Relação de Lisboa a que se faz referência em tal despacho decidiu o recurso interposto pela arguida da sentença proferida nos autos pela senhora juíza, tendo julgado tal recurso procedente e «declarado nula a sentença recorrida por omissão de pronúncia e falta de fundamentação, determinando a devolução dos autos ao Tribunal recorrido, a fim de proferir nova sentença que supra as apontadas nulidades, se necessário com produção de prova suplementar».
2. Distribuídos os autos no Juízo Local Criminal ao Juiz 14, foi proferido despacho no sentido de serem os autos remetidos ao Juiz em substituição legal em virtude de a Sra. Juiz titular do processo se ter declarado impedida nos termos do artigo 40º.
3. Apresentados os autos à senhora juíza substituta (juiz 3), pela mesma foi proferido, a 4/09/2024, o seguinte despacho:
«Por despacho proferido pelo JL Criminal – Juiz 2, datado de 7 de Março de 2024, na sequência de Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi determinada a remessa dos autos à distribuição por impedimento nos termos do artigo 40.º do Código de Processo Penal.
Distribuídos os autos ao JL Criminal – Juiz 14, foi proferido despacho no sentido de serem os autos remetidos ao Juiz em substituição legal do Juiz 2, in casu, o JL Criminal – Juiz 3.
O Ministério Público pronunciou-se nos termos que antecedem (referência Citius n.º 437207525). Cumpre decidir.
Decorre do disposto no artigo 426.º-A, do Código de Processo Penal que «1 - Quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal que tiver efectuado o julgamento anterior, sem prejuízo do disposto no artigo 40.º, ou, no caso de não ser possível, ao tribunal que se encontre mais próximo, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida.
2 - Quando na mesma comarca existir mais de um juízo da mesma categoria e composição, o julgamento compete ao tribunal que resultar da distribuição. (negrito nosso)»
Considerando o preceito legal supra, outra solução não se pode retirar que não seja a de que, em caso de impedimento do anterior titular por força do disposto no artigo 40.º do Código de Processo Penal, determinada a distribuição, a competência para o novo julgamento recaí sobre aquele JL Criminal que resultar da distribuição, aliás aqui se acompanhando a posição vertida pelo Ministério Público na sua promoção.
Destarte, dúvidas inexistem de que realizada a distribuição destes autos, foram estes atribuídos ao Juiz 14, sendo por isso este JL Criminal – Juiz 14 o competente.
Face ao supra exposto, declaro o JL Criminal - Juiz 3, enquanto substituto legal, para a realização do julgamento, e competente o JL Criminal – Juiz 14 por ser aquele que resulta da distribuição efectuada a 11 de Março de 2024.
Notifique.»
4. Apresentado o processo ao juiz 14 do Juízo Local Criminal de Lisboa, foi aí proferido, a 6/09/2024, o seguinte despacho:
«Na sequência de recurso interposto pela arguida, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que declarou nula, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação, a sentença proferida no âmbito dos presentes autos e determinou a devolução dos autos ao tribunal recorrido, “a fim de proferir sentença que supra as apontadas nulidades, se necessário com produção de prova suplementar”.
Por despacho proferido pelo JL Criminal – Juiz 2, datado de 7 de março de 2024, na sequência do referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi determinada a remessa dos autos à distribuição por impedimento nos termos do artigo 40.º do Código de Processo Penal, tendo os mesmos sido distribuídos a este JL Criminal – Juiz 14.
De facto, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 426.º-A do Código de Processo Penal, quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal que tiver efetuado o julgamento anterior, sem prejuízo do disposto no artigo 40.º, ou, no caso de não ser possível, ao tribunal que se encontre mais próximo, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida.
E nos termos do disposto no art.º 40.º n.º 1, alínea c), para o que aqui releva, nenhum juiz pode intervir em julgamento, relativo a processo em que tiver participado em julgamento anterior.
Sucede, porém, que não foi determinado o reenvio do processo para novo julgamento.
Efetivamente, o que foi determinado pelo Tribunal da Relação foi “a devolução dos autos ao Tribunal recorrido, a fim de proferir nova sentença que supra as apontadas nulidades, se necessário com produção de prova suplementar”; ou seja, e salvo melhor entendimento, foi determinada a devolução para suprimento das nulidades com base na prova já produzida, sendo que a menção à eventual produção de prova suplementar em caso de necessidade aponta para isso mesmo, para uma eventual reabertura da audiência para produzir prova adicional caso a prova já produzida se revele insuficiente para suprir as nulidades apontadas.
Por outro lado, estabelece o art.º 328.º-A do Código de Processo Penal o princípio da plenitude da assistência dos juízes, determinando, no seu n.º 1 e para o que aqui releva, que só podem intervir na sentença os juízes que tenham assistido a todos os atos de instrução e discussão praticados na audiência de julgamento.
O que não foi o caso deste JL Criminal – Juiz 14.
Assim, não tendo assistido à produção de prova no decorrer do julgamento dos presentes autos, não poderá este J14 proferir a sentença conforme determinado.
Face ao exposto, e com os fundamentos supra assinalados, declaro este JL Criminal – Juiz 14 incompetente para cumprir o que foi determinado pelo Acórdão da Relação de Lisboa, sendo competente o Juízo Local Criminal – Juiz 2, por ser aquele que proferiu a sentença revogada.
Notifique.
Abra conclusão ao Juízo Local Criminal – Juiz 2.»
5. Uma vez concluso o processo no juiz 2, pela senhora juíza foi proferido, a 11/09/2024, o seguinte despacho:
«Atenta a posição assumida pela Mma. Juiz 14, à qual foi distribuído o presente processo, na sequência da nossa declaração de impedimento, afigura-se-nos estarmos perante uma situação de conflito negativo de competência (art.º 34º, nº 1, do C.P.P.).
Assim, para que o conflito seja dirimido pelo Ex.mo Senhor Presidente das Secções Criminais do Tribunal da Relação de Lisboa, organize e instrua apenso com cópia da sentença proferida, do Acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa, do despacho em que nos declaramos em situação de impedimento, do despacho da Mma. Juiz 14, fazendo constar menção aos sujeitos processuais envolvidos (art.ºs 12º, nº5, a), e 35º, nº1, ambos do C.P.P.).
Após instruído, com cópia do presente despacho, suba ao Tribunal da Relação de Lisboa.».
6. Cumprido que foi o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de se atribuir a competência para a prolação de nova sentença ao juiz 2 do Juízo Local Criminal de Lisboa. A arguida nada veio alegar sobre o alegado conflito.
7. Sendo este o tribunal competente, cumpre apreciar e decidir.
II – Apreciação
Em face dos despachos supra transcritos, cumpre verificar se estamos perante um conflito negativo de competência que caiba a este tribunal dirimir.
Estabelece o artigo 34.º do Código de Processo Penal:
«1. Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».
2. O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.»
A lei é clara quanto aos pressupostos legais do conflito. Traduz-se numa divergência entre dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal e surge, em processo penal, quando mais do que um tribunal se reconhecem ou não se reconhecem competentes para conhecer quanto à existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.
A incompetência do tribunal não se confunde com o impedimento do juiz, que se traduz numa incapacidade de exercício da função jurisdicional num determinado processo – o juiz é competente para tramitar determinado processo, mas não é subjectivamente capaz, por existir uma determinada situação, imposta legalmente por razões de imparcialidade, que impede que o mesmo possa ter participação num determinado processo.
Não estamos, no caso dos autos, perante um conflito de competência entre tribunais, mas sim perante uma declaração de impedimento por parte da Juíza titular a quem o processo foi inicialmente distribuído para o julgamento, que o realizou e proferiu a sentença, por um lado, e uma declaração de incompetência por parte do senhor juiz a quem o processo foi distribuído após aquela declaração de impedimento, por outro.
Aquela declaração de impedimento por parte da senhora juíza titular, que já havia realizado o julgamento e proferido a sentença, surgiu na sequência da decisão que foi proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 6/02/2024, que determinou a nulidade da sentença que havia sido proferida por aquela, com fundamento em omissão de pronúncia e falta de fundamentação, e que, além disso, ordenou, ao tribunal recorrido (aquele que havia realizado o julgamento), a prolação de nova sentença que supra as apontadas nulidades.
O que o tribunal da Relação ordenou ao tribunal que proferiu a sentença declarada nula (juiz 2) foi que esse mesmo tribunal, e não outro, proferisse nova sentença expurgada das nulidades que o tribunal de recurso declarou existirem na sentença sobre a qual incidiu o recurso, o que, aliás, está conforme ao disposto nos artigos 379.º, n.º 2 e 328.º-A. do Código de Processo Penal.
A declaração de impedimento por parte da senhora juíza que havia realizado o julgamento e proferido a sentença declarada nula pelo Tribunal da Relação (juiz 2), certamente devida a confusão com a situação em que o tribunal superior determina o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, não acata o dever de obediência a que estão sujeitos os juízes, das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, previsto no artigo 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais e no artigo 4.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 6272013, de 26/08), violação que é susceptível de procedimento disciplinar, em face do disposto no artigo 83.º-H, n.º 1, alínea a) daquele Estatuto.
Com efeito, à senhora juíza do juiz 2, a quem foi ordenado, pelo tribunal superior, em via de recurso de uma decisão por ela proferida, que proferisse nova sentença que supra as nulidades assinaladas, exige-se o dever de obedecer a tal decisão e de prolatar uma nova sentença, pois foi isso que foi determinado pelo tribunal superior e uma vez que, como a mesma bem sabe, foi perante ela que foram realizados todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência de julgamento.
Não tem qualquer razão de ser o conflito de competência que foi suscitado pela senhora juíza (juiz 2) pois não existe qualquer conflito de competência entre tribunais, que cumpra conhecer ou dirimir. O que temos é uma decisão proferida pelo Tribunal da Relação em via de recurso de uma decisão proferida pela senhora juíza, que esta deverá acatar, sob pena de procedimento disciplinar, prolatando a nova sentença que aquele tribunal superior determinou que fosse proferida pelo tribunal recorrido, isto é, pelo tribunal presidido pela senhora juíza que suscitou o alegado conflito.
III – Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se que não existe nos autos qualquer conflito negativo de competência que deva ser conhecido, competindo à Sr.ª Juíza que proferiu a sentença objeto do recurso para este Tribunal da Relação, nos termos do artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, dar cumprimento ao que foi decidido no acórdão que o apreciou, suprindo consequentemente as nulidades nele declaradas.
Sem tributação.
Cumpra-se o artigo 36.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Lisboa, 26/11/2024
(processei e revi – art.º 94, n.º 2 do C.P.P.)
Maria José Machado