RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
AUSÊNCIA DE CULPA
ABSOLVIÇÃO
Sumário

Se da factualidade provada e não provada resulta a não demonstração da negligência da arguida empregadora na verificação das condutas assumidas pelos seus dois ajudantes de motorista, impõe-se a absolvição da arguida da prática das contra-ordenações que lhe foram imputadas, ainda que a mesma não tenha interposto recurso da sentença, ao abrigo do previsto no art.º 51.º, n.º 2, alínea a) do RCOLSS, ficando, ipso facto, prejudicada a verificação dos pressupostos da reincidência invocada no recurso do Ministério Público.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
O presente recurso foi interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, por não se conformar com a sentença que, julgando parcialmente procedente o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida XX, S.A., decidiu:
a. Manter, na íntegra, a condenação pela contra-ordenação constante da letra X., bem como a coima de 70 UC (€ 7.140,00) (contra-ordenação muito grave);
b. Condenar a arguida pela comissão das contra-ordenações constantes das letras W. e Y., não a título de reincidência, aplicando a cada uma coima de 90 UC (€ 9.180,00) (contra-ordenações muito graves);
c. Em cúmulo jurídico, condenar a arguida na coima única de 180 UC (€ 18.360,00);
d. Manter a decisão de publicidade quanto a estas três contra-ordenações (X., W. e Y.).
Formula as seguintes conclusões:
«1.ª- Atento o disposto no art.º 561.º, n.º 1, do Código do Trabalho, para que arguida fosse condenada como reincidente tinha de ter sido anteriormente condenada por uma infração grave com dolo ou uma muito grave e, por outro lado, entre as duas infrações não podia ter decorrido um prazo superior ao da prescrição da primeira.
2.ª- Como resulta do Registo Nacional de Infrações, que o Mm. Juiz a quo deu por reproduzido na sentença recorrida, a arguida foi condenada por infrações muito graves, nomeadamente, no âmbito dos processos a que alude a decisão administrativa, na parte relativa à infração a que se reporta a letra W., bem como, por exemplo, nos processos n.ºs 241600085, 101801382 e 201800682.
3.ª- Relativamente a muitas dessas infrações muito graves, desde logo aquelas em que a arguida foi condenada nos processos indicados, não decorreu um prazo superior ao da prescrição das mesmas.
4.ª-Aqui chegados, dúvidas não se suscitam que se mostram verificados os requisitos da reincidência, a que alude o art.º 561.º, n.º 1, do Cód. do Trabalho.
5.ª- Com efeito, e contrariamente ao entendido pelo Mm.º Juiz a quo, para que se verifique a reincidência não é necessário que a arguida tivesse cometido, anteriormente, a mesma infração ou, sequer, infração da mesma natureza.
6.ª- Assim sendo, na douta sentença recorrida foi feita uma incorreta interpretação da norma legal aplicável, art.º 561.º, n.º 1, do Código do Trabalho, pelo que deve ser revogada, proferindo-se douto acórdão em que se condene a recorrida como reincidente, pelas infrações em causa, sob a letra W. e Y., cada uma delas no montante de €12.240,00 (120 UC).
7.ª- Consequentemente, dever-se-á realizar o respetivo cúmulo jurídico e aplicar-se a coima única, que a ter por base, apenas, as três coimas em que a arguida foi condenada na sentença recorrida, nunca deverá ser inferior a 220UC, €22.440,00, atenta a reiteração da conduta da arguida, que cometeu, como resulta do Registo Nacional de Infrações junto aos autos, e que o Mmº Juiz deu por reproduzido na douta sentença recorrida, centenas de infrações ao longo dos anos.
8.ª- Por todo o exposto, deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser proferido douto acórdão em que se condene a arguida como reincidente, realizando-se o respetivo cúmulo jurídico e condenando-se a arguida em coima única não inferior a 220UC.»
A arguida não apresentou resposta ao recurso.
Admitido o recurso pelo tribunal recorrido, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
2. Apreciação do recurso
2.1. Relativamente às contra-ordenações pelas quais condenou a arguida, o tribunal recorrido considerou os seguintes factos relevantes como provados:
3. PROCESSOS n.ºs 031900565 e 031900554 (contra-ordenações sob as letras W. e Y.)
3.1. Processo n.º 03100565 (contra-ordenação sob a letra W.)
a. No dia 23/06/2019, pelas 09h10m, AA, exercendo a actividade de trabalhador móvel como ajudante de motorista a bordo no veículo com a matrícula ..-..-VF, foi fiscalizado na Ponte Vasco da Gama, sentido N/S, Montijo, não possuindo o livrete individual de controlo.
3.2. Processo n.º 031900564 (contra-ordenação sob a letra Y.)
a. No dia 23/11/2018, na EN n.º 16, Coina, pelas 07h15m, BB, ajudante de motorista, viajava no veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-ID-.. (momento da infracção A.) e não tinha em seu poder o Livrete Individual de Controlo.
4. Processo n.º 031900566 (contra-ordenações sob a letra X.)
a. No dia 23/07/2019, pelas 15h45m, CC foi fiscalizado ao volante do veículo com a matrícula ..-ST-.., na Ponte Vasco da Gama, sentido N/S, Montijo, não possuindo a bordo do veículo todos os registos de tacógrafo correspondentes aos 28 dias anteriores à data da fiscalização.
5. A arguida organizou o trabalho dos seus motoristas DD, EE, FF, GG, HH e dos seus ajudantes de motorista II, AA, BB, em ordem a que tivessem condições de cumprir com a legislação laboral relativa aos trabalhadores rodoviários.
6. Fiscalizou activamente os registos de tempos de trabalho e pausas dos motoristas e ajudantes de motorista, referidos em 5., e agiu correctivamente perante violações à Lei laboral rodoviária por parte dos mesmos.
7. Disponibilizou formação profissional aos motoristas referidos em 5. em matéria de tempos máximos de condução, tempos mínimos de repouso, nomeadamente sobre a Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, e sobre o Decreto-Lei n.º 237/07, de 19 de Junho.
8. Controlou a utilização e preenchimento dos Livretes Individuais de Controlo de tempos de trabalho e pausas, dos ajudantes de motorista AA, BB e II.
9. Disponibilizou formação profissional ao ajudante de motorista II, sobre como proceder ao correcto preenchimento das folhas do seu Livrete Individual de Controlo de tempo de trabalho e pausas.
10. Disponibilizou formação profissional sobre a legislação laboral, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 237/07, de 19 de Junho, e a Portaria n.º 983/2007, de 27 de Agosto, aos referidos ajudantes de motorista.
11. A arguida omitiu, na infração consignada sob a letra X., o cumprimento dos seus deveres legais e não procedeu com todo o cuidado que lhe era legalmente exigível e possível e, que enquanto entidade empregadora, era capaz, tendo agido com negligência e adoptado atitude bem diferente da diligente que lhe era imposta por Lei.
12. A arguida não retirou qualquer benefício económico com a prática das contra-ordenações.
13. A arguida declarou em 2017 e 2018, respetivamente, € 41.987.686,00 e € 44.027.536,00 de volume de negócios.
14. A arguida regista considerável registo de antecedentes contra-ordenacionais, dando-se por reproduzido o seu RNI.
2.2. Relativamente às contra-ordenações pelas quais condenou a arguida, o tribunal recorrido considerou os seguintes factos relevantes como não provados:
15.1. Processo n.º 031900565 (contra-ordenação sob a letra W.)
Provaram-se todos os factos alegados pela arguida.
15.2. Processo n.º 031900566 (contraordenação sob a letra X.)
a. A arguida organizou o trabalho do seu motorista CC em ordem a que tivesse condições de cumprir com a legislação laboral relativa ao seu trabalho de motorista.
15.3. Processo n.º 031900554 (contra-ordenação sob a letra Y.)
Provaram-se todos os factos alegados pela arguida.
16. A arguida omitiu em todas as infracções (excepto na elencada sob a letra X.) o cumprimento dos seus deveres legais e não procedeu com todo o cuidado que lhe era legalmente exigível e possível e que, enquanto entidade empregadora, era capaz, tendo agido com negligência e adoptado atitude bem diferente da diligente que lhe era imposta por Lei.
2.3. De acordo com o art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 50.º, n.º 4, do RCOLSS (regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro), a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por seu turno, o art.º 51.º do RCOLSS (na senda do disposto nos arts. 402.º e 403.º do Código de Processo Penal) estabelece o seguinte:
Âmbito e efeitos do recurso
1 - Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2 - A decisão do recurso pode:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.
No presente recurso, o Ministério Público sustenta que a arguida deve ser sancionada como reincidente no que concerne às contra-ordenações identificadas na sentença sob as letras W. e Y., pela prática das quais aí se decidiu condená-la.
Preceitua o art.º 561.º do Código do Trabalho:
Reincidência
1 - É sancionado como reincidente quem comete uma contra-ordenação grave praticada com dolo ou uma contra-ordenação muito grave, depois de ter sido condenado por outra contra-ordenação grave praticada com dolo ou contra-ordenação muito grave, se entre as duas infracções tiver decorrido um prazo não superior ao da prescrição da primeira.
2 - Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo da coima são elevados em um terço do respectivo valor, não podendo esta ser inferior ao valor da coima aplicada pela contra-ordenação anterior desde que os limites mínimo e máximo desta não sejam superiores aos daquela.
Assim, conforme refere o Ministério Público no seu Parecer, são pressupostos da reincidência em matéria contra-ordenacional:
- a prática duma contra-ordenação grave a título de dolo ou duma contra-ordenação muito grave;
- a condenação anterior pela prática duma contra-ordenação grave a título de dolo ou duma contra-ordenação muito grave;
- que entre as duas infracções não tenha decorrido prazo superior ao prazo de prescrição da primeira contra-ordenação praticada.
No que respeita ao primeiro pressuposto, na sentença recorrida entendeu-se condenar a arguida em duas coimas de 90 UC (€ 9.180,00) cada uma pela prática a título de negligência de duas contra-ordenações muito graves previstas e punidas pelo disposto conjugadamente nos arts. 4.º, n.º 1, 10.º, n.ºs 1 e 2, e 14.º, n.º 3, al. a) do DL n.º 237/2007, de 19/06, art.º 1.º da Portaria n.º 983/2007, de 27/08, e art.º 554.º, n.ºs 1, 4, al. e) e 9 do Código do Trabalho, por os seus dois trabalhadores móveis não condutores, acima identificados, não terem apresentado à entidade fiscalizadora o Livrete Individual de Controlo.
Vejamos.
Nos termos dos arts. 4.º, n.º 1 e 14.º, n.º 3, al. a) do citado DL n.º 237/2007, de 19/06, conjugadamente com o art.º 1.º da Portaria n.º 983/2007, de 27/08, constitui contra-ordenação muito grave a não utilização de suporte de registo correspondente a Livrete Individual de Controlo por trabalhadores móveis não condutores.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art.º 10.º do citado DL n.º 237/2007, o regime geral previsto nos artigos 548.º a 566.º do Código do Trabalho de 2009, correspondentes aos arts. 614.º a 629.º do Código do Trabalho de 2003, aplica-se às contra-ordenações por violação daquele diploma, sem prejuízo do disposto nos arts. 11.º e 12.º, que ora não relevam, esclarecendo o n.º 2 que o empregador é responsável pelas infracções ao nele disposto.
Ora, nos termos do art.º 548.º do Código do Trabalho, constitui contra-ordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima.
Acrescenta o art.º 550.º do mesmo diploma legal que a negligência nas contra-ordenações laborais é sempre punível.
Finalmente, no que interessa para o presente caso, o n.º 1 do art.º 554.º do Código do Trabalho dispõe que a cada escalão de gravidade das contra-ordenações laborais corresponde uma coima variável em função do volume de negócios da empresa e do grau da culpa do infractor, sendo certo que, de acordo com o n.º 4, al. e), os limites mínimo e máximo das coimas correspondentes a contra-ordenação muito grave são, se praticada por empresa com volume de negócios igual ou superior a (euro) 10.000.000, de 90 UC a 300 UC em caso de negligência e de 300 UC a 600 UC em caso de dolo.
Do exposto decorre, sem margem para dúvidas, que a prática das contra-ordenações em causa supunha a prova, não só das condutas dos trabalhadores da arguida previstas e punidas nas normas acima indicadas, como também da culpa da arguida, enquanto empregadora, na sua verificação, fosse a título de negligência, fosse a título de dolo.
Na sentença recorrida, entendeu-se imputar à arguida as infracções em apreço a título de negligência, mas erradamente, uma vez que se provou, tal como a arguida invocara, que:
No dia 23/06/2019, pelas 09h10m, AA, exercendo a actividade de trabalhador móvel como ajudante de motorista a bordo no veículo com a matrícula ..-..-VF, foi fiscalizado na Ponte Vasco da Gama, sentido N/S, Montijo, não possuindo o livrete individual de controlo.
No dia 23/11/2018, na EN n.º 16, Coina, pelas 07h15m, BB, ajudante de motorista, viajava no veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-ID-.. (momento da infracção A.) e não tinha em seu poder o Livrete Individual de Controlo.
A arguida organizou o trabalho dos seus ajudantes de motorista AA e BB em ordem a que tivessem condições de cumprir com a legislação laboral relativa aos trabalhadores rodoviários.
Fiscalizou activamente os registos de tempos de trabalho e pausas dos ajudantes de motorista referidos e agiu correctivamente perante violações à Lei laboral rodoviária por parte dos mesmos.
Controlou a utilização e preenchimento dos Livretes Individuais de Controlo de tempos de trabalho e pausas dos ajudantes de motorista AA e BB.
Disponibilizou formação profissional sobre a legislação laboral, nomeadamente o DL n.º 237/07, de 19 de Junho, e a Portaria n.º 983/2007, de 27 de Agosto, aos referidos ajudantes de motorista.
Em conformidade, o tribunal recorrido consignou que, relativamente ao Processo n.º 031900565 (contra-ordenação sob a letra W.) e ao Processo n.º 031900554 (contra-ordenação sob a letra Y.), se provaram todos os factos alegados pela arguida e não se provou que «(…) a arguida omitiu o cumprimento dos seus deveres legais e não procedeu com todo o cuidado que lhe era legalmente exigível e possível e que, enquanto entidade empregadora, era capaz, tendo agido com negligência e adotado atitude bem diferente da diligente que lhe era imposta por Lei.»
Ora, perante esta factualidade provada e não provada, é manifesto que não se encontra demonstrada a negligência da arguida na verificação das condutas assumidas pelos seus dois ajudantes de motorista acima identificados, não se compreendendo – porque a sentença não as explicita – as razões que levaram o tribunal recorrido a condená-la a tal título pela prática das contra-ordenações em referência.
Por todo o exposto, ao abrigo do previsto no acima citado art.º 51.º, n.º 2, alínea a) do RCOLSS1, impõe-se a absolvição da arguida da prática de tais contra-ordenações, ficando, ipso facto, prejudicada a verificação dos pressupostos da reincidência invocada no recurso do Ministério Público, bem como a condenação da arguida, em cúmulo jurídico, na coima única de 180 UC (€ 18.360,00) e ainda na sanção de publicidade quanto àquelas duas contra-ordenações.
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em:
- absolver a arguida da prática de duas contra-ordenações muito graves previstas e punidas pelo disposto conjugadamente nos arts. 4.º, n.º 1, 10.º, n.ºs 1 e 2, e 14.º, n.º 3, al. a) do DL n.º 237/2007, de 19/06, art.º 1.º da Portaria n.º 983/2007, de 27/08, e art.º 554.º, n.ºs 1, 4, al. e) e 9 do Código do Trabalho (Processos n.ºs 031900565 e 031900554, relativos às contra-ordenações sob as letras W. e Y.), ficando prejudicada a condenação na coima única de 180 UC (€ 18.360,00) e na sanção de publicidade quanto àquelas duas contra-ordenações;
- julgar improcedente o recurso do Ministério Público;
- no mais, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2025
Alda Martins
Paula Santos
Celina Nóbrega
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1. Sobre a norma idêntica – art.º 75.º, n.º 2, al. a) – constante do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2019, de 2 de Julho, proferido no âmbito de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, publicado no Diário da República n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02, páginas 3317 – 3324.