TRABALHO SUPLEMENTAR
PRESSUPOSTOS
MÉDICO
Sumário

I – O trabalho suplementar é aquele que é prestado fora e para além do horário de trabalho do trabalhador.
II – Conhecendo o empregador que o trabalhador, médico e cirurgião, na prestação da sua actividade, excedeu recorrentemente e durante anos o seu horário de trabalho, o que fez de acordo com as necessidades do hospital onde trabalhava, o qual inclusivamente registava essas horas prestadas pelo trabalhador, nunca se opondo a tal prestação, está preenchido o requisito previsto no artigo 268º, nº 2, do CT.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
AA instaurou a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma de processo comum, contra Centro Hospitalar XX, E.P.E., pedindo seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de 28.148.70 € a título de trabalho suplementar, referente ao seu saldo contratual de 1212 horas.
Caso assim não se entenda, pede seja a Ré condenada a pagar-lhe quantia de 22.518.96 €, referente ao seu saldo contratual de 1212 horas, tendo em conta o valor da hora simples de 18.58 €.
Pede ainda a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 92.90 €, referente ao dia de descanso compensatório/folga em falta.
Tudo acrescido de juros de mora calculados desde a data da primeira
interpelação efetuada em 10 de Maio de 2022.
Alega que
- celebrou com a Ré um contrato de trabalho por tempo indeterminado em 5 de Julho de 2011, com produção de efeitos em 11 de Julho de 2011;
- foi contratado com a categoria de Assistente de ..., auferindo a retribuição base de 1.758.77 €;
- o seu período normal de trabalho semanal é de 28 horas, 12 das quais em serviço de urgência;
- a 18 de Maio de 2015 passou a Assistente graduado de ...;
- passou a auferir a quantia de 2.253.51 €, referente ao seu período normal de trabalho de 28 horas semanais;
- registava a sua entrada e saída no sistema biométrico, ficando aí registadas as horas de trabalho que fazia para além do seu período normal de trabalho;
- o seu horário de trabalho foi variando ao longo da vigência do contrato, sendo que inicialmente os seus dias de descanso eram rotativos e, nos últimos anos, ao sábado e domingo;
- apesar do estipulado no contrato de trabalho, maioritariamente fazia um horário das 8.30 horas às 13.30 horas, sendo que um dia por semana realizava Serviço de Urgência das 8h às 20h, ou das 20horas às 8horas, havendo dias em que continuava a trabalhar até às 13h30 horas;
- sempre lhe foi dito que, como tinha um contrato a tempo parcial, não poderia auferir de trabalho suplementar, pois se fazia mais horas então teria de passar a tempo inteiro;
- essas horas eram assim registadas como horas de trabalho regular e pagas ao mesmo preço hora;
- face ao valor da sua retribuição base, de 2.253.51 €, o seu valor hora é de 18.58 € [(2.253.51x12)/(52x28)];
- denunciou o seu contrato de trabalho a 10 de Maio de 2021;
- ficaram por pagar 1212 horas de trabalho e uma folga, conforme conseguiu apurar através de diversas diligências que efetuou;
- interpelada ao pagamento, a Ré informou que “são horas de trabalho além
da carga horária semanal que não são pagas como horas extraordinárias, não havendo qualquer aferição das mesmas, acumulando assim ao longo dos meses/anos”;
- não existe razão para que as referidas horas “para além da carga semanal” não lhe sejam pagas como trabalho suplementar.
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Foi realizada audiência de partes, não sendo possível a sua conciliação.
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Citada, a Ré contestou, alegando não assistir qualquer razão ao Autor, na medida em que não existiu qualquer autorização superior para que prestasse as referidas horas de trabalho, e nenhuma justificação para pagamento foi apresentada.
Pugna, assim, pela total improcedência da acção, sustentando que tal tempo de trabalho invocado constituía apenas um saldo positivo a favor do trabalhador, que não se poderia converter em trabalho regular ou suplementar dada a falta de autorização prévia.
No limite, sustenta a Ré, que o valor hora determinado para pagamento deveria ser o da média dos vencimentos auferidos pelo Autor, atenta a circunstância de as horas se referirem a vários anos.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia.
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Foi proferido despacho saneador, que conheceu da validade e regularidade da instância.
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Foi fixado o objecto do processo.
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Foram fixados os temas da prova.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença julgou a acção “parcialmente procedente, e, em consequência:
i. Condena-se o Réu a pagar ao Autor, a título de trabalho suplementar, a quantia de € 21.694,80, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 10 de Maio de 2022 e vincendos até integral pagamento;
ii. Absolve-se o Réu do demais peticionado.”
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
A. A decisão a quo julgou provada a seguinte factualidade:
B. F. Na vigência do contrato, o Autor, como todos os médicos do Réu, registava a sua entrada e saída no sistema biométrico, ficando aí registadas as horas de trabalho que fazia para além do seu período normal de trabalho;
C.H. O Autor fazia um horário das 8h30m às 13h30m, sendo que um dia por semana realizava Serviço de Urgência das 8h às 20h, ou das 20h às 8h, havendo dias em que continuava a trabalhar até às 13h30m;
D.K. No final de Maio de 2021, o Autor tinha 1212 horas de trabalho registadas na sua bolsa de horas, efectuadas devido ao volume de trabalho em bloco, enfermaria, consultas e serviço de urgência.
E.E como não provado que:
(…)
1. Sempre foi dito ao Autor que, como tinha tempo parcial, não poderia auferir trabalho suplementar, pois se fazia mais horas então teria de passar a tempo inteiro.
F. O Tribunal a quo, firmou a sua convicção «com base nas alegações efetuadas pelas partes, nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos apresentados pelas testemunhas em sede de audiência final, tudo cotejado entre si e analisado de acordo com as regras da ciência e do raciocínio e com as máximas da experiência, em obediência ao previsto pelo artigo 607º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto pelos artigos 1º, nº 2, alínea a) e 49º nº 2 do Código de Processo do Trabalho».
G. A Sentença ora impugnada encontra-se, porém, afetada por erro de julgamento na apreciação crítica da prova produzida, porquanto da prova testemunhal, ainda que concatenada com a demais prova, não resultam provados os factos enunciados nos pontos indicados e a matéria de facto com interesse e pertinência para a decisão, não foi dada como provada, sendo desconsiderada e excluída da matéria de facto.
H. Quanto aos Pontos F, H. e K. da matéria de facto, o tribunal considerou os depoimentos das Testemunhas BB, CC, DD, EE, FF e GG.
I. No entanto, em nenhum momento dos seus depoimentos estas testemunhas afirmaram ou depuseram em sentido que permitisse dar como comprovados os pontos de facto referidos, nem a impossibilidade do Autor gozar as referidas horas como tempo livre durante a vigência do contrato (facto que, apesar de nunca ter sido alegado pelo Autor, é pressuposto da decisão).
J. Por outro lado, face ao depoimento da Chefe de Divisão GG deveria ter sido dado como provado que, regra geral, não é autorizada a prestação de trabalho suplementar aos médicos com horário a tempo parcial, como era o caso do Autor.
K. Não se provaram as concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que as alegadas horas foram prestadas por forma a aferir se foram ou não consentidas pelos seus superiores hierárquicos.
L. Sendo que, resultou provado à saciedade que não foram determinadas por estes que nunca pediram autorização superior para a realização de trabalho suplementar aos órgãos competentes da Ré.
M. Também que, estas horas não têm qualquer suporte documental no Serviço de ... que permita saber por que motivo ou necessidades concretas visaram suprir.
N. Antes resulta provado que estas horas resultam de procedimento da gestora de escala que transfere horas positivas (cuja razão de ser não tem qualquer justificação no serviço, consistindo em mero saldo de horas registadas em bolsa) para o saldo contratual geralmente com o objetivo das mesmas não serem apagadas do sistema.
O. E que, as horas constantes da bolsa de assiduidade e do saldo contratual (realidades distintas) são, regra geral para serem usufruídas ou compensadas com tempo livre, não tendo ficado provado que o Autor não tivesse possibilidade de o fazer ao longo da vigência do seu contrato (10 anos).
P. Face à ausência de outros meios de prova, designadamente documentais, não existem nos autos elementos que permitam dar como provada a realização de trabalho suplementar devendo antes ser dada como não provado contra a parte sobre a qual recaía o ónus da prova, neste caso, o Autor.
Q. Bem como a impossibilidade do Autor usufruir das referidas horas durante a vigência do contrato, facto que além de não provado, nem sequer foi alegado.
R. Não o fazendo, a Sentença recorrida, incorreu em erro de julgamento.
S. Devendo em consequência, ser parcialmente revogada e substituída por outra que decida alterar o julgamento da matéria de facto, dando como provada a matéria enunciada em c), e em consequência ser a Ré absolvida.
Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a presente apelação ser julgada procedente, e, em consequência, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, com todos os efeitos
legais.
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O Autor contra-alegou, concluindo que
a) A douta sentença recorrida, que com a devida vénia aqui se dá por reproduzida, faz uma correta apreciação e fundamentação quer da matéria de facto quer da matéria de direito, não merecendo qualquer tipo de censura;
b) A matéria de facto dada como provada corresponde efetivamente ao que ficou provado, tendo em conta a integralidade dos meios de prova carreados para o processo, não havendo nenhuma alteração a fazer;
d) Por outro lado, não houve qualquer erro de direito na decisão, tendo esta decidido, e bem, pela condenação do R. a pagar ao A., aqui Recorrido, o trabalho suplementar devido.
Termos em que refutadas integralmente as conclusões da Recorrente, deve julgar-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida, com o que se fará a devida JUSTIÇA.”
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A Exma Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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A Ré exerceu o contraditório.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto
Considerando as conclusões de recurso apresentadas, que definem o seu objecto, cumpre apreciar e decidir
- se o tribunal a quo errou na decisão da matéria de facto, quanto aos factos impugnados;
- se o Autor tem direito ao pagamento do trabalho suplementar que reclama.
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III – Fundamentação de Facto
A – Matéria de Facto Provada
São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância
A. Autor e Réu celebraram um contrato de trabalho por tempo indeterminado em 5 de Julho de 2011, com produção de efeitos em 11 de Julho de 2011.
B. Por força do referido em A., o Autor foi contratado com a categoria de Assistente de ..., auferindo a retribuição base de € 1.758,77.
C. O Autor efectuava 28 horas de trabalho por semana, das quais 12 em urgência.
D. A 18 de Maio de 2015, o Autor passou a assistente graduado de ....
E. Na sequência do referido em D., o Autor passou a auferir a quantia de € 2.247,77 e, a partir de 2020, € 2.253,51, referente ao período de trabalho de 28 horas semanais.
F. Na vigência do contrato, o Autor, como todos os médicos do Réu, registava a sua entrada e saída no sistema biométrico, ficando aí registadas as horas de trabalho que fazia para além do seu período normal de trabalho.
G. O horário de trabalho do Autor foi variando ao longo da vigência do contrato, sendo que inicialmente os seus dias de descanso seriam rotativos e nos últimos anos, ao sábado e domingo.
H. O Autor fazia um horário das 8h30m às 13h30m, sendo que um dia por semana realizava Serviço de Urgência das 8h às 20h, ou das 20h às 8h, havendo dias em que continuava a trabalhar até às 13h30m.
I. O Autor denunciou o seu contrato de trabalho a 10 de Maio de 2021.
J. No final do mês de Maio de 2021, o Réu pagou ao Autor a retribuição desse mês e, no final de Junho, as férias vencidas a 1 de Janeiro de 2021, bem como o subsídio de férias desse ano e os proporcionais de férias, subsídio, de férias e de Natal do ano da cessação.
K. No final de Maio de 2021, o Autor tinha 1212 horas de trabalho registadas na sua bolsa de horas, efectuadas devido ao volume de trabalho em bloco, enfermaria, consultas e serviço de urgência.
L. O Réu não pagou as horas referidas em K.
M. Por requerimento datado de 10 de Maio de 2021, o Autor solicitou à Ré o pagamento do saldo contratual no total de 1212 horas e 1 folga de compensação, em face da impossibilidade de o Serviço de ... autorizar o gozo daquelas horas.
N. Por comunicação electrónica datada de 14 de Julho de 2021, o Autor solicitou ao departamento de recursos humanos da Ré informação sobre o pedido de pagamento das horas de saldo contratual e compensação.
O. Nos dias 8 de Setembro de 2021, 17 de Setembro de 2021 e 20 de Novembro de 2021, o Autor solicitou informação à Ré sobre o pagamento referido em N.
P. O Conselho de Administração autorizou, em 2008, o registo dos períodos de trabalho prestado para além do horário fixado (horas a mais) ou que não o completem (horas a menos), numa bolsa de assiduidade, definindo que no caso de saldos positivos superiores a 10 horas pode o beneficiário solicitar ao Conselho de Administração, a titulo excepcional, o pagamento de horas extraordinárias em tempo ou em dinheiro.
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B – Matéria de Facto Não Provada
São os seguintes os factos considerados não provados pela primeira instância
1. Sempre foi dito ao Autor que, como tinha tempo parcial, não poderia auferir trabalho suplementar, pois se fazia mais horas então teria de passar a tempo inteiro.
2. As horas referidas em H. eram registadas como trabalho regular e pagas ao mesmo preço por hora.
3. O Autor não gozou uma folga de compensação.
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IV – Apreciação do Recurso
A – Da Impugnação da Matéria de Facto
A Ré expressa impugnar a matéria de facto quanto aos factos F, H e K dos factos provados e 1. dos factos não provados.
São os seguintes os factos impugnados:
F. Na vigência do contrato, o Autor, como todos os médicos do Réu, registava a sua entrada e saída no sistema biométrico, ficando aí registadas as horas de trabalho que fazia para além do seu período normal de trabalho.
H. O Autor fazia um horário das 8h30m às 13h30m, sendo que um dia por semana realizava Serviço de Urgência das 8h às 20h, ou das 20h às 8h, havendo dias em que continuava a trabalhar até às 13h30m.
K. No final de Maio de 2021, o Autor tinha 1212 horas de trabalho registadas na sua bolsa de horas, efectuadas devido ao volume de trabalho em bloco, enfermaria, consultas e serviço de urgência.
Em lugar destes factos, considera a Apelante que devem considerar-se provados os seguintes factos:
A. Nos serviços da Ré o controlo de assiduidade é feito por registo biométrico (aposição da impressão digital) à entrada e à saída das instalações através de aplicação informática (SISQUAL).
B. As horas que ultrapassam (ou não atingem) os horários aprovados de cada trabalhador ficam registadas no sistema informático dando origem a saldos positivos ou negativos de horas (bolsa de assiduidade).
C. É frequente os médicos do Serviço de … (onde o Autor exercia funções) excederem o seu horário de trabalho devido a diversos fatores, designadamente atrasos no início das cirurgias que obrigam ao seu prolongamento. A própria natureza do trabalho, especialmente da atividade cirúrgica (que apresenta sempre imponderáveis e não pode ser interrompida) obriga a esses prolongamentos.
D. O facto anteriormente referido é do conhecimento do diretor atual assim como do anterior que desconhecem ambos as concretas circunstâncias em que o trabalho (alegadamente) suplementar do Autor foi prestado.
E. Excetuado o trabalho em regime de urgência (distribuído em escala aprovada pela direção clínica) no Serviço de … nunca foi determinada a realização de trabalho suplementar pelos seus médicos.
F. A gestão local dos tempos de trabalho é realizada em cada um dos serviços e data dos factos) realizada pela Assistente Técnica CC no sistema informático.
G. Esta Assistente Técnica afere do cumprimento dos horários dos médicos,
validando-os no sistema informático.
H. E procede ao seu acerto, compensando horas negativas com horas prestadas a mais, por forma a obter um equilíbrio do saldo de horas na bolsa de assiduidade.
I. Também transpõe/insere horas da bolsa de assiduidade para o saldo contratual, onde o Autor tinha registado um total de 1212 horas de 2011 a 2018.
J. Não se apuraram os motivos nem as concretas circunstâncias que deram origem à formação do referido saldo contratual do Autor, sendo que a Assistente Técnica que procede aos acertos referidos não recebeu diretrizes nem orientações do diretor do serviço para transpor horas para o saldo contratual, designadamente no caso do Autor.
K. Este saldo de 1212 horas não tem suporte documental ou fáctico como trabalho suplementar designadamente justificação do superior hierárquico do Autor e competente autorização do órgão competente da Ré.
L. As horas constantes do saldo contratual constituem um crédito de horas que, em certas condições, podem ser usufruídas como descanso pelo trabalhador.
M. Regra geral, não é autorizada a prestação de trabalho suplementar aos médicos com horário a tempo parcial pelos órgãos competentes da Ré.
Foram cumpridos os ónus a que alude o artigo 640º do CPC.
Relativamente à matéria factual que a Apelante agora se pretende ver provada, em substituição dos factos F, H e K, cumpre dizer o seguinte
- quanto aos factos identificados como A e B, os mesmos resultam da matéria factual descrita em F;
- a matéria factual descrita em C não foi alegada na contestação mas fundamenta o facto descrito sob K, como se verá infra, não tendo relevância como facto em si, sendo o facto relevante o descrito sob K dos factos provados e que será reapreciado;
- a matéria factual descrita em D é irrelevante para a decisão da causa, a saber, para a determinação da natureza do trabalho peticionado pelo Autor;
- a matéria factual descrita de F a J e L, para além de não ter sido alegada, não assume qualquer relevância para a decisão da causa, posto que está provado que o Autor trabalhou efectivamente mais 1212 horas do que as previstas no seu horário de trabalho, cumprindo reavaliar a prova dado que o facto K está impugnado.
Relativamente à 1ª parte do facto J, e ao facto E serão avaliados infra aquando a reavaliação do facto K, por estarem com ele relacionado.
De notar que a defesa da Ré alicerça-se em duas vertentes: impugna a realização e necessidade de realização do trabalho pelo Autor nessas 1212 horas, e alega que o tempo de trabalho que o Autor invoca não tem qualquer suporte de justificação do seu superior hierárquico, faltando a competente autorização do órgão competente, a saber o Conselho de Administração da Ré. Nada foi alegado no sentido de ter existido um acordo para a instituição de um banco de horas, para o que eventualmente poderiam ter interesse os factos em causa.
- a matéria identificada em K resulta dos artigos 6º e 31º da contestação, pelo que será apreciada;
- a matéria descrita sob M não oferece relevância para a decisão. Interessa sim, o que acontece no caso do Autor.
É a seguinte a fundamentação da 1ª instância, relativamente aos factos impugnados: “No que respeita ao exarado em F., G., H., K. e L. atentou o Tribunal nos depoimentos prestados pelas testemunhas BB (assistente técnica no Réu e responsável pelo processamento de vencimentos), CC (administrativa no serviço de ... do Réu) e GG (trabalhadora no departamento dos serviços humanos da Ré).
Do cotejo destes depoimentos – que, por claros, espontâneos e fundados no conhecimento directo do que relatavam, nos mereceram credibilidade – resultou clara a existência de prestação de horas de trabalho por parte do aqui Autor para além daquele que era a carga horária estabelecida no seu contrato e, bem assim, a inexistência de pagamento das mesmas até este momento.
Do relato de CC resultou, igualmente, que o Autor efectuava registo em conformidade com o mencionado em F., sendo que a testemunha reconheceu ter efectuado o levantamento das referidas horas no sistema informático utilizado pelos serviços do Réu (SISQUAL), confirmando o mencionado em K..
Ponderou, igualmente, o Tribunal o teor de fls. 8 e de fls. 29-30 que comprovam a existência do registo de horas de trabalho prestadas pelo Autor, comprovando o referido em K. e, bem assim, a comunicação assinada por FF – na qualidade de director de serviço – apresentada aos autos sob a Ref.ª Citius 34176158 (43875165) – em que se atesta que as horas trabalhadas para além da carga horária semanal obrigatória se devem ao elevado volume de trabalho, concordando-se com o seu pagamento, em face da impossibilidade de autorizar o seu gozo. Ponderou-se, igualmente, o teor de fls. 8 onde esse mesmo director apõe a informação concordo ao pedido apresentado de pagamento das 1212 horas registadas, no que não pode deixar de se interpretar, em conformidade com o disposto elo artigo 236º, do Código Civil (ademais confirmando pelo próprio em sede de depoimento em audiência de julgamento) como a confirmação de que tais horas efectivamente estavam registadas e haviam sido prestadas. Mostram-se, assim, as referidas horas comprovadas por documentos idóneos.
Mais atentou o Tribunal no depoimento de DD (colega do Autor), de EE e FF (anteriores directores do serviço de ... do Réu) que, de forma clara e credível – porque sustentada no que por si foi vivido e experienciado – relataram a existência de necessidade de trabalho para além das horas fixadas em contrato – não só por exigências do bloco, mas também das consultas e enfermarias. A testemunha FF reconheceu, igualmente, que as escalas eram feitas por si e que as necessidades que tivessem que ser supridas para além do horário o eram em função do que por si era visualizado, organizado e comunicado aos médicos do serviço, na medida em que em causa estavam necessidades de saúde e de tratamento.
O Tribunal tomou, igualmente, em linha de consideração o teor de fls. 63-123 em cotejo com o depoimento de EE, de onde resultou a existência de horas de trabalho para além do horário fixado e, bem assim, que a sua justificação sempre esteve relacionada com as necessidades do serviço.
Do relato destas três testemunhas e, bem assim, do da testemunha CC, ressaltou a evidência de que o trabalho, por parte dos médicos, para além das horas estabelecidas em sede de contrato era, não só uma evidência como uma recorrência, sempre por força das exigências do próprio serviço e sempre em função da organização estabelecida pelos próprios serviços do Réu.
A testemunha CC foi clara ao relatar que essas horas eram incluídas num banco de horas – ainda que, quando directamente questionada sobre o seu fundamento legal ou convencional – nada soube esclarecer.
Também a testemunha GG reconheceu a existência do registo das horas mencionadas em K. no saldo acumulado do Autor, sustentando que as mesmas eram consideradas como sendo horas para além do estabelecido no contrato de trabalho e não pagas – por não existir autorização prévia – mas sendo passíveis de serem gozadas pelo médico que as havia prestado.”
Este Tribunal reapreciou a totalidade da prova produzida e não existem quaisquer dúvidas acerca do acerto da resposta à matéria de facto, ora impugnada, dada pela 1ª instância.
A testemunha BB, assistente técnica da Ré, que trata dos contratos de prestação de serviços, e antes estava afecta ao processamento de vencimentos, nada sabe sobre os horários de trabalho dos médicos. Mas as restantes testemunhas souberam esclarecer o Tribunal.
As testemunhas DD - assistente hospitalar de ..., que foi estagiário do Autor e depois colega deste – EE – que foi Director de Serviço no Serviço do Autor entre 2008 e 31-12-2019 – e FF – actual Director do Serviço de ... do Hospital YY – esclareceram que, na sua prática médica é comum os médicos excederem o horário de trabalho, o que também acontecia com o Autor, porquanto surgem imprevistos variados, mormente por força das consultas, cujos tempos variam, e das cirurgias efectuadas, que podem não terminar quando previsto. E, portanto, os tempos registados no sistema biométrico, são tempos de trabalho efectivo do Autor.
Consideraram-se também as declarações escritas, subscritas pela testemunha FF, e referidas na fundamentação da 1ª instância.
A testemunha EE referiu que, enquanto Director de Serviço, elaborava a escala dos médicos consoante as necessidades do Serviço, e o que exigia é que essas necessidades fossem asseguradas, pelo que, se os médicos, na prossecução desse desiderato, tivessem que permanecer mais tempo no hospital, para além do seu horário, assim acontecia, e assim acontecia com muita frequência. E isto porque a Administração do Hospital, pedia-lhe, a si, resultados, e dependia de si fazer com que as pessoas trabalhassem o necessário para assegurar esses resultados.
Declarou que nunca pediu à Administração para os médicos fazerem horas extraordinárias. Dizia-lhes que deviam cumprir determinado serviço e os colegas apenas saíam do hospital quando o cumpriam.
Desconhece acerca de pagamentos das horas a mais, mas nunca pediu para serem pagas. Elas iam para uma bolsa de horas.
Também a testemunha FF, actual Director do Serviço de ... de Hospital YY, declarou que o Autor saia do serviço muitas vezes após o seu horário, por via do trabalho que estava a fazer, a saber, consultas e cirurgias.
Ambas as testemunhas, Directores de Serviço, declararam que as horas registadas pelo Autor são horas reais de trabalho.
A testemunha, CC, Administrativa no Serviço de ... do Hospital YY há cerca de 12 anos, confirmou que o sistema de assiduidade e pontualidade dos médicos é biométrico, não pode ser manipulado, e que as horas ali registadas são verdadeiras horas de trabalho, pelas razões referidas pelas anteriores citadas testemunhas. Foi a testemunha que forneceu ao Autor, a seu pedido, o registo das horas que excediam o seu horário de trabalho.
A testemunha, GG, Chefe de Divisão desde 2022, mas que trabalha na Direcção de Recursos Humanos da Ré desde 1997, explicou que o saldo de horas que o Autor apresenta é o saldo de horas acumulado, horas que o trabalhador fez a mais, para além da sua carga horária. Declarou que essas horas deviam ser pagas como trabalho extraordinário, mas para isso teria de haver uma escala previamente apresentada e aprovada pelo Director de Serviço, fundamentando a necessidade de o médico prestar serviço para além do horário, que depois seria aprovada pelo Conselho de Administração. Esclareceu também que quem tinha um horário reduzido não era autorizado a fazer trabalho suplementar para não haver desigualdade em relação aos médicos que tinham horário completo. Esclareceu ainda que as horas a mais integravam um denominado “saldo contratual”, não eram pagas, mesmo como horas normais, mas serviam para o médico poder sair mais cedo, ou não ir trabalhar um dia, ou mais, consoante o saldo.
Todas as testemunhas nos mereceram credibilidade, pela forma espontânea como prestaram os seus depoimentos, com coerência, conhecimento directo dos factos a que prestaram declarações, e sinceridade nas respostas, aliás, estando todos os depoimentos em consonância uns com os outros.
Assim,
- resulta provada a forma como era feito o controlo de assiduidade e pontualidade dos médicos, e que as horas prestadas após o horário de trabalho ficaram registadas – Facto F;
- resulta provado que o Autor, muitas vezes, continuava a prestar serviço após o seu horário de trabalho, e que as horas registadas correspondem a trabalho efectivo do Autor ao serviço da Ré nas actividades referidas nos factos provados – Factos H e K;
- relativamente aos factos E, K e J, 1ª parte, que a Ré ora pretende ver provados, os mesmos não resultam da prova, dado que os Directores de Serviços fazem cumprir o serviço do Serviço de ..., por determinação do Conselho de Administração da Ré, sendo do conhecimento de todos, incluindo a Ré, que o Autor fazia horas de trabalho para além da sua carga horária, o que aconteceu durante anos, a benefício do Serviço.
Relativamente ao facto não provado 1- Sempre foi dito ao Autor que, como tinha tempo parcial, não poderia auferir trabalho suplementar, pois se fazia mais horas então teria de passar a tempo inteiro. – não foi produzida qualquer prova acerca do mesmo. A testemunha GG referiu que a Ré não costuma pagar trabalho suplementar a quem tem horário reduzido, mas nada foi dito sobre ter sido esse facto mencionado ao Autor.
Improcede, pois, o recurso na parte que incide sobre a matéria de facto.
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B – Trabalho Suplementar
A pretensão da Recorrente de ver revogada a sentença quanto à sua condenação a pagar ao Autor o trabalho suplementar por este peticionado funda-se essencialmente na alteração da matéria de facto, que também peticionou, e relativamente à qual decaiu.
Sob o ponto de vista jurídico, tal pretensão assenta em duas premissas fundamentais:
1- A de que não resultou provado que as horas constantes daquilo que denomina de “saldo contratual” sejam horas de actividade clínica do Autor.
Quanto a esta questão, os factos são claros: as horas registadas, que excederam o horário de trabalho do Autor, correspondem a trabalho efectivamente prestado pelo mesmo – Facto K.
Nos termos do art.º 226ºnº1 do CT/2009) “considera-se trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho.”
Como afirma Pedro Romano Martinez, “Em suma, estar-se-á perante trabalho suplementar se a actividade for realizada em dia de trabalho fora do horário, mesmo que compreendido no período normal, ou se for prestada em dia de descanso1
E refere-se no acórdão do STJ de 18-02-2011, “I- O trabalho suplementar corresponde ao trabalho prestado fora do horário de trabalho: cabem aqui todas as situações de desvio ao programa normal de actividade do trabalhador, como seja o trabalho fora do horário em dia útil e o trabalho em dias de descanso semanal e feriados.” 2
Portanto, in casu, não restam dúvidas de que as horas de trabalho peticionadas pelo Autor correspondem a horas de trabalho suplementar.
2- A de que tais horas não foram autorizadas pelo superior hierárquico do Autor, e mormente pelo Conselho de Administração da Ré.
Como resulta claramente da sentença recorrida, em termos que não merecem censura, as horas de trabalho que excederam o horário contratualizado entre as partes foram reconhecidas pela Ré, pois foram prestadas durante anos, de acordo com as necessidades do próprio hospital onde o Autor prestava a sua actividade, e foram registadas, conforme autorizado pelo Conselho de Administração da Ré – Ponto P dos factos provados. Ou seja, a Ré, conhecedora do trabalho desenvolvido pelo Autor, nunca se opôs ao mesmo, e, aliás, não era previsível que se opusesse (artigo 268º nº2 do CT), atenta a natureza desse trabalho – medicina e cirurgia – susceptível de ultrapassar casuisticamente os limites do horário de trabalho do profissional. Raia, aliás, a má-fé a alegação de que a Ré não autorizou o Autor a prestar trabalho para além do horário contratualizado.
Concorda-se com a sentença quando ali se diz: “Concluir de outra forma seria avalizar um comportamento que não podia deixar de se classificar como roçando os limites da má-fé, na medida em que se aceitou a prestação do trabalho, para agora vir negá-lo, escudando-se numa regra procedimental, quando é certo que os horários e as escalas cumpridas pelo Autor foram desenhados pelos serviços do Réu.
Nos termos do disposto no art.º 268º nº 2 do CT/2009 “É exigível o pagamento de trabalho suplementar cuja prestação tenha sido prévia e expressamente determinada, ou realizada de modo a não ser previsível a oposição do empregador
De acordo com as regras de repartição do ónus da prova, incumbe ao trabalhador que invoca o direito à remuneração por trabalho suplementar alegar e provar os factos constitutivos desse direito, ou seja, que prestou trabalho fora e para além do horário de trabalho e que tal sucedeu por determinação prévia expressa do empregador, ou com conhecimento e sem oposição deste, que a prestação desse trabalho foi realizada em circunstâncias de não ser previsível a oposição do empregador, se bem que, quanto a este último requisito, a jurisprudência tem vindo a evoluir no sentido de que bastará, para o efeito, que a entidade patronal tenha conhecimento e não se oponha a essa execução.3
A Ré alega, em sede recursiva, que não na contestação, que existia o que denomina de “saldo contratual”, correspondente precisamente às horas trabalhadas que ultrapassavam o horário de trabalho, e que esse saldo servia para que o Autor pudesse usar essas horas para sair mais cedo ou mesmo faltar se precisasse.
A 1ª instância afasta, de forma bem fundamentada, as várias hipóteses legais que o referido “saldo contratual” é susceptível de integrar, em termos com que se concorda, pois nada foi alegado que permita integrar tal mecanismo, nem no banco de horas (artigo 208º do CT), nem no regime da adaptabilidade individual ou grupal (artigos 205º e 206º do CT).
Ou seja, os períodos que o Autor trabalhou para além do seu horário e trabalho, constituem trabalho suplementar, porquanto fora do programa normal da sua actividade. E assim, nada mais resta do que confirmar a sentença recorrida.
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V – Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo Centro Hospitalar XX, E.P.E., mantendo a sentença recorrida.
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Custas a cargo da Apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 29-01-2025
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Manuela Fialho
Alves Duarte
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1. In Direito do Trabalho, 5ª ed., pág. 581.
2. Proc 25/07.5 TTFAR.E1.S1, 4º secção.
3. Cfr. art.º 342º nº1 do C.Civil e Ac STJ de 18-02-2011 Proc 25/07.5 TTFAR.E1.S1, 4º secção, citando o Ac. do STJ de 07-10-2010, no Processo nº 459/05OTTFAR.S1, 4ª secção e Ac Rel Porto de 04.07.2011.