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JUÍZES DE TRIBUNAIS DE DIFERENTE HIERARQUIA
Sumário
I – Embora o Código de Processo Penal não discipline nos seus artigos 10.º a 18.º, a competência funcional de cada um dos juízes dentro de cada fase ou grau de jurisdição, a violação das regras sobre competência de cada um dos juízes, deve ser colocada, nos mesmos termos que a violação da competência do próprio tribunal, sendo de aplicar subsidiariamente as regras sobre a incompetência do tribunal e, como tal, tratar a questão como um conflito negativo de competência, nos termos previstos nos artigos 34.º a 36.º do Código de Processo Penal. II – Tratando-se de um conflito negativo de competência que envolve juízes de tribunais de diferente hierarquia, não pode deixar de se aplicar a regra prevista na alínea a) do n.º 6 do artigo 11.º do Código de Processo Penal e considerar ser competente para conhecer do conflito os presidentes das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal.
Texto Integral
I – Relatório
1. No âmbito do processo n.º 1292/19.7PBCSC, do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (TCIC), distribuído ao juiz 1, foi proferida, após realização da instrução requerida pela assistente, decisão instrutória de não pronúncia da arguida.
Na sequência de recurso interposto pela assistente, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por decisão sumária proferida em 10 de Junho de 2024, anular a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que supra a falta de narração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados.
No tribunal recorrido, a 17/07/2024, foi proferido um despacho, pelo titular dos autos, mediante o qual foi determinado a apresentação do processo ao senhor juiz que havia presidido ao debate instrutório e, consequentemente, proferido a decisão instrutória, para os efeitos tidos por convenientes.
Na sequência desse despacho foram os autos conclusos ao senhor juiz que havia proferido a decisão instrutória anulada, entretanto promovido a Desembargador e a exercer funções no tribunal da Relação de Lisboa, o qual, a 1 de Outubro de 2024, proferiu o seguinte despacho:
«O signatário já não exerce funções na primeira instância e não tem competência funcional para tramitar os presentes autos, assim o entende.
Devolva os autos ao TCIC para que seja determinado o que for tido por conveniente.».
2. Pelo senhor juiz 1 do TCIC foi, então, proferido, a 15 de Novembro de 2024, despacho a declarar-se incompetente para a prolação de nova decisão instrutória, nos termos determinados pelo tribunal da Relação, que, na parte relevante, aqui se transcreve:
«Afigura-se-nos, porém, não ser o signatário competente para reformular a decisão instrutória.
Vejamos porquê.
Do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, verifica-se que foi anulada a decisão instrutória de não pronúncia recorrida e determinada a substituição da decisão recorrida e anulada “por outra que supra a falta de narração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados”.
Tendo-se, no referido Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decidido anular a decisão instrutória de não pronúncia recorrida e entendido dever a mesma ser substituída por outra que supra a falta de narração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados (por referência, naturalmente, ao requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, e fazendo a análise crítica dos meios de prova produzidos no decurso do inquérito e da instrução), entendemos incumbir a competência para o efeito ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal que a proferiu e presidiu ao debate instrutório (actualmente em funções, como Juiz Desembargador, no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa), e não ao actual Juiz de Instrução Criminal, ora signatário
Atente-se que o debate instrutório não foi anulado, nem foi ordenada a prática de novos actos de instrução.
O debate instrutório só realiza a sua finalidade legal, presentes que sejam os princípios da continuidade e da oralidade, se houver identidade de juiz, isto é, se o juiz que proferir a decisão instrutória for o mesmo que presidiu ao debate instrutório, sob pena de insuficiência de acto essencial da instrução, que constitui uma nulidade dependente de arguição (art.º 120.º, n.º 2, al. d) do Cód. Processo Penal), resultando, do preceituado no art.º 307.º do Código de Processo Penal, que é ao juiz que preside ao debate instrutório que incumbe a prolação da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia, independentemente da colocação que venha a ter o juiz que ao mesmo presidiu por decorrência de movimentos judiciais.
Além de que, não pode ser o signatário a completar e/ou a reformular a decisão instrutória, limitando-se a inserir factos que considere como indiciados e como não indiciados, e a respectiva fundamentação, até porque a restante decisão instrutória se mantém e essa decisão foi proferida pelo anterior Juiz de Instrução Criminal, permanecendo na esfera própria deste a competência para completar e/ou reformular a decisão instrutória, no respeito pelo determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
Nestes termos, uma vez que foi proferido Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em que se decidiu pela anulação da decisão instrutória de não pronúncia recorrida e se determinou a sua substituição por outra que supra a falta de narração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados, somos do entendimento que essa substituição deverá ser feita pelo então Juiz de Instrução Criminal que presidiu ao debate instrutório (no qual teve a oportunidade de se inteirar dos eventuais argumentos que foram, então, aduzidos pelos demais intervenientes processuais) e que proferiu a decisão instrutória recorrida, tendo ao seu dispor todos os meios de prova recolhidos no processo para suprir a narração dos factos em falta, a quem incumbe a competência exclusiva para o efeito, e actualmente, e desde o mês de Setembro de 2023, a exercer funções, como Juiz Desembargador, no Tribunal da Relação de Lisboa, pois o mesmo não se encontra impossibilitado de o fazer, nomeadamente por motivo de baixa médica prolongada.
Pelo exposto, e nos termos do artigo 32.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Juiz de Instrução Criminal signatário, por entender que por não ter presidido ao debate instrutório, não lhe assiste competência para sanar o vício apontado à decisão instrutória de não pronúncia recorrida, declara-se incompetente para reparar tal decisão, por entender ser competente para tal fim o Exm.º Senhor Juiz Desembargador, em funções no Tribunal da Relação de Lisboa, que, na qualidade de Juiz de Instrução Criminal, a proferiu.
Notifiquem-se o Ministério Público, a assistente e a arguida do presente despacho.
Uma vez transitado em julgado o presente despacho, certifique o respectivo trânsito, e, após, abra conclusão, a fim de suscitar a resolução do conflito de competência junto do Exm.º Senhor Desembargador Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.»
3. Recebidos os autos de conflito neste tribunal, foi cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não tendo o Ministério Público nem os sujeitos processuais apresentado qualquer alegação sobre o conflito em causa.
4. Sendo este o tribunal competente, cumpre apreciar e decidir.
II - Apreciação
Estabelece o artigo 34.º do Código de Processo Penal:
«1. Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».
2. O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.»
A lei é clara quanto aos pressupostos legais do conflito. Traduz-se numa divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para conhecer quanto à existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Citando decisão de anterior presidente desta secção no processo n.º 9436/21.2T8LSB-A (não publicada) «o que define uma situação de conflito é que, o dispositivo, ou seja, o conteúdo decisório de duas decisões, e não apenas na definição dos respectivos fundamentos, traduza que ambas decidem negar a sua própria competência para um determinado acto, atribuindo tal competência ao outro juiz».
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.
Embora o Código de Processo Penal o não diga expressamente, foi criado um sistema dotado de celeridade e autoridade para resolver as questões de competência. Não existe trânsito em julgado das decisões até o tribunal superior resolver a questão por decisão irrecorrível (artigo 36.º, n.º 2). Tanto assim é que o conflito cessa quando um dos tribunais em conflito alterar a sua posição anterior (artigo 34.º, n.º 2).
Por isso, não tinha o senhor juiz do TCIC de ficar a aguardar o trânsito em julgado dos despachos em causa, para poder suscitar o presente conflito.
Não está em causa saber qual o tribunal competente para proferir nova decisão instrutória de não pronúncia, em conformidade com o ordenado pelo tribunal da Relação, pois não é questionada a competência para o efeito do Tribunal Central de Instrução Criminal. O que está em causa é saber qual o juiz competente para proferir tal decisão - se o juiz de instrução que presidiu ao debate instrutório na sequência do qual foi proferida a decisão instrutória que foi anulada, que entretanto deixou de exercer funções como juiz de direito na 1ª instância e passou a exercer funções de juiz desembargador num tribunal da Relação, se o juiz de direito que substituiu aquele e é agora o titular dos autos na 1ª instância.
Estamos perante uma questão de competência funcional, que abarca não só a competência em razão da hierarquia, a que se refere o artigo 17.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, mas também a distribuição da competência entre tribunais do mesmo grau nas diferentes fases do processo (cf. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal I, (Nova Edição Revista), p. 169).
Embora o Código de Processo Penal não discipline nos seus artigos 10.º a 18.º, a competência funcional de cada um dos juízes dentro de cada fase ou grau de jurisdição, a violação das regras sobre competência de cada um dos juízes, deve ser colocada, segundo o mesmo autor, nos mesmos termos que a violação da competência do próprio tribunal, sendo de aplicar subsidiariamente as regras sobre a incompetência do tribunal (Ob. citada, p. 172 e 207) e, como tal, tratar a questão como um conflito negativo de competência, nos termos previstos nos artigos 34.º a 36.º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, constata-se que estamos perante um conflito negativo de competência entre dois juízes de diferentes graus de jurisdição - um da 1ª instância (TCIC) e outro da 2.ª instância (secção penal do Tribunal da Relação de Lisboa).
Tratando-se de um conflito que envolve juízes de tribunais de diferente hierarquia, não pode deixar de se aplicar a regra prevista na alínea a) do n.º 6 do artigo 11.º do Código de Processo Penal e considerar ser competente para conhecer do conflito os presidentes das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal.
Com efeito, não faz sentido que seja o presidente das secções criminais das relações, em matéria penal, que tem a mesma categoria de desembargador que um dos juízes em conflito, a decidir o conflito, quando para os conflitos de competência entre tribunais de diferente hierarquia essa competência é exclusiva de um juiz conselheiro, de categoria superior à dos juízes dos tribunais em conflito.
III - Decisão
Em face do exposto, remeta, de imediato, os autos ao Supremo Tribunal de Justiça para resolução do conflito de competência que opõe o senhor juiz desembargador ao senhor juiz de direito.
Notifique.
Lisboa, 4/02/2025
(processei e revi – art.º 94, n.º 2 do C.P.P.)
Maria José Machado