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REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PENA DE SEMIDETENÇÃO
Sumário
Não pode ser revista e confirmada uma sentença proferida pela República Federativa do Brasil quando a pena de prisão imposta foi em regime de semidetenção. Esta pena de semidetenção, face às suas características, sem paralelo no sistema jurídico penal português, não pode ser objeto de conversão em pena prevista na lei portuguesa.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
O Ministério Público junto deste Tribunal veio requerer o procedimento de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, com vista à execução em Portugal do remanescente da pena de prisão imposta no Brasil relativamente à cidadã de nacionalidade portuguesa:
AA, titular do CC, emitido pelo ..., n.º ..., válido até ........2027, nascida a ........1976, na freguesia de ..., de nacionalidade portuguesa, filha de BB e de CC, residente na ...,
com os seguintes fundamentos (transcrição):
“1.
A Justiça Federal - ... – 3.º Vara Federal –...da ..., no Processo-crime ..., no dia ... de ... de 2014, proferiu a sentença n.º ..., transitada em julgado em ... de ... de 2016, que condenou a Requerida AA como autora de um crime de tráfico de entorpecente agravado pela transnacionalidade, por factos ocorridos em ... de ... de 2023, previsto e punido nos artigos 33.º e 40.ºI, ambos da Lei n.º 11.343/2006, nas penas de 4 anos, 2 meses e 10 dias de reclusão e de 427 dias de multa à razão de 1/30 do salário mínimo por cada dia multa, conforme documentação que se junta como Doc. 1 [fls. 31 a 49, 57 a 82].
2.
A Requerida permaneceu em prisão preventiva, em estabelecimento prisional na ..., no período compreendido entre ... de ... de 2013 e ... de ... de 2014, perfazendo 230 dias, data em que foi colocada em liberdade para recorrer da sentença de condenação [fls. 52, 53, 54, 55, 168 a 171].
3.
A Requerida veio a ser detida em ..., no dia ... de ... de 2023, em execução de um Mandado de Detenção Internacional, emitido pela autoridade judiciária da ... no supra identificado processo, e libertada no dia ... de ... de 2023, aquando da sua audição neste Tribunal da Relação de Lisboa, …Secção, no Processo ... [fls. 162/3, 195].
4.
Processo que veio a ser arquivado em função da declaração da autoridade judiciária da República Federativa do Brasil de que não iria formular pedido de extradição da Requerida por se tratar de cidadã de nacionalidade portuguesa e ... não extraditar os seus nacionais [fls. 162/3 e 164 a 167].
5.
Nesse mesmo Processo, informou esta autoridade que iria diligenciar pela revisão e confirmação, em ..., da sentença n.º ..., da Justiça Federal - ... – 3.º Vara Federal – ... proferida no Processo-crime n.º ... com vista à execução das penas em ... [fls. 162/3, 182].
6.
O que veio a fazer [fls. 164 a 167].
7.
E, nessa sequência, Sua Exa. a Sra. Ministra da Justiça emitiu o DESPACHO N.º ..., com o qual, cumprido o disposto ns artigos 95.º, 96.º, n.º 1, e 99.º, da Lei 144/99, de ..., e tendo em conta informação prestada pela PGR, considerou, nos termos dos artigos 4.º e 99.º, n.º 1, da citada Lei, admissível e aceitou o pedido de execução em Portugal da pena decretada pela República Federativa do Brasil relativa a AA no âmbito do Processo-crime n.º ..., em que foi proferida sentença penal condenatória pela ... – 3.º Vara Federal [3 e 4].
8.
O crime pelo qual a Requerida foi condenada corresponde na Ordem Jurídica Portuguesa ao crime de tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, com pena de prisão de 4 a 12 anos.
9.
Este crime não é punido na Ordem Jurídica Portuguesa com pena de multa.
10.
A pena de prisão imposta na sentença é superior a 1 ano.
11.
A Requerida esteve presente no julgamento, foi assistida por defensor e fala a língua portuguesa.
12.
A Requerida é portuguesa e reside em ..., na ... [Doc. 2].
13.
O procedimento criminal e a pena de prisão não se mostram prescritos [arts. 118.º, n.º 1al. a)i), 119.º, 122.º, n.s 1, al. a) e 2, todo do Código Penal].
14.
A Requerida tem a cumprir a pena de prisão de 4 anos, 2 meses e 10 dias de reclusão, descontados 230 dias de prisão preventiva e 2 dias de privação da liberdade à ordem do Processo..., do Tribunal da Relação de Lisboa
15.
Reúnem-se os requisitos legais para a revisão e confirmação de sentença penal estrangeira previstos no art. 96.º, n.º 1, als. a), c), d), e), f), i), da Lei 144/99, de 31/08, e no art. 237.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
16.
No entanto, a revisão e confirmação da pena de multa, por que não prevista no Ordem Jurídica Portuguesa para o crime de tráfico do art. 21.º, n.º 1 do DL. 15/93, de 22/01, como acima se aludiu, não será objeto de execução, conforme previsto no n.º 3 do art. 237.º, do Código Penal.
17.
O Tribunal da Relação de Lisboa é o Tribunal territorialmente competente para proceder à revisão e confirmação da sentença penal estrangeira, de acordo com o disposto no artigo 235.º, n.º 1, do Código Penal [cfr. art. 99.º, n.º 4 da Lei 144/99, de 31/08]”.
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Procedeu-se à nomeação de defensor e notificação da requerida na pessoa do defensor, não tendo sido deduzida oposição no prazo estabelecido.
A condenada deu o seu consentimento ao cumprimento da pena em Portugal.
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Este Tribunal da Relação é o competente para a revisão e confirmação de sentença penal estrangeira (artigo 235.º, n.º1 do Código de Processo Penal).
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Efetuado o exame preliminar, colhidos os vistos, foram os autos à conferência, a qual se realizou com obediência de todo o formalismo legal, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II – Fundamentação
Estão provados os seguintes factos:
1. A Justiça Federal - ... – 3.º Vara Federal – ..., da ..., no Processo-crime ..., no dia ... de ... de 2014, proferiu a sentença n.º ..., transitada em julgado em ... de ... de 2016, que condenou a requerida AA como autora de um crime de entorpecente agravado pela transnacionalidade, por factos ocorridos em ... de ... de 2023, pp. nos artigos 33.º e 40.ºI, ambos da Lei n.º 11.343/2006, nas penas de 4 anos, 2 meses e 10 dias de reclusão e de 427 dias de multa à razão de 1/30 do salário mínimo por cada dia multa.
2. Mais foi determinado que a pena seria em regime semiaberto.
3. Ficou provado nesse processo que, no dia ........2013, pelas 13.00 horas, no ..., a condenada AA e DD traziam consigo, junto ao corpo da primeira, dois pacotes de alcaloide cocaína, com o peso aproximado de 4.138 gramas, sem autorização legal.
4. O voo provinha da ... e tinha como destino final ....
5. AA esteve presente no julgamento.
6. Tem nacionalidade portuguesa e reside na ...,
7. Aceitou cumprir a pena em ....
8. Por despacho n.º ..., a Sr. Ministra da Justiça considerou admissível e aceitou o pedido de execução em ... da pena decretada pela ... relativa a AA, no âmbito do Processo-crime n.º ..., em que foi proferida sentença penal condenatória pela ... – 3.º Vara Federal.
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III. Do mérito do pedido
Nos termos do disposto no artigo 234.º n.º 1 do Código de Processo Penal, “quando por força da lei ou de tratado ou convenção, uma sentença penal estrangeira dever ter eficácia em Portugal a sua força executiva depende da prévia revisão e confirmação”.
Por sua vez, refere o artigo 237.º do Código Penal que:
1 - Para confirmação de sentença penal estrangeira é necessário que se verifiquem as condições seguintes:
a) Que, por lei, tratado ou convenção, a sentença possa ter força executiva em território português;
b) Que o facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa;
c) Que a sentença não tenha aplicado pena ou medida de segurança proibida pela lei portuguesa;
d) Que o arguido tenha sido assistido por defensor e, quando ignorasse a língua usada no processo, por intérprete;
e) Que, salvo tratado ou convenção em contrário, a sentença não respeite a crime qualificável, segundo a lei portuguesa ou a do país em que foi proferida a sentença, de crime contra a segurança do Estado.
2 - Valem correspondentemente para confirmação de sentença penal estrangeira, na parte aplicável, os requisitos de que a lei do processo civil faz depender a confirmação de sentença civil estrangeira.
3 - Se a sentença penal estrangeira tiver aplicado pena que a lei portuguesa não prevê ou pena que a lei portuguesa prevê, mas em medida superior ao máximo legal admissível, a sentença é confirmada, mas a pena aplicada converte-se naquela que ao caso coubesse segundo a lei portuguesa ou reduz-se até ao limite adequado. Não obsta, porém, à confirmação a aplicação pela sentença estrangeira de pena em limite inferior ao mínimo admissível pela lei portuguesa”.
A Lei n.º 144/99 de 31/08, regula as diversas formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal. A execução de sentenças penais estrangeiras depende, no entanto, da prévia revisão e confirmação, que obedece ao determinado no artigo 100.º deste diploma.
Com efeito, determina esta norma que:
“1 - A força executiva da sentença estrangeira depende de prévia revisão e confirmação, segundo o disposto no Código de Processo Penal e o previsto nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 6.º do presente diploma.
2 - Quando se pronunciar pela revisão e confirmação, o tribunal:
a) Está vinculado à matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira;
b) Não pode converter uma pena privativa de liberdade em pena pecuniária;
c) Não pode agravar, em caso algum, a reação estabelecida na sentença estrangeira.
3 - Em caso de omissão, obscuridade ou insuficiência da matéria de facto, o tribunal pede as informações necessárias, sendo a confirmação negada quando não for possível obtê-las (…).
A Convenção sobre a Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa1, permite que a sentença estrangeira em análise possa ter força executiva em território português.
O artigo 1.º da Convenção da CPLP contém uma séria de definições, indicando na alínea a) que, para os efeitos da Convenção, a expressão «condenação» significa qualquer pena ou medida privativa da liberdade, por um período determinado ou indeterminado, em virtude da prática de um facto ilícito.
AA foi condenada numa pena de 4 anos, 2 meses e 10 dias e 427 dias de multa. Mais se determinou que a pena de prisão seria cumprida em regime semiaberto.
O sistema penal brasileiro prevê que a chamada “pena de reclusão” deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto (artigo 33.º do Código Penal).
Considera-se:
a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;
b) regime semiaberto a execução da pena em colónia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;
c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado (§ 1.º do artigo 33.º).
O mesmo Código Penal (§ 2.º do artigo 33.º) estabelece que as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, “segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso”. Como se constata da sentença em análise, a lei prevê a possibilidade de cumprimento da pena, desde o início, em regime semiaberto ou aberto.
Os regimes semiaberto ou aberto não se confundem com os regimes de execução das penas e medidas privativas da liberdade em regime comum, aberto no interior e aberto no exterior, previstos em Portugal no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
No caso em apreço, a requerida foi logo condenada numa pena em regime semiaberto, que manifestamente não existe no nosso ordenamento jurídico.
Temos, assim, uma cidadã condenada a uma pena de “reclusão”, em regime semiaberto (artigo 36.º do Código Penal brasileiro), que supõe que esta possa, sem vigilância, trabalhar, frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada (§ 1.º do artigo 36.º), permanecendo recolhida durante o período noturno e nos dias de folga em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
A casa de albergado é um estabelecimento prisional para abrigar presos com baixo ou nenhum grau de perigosidade e que cumprem pena por crimes cometidos sem violência. A Lei de Execuções Penais Brasileira, no seu artigo 94.º, determina que o mencionado estabelecimento não deve ter obstáculos físicos contra fuga (Lei de Execuções Penais - Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984).
No artigo 95.º da referida Lei consta expressamente que em cada região deverá haver pelo menos uma casa de albergado. Todavia, em certas regiões o estabelecimento não foi construído e, conforme consulta da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o condenado não pode ir para regime mais severo por falta de estabelecimento adequado, pelo que, nas regiões onde não há casa de albergado, as penas vêm sendo cumpridas na própria residência dos sentenciados, obedecendo a diversas determinações judiciais.
In casu, a condenada está em liberdade.
Tal pena de “reclusão”, assim configurada, não existe em Portugal.
Não vemos, por conseguinte, que estejamos perante “pena” que possa ser objeto de conversão em pena prevista segundo a lei portuguesa.
Assim, teremos de desatender o pedido formulado nos presentes autos, por falta de um pressuposto essencial, não sendo a pena em questão exequível em Portugal.
Se o pedido dos autos fosse atendido estar-se-ia a aplicar uma pena mais gravosa do que a foi imposta no Brasil, o que manifestamente não é permitido nos termos do já citado artigo 100.º da Lei n.º 144/99 de 31/08.
***
III – Dispositivo
Termos em que, com os fundamentos expostos, acordam os juízes deste tribunal em não conceder o requerido reconhecimento da sentença penal do Brasil em ordem à execução em Portugal da pena imposta a AA.
Sem tributação.
Notifique.
Lisboa, 6 de Fevreiro de 2025
Ana Lúcia Gordinho
Ana Cristina Cardodo
Alexandra Veiga
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1. Esta convenção foi assinada na Cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005, a que a República Portuguesa se vinculou, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 48/2008, de 15/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 66/2008, de 15/09 (Diário da República, I Série, n.º 178, de 15 de Setembro de 2008). O depósito teve lugar junto do Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em 1 de Fevereiro de 2010 (cf. Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 182/2011, de 2 de Agosto de 2011, Diário da República, I Série, n.º 153, de 10 de Agosto de 2011, que assinala estar a Convenção em vigor, além do mais, para a República Federativa do Brasil, desde 1 de Agosto de 2009).