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DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
I – Sendo o arguido representado por defensor oficioso nomeado para o ato, não se verifica a nulidade das declarações para memória futura prestadas pelos seus filhos menores no inquérito por crimes de violência doméstica e maus tratos. II – Uma vez que o arguido apenas constituiu defensora por si escolhida em momento posterior, esta não podia ter sido convocada para a diligência de declarações para memória futura, pelo que não se verifica a nulidade a que alude o art. 119.º, al. c), em conjugação com o disposto no art. 271.º, n.º 3 do CPP. III – A nulidade da sentença prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, por não conter as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º, só se verifica perante a omissão integral de qualquer destes elementos estruturais da sentença, não sendo bastante para a sua verificação a discordância do recorrente quanto à fundamentação da decisão de facto. IV - A impugnação da decisão da matéria de facto, como forma de remediar o erro de julgamento, tem de obedecer aos requisitos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, o que não se verifica quando o recorrente apenas afirma que o tribunal não apreciou outros meios de prova ou deixou de fora questões que poderiam ser suscitadas, sem as concretizar, limitando-se a discordar da fundamentação da decisão do tribunal. V - O princípio in dubio pro reo não se aplica a situações em que existe uma oposição entre a versão apresentada pelo arguido e a versão apresentada pelos ofendidos, pois se assim fosse apenas haveria condenações no caso de confissão do arguido; este princípio apenas atua em situações em que, depois de compulsada toda a prova, o Tribunal permanece com dúvidas inultrapassáveis.
Texto Integral
Acordam na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Sintra, Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «Pelos fundamentos de facto e de Direito supra expostos, o Tribunal julga a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente por provada e, em consequência, A) Condena o arguido AA, pela prática, em autoria material e pela forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo 152.º n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a), do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 3 (três) anos de prisão; B) Condena o arguido AA, pela prática, em autoria material e pela forma consumada, de um crime de maus tratos, previsto e punidos pelo art. 152.º-A, n.º 1 al. a), do Código Penal, na pessoa de CC, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; C) Operando o cúmulo jurídico das penas a que se alude em A) e B), condena o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão; D) Suspende a execução da pena única a que se alude em C) pelo período de 4 (quatro) e anos, sujeita, tal suspensão, a regime de prova, (devendo o condenado cumprir o plano de reinserção social a efectuar pela DGRSP que inclua a frequência do Programa específico de reabilitação tido por mais adequado pela DGRSP – por exemplo e se aplicável, o programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica e responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social, receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, e informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego), e, bem assim à condição de pagar a cada uma das vítimas, no prazo de 30 (trinta) meses a contar do trânsito em julgado da sentença, do montante do capital que venha a ser-lhes fixado em sede de indemnização, sendo certo que, tendo em conta as suas condições económicas, está em condições de satisfazer a quantia a arbitrar infra, no prazo fixado, ainda que tranches mensais, devendo demonstrar nos autos, e em tal prazo, o aludido pagamento; E) Condena o arguido AA a pagar a BB, a quantia de 2500 € (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa dos juros civis, a contar da presente decisão e até integral cumprimento; F) Condena o arguido AA a pagar, a CC, a quantia de 1000 € (mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa dos juros civis, a contar da presente decisão e até integral cumprimento (…)».
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Inconformado, recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:
«a) O arguido discorda, de facto e de Direito, da justiça e legalidade do decidido pelo Tribunal a quo, pois é seu entendimento que do conjunto da prova produzida, interpretada à luz das regras da experiência comum, não resulta nem poderia resultar provado que, nas circunstâncias descritas na acusação (modo e lugar) tivesse cometido os crimes pelos quais vem acusado e condenado, pelo menos nos termos em que foi condenado. Acresce que também não se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime pelo qual vem acusado. b) O tribunal fundou a sua convicção essencialmente nas declarações dos menores e de sua mãe (tomadas em sede de declarações para memória futura), e na fotografia junta aos autos. c) O arguido prestou declarações e arrolou uma testemunha que presenciou os factos durante as férias, e uma testemunha que depôs a respeito da sua personalidade. d) Quanto à testemunha que depôs acerca da personalidade do arguido, o tribunal concluiu, sem que nenhuma palavra proferida pela testemunha fizesse supor tal coisa, que estava na presença de um perfil típico de um agressor de violência doméstica e de maus tratos! Isto apesar da testemunha ter referido o contrário! e) Posto isto, evidencia-se que a sentença não reflete que tivesse sido feita uma análise crítica de toda a prova, inclusive das declarações de parte e suas imprecisões. f) Imprecisões, estas, que são mais notórias quando os menores referem, em particular o BB, o período a partir do qual começou a ser espancado (2 anos de idade), o qual entra em contradição com as declarações da DD, sua mãe, que refere, que o menor passou a ser agredido a partir dos 4 anos de idade. g) Verifica-se igualmente contradições nas declarações dos menores, quanto à questão do afogamento na piscina. Primeiro o menor CC começa por dizer que se afogou na piscina e que o irmão o salvou. Depois diz que o pai foi salvá-lo. Refere a este respeito, que o pai não estava a dormir, estava a falar de olhos fechados. O arguido, nas suas declarações mencionou, que, para além de estar atento aos filhos, o menor encontrava-se com as braçadeiras postas porque queria apender a nadar. E face à iminência de perigo, o arguido de imediato saltou para a piscina. h) Este facto foi confirmado pela testemunha EE. i) Nas suas declarações para memória futura, o menor CC acaba por dizer que o arguido só faz coisas más agora que tem a namorada. Dantes não fazia isto. Ela é má! j) Também diz quase no final das declarações que o arguido bate quando fazem traquinices! k) Refere ainda que o arguido o ameaçava colocar de castigo caso este não comesse, mas como ele come, nunca o pôs de castigo! l) Também diz quase no final das declarações que o arguido bate quando fazem traquinices! m) Refere ainda que o arguido o ameaçava colocar de castigo caso este não comesse, mas como ele come, nunca o pôs de castigo! n) Também não foi devidamente apreciado pelo tribunal o facto de o menor BB ter batido com a perna na mesa enquanto brincava com o irmão. o) Também não foi tido em consideração pelo tribunal as declarações da testemunha que presenciou os factos, na parte referente ao parque de estacionamento, quando o menor fugiu de junto do pai e desatou a correr pelo parque de estacionamento sujeito a ser atropelado, altura em que este o segurou pelo braço e explicou que tinha que andar pela mão por razões de segurança. p) Ao invés, o tribunal resolveu dar como certas as afirmações dos menores e nem colocar em causa a veracidade das mesmas. Não fez um juízo objectivo das provas. Limitou-se a dar como provado que o menor foi levantado desde o chão até ao ar pelas orelhas, pelo arguido. q) Como fez igualmente tábua rasa das declarações da testemunha, quando referiu que o menor foi agressivo para o arguido, quando na sua casa, bateu com a porta do quarto, por causa de um sumo de melancia que não quis tomar. r) Na sequência deste comportamento o arguido foi falar com o filho ao quarto para lhe explicar que a porta era para manter aberta. s) Ao tribunal é exigível que faça um exame crítico das provas, sempre norteado por critérios de razoabilidade. Exame, crítico, esse, que deve integrar os fundamentos da sentença, sendo essencial para o arguido avaliar a condenação. t) O tribunal não cumpre tal ónus quando se limita a indicar que os meios de prova nos quais se apoiou para dar os factos como provados e condenar o arguido, como sendo apenas as declarações para memória futura dos menores e de sua mãe, que quer banir a existência do pai biológico da vida dos filhos, não se contentando com o afastamento há pelo menos 3 anos. O tribunal apenas referiu a prova existente mas não a analisou criticamente. Neste sentido leia-se o Ac. TRC de 27/09/2017. u) Pugna-se assim pela nulidade da sentença, considerando que não faz uma análise crítica de todos os meios de prova, violando o disposto no artigo 374.º do CPP. v) Perante estas declarações o tribunal devia então debruçar-se sobre toda a prova, porquanto foram prestadas as declarações do arguido e das testemunhas e que tem potencialidade para colocar em causa a justiça da condenação. w) Não constam igualmente dos autos para além dos relatórios de reavaliação, outros meios de prova, nomeadamente registos médicos ou hospitalares, nem de outra natureza que provem os crimes de violência doméstica e os crimes de maus tratos. Não existem também provas técnicas ou periciais que provem os crimes de violência doméstica e os crimes de maus tratos, e de quem foi o seu autor. x) O mesmo vale por dizer que o juiz a quo deixou de forma questões que poderiam ser suscitadas, remetendo-se apenas para as teses defendidas sem sede de declarações para memória futura, sem que fossem discutidas em sede audiência de discussão e julgamento. Tal situação consubstancia um erro de julgamento. y) A decisão do tribunal a quo para além das declarações para memória futura não tem suporte em quaisquer outros factos reais que pudessem contribuir para a boa decisão da causa. z) É como se constata, apesar de em geral, as pessoas demonstrarem pouca memória sobre factos específicos (atento o decurso do tempo), no caso, os menores têm bem presente, todos os espancamentos, não obstante a falta de concretização de circunstância, modo e lugar. aa)Caso não se entenda que existe erro de julgamento, sempre se dirá que o tribunal a quo só concretiza os motivos pelos quais entende que a versão do arguido não é credível, como contraria as regras da experiência comum em face da prova testemunhal. bb)Na verdade, o depoimento prestado pelo arguido e pelas testemunhas, ajudariam a enquadrar, em termos mais amplos e rigorosos, a situação, permitindo avaliar de forma fundada, em conjunto todas as circunstâncias da participação criminal apresentada contra o arguido. cc)O arguido vem condenado de um crime de violência doméstica e de um crime de maus tratos. dd) Qualquer destes crimes, são crimes de resultado, de dano e de execução livre. O bem jurídico tutelado é a integridade física. São elementos constitutivos do respectivo tipo: - O Tipo objetivo: “(…)Quem, tenha ao seu cuidados (…) lhe infligir de modo reiterado ou não maus tratos físicos ou psíquicos (…); - O tipo subjectivo: O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do C. Penal. cc) Por outras palavras, como elemento subjectivo do crime exige-se a vontade de ofender corporalmente ou psicologicamente o lesado, o mesmo é dizer que uma imputação subjectiva fundada no dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. ee) Como se alcança das declarações do arguido, este não cometeu os crimes de que vem acusado. ff) Como também não praticou qualquer ato voluntário que configure os crimes de violência doméstica ou de maus tratos. gg)O arguido exclui naturalmente a vontade e intenção na prática dos factos. hh) O arguido não praticou os factos de que está acusado. ii) E para além de não os praticar, tal prática exigiria o dolo. jj) Não se verificando o dolo, não se verifica a condenação. kk)Posto isto, certo é que se encontra excluído o dolo e, em consequência não se encontram preenchidos o tipo legal dos crimes de violência doméstica e de maus tratos, devendo, naturalmente o arguido ser absolvido, com base no princípio basilar do direito penal: O princípio in dúbio pro reo. ll) É o princípio norteador de todo o processo penal. Na sua vertente prática, constitui uma obrigação do julgador que implica a pronúncia favorável ao arguido quando não houver certeza, ou seja, perante dúvidas sobre factos decisivos para a decisão da causa. mm) A decisão do tribunal a quo de condenar sem mais, o arguido apenas com fundamento nas declarações para memória futura, e sem fazer, como se impunha, uma análise crítica de todas as provas e circunstâncias que envolvem este caso, compromete irremediavelmente o princípio in dúbio pro reo, pelo que, deve ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido».
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Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«A. As declarações para memória futura dos menores BB e CC, bem como da mãe destes, DD cumpriram o disposto no artigo 271.º, do Código de Processo Penal e artigo 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, conforme resulta da Acta elaborada em 05-01-2021, pelo que, improcede a nulidade invocada pelo recorrente. B. A sentença recorrida não padece da nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do mesmo Diploma Legal. C. Na verdade, é bem patente, na referida decisão, a exposição dos motivos de facto e de direito que a fundamentam, com indicação dos elementos de prova relevantes para a formação da convicção do Tribunal, e o cumprimento do dever de exposição do exame crítico de tais provas, ou seja, o raciocínio lógico subjacente a tal convicção. D. O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o Tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado como não provado, ou o inverso, tendo a ver com a apreciação da prova produzida em audiência, em conexão com o princípio da livre apreciação da prova. E. Deste modo, quando o recorrente pretende invocar algum destes vícios, deverá indicar, sob pena de rejeição, a norma jurídica violada, bem como especificar, também nas conclusões, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas (art. 412.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. a) e b) do CPP). E, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, as especificações fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. F. A motivação de recurso apresentada pelo recorrente é omissa quanto a estes aspectos, limitando-se o recorrente a contrariar a versão dos factos constante da sentença recorrida, tentando abalar a convicção do tribunal recorrido, bem como questionar a relevância dada aos elementos probatórios (designadamente as declarações para memória futura das vítimas, menores de idade, e da mãe destes), sem indicar quais os elementos probatórios que sustentariam a sua posição, o que não é admissível – vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2004, processo n.º 575/04-1, Relator: Heitor Gonçalves, disponível para consulta em www.dgsi.pt. G. Assim, uma vez que estas omissões (nomeadamente, quanto à indicação dos concretos elementos de prova) inviabilizam a possibilidade de apreciação da matéria de facto (cf. artigo 413.º, alínea b), do Código de Processo Penal), forçoso é concluir que se impõe a rejeição do recurso do recorrente/arguido, nesta parte, nos termos do disposto nos artigos 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal. H. O recorrente pretende fundamentalmente pôr em crise é o princípio da livre apreciação da prova; na verdade, do que se trata é da discordância do mesmo relativamente ao modo como a prova produzida foi apreciada pelo Tribunal a quo, designadamente, as declarações para memória futura dos menores BB e CC quando conjugadas com as demais provas (as declarações do arguido e o depoimento das testemunhas EE e DD e documental) e que permitiram dar como provada a acusação pública, contrariando a versão apresentada pelo arguido. I. Sucede que, mesmo nos casos em que haja gravação da prova (como sucede(u) no caso concreto), o Tribunal da Relação não pode sindicar a valoração das provas, em termos de criticar o tribunal a quo por ter dado prevalência a uma(s) em detrimento de outra(s); J. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto jamais poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais e flagrantes erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto; K. Como tal, necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o Tribunal indique os fundamentos suficientes para que se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, o que foi feito - e bem feito - na sentença recorrida. L. Tendo em conta a prova produzida e a fundamentação do enquadramento fáctico, é manifesto que a sentença recorrida fez uma acertada e ponderada apreciação da prova produzida em audiência de julgamento. M. Também não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha violado o princípio in dubio pro reo, porquanto, a violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-3-99 CJSTJ, tomo I, pág. 247. N. In casu, não se vislumbra que a Mma. Juiz do Tribunal a quo tenha tido dúvidas sobre a prova dos factos imputados ao arguido, sendo que a prova produzida permite afirmar, com segurança, que este praticou os factos pelos quais foi condenado, não tendo permanecido qualquer dúvida na mente do julgador. O. Dúvidas também não restam que os mencionados factos provados preenchem os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de violência doméstica e de maus tratos por que foi o arguido condenado, pelo que, bem andou o Tribunal a quo na sentença recorrida, ao considerar preenchidos os mesmos e, consequentemente, condenar o arguido/recorrente pela sua prática. P. As penas (parcelares e única) em que o arguido/recorrente foi condenado nos presentes autos mostram-se justas, equilibradas, e devidamente sustentadas com os argumentos aduzidos na sentença recorrida, na parte atinente à escolha e determinação da medida concreta dessas penas, pelo que, não nos merecem qualquer censura. Q. Por tudo o exposto, a sentença recorrida não merece qualquer censura, não padece de qualquer vício (mormente, aqueles que vêm invocados na peça processual a que se responde), achando-se em absoluta conformidade com a lei».
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
a) Nulidade das declarações para memória futura;
b) Falta de análise crítica da prova – nulidade da sentença por violação do art. 374.º do CPP;
c) Erro de julgamento;
d) Violação do princípio in dubio pro reo;
e) Falta de verificação dos elementos objetivo e subjetivo dos crimes pelos quais o arguido foi condenado. DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada: «1. O arguido e DD viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem durante cerca de dez anos, casaram um com o outro no dia ........2012, separaram-se no mês de … de 2016 e divorciaram-se no dia ........2016; 2. Fruto desse relacionamento nasceram dois filhos: - BB (doravante designado por BB), nascido no dia ........2011; e - CC, (doravante designado por CC), nascido no dia ........2014; 3. Durante o casamento, o arguido e DD residiram na habitação sita na ...; 4. Por acordo homologado na Conservatória do Registo Civil de ..., datado ........2016, ficou estabelecido que os menores BB e CC ficariam a residir com a mãe, cabendo o exercício das responsabilidades parentais a ambos os progenitores; 5. Mais ficou acordado que o arguido passava os fins-de-semana e as quartas-feiras, de quinze em quinze dias, com os dois filhos BB e CC; 6. Por várias vezes, a partir dos quatro anos de idade do filho BB, e enquanto casado com DD, no interior da residência comum, por motivos não concretamente apurados, o arguido desferiu palmadas por todo o corpo de BB, com especial incidência na zona da cabeça, nas costas e no rabo, e desferiu- lhe bofetadas na face; 7. Em data não concretamente apurada, mas situada no mês de … de 2016, no interior da residência comum, por motivos não concretamente apurados, o arguido desferiu várias palmadas no corpo de BB, atingindo-o na cabeça, nas costas e no rabo; 8. Como consequência directa e necessárias desses comportamentos do arguido, BB ficou com dores e a chorar; 9. Por várias vezes, após o divórcio e pelo menos até ao mês de … de 2020, com maior incidência aos fins-de semana, de quinze em quinze dias, no interior da residência dele, sita na ..., por motivos não concretamente apurados, o arguido dirigiu-se a BB e desferiu-lhe palmadas na cabeça, na zona do tronco e dos membros; 10. Numa ocasião, dentro do mesmo hiato temporal, no interior da residência dele, o arguido dirigiu-se a BB e, por motivos não concretamente apurados, desferiu-lhe uma estalada, atingindo-o numa face; 11. Noutra ocasião, ocorrida no mesmo hiato temporal, no interior da residência dele, o arguido dirigiu-se a BB e, em tom de voz sério e grave, disse-lhe que lhe apertava o pescoço caso o menor contasse a uma das namoradas do arguido que ele tinha outra namorada; 12. Em data não concretamente apurada, mas situada no mesmo hiato temporal, por motivos relacionados com uma brincadeira que os filhos faziam com bolas, o arguido dirigiu-se ao filho menor CC e desferiu-lhe uma palmada de mão aberta numa perna, causando-lhe dores; 13. No dia ........2020, quando se encontravam de férias com o arguido numa casa sita na ..., por motivos relacionados com o facto de o filho ter ido contra uma mesa, o arguido dirigiu-se a BB e desferiu-lhe várias palmadas pelo corpo, nomeadamente na perna; 14. E na mesma ocasião, o arguido ainda se dirigiu a CC e desferiu-lhe uma palmada no corpo, causando-lhe uma nódoa negra; 15. No dia ........2020, na mesma casa, porque BB lhe pediu para falar com a mãe, o arguido, irritado com tal pedido, fechou-o de castigo dentro do quarto da habitação de férias; 16. Já no quarto de castigo, BB sentou-se numa cadeira; 17. Pouco tempo depois, o arguido deslocou-se ao quarto onde BB estava de castigo e, na presença do menor CC, desferiu-lhe várias palmadas no corpo, causando-lhe a queda ao solo; 18. Com medo do arguido, BB deitou-se na cama do quarto, por debaixo dos lençóis e o arguido continuou a desferir-lhe palmadas pelo corpo; 19. Em data não concretamente apurada, mas situada no decurso do mês de … de 2020, quando se encontravam no interior do hipermercado denominado “...”, sito em ..., porque CC se afastou dele, o arguido agarrou-o com força pelas orelhas, içando-o do chão pelas orelhas e causando- lhe dores; 20. Mais tarde, ainda no mesmo dia, no parque de estacionamento do mesmo hipermercado, depois de CC ter atravessado a passadeira sozinho, o arguido dirigiu-se a ele, agarrou-o com força pelas orelhas e caminhou com ele até ao carro a puxar-lhe as orelhas, causando-lhe dores; 21. Com as suas condutas, o arguido quis e conseguiu ofender BB e CC nas respetivas honra e dignidades, nas suas integridades físicas, e nas suas liberdades pessoais, por forma a que se sentissem lesados nas suas dignidades enquanto seres humanos e seus filhos, o que igualmente conseguiu, 22. Bem sabendo que praticando parte desses actos no interior da residência do menor BB o privava de qualquer possibilidade de reacção, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança e terror; 23. Sabia o arguido que BB e CC eram seus filhos, ainda menores de idade e que atuava em completo desrespeito daqueles e da relação familiar que os une; 24. Mais sabia que tinha o dever de respeitar os seus filhos, aqui ofendidos, que recebia na sua casa em cumprimento do regime de visitas fixado no âmbito de sentença relativa ao exercício das responsabilidades parentais referentes aos dois menores, pessoas particularmente indefesas em razão da idade e da sua dependência económica em relação ao arguido e que ao tratá-los do modo supra descrito, os impedia de ter um crescimento saudável e harmonioso, o que conseguiu; 25. O arguido atuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde física dos seus dois filhos, aqui ofendidos, e, dessa forma, provocar-lhes maus-tratos físicos, sabendo que assim lhe causaria dores e lesões; 26. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal; Mais se provou que 27. AA, tem um irmão mais velho. Os pais eram casados e assim o viveram até à morte da mãe em 2022, por doença prolongada. O pai reside num Lar, no ... e tem alguns problemas de saúde, que condicionam a sua autonomia. Os pais do arguido emigraram para a ..., país onde o arguido nasceu, sendo que regressaram a Portugal, tinha AA, três anos e meio. Em 1978, fixaram-se em ..., desenvolvendo o pai a atividade laboral na ..., e a sua mãe era …. AA desenvolveu a sua vivência sem especiais intercorrências num ambiente familiar estável, sem especiais conflitos. Prosseguiu um percurso escolar regular e normativo e o desenvolvimento de atividades desportivas e de lazer, durante a sua infância e juventude, como o …. Após completar o Ensino Superior, em ..., em ..., mudou-se para a zona de ..., e fixou-se em, ... iniciada a vida laboral; Foi ... da Disciplina de ... em meio escolar, e Técnico ... no ... e outros serviços públicos. Em ... integrou os quadros do extinto ..., atual ..., onde desempenha a atividade de .... AA, conheceu e estabeleceu casamento com DD, colega de trabalho, com a mesma formação científica, e o casal manteve o relacionamento dez anos, no decurso do qual nasceram os filhos, BB e CC, na atualidade com 12 e 9 anos. AA e DD ter-se-ão separado por divergências irreconciliáveis, e divorciado em 2016. O divórcio e a regulação das responsabilidades parentais, foram estabelecidos, em sede própria, de acordo com o acordado com os pais e o tribunal. Houve intervenção da CPCJ e visitas supervisionadas pela Instituição .... O arguido em ... refez a sua vida emocional, com EE. O casal está junto desde então e vivem em união de facto. AA surge associado aos processos n.º 886/20.2... PBSNT e 1387/20.4... PBSNT, como arguido. AA vive em união de facto com EE, de 35 anos, ..., na morada de TIR, em habitação própria. A relação é descrita como gratificante. A sua companheira tem dois filhos menores, a residir no país de origem, com familiares. Exerce a atividade de Especialista de …, em regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, para a ...; Teve um vencimento, em … de 2024, de 1935€. O arguido não tem visitas/priva com os filhos há três anos. Mantém na actualidade consulta de ..., com a Dra. FF, no .... AA, reporta sentimentos de tristeza e desalento, com o afastamento da convivência dos filhos, a existência do processo judicial e as perdas das vivências educativas e afetivas, que tem experimentado. Verbaliza a mágoa, de não ser informado ou envolvido na vida escolar, nas vivências e nos acontecimentos da vida dos filhos, revelando disponibilidade para estabelecer os laços necessários. Mantém um quotidiano focado no trabalho, nas vivências conjugais e domésticas. Reporta algum interesse em desporto, como …e …. AA, afirma que tem como principal objetivo, o restabelecimento dos laços com os filhos, poder abraçá-los, estar com eles, a manutenção da atual relação conjugal e da sua atividade laboral. O arguido não se revê nas acusações, distancia-se das mesmas e verbaliza esperar a reposição da verdade dos factos. 28. Ao serviço da ..., aufere um vencimento líquido mensal de cerca de 1800 €; 29. A casa em que reside é própria, não suportando o reembolso de empréstimo para a sua aquisição; 30. Despende 40 € por mês para reembolso de um crédito contraído para aquisição de um electrodoméstico o que fará por mais cerca de 24 meses; 31. Paga pensão de alimentos aos menores, de valor atual de 347,52€, para ambos, valor a que acrescem 50% das despesas extraordinárias, de saúde, lazer e educação; 32. O arguido é tido pelo seu irmão como uma pessoa não violenta e que tem um bom relacionamento com os filhos; 33. O arguido não possui antecedentes criminais registados». FUNDAMENTAÇÃO
a) Da nulidade das declarações para memória futura
O arguido alega que as declarações para memória futura prestadas nos autos padecem de nulidade insanável, por não ter sido notificada nem ter estado presente na diligência a sua defensora, sendo certo que esta só teve conhecimento das declarações e acesso às mesmas no dia da continuação de Audiência de Julgamento, situação que viola os arts. 119.º, alínea c), 271.º, e 48.º, n.º 1, alínea a) do CPP, e artigo 32.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Compulsados os autos, verifica-se que as declarações para memória futura dos menores e da respetiva progenitora foram prestadas em 05/01/2021, tendo o arguido sido representado por defensor oficioso nomeado para o ato, o Sr. Dr. GG (cfr. o respetivo auto).
Mais se verifica que o arguido foi notificado previamente à diligência, tendo o despacho que ordenou determinado que este fosse informado que não era obrigatória a sua comparência na diligência e que, de acordo com o disposto na al a) do n.º1 do artigo
352.º do CPP, não seria admitido a presenciá-la – artigo 33.º n.º5 da Lei 112/2009 de 16 de setembro) – cfr. despacho de 03/12/2020.
É, pois, manifesto que não se verifica a nulidade a que alude o art. 119.º, al. c), em conjugação com o disposto no art. 271.º, n.º 3 do CPP.
A atual defensora do arguido apenas iniciou funções em momento posterior, pelo que não poderia ter sido convocada para a diligência.
Anota-se, porém, que as declarações para memória futura estão indicadas na prova da acusação, da qual foi já notificada a atual defensora, pelo que poderia ter requerido o acesso às mesmas antes da continuação da audiência de julgamento (audiência que, em todo o caso, foi suspensa para que lhe fosse facultado o acesso às ditas declarações para memória futura, conforme consta da ata da audiência de 24/04/2024).
Por conseguinte, não só não se verifica a nulidade insanável invocada, como qualquer outra eventual irregularidade sempre estaria sanada, por falta de arguição, dado que nada foi requerido pelo arguido (art. 123.º do CPP).
Face ao exposto, improcede esta questão.
b) Nulidade da sentença
A segunda questão suscitada no recurso consiste na nulidade da sentença, pois no entender do arguido, não fez uma análise crítica de toda a prova, violando o disposto no art. 374.º do CPP.
Para tanto, o arguido refere que o tribunal fundou a sua convicção essencialmente nas declarações dos menores e de sua mãe, tomadas em sede de declarações para memória futura, e na fotografia junta aos autos, descurando as declarações do arguido e da testemunha que depôs a respeito da sua personalidade.
Além disso, não foram devidamente ponderadas as imprecisões e contradições dos depoimentos dos menores, os quais aliás referiram que o arguido só lhes batia quando faziam traquinices, que o menor BB bateu com a perna numa mesa quando brincava com o irmão, não tendo o tribunal relevado igualmente o depoimento de EE, que presenciou alguns factos.
Assim, no entender do arguido, o tribunal recorrido não fez um exame crítico das provas, sempre norteado por critérios de razoabilidade, limitando-se a os meios de prova nos quais se apoiou para dar os factos como provados, sem os analisar criticamente.
Cumpre apreciar.
De acordo com o disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a) do CPP é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º.
Por sua vez, o art. 374.º dispõe que a sentença começa por um relatório, ao qual se segue a fundamentação, «que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal», terminando pelo dispositivo.
A nulidade aqui prevista só se verifica perante a omissão integral de qualquer destes elementos estruturais da sentença. «Não comporta a ocorrência e verificação da mesma a fundamentação insuficiente ou em desacordo com a argumentação expendida pelo sujeito processual que dela discorda» (cfr. José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do CPP, Tomo IV, 2ª Ed., p. 810)
Ora, lida a sentença recorrida, logo se constata que esta contém todas as menções obrigatórias, seguindo a estrutura prevista no art. 374.º, n.º 2, com a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição completa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Não corresponde à realidade que a sentença se limite a indicar os meios de prova, sem a analisar criticamente, como resulta de forma evidente da fundamentação da decisão de facto, composta de aproximadamente seis páginas, nas quais o tribunal confronta as versões que resultaram das declarações do arguido e dos menores e da sua mãe, esclarecendo de forma pormenorizada as razões pelas quais deu credibilidade a estes e não àquele.
Transcrevem-se os seguintes exemplos:
«Relativamente à matéria dos pontos 6. a 20. dos factos provados, importa laborar na prova produzida essencialmente consubstanciada nas declarações do arguido e dos menores e no depoimento das testemunhas DD, mãe dos menores e EE, actual companheira do arguido e na fotografia de fls. 16. Assim, na situação vertente, ouvidos o arguido e os menores BB e CC (à data da prestação de declarações para memória futura, respectivamente, de 9 e 6 anos de idade), os menores relatam os episódios constantes dos factos provados de uma forma que se afigura espontânea, não preparada (já que não contaram episódios sequenciais, mas sim vários episódios dispersos de que se foram recordando no decurso da inquirição) circunstanciada (tendo sido capazes de fornecer pormenores acerca das situações concretas, fornecendo pormenores dos episódios a que se reportam 11., 12., 13. a14., 15. a 17., 19. e 20. dos factos provados). No seu relato, que é fornecido por palavras diferentes, os menores são consentâneos na descrição de frequentes episódios de violência dirigidos a BB por parte do arguido, bem como nos episódios em que o arguido levantou CC pendurado pelas orelhas ou o puxou agarrando-o nas orelhas, perpassando claro dos seus relatos sentimento de medo, dor, injustiça e incompreensão (…)» - fls. 10 da sentença.
«O arguido, por seu turno, procurou direcionar as suas declarações, não para os factos, mas para alegadas incongruências do processo, tendo, após redireccionação para os factos dos autos e não sem antes referir que foi vítima de bullying psicológico e agressões físicas e que é uma coincidência muito grande os filhos terem conhecido a actual companheira e terem ocorrido as imputações, negado os factos na sua globalidade por falsos e admitindo apenas ter dado uma palmada ou outra correctiva e quando todas as outras medidas se revelaram infrutíferas. Dá a entender que a imputação de factos no presente processo deriva de uma intenção da mãe dos menores. Na sua negação dos factos, o arguido não logrou de colocar em crise aquele que se afigura ser o genuíno retrato dos factos trazido pelos menores. As suas explicações são de mera menorização dos factos e de relato de uma conduta meramente correctiva de uma ou outra palmada e colocação de castigo no quarto ou repreensão que não encontra eco nem nas declarações dos menores nem nas da sua mãe, DD, que, de uma forma pormenorizada, circunstanciada e até, apesar da sensibilidade da situação, bastante objetiva, relata episódios no decurso do casamento em que o arguido bateu no menor BB até entender, em qualquer parte do corpo do menor em que calhava acertar – nas pernas, na cabeça, por exemplo, a ponto de ela própria ter de se interpor entre o menor e o arguido para se defender, motivo aliás que terá conduzido ao divórcio entre o ex-casal. DD relata ainda um episódio ocorrido nas férias que os menores passaram com o arguido em que o menor BB atendeu o seu telefonema a chorar muito, contando que o pai lhe tinha batido, que ele tinha ido contra uma mesa, recordando ainda que o menor lhe disse que ela lhe tinha prometido que ele não voltaria a fazer, mas que tinha voltado a bater-lhe e que estava marcado. Tal episódio, a que se reportam 13. a 14. dos factos provados e em que o arguido bateu a ambos os filhos, como estes referem, mostra-se suportado na fotografia de fls. 16, que DD confirma ser o estado em que CC chegou das férias com o pai e à qual o arguido simplesmente teve a dizer nunca ter visto a foto e que os factos nunca aconteceram, não dando qualquer justificação plausível diversa do relato dos menores e da mãe destes para as marcas existentes na perna do menor» - fls. 10 e 11 da sentença. «(…) Quanto à imputada conduta sobre CC, ambos os menores se referem a o arguido ter levantado CC do chão pelas orelhas – conduta de tal sorte incomum que não se vislumbra que os menores a tenham inventado – ou se o ter puxado pelas orelhas até chegar a determinado local, sendo que o menor CC, apesar da sua tenra idade refere até que tal conduta teve lugar na presença de EE (a que o menor se refere como “madrasta”) que se riu do menor porque ele parecia um “duende” – EE, ouvida, refere que não aconteceu nada, que o arguido só segurou o CC por um braço. Ora note-se que o menor destrinça nas suas declarações, com muita segurança e clareza duas situações ocorridas no supermercado … de ..., uma em que o pai o levantou do chão pelas orelhas, que agarrou, e outra, no exterior, em que o arguido puxou o menor até ao carro pelas orelhas, sem o levantar do chão. O menor é claro e assertivo nesta destrinça, o que só lhe confere maior credibilidade. Serve a exposição supra para sustentar as razões pelas quais, na ponderação entre a versão do arguido e a dos menores, esta, suportada na medida do possível pela de DD, o Tribunal atendeu, pela sua maior circunstanciação, espontaneidade e segurança, a versão destes, com base na qual fundou a sua convicção quanto à matéria dos pontos 6. a 20. dos factos provados» - cfr. fls. 11 e 12 da sentença.
E ainda, a propósito da matéria dos pontos 21. a 26: «as declarações de CC e BB demonstram, mas também dirigidas por forma ao exercício claro e efectivo de subjugação dos menores, de exercício de poder e controlo sobre os mesmos, o que o arguido quis e alcançou, bem como quis e alcançou causar-lhes terror (o que as declarações dos menores bem reflectem), não se vislumbrando outra finalidade, nomeadamente correctiva como o arguido alega, numa actuação desta ordem de violência sobre duas crianças da idade das vítimas que contra o arguido não dispunham de qualquer possibilidade de resistência, o que este também sabia. A matéria provada reflecte o desrespeito que o arguido teve pelos seus filhos e pela relação familiar que os une – não podendo ser deixado passar sem nota, por essencial, que a postura corporal, a expressão facial e as palavras proferidas pelo arguido em sede de julgamento não revelaram qualquer empatia pelo BB e pelo CC, nem após a audição das suas declarações [ouçam-se, por exemplo, as declarações do arguido que a todo o passo se mostrou mais preocupado com a sua situação no processo e que os menores chamem de pai a outra pessoa que não ele e que verbalizou de uma forma distante que apenas deu palmadas e, se isso os melindrou, pede desculpa]» - cfr. fls. 12 e 13 da sentença.
Também não corresponde à realidade que o tribunal não tenha valorado os depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido, como resulta dos seguintes excertos da sentença recorrida:
«Nesta sede importará referir que a testemunha EE, actual companheira do arguido e namorada à data dos factos apenas teve contacto com os menores nas férias de Verão a que aludem os autos e num fim-de-semana, referindo nada ter visto de anormal no tratamento do arguido relativamente aos menores e que nunca viu o arguido bater ou puxar as orelhas aos mesmos e que ás vezes o pai tinha de chamar a atenção dos menores, mas nada mais, respondendo de uma forma muito genérica e nada esclarecendo quanto aos episódios a que os factos provados se referem, pelo que, não só o seu depoimento não é de molde a colocar em crise o relato dos menores, como não logrou de contribuir para a formação da convicção do Tribunal» - cfr. fls. 12 da sentença.
E a fls. 13: «a testemunha HH Baptista irmão do arguido, foi ouvida à matéria da personalidade do arguido, relativamente ao que expressou a sua opinião, que se afigurou sincera, e que se mostra consentânea com a imagem social correcta que os agressores de violência doméstica/ maus tratos não raras vezes projectam, e se mostra vertida no ponto 32. dos factos provados».
Importa, pois, concluir que o tribunal procedeu à análise crítica de toda a prova.
O facto de o recorrente discordar da apreciação da prova feita pelo tribunal não permite considerar verificada a nulidade da sentença, pois a discordância do recorrente relativamente à matéria de facto provada e respetiva fundamentação não se enquadra no campo dos vícios da sentença.
Para isso, disporia o recorrente de outros meios, nomeadamente a impugnação ampla da matéria de facto, o que constitui um fundamento de recurso distinto.
Improcede, pois, o recurso quanto à nulidade da sentença.
c) Erro de julgamento.
O recorrente alega que existe um erro de julgamento, porque o tribunal não apreciou outros meios de prova, nomeadamente registos médicos ou hospitalares, nem existem provas técnicas ou periciais, pelo que deixou de fora questões que poderiam ser suscitadas.
Quanto a esta matéria, como já se viu no ponto anterior, o tribunal especificou na sentença os factos que julgou provados e não provados, fundamentando a sua decisão.
Fê-lo com base na prova existente nos autos, não sem explicar que «o crime de violência doméstica bem como o crime de maus tratos apresentam, as mais das vezes a dificuldade de prova decorrente de os factos ocorrerem tendencialmente no domínio das relações privadas do agressor e da vítima, longe dos olhares de terceiros, e de, não raras vezes, pelas mais diversas razões, desde a vergonha, ao medo, ao desejo de que seja uma situação isolada e de que a relação ainda possa subsistir, a vítima não relate imediatamente os factos, não recorra a serviços hospitalares e esconda até as marcas da agressão» (cfr. fls. 8 da sentença).
Se outras questões havia que o recorrente entendia que deviam ter sido suscitadas, não se vê quais fossem, nem este as concretiza, limitando-se a discordar da fundamentação da decisão do tribunal. Por outro lado, não se vê que o arguido tenha requerido, nomeadamente em sede de contestação, outros meios de prova, cuja falta de produção fosse de censurar ao tribunal recorrido.
Por conseguinte, afigura-se que não está aqui especificado um erro de julgamento.
De qualquer forma, a impugnação da matéria de facto só pode ocorrer por duas vias: a invocação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP (revista ampliada) e a impugnação ampla a que alude o art. 412.º, n.º 3 e 4 do CCP.
No primeiro caso, estão em causa vícios patentes no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.
No segundo caso, o recurso tem por objeto a impugnação da matéria de facto, pelo que a apreciação do Tribunal de recurso versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, pois o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição de todas as gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio corretivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida.
É neste campo que podem ser sindicados os erros de julgamento como resultado de uma deficiente apreciação da prova, os quais terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
É necessário que o recorrente identifique os pontos de facto que considera mal julgados e relativamente a cada um ofereça uma proposta de correção para que o tribunal “ad quem” a possa avaliar, procedendo à correção da decisão se as provas indicadas pelo recorrente, relativamente a cada um desses factos impugnados, impuserem decisão diversa da proferida.
Como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa de 21/03/2023 (P. 324/21.3PCSNT.L1-5 em www.dgsi.pt), «o princípio da livre apreciação da prova impõe um exercício que não pode deixar de ser subjetivo, que resulta da imediação e da oralidade, cujo resultado só seria afastado se a recorrente demonstrasse que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência. «A reapreciação da prova em sede de recurso só determinará uma alteração à matéria de facto provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão».
Deste modo, como se explicita no Acórdão da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (Proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, em www.dgsi.pt) a impugnação do julgamento sobre a matéria de facto tem de obedecer aos requisitos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, que impõe o ónus de proceder a uma tripla especificação, a saber:
- a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
- a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas.
Como é bom de ver, embora o arguido expresse uma opinião divergente do tribunal, quanto à prova e à valoração por este feita, não cumpriu nenhum dos ónus previstos no art. 412.º, n.º 3 e 4 do CPP, pelo que não é admissível a reapreciação da matéria de facto.
Por outro lado, de acordo com o disposto no artº 127º, do CPP, a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador.
No caso dos autos, como resulta da fundamentação da decisão de facto, o tribunal recorrido justificou de forma detalhada, razoável e suficiente a sua convicção, lançando mão das regras de experiência comum e da normalidade das coisas, fazendo também apelo à imediação e oralidade de que só o tribunal de julgamento dispõe.
Contrariamente ao alegado pelo arguido, a apreciação do tribunal não é inverosímil, ilógica ou inconsistente, pelo que, atendendo ao princípio da livre apreciação da prova, a mesma se sobrepõe à avaliação e convicções pessoais do arguido.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
d) Violação do princípio in dubio pro reo.
O arguido veio ainda alegar que não praticou qualquer ato voluntário que configure os crimes de violência doméstica ou de maus tratos, e, para além de não os praticar, tal prática exigiria o dolo, o qual não se verifica, pelo que deve ser absolvido, com base no citado princípio, que implica a pronúncia favorável ao arguido quando não houver certeza, ou seja, perante dúvidas sobre factos decisivos para a decisão da causa.
Assim, conclui o arguido, a decisão do tribunal a quo de condenar sem mais, o arguido apenas com fundamento nas declarações para memória futura, sem fazer uma análise crítica de todas as provas e circunstâncias que envolvem este caso, compromete irremediavelmente o princípio in dubio pro reo.
Cumpre apreciar.
O princípio in dubio pro reo aplica-se em situações em que, depois de compulsada toda a prova, o Tribunal permanece com dúvidas inultrapassáveis.
Perante uma dúvida objetiva e razoável, que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infração criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32.º, n.º 1 da Constituição, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa.
Não foi isso que sucedeu no caso dos autos, pois o tribunal recorrido não teve dúvidas em dar como provados os factos pelos quais condenou o arguido, como resulta da fundamentação de facto.
Na verdade, a existência de versões contraditórias entre o arguido e os ofendidos não justifica a aplicação do princípio, pois se assim fosse apenas haveria condenações no caso de confissão do arguido, o que seria absurdo.
No caso dos autos, o tribunal justificou todos os factos que considerou provados de um modo que revela que não teve qualquer dúvida inultrapassável, não se vendo que o juízo feito mereça qualquer censura.
Quanto à afirmação do arguido de que não praticou qualquer ato voluntário que configure os crimes de violência doméstica ou de maus tratos, nem existe dolo, é uma afirmação que não tem correspondência com a matéria de facto provada e nada tem a ver com o princípio in dubio pro reo.
A alegação de que o tribunal condenou o arguido apenas com fundamento nas declarações para memória futura, sem fazer uma análise crítica de todas as provas e circunstâncias que envolvem este caso é uma repetição dos anteriores fundamentos do recurso, que também nada tem a ver com o princípio in dubio pro reo, pelo que nada existe a acrescentar ao supra decidido sobre esta matéria.
Pelo que, improcede, também nesta parte o recurso.
e) Falta de verificação dos elementos objetivo e subjetivo dos crimes pelos quais o arguido foi condenado.
O arguido alega que não cometeu os crimes de violência doméstica e maus tratos, previstos e punidos, respetivamente, pelos arts. 152.º n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a), e 152.º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, porque, como resulta das suas declarações, não praticou qualquer ato voluntário que configure os citados ilícitos, o arguido exclui a vontade e intenção na prática dos factos, tal prática exigiria o dolo e este não se verifica.
Como é bom de ver, esta parte do recurso não tem o mínimo apoio nos factos julgados provados na sentença, laborando o arguido numa versão alternativa fundada apenas nas suas declarações.
Com efeito, o tribunal recorrido considerou praticadas as condutas descritas nos pontos 6 a 20 dos factos provados, condutas que são obviamente voluntárias e dolosas, como se alcança dos pontos 21 a 26 dos factos provados.
Não é pelo facto de o arguido negar os factos que a sua versão pode substituir o julgamento do tribunal recorrido.
Com base na matéria de facto provada, é manifesta a prática dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, acompanhando-se a subsunção feita pelo tribunal recorrido, que pela sua clareza se transcreve:
«Do cotejo dos elementos dos autos e sua integração nos elementos do tipo resulta desde logo, a existência de ofensas físicas e ameaça perpetradas pelo arguido sobre a vítima BB, menor, à data dos factos com idades entre 4 e 9 anos de idade. A concreta conduta da arguido sobre a vítima BB, consubstanciada no desferimento de palmadas por todo o corpo com especial incidência na zona da cabeça, nas costas, tronco e membros e no rabo, e bofetadas na face, inúmeras vezes, com força desmedida e até que o arguido se cansasse de bater, bem como a ameaça de apertar o pescoço caso revelasse os seus segredos, são condutas intrinsecamente aptas e somente aptas, sob qualquer contexto, a afectar a integridade física e psicológica do visado. Tal estado de factos criou em BB um sentimento de medo constante e de inquietação relativamente á pessoa do arguido seu pai, pessoa que deveria ser figura securizante na vida da criança. A coberto deste exercício de força física e de ascendente psicológico sobre a vítima, seu filho, menor e de si dependente, o arguido exerceu violência física e psicológica sobre BB que, manifestamente, se encontrava em inferioridade física em relação ao arguido, homem adulto e se encontrava, em relação a ele, subjugado pelo ascendente que a sua condição de pai exercia. De notar que o arguido actuou, nomeadamente, no domicílio comum, a coberto de cuja privacidade, e sob a superioridade física e ascendente sobre a vítima, infligiu sobre a mesma as ofensas descritas, que lhe provocaram sofrimento físico e psicológico e prejudicaram o seu são desenvolvimento. Não ignorava o arguido a aptidão das suas condutas para causar as molestações físicas e o mal-estar da vítima, posto que praticou factos especial ou unicamente, aptos a esse fim, sendo indiferente às consequências dos seus actos. Visou e logrou o arguido alcançar tais ofensas à vítima, sem qualquer respeito pelos deveres gerais de urbanidade e respeito e dos especiais de protecção e respeito decorrentes da sua condição de pai da mesma. Invoca o arguido o dever de correcção como o catalisador da sua actuação, face à conduta da criança, sustentando assim a inexistência de censurabilidade da mesma. Sendo o dever de correcção aquele que impenderá sobre os progenitores no exercício das suas responsabilidades parentais perante os filhos, de “velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”, tal como previstas no art. 1878.º, n.º 1, do Código Civil. O dever de correcção pode assumir diferentes formas, consoante a situação em presença, sendo que uma conduta como o desferimento constante, reiterado e inusitado [até como reacção ao desejo do menor de falar com a mãe, ou de o menor deixar cair objectos ou bater numa mesa] de bofetadas, palmadas no corpo, cabeça, pernas e tronco não será, em abstracto, cogitável numa situação de comportamento censurável do filho, nem, sob qualquer ponto de vista, conduta adequada à cessação de um comportamento do menor e proporcional à gravidade do mesmo. Quando o arguido actua da forma descrita sobre o seu filho, não está a zelar pela sua saúde, pela sua educação ou pela segurança, antes pelo contrário, está a atentar contra todos esses valores e nada lhe está a ensinar que não a violência e a subjugação física. Responder com bofetadas e palmadas violentes numa uma criança numa situação em que a mesma pratica alguma traquinice ou quando manifesta os seus desejos de contacto com o outro progenitor [nada mais tendo resultado dos autos que a criança tenha praticado] não se integra no conceito de dever de correcção ou sequer de exercício das responsabilidades parentais, nem em abstracto, nem na situação a que se reportam os autos. As condutas do arguido inusitadas e desproporcionadas face ao comportamento da criança e à motivação desse comportamento, é tanto mais censurável quando se tenha em atenção que infligiu ofensa significativa na saúde da criança que viveu num estado constante de dor e medo. Com tais comportamentos, o arguido nada mais logrou do que molestar fisicamente o seu filho menor, que em momento algum terá tido a possibilidade de ter reagido ou logrado de fugir da agressão, tal como a dinâmica dos autos evidencia – veja-se, por exemplo o episódio a que se alude em 15. a 18. dos factos provados. O estado de sofrimento físico e psicológico da vítima BB, consequência da conduta do arguido, é de molde a afectar, como afectou, a sua dignidade como pessoa humana, sendo a censurabilidade da conduta elevada, face ao modo do seu cometimento, afectando o direito ao desenvolvimento de uma vivência tranquila e despreocupada da vítima, menor de idade, que padeceu de dores, medo, subjugação e humilhação permanentes, preenchendo o tipo legal de violência doméstica. No que tange ao elemento da imputada agravação – da prática dos factos contra menor e, nomeadamente, no domicílio comum – resultando dos factos provados que tais circunstâncias se verificaram – cfr. pontos 2., 3. a 18. dosfactos provados-, impõe-se concluir que se mostra preenchida a previsão da al. a) do n.º 2, do art. 152.º do Código Penal (…)».
Quanto ao crime de maus-tratos:
«Na situação vertente e tal como os factos provados sob pontos 14., 19. a 20., o arguido, durante as férias de Verão de ... e no momento em que o menor se encontrava ao seu cuidado por se encontrar a passar férias consigo [estando então a residência fixada junto da mãe – cfr. ponto 4. dos factos provados] em resposta a o menor CC ter ido contra uma mesa, desferiu-lhe uma palmada de tal forma forte que lhe causou uma nódoa negra numa perna e, por duas ocasiões no mesmo dia, puxou violentamente o menor pelas orelhas, numa ocasião içando-o do chão dessa forma e, noutra, arrastando-o através da rua até ao carro. Note-se que a conduta do arguido não se traduziu numa qualquer palmada ou num mero “puxão de orelhas” correctivos, mas sim numa pancada que produziu uma nódoa negra na perna do menor e num levantar da criança, do chão, em peso, pelas orelhas, parte especialmente sensível do corpo e, momentos após esta primeira actuação, estando a criança obvia e naturalmente ainda dorida, voltando a agarrar nas orelhas da mesma arrastando-a por essa parte do corpo por uma distância relevante. Mais uma vez e, desta feita na pessoa do seu filho CC, o arguido exerceu a plena e bruta força física, desproporcionada, inábil a qualquer outro resultado que não a dor e o medo, perante uma conduta da criança de se afastar do progenitor. Não se entende o porquê da violência da palmada na sequência de o menor ter ido contra uma mesa e por muito assustado que o arguido pudesse ter ficado com a “fuga” de CC da sua imediação [o que aliás nem sequer resulta ter acontecido no caso], a reação do arguido de içar e arrastar o menor pelas orelhas é reveladora de pura violência, traduzindo-se num comportamento de agressividade sem qualquer reflexo de esforço positivo revelados pelo carinho, afago, compreensão e afectividade que a criança carece. O arguido, também neste caso, invoca o dever de correcção, mas também neste caso resulta à saciedade a desproporção da força utilizada, a inabilidade da conduta a corrigir ou a ensinar e a sua única aptidão de ofensa à integridade física e, consequentemente, psicológica da criança. Com efeito tais comportamentos, o arguido, que tinha o menor ao seu cuidado, nada mais logrou do que molestar fisicamente o seu filho de seis anos de idade, CC, que em momento se encontrar a passar férias consigo [estando então a residência fixada junto da mãe – cfr. ponto 4. dos factos provados] em resposta a o menor CC ter ido contra uma mesa, desferiu-lhe uma palmada de tal forma forte que lhe causou uma nódoa negra numa perna e, por duas ocasiões no mesmo dia, puxou violentamente o menor pelas orelhas, numa ocasião içando-o do chão dessa forma e, noutra, arrastando-o através da rua até ao carro. Note-se que a conduta do arguido não se traduziu numa qualquer palmada ou num mero “puxão de orelhas” correctivos, mas sim numa pancada que produziu uma nódoa negra na perna do menor e num levantar da criança, do chão, em peso, pelas orelhas, parte especialmente sensível do corpo e, momentos após esta primeira actuação, estando a criança obvia e naturalmente ainda dorida, voltando a agarrar nas orelhas da mesma arrastando-a por essa parte do corpo por uma distância relevante. Mais uma vez e, desta feita na pessoa do seu filho CC, o arguido exerceu a plena e bruta força física, desproporcionada, inábil a qualquer outro resultado que não a dor e o medo, perante uma conduta da criança de se afastar do progenitor. Não se entende o porquê da violência da palmada na sequência de o menor ter ido contra uma mesa e por muito assustado que o arguido pudesse ter ficado com a “fuga” de CC da sua imediação [o que aliás nem sequer resulta ter acontecido no caso], a reação do arguido de içar e arrastar o menor pelas orelhas é reveladora de pura violência, traduzindo-se num comportamento de agressividade sem qualquer reflexo de esforço positivo revelados pelo carinho, afago, compreensão e afectividade que a criança carece. O arguido, também neste caso, invoca o dever de correcção, mas também neste caso resulta à saciedade a desproporção da força utilizada, a inabilidade da conduta a corrigir ou a ensinar e a sua única aptidão de ofensa à integridade física e, consequentemente, psicológica da criança. Com efeito tais comportamentos, o arguido, que tinha o menor ao seu cuidado, nada mais logrou do que molestar fisicamente o seu filho de seis anos de idade, CC, que em momento algum terá tido a possibilidade de ter reagido ou logrado de fugir da agressão, tal como evidencia a dinâmica dos factos constantes dos pontos 14., 19. e 20. dos factos provados. O estado de sofrimento físico e psicológico da vítima CC, consequência da conduta do arguido, é de molde a afectar, como afectou, a sua dignidade como pessoa humana, sendo a censurabilidade da conduta elevada, face ao modo do seu cometimento, afectando o direito ao desenvolvimento de uma vivência tranquila e despreocupada da vítima, menor de idade, que padeceu de dores, medo, subjugação e humilhação, preenchendo o tipo legal de maus tratos, atenta a ausência, à data dos factos, de coabitação».
Pelo exposto, o recurso improcede na íntegra.
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O arguido, na motivação do recurso, alegou que não se compreendia a medida da pena fixada e que as especiais circunstâncias dos factos mereciam uma análise mais cuidadosa e que se refletisse na aplicação de uma pena menor.
No entanto, o arguido não extraiu desta alegação qualquer conclusão no recurso.
Assim, porque o objeto do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada, podendo as conclusões restringir o âmbito da motivação, nada existe a apreciar ou decidir quanto à medida da pena.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso totalmente improcedente.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 4 UC a respetiva taxa de justiça.
Lisboa, 06/02/2025
Rui Poças
Ana Cristina Cardoso
Ester Pacheco dos Santos