CONTRA-ORDENAÇÃO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CARTA DE CONDUÇÃO CADUCADA
Sumário

Pratica uma contraordenação, e não um crime de condução sem habilitação legal, quem conduzir veículo a motor, na via pública, com uma carta de condução caducada, por ter sido condenado, durante o regime probatório, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo abreviado, que corre termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Sintra – Juiz 1, foi proferida decisão, datada de 25.09.2024, nos termos da qual foi decidido:
i. Absolver o arguido AA da prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. nos termos do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01.
ii. Condenar o arguido AA pela prática de uma contraordenação, pp. nos termos do disposto no artigo 130.º, n.ºs 1 e 7 todos do Código da Estrada, na pena coima de €150,00 (cento e cinquenta euros).
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Inconformado com esta decisão, veio o Ministério Público recorrer, apresentado motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“A . O Ministério Público discorda da qualificação jurídica efetuada pelo Tribunal recorrido quanto aos factos dados como provados, dado os mesmos integrarem a prática do crime de condução sem habilitação legal, impondo-se, dessa forma, a condenação do arguido pelo mesmo e não a sua absolvição.
2. A leitura do atual n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada terá de levar em consideração o histórico do preceito, que sempre distinguiu a caducidade decorrente da não revalidação do título de condução da caducidade decorrente da cassação ou do cometimento de crimes de natureza rodoviária ou de contra-ordenações graves ou muito graves durante o regime probatório.
3. A interpretação levada a cabo pelo Tribunal [de aplicação do disposto no artigo 130.º n.º 7 às situações da al. c) do n.º 1], origina a que se penalize do mesmo modo uma pessoa que deixou passar o prazo para revalidar a sua carta de condução porque, por exemplo, atingiu a idade limite de 60 anos e uma pessoa que, pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves ou de crimes de natureza estradal, viu a sua carta de condução ser cassada ou caducar por se encontrar durante o regime probatório, por se ter revelado inapta para o exercício da condução.
4. O que viola expressamente o princípio da igualdade, consagrado artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.»
5. A interpretação da douta sentença revela-se também incongruente com as demais normas do Código da Estrada e do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir relativas à revalidação de título caducado pelo decurso do tempo e à obtenção de título de condução, nas situações de cassação ou de cometimento de infrações durante o regime probatório, que preveem um tratamento diferenciado para uma e outras situações.
6. Nas situações de revalidação, a lei não exige a submissão do seu titular às mesmas provas a que se submeteu de início quando lhe foi concedido pela primeira vez o título de condução, sendo-lhe impostas provas acrescidas à medida que o tempo vai passando até proceder à revalidação.
7. Nas situações de caducidade decorrente da cassação ou da prática de infrações durante o período probatório, a lei impõe que tenham de se submeter a prova teórica e a prova prática, tal como o fizeram aquando da obtenção inicial do seu título de condução, como também de frequentar, com aproveitamento, de curso específico de formação, conforme resulta do art.º 37º, nº 1, al. b) do ....
8. Assim, para a obtenção de novo título, exige-se-lhes a realização de um procedimento a mais do que aqueles a que se sujeitaram de início aquando da obtenção do título entretanto caducado.
9. Logo, não poderá considerar-se que o exercício da condução por titular de carta caducada por cassação ou pela prática de infrações durante o período probatório consubstancia somente uma contra-ordenação e não o crime de condução sem habilitação legal, pois tal conduziria a uma solução incongruente com as demais normas do Código da Estrada e do ....
10. Pelo que, nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art.º 130º do CE, tem-se a carta de condução por definitivamente caducada, motivo pelo qual, o arguido à data dos factos tinha a carta de condução ... caducada desde o dia ...-...-2023 e à data da audiência de discussão e julgamento já era titular de nova carta de condução, ..., emitida em ...-...-2024.
11. O que significa que «não se trata de revalidação do anterior título, mas da obtenção de um novo título, sinal de que a caducidade do anterior título é definitiva.»
12. Logo, quando alguém conduz com carta caducada, nos termos das alíneas. c) e d) do nº 1, do artigo 130.º do Código da Estrada, consubstancia uma hipótese legal do n.º 5, desse artigo.
13. E se assim não fosse, na senda do entendimento da douta sentença, que ora se recorre, no limite, o infrator, nessas circunstâncias, com título caducado, poderia não ter interesse em renová-lo e preferir arriscar o exercício da condução se esta apenas se consubstanciar numa infração contraordenacional apenas sancionada com coima.
14. Pelo que, em face das razões expostas, entendemos que a conduta do arguido dada como provada na sentença recorrida integra a prática do crime de condução sem habilitação legal, pelo que deveria o arguido ter sido condenado pelo mesmo.
15. No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-03-2024 (processo n.º 243/23.9GEALM.L1-9), de Guimarães de 05-12-2022 (processo n.º 87/21.2GBVVD.G1) e de Évora de 13-09-2022 (processo n.º Cfr. acórdão citado. 20/22.4GDPTM.E1), ainda que estes dois últimos a respeito da caducidade decorrente de cassação.
16. Deste modo, impõe-se a revogação da sentença recorrido, devendo arguido AA ser condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser a Sentença recorrida revogada, devendo arguido AA ser condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O arguido não respondeu ao recurso.
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Remetido o processo a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer (transcrição):
“Prende-se a discordância que funda o recurso interposto com a qualificação jurídica dos factos provados, por se entender que a factualidade assente integra a prática de crime de condução sem habilitação legal, pugnando o Ministério Público no sentido da revogação da sentença recorrida e da condenação do arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
À luz dos fundamentos vertidos na motivação de recurso apresentada, na qual com pertinência, correção jurídica e clareza de exposição foram extraídas as conclusões ali insertas e para as quais por uma questão de economia processual se remete, acompanho a motivação do recurso interposto pela Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, nos precisos termos em que vem formulada.
Em sintonia com o teor das considerações que se mostram em tal âmbito enunciadas, e ante a abrangência do ali vertido, nada nos resta acrescentar à correcta e bem sustentada argumentação expendida em sede recursiva, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objecto do recurso em análise diz respeito, apenas se referenciando, em reforço, o sentido do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2023, Proc.1098/21.3GCALM.L1-5: “(…) IV- Nos casos de cassação do título de condução ou de condenação definitiva de condutor em regime de prova por crime ou infrações estradais no exercício da condução, deixou de existir título, considerando-se os respetivos condutores, como previsto no nº 5 do artigo 130º do Código da Estrada como não habilitados a conduzir; aquele que conduzir nestas condições, verificados os demais factos integradores do respetivo tipo legal, comete o crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01.”.
Pelo exposto, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso apresentado pela Digna Procuradora da República recorrente.”.
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Notificado o arguido do parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, nada foi dito.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:
Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise importa determinar se a conduta do aguido integra a prática do crime de condução sem habilitação ou uma contraordenação como entendeu a 1.ª Instância.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da sentença proferida (transcrição parcial):
“II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.1 Matéria de facto provada
Discutida a causa e produzida a prova, com interesse para a decisão da causa, resultam provados os seguintes factos:
Da contra-ordenação
1. No dia ... de ... de 2024, pelas 03h25, o Arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-IV-.., na ..., sem que possuísse carta de condução ou outro documento que legalmente o habilitasse a fazê-lo.
2. O Arguido quis e conseguiu conduzir o veículo automóvel, bem sabendo não ser possuidor de título que a tal o habilitasse.
3. O Arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se apurou
4. O Arguido é titular de carta de condução ..., que se encontra caducada desde ........2023, por ter sido condenado por sentença transitada em julgado durante o regime probatório.
5. O Arguido é atualmente detentor de carta de condução, emitida a ........2024, ...
Das condições sócio-económicas do Arguido
6. O Arguido trabalha no ....
7. O Arguido aufere €820,00, acrescidos de €150 de subsidio de alimentação.
8. Reside com a mãe, em casa arrendada.
9. A renda da casa é de €320,00.
10. O Arguido não tem filhos.
11. O Arguido estudou até ao 12.º ano de escolaridade.
12. Encontra-se a pagar empréstimo, procedendo ao pagamento de €60,00 de prestação mensal.
13. Do Certificado do Registo Criminal do Arguido consta:
(1)- Uma condenação no processo 1284/22.9POLSB, por sentença proferida a 15.12.2022 e transitada em julgado 27.01.2023, por factos praticados a 12.08.1999, tendo sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 65 dias de multa, à taxa diária de €8,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses e 15 dias. Ambas as penas foram já declaradas extintas.
II.2. Matéria de facto não provada
Com interesse para a decisão da causa não ficaram por provar quaisquer factos.
(…)
III. O DIREITO
1. Da contra-ordenação
De facto, e no que ao caso releva, estabelece o artigo 130.º do Código da Estrada que:
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no ..., quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
e) O condutor falecer.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) [Revogada.]
b) [Revogada.]
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:
a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;
b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
6 - [Revogado.]
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Da articulação das normas constantes nos artigos 1, 3, 5 e 7, e no que respeita aos títulos de condução caducados por condenação no período probatório, afere-se que o título de condução se considera caducado, nos termos do n.º 1, alínea c).
O mesmo título pode ser revalidado, mediante a sujeição a exame especial, nos termos do disposto no n.º 2 e 4, alínea a).
Mais se afere que a consequência da condução com o título caducado, neste caso por prática de crime durante o período probatório, é a prevista no n.º 7 do mesmo artigo.
Entende o Tribunal que esta conclusão não se cinge ao elemento literal, contribuindo o elemento histórico para tal interpretação.
Vejamos:
A versão anterior2 do artigo 130.º do Código da Estrada,
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Ora, comparando os dois regimes, verificamos que inexiste agora a distinção anterior entre cancelamento e caducidade do título de condução.
Ademais, verificamos que os diferentes tipos de caducidade têm efeitos diversos, na medida em que apenas nos casos previstos no n.º 3 -c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido; d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado- o titular da carta caducada não pode revalidar o título.
Assim, neste novo n.º 3, e ao contrário do que anteriormente sucedia, (alínea a), não consta o caso da caducidade por prática de crime durante o período probatório, que antes era entendido como caso de cancelamento.
De facto, não se verifica uma total correspondência entre as situações anteriormente tipificadas como implicando o cancelamento do título de condução, e as que atualmente determinam a sua caducidade nos termos do n.º 3, designadamente no concernente à caducidade do título durante o período probatório, que, na nova redação, transitou para o n.º 1, e foi revogada a alínea a) do n.º 3.
Esta revogação tem, necessariamente, de ser entendida como a vontade do legislador em distinguir o caso de caducidade durante o período probatório (anteriormente na alínea a), dos atuais casos previstos nas alíneas c) e d), estando, agora, prevista a possibilidade de revalidação do título, nos termos do n.º 4), alínea a).
Assim, da articulação destes n.ºs 1, 3, 5 e 7, na atual redação do artigo 130.º, resulta ter o legislador quis punir a condução com título caducado (nomeadamente as situações previstas no n.º 2 e 4) como mero ilícito contraordenacional, na media em que tais condutores já anteriormente se submeteram a exames escritos e práticos, alcançando a respetiva aprovação, que lhes permitiu obter um título de condução, e podem revalidar o título, sujeitando-se a um exame especial.
Inexistem, pois, dúvidas de que a conduta do Arguido é, agora, qualificada como contra-ordenação.
Assim, face à descrição efetuada na acusação e à prova produzida, entende o Tribunal que se devem qualificar os factos como integrantes da contra-ordenação prevista e punida nos termos do disposto no artigo 130.º, n.ºs 1 e 7, do Código da Estrada e não o crime de condução sem habilitação legal.
Inexistem, pois, dúvidas de que a conduta do Arguido é, agora, qualificada como contra-ordenação.
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IV. Do Mérito do Recurso
Comete um crime de condução sem habilitação legal, pp. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 2/98 de 03/01, “1 - quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias” e, nos termos do n.º 2 da mesma norma, “se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”
No que respeita ao tipo objetivo, o crime em causa pressupõe que o agente se encontre a conduzir veículo a motor numa via pública, ou equiparada, sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada.
Por sua vez, o artigo 121.º, n.º 1 do Código da Estrada refere que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”.
E é o artigo 125.º do Código da Estrada, na redação introduzida pelo DL 46/2022, de 12.07, que esclarece que a carta de condução é um dos títulos habilitantes para a condução.
No entanto, o artigo 130.º do Código da Estrada determina:
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no ..., quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
e) O condutor falecer.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) [Revogada.]
b) [Revogada.]
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:
a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;
b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
6 - [Revogado.]
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Defende o Ministério Público que a decisão recorrida deve ser revogada, por entender que a situação em apreço integra a prática de um crime de condução sem habilitação legal.
Está assente que, no dia ... de ... de 2024, pelas 03h25, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-IV-.., na .... O arguido era titular de carta de condução …, que se encontrava caducada desde ........2023, por ter sido condenado por sentença transitada em julgado durante o regime probatório.
O n.º 5 do transcrito artigo 130.º declara que os titulares de título de condução caducado consideram-se não habilitados a conduzir, pois não têm, naquele momento, título válido para o efeito. Entendemos, no entanto, que a consequência para a condução nestas situações está prevista no n.º 7 do mesmo artigo 130.º, ou seja, o cometimento de uma contraordenação, punida com coima entre € 120,00 e € 600,00. Este entendimento é o que decorre da letra da lei e, é consabido, que não deve o julgador distinguir situações que a lei não distingue.
Como se escreve no Ac. STJ de 04.10.20073o teor verbal da lei é o limite, dentro do fim ou ratio que subjaz àquela e do sistema em que se insere, que não pode ser ultrapassado pelo intérprete, ou para usarmos a linguagem imaginosa de ANDRADE (ob. cit. p. 64), «Só até onde chegue a tolerância do texto e a elasticidade do sistema é que o intérprete se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido mais justo e apropriado às exigências da vida».
De resto, o art. 9.º do Código Civil (CC) dispõe deste modo:
«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
«2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. (…)»
Diferente é esta situação daquela em que a lei não prevê nem provê à situação carecida de disciplina jurídica, porque aí falta de todo a norma que deveria presidir à regulamentação da situação.
Neste caso, fala-se em lacuna, que não pode ser preenchida por qualquer interpretação extensiva, dado que o legislador não disse minus quam voluit; simplesmente não disse nada”.
(…) No domínio penal, está excluído o recurso à analogia. Por um lado, o direito penal não contém lacunas, devido às suas características de subsidariedade e de fragmentariedade, que levam a que só sejam puníveis os factos que foram eleitos, segundo uma prévia valoração axiológico-social, como capazes de representarem um especial tipo de ilicitude. De outro ângulo, o princípio da legalidade, exigindo a determinação, com o máximo de objectividade, de todas as componentes do facto que é objecto da incriminação, impõe que o tipo legal não possa conter zonas lacunosas ou vazias, que possam vir a ser integradas pelo recurso à solução conferida a casos análogos”.
Assim, tendo em consideração que o n.º 7 do citado artigo 130.º remete para as diversas alíneas do n.º 1, não fazendo qualquer distinção entre as diversas formas de caducidade ali previstas, cremos que a única leitura que deve ser feita é que a condução com um título caducado por o seu titular ter sido condenado, durante o regime probatório, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução ou de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave, integra a prática de uma contraordenação.
Não ignoramos a existência de jurisprudência que, à luz da atual redação do artigo 130.º do Código da Estrada, defende que o n.º 7 deste artigo nos remete para os casos de caducidade em que ainda é possível renovar a carta de condução e que o n.º 5 prevê a cominação como crime para os casos para os casos de caducidade definitiva.
Ora, na concreta situação dos autos, temos de ter em consideração que o legislador permite que o título caducado por o seu titular ter sido condenado, durante o regime probatório, possa ser revalidado, o que efetivamente ocorreu na situação concreta em análise, e só quando o titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas de exame especial a que foi submetido é que o título de condução caducado não pode ser renovado – cf. n.º 3 do artigo 130.º. O mesmo é dizer que na concreta situação do autos ainda não tinha ocorrido uma caducidade definitiva e, portanto, sempre a conduta do arguido seria punida nos termos do n.º 7, ou seja, como contraordenação.
Também consideramos ser importante frisar que a condução por quem já prestou provas e foi habilitado para o fazer não tem a mesma gravidade de quem conduz e nunca esteve habilitado para o efeito. Por isso, é coerente e lógico que os primeiros sejam punidos por contraordenação e os segundos pela prática de um crime de condução sem habilitação legal. O mesmo é dizer que não há violação do princípio da igualdade, pois temos duas situações distintas tratadas de forma distinta.
Concordamos com a argumentação expendida pelo tribunal a quo quando consignou:
Entende o Tribunal que esta conclusão não se cinge ao elemento literal, contribuindo o elemento histórico para tal interpretação.
Vejamos:
A versão anterior do artigo 130.º do Código da Estrada,
“1 - O título de condução caduca se:
2 Anterior à entrada em vigor da redação dada pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09/12.
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Ora, comparando os dois regimes, verificamos que inexiste agora a distinção anterior entre cancelamento e caducidade do título de condução.
Ademais, verificamos que os diferentes tipos de caducidade têm efeitos diversos, na medida em que apenas nos casos previstos no n.º 3 -c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido; d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado- o titular da carta caducada não pode revalidar o título.
Assim, neste novo n.º 3, e ao contrário do que anteriormente sucedia, (alínea a), não consta o caso da caducidade por prática de crime durante o período probatório, que antes era entendido como caso de cancelamento.
De facto, não se verifica uma total correspondência entre as situações anteriormente tipificadas como implicando o cancelamento do título de condução, e as que atualmente determinam a sua caducidade nos termos do n.º 3, designadamente no concernente à caducidade do título durante o período probatório, que, na nova redação, transitou para o n.º 1, e foi revogada a alínea a) do n.º 3.
Esta revogação tem, necessariamente, de ser entendida como a vontade do legislador em distinguir o caso de caducidade durante o período probatório (anteriormente na alínea a), dos atuais casos previstos nas alíneas c) e d), estando, agora, prevista a possibilidade de revalidação do titulo, nos termos do n.º 4), alínea a).
Assim, da articulação destes n.ºs 1, 3, 5 e 7, na atual redação do artigo 130.º, resulta que o legislador quis punir a condução com título caducado (nomeadamente as situações previstas no n.º 2 e 4) como mero ilícito contraordenacional, na medida em que tais condutores já anteriormente se submeteram a exames escritos e práticos, alcançando a respetiva aprovação, que lhes permitiu obter um título de condução, e podem revalidar o título, sujeitando-se a um exame especial”.
Neste conspecto, improcede o recurso apresentado.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
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Sem custas
Notifique.

Lisboa, 6 de fevereiro de 2025
Ana Lúcia Gordinho
Sandra Oliveira Pinto
Ester Pacheco dos Santos
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1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Anterior à entrada em vigor da redação dada pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09/12.
3. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3f3fae12a87ab8da80257378002edd76?OpenDocument