RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PODERES DE COGNIÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
HOMICÍDIO
LEGÍTIMA DEFESA
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
ANIMUS DEFENDENDI
FURTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
INDEFERIMENTO
ANIMUS DEFENDI
Sumário


I - Não estado em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso direto de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância, mas antes recurso de decisão confirmatória in mellius da Relação relativa a pena superior a 8 anos de prisão – a pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão passou para 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses, tal decisão é recorrível para o STJ, nos termos dos artigos 400.º, n.º1, alínea f), a contrario, e 432.º, n.º1, alínea b), do CPP.
II - De acordo com o artigo 434.º, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pois o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).
III - Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito.
IV - Só é admissível exercer legítima defesa contra agressões atuais e a agressão será atual quando é iminente, já se iniciou ou ainda persiste, pois a defesa só pode legitimar-se antes de ter terminado a agressão, ou seja, enquanto há possibilidade de se repelir a ofensa.
V - A legítima defesa pode lesar bens jurídicos de valor superior aos que assegura, mas não pode haver uma desproporção qualitativa entre esses bens, traduzindo-se num abuso de direito por notoriamente excessiva e desproporcionada face aos bens agredidos.

Texto Integral

RECURSO n.º 430/22.7JASTB.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 430/22.7JASTB, do Juízo Central Criminal de Almada- Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi julgado e condenado o arguido AA, com os restantes sinais dos autos, pela prática, como autor material, de um crime de homicídio, previsto e punido, pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2. Inconformado com a decisão condenatória, o mencionado arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 10.07.2024, decidiu:

«Face ao exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e decide-se:

1.Condenar o arguido AA, pela prática, como autor material, de crime de homicídio simples, previsto e punido, pelo artigo 131.º do Código Penal na pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão revogando-se a pena aplicada ao arguido no acórdão da 1 ª instância.

2. Em tudo o mais confirmar o acórdão recorrido. negar provimento ao recurso e, consequentemente, manter o acórdão recorrido.»

3. O arguido interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem [constata-se que, na enumeração das conclusões, o recorrente passa da conclusão O) para as conclusões N), O), P), P), o que resulta seguramente de lapso de escrita que lhe passou inadvertido]:

A) O arguido AA foi condenado em primeira instância pela prática de 1 (um) crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal na pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão de prisão.

B) Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, foi este julgado parcialmente procedente e, na sequência, decidiu condenar o arguido AA, pela prática, como autor material, de crime de homicídio simples, previsto e punido, pelo artigo 131º do Código Penal na pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão revogando-se a pena aplicada ao arguido no acórdão da 1 ª instância.

C) Na matéria de facto dada como provada é notório o erro na apreciação da prova

D)Tal resulta, desde logo, no facto dado como provado no ponto 9, pois o Tribunal Recorrido limitou-se a referir que “BB voltou-se para trás, para ver quem o interpelava, após o que se virou, novamente, para a frente, tendo acelerado o passo, procurando abandonar o local, quando, na verdade, procurou fugir de forma a fazer seus os objectos que tinha acabado de roubar.

E) O Tribunal “a quo” fez tábua rasa do depoimento do inspector CC quando o mesmo afirmou que o arguido não teve intenção de matar o ladrão e referiu que, na casa do arguido estava uma empresa de segurança a montar um sistema de alarme.

F) Se o arguido estava nervoso, como se deu como provado, estava inquieto, não agiu da forma mais racional, foi porque a vítima o impediu de o fazer. Nenhum ser humano fica calmo e tranquilo a agir da forma mais coerente perante uma situação como a dos autos, em que o arguido é surpreendido durante a noite com um assalto à sua residência.

G) O Tribunal “ a quo” quer a todo o custo dizer que o arguido escondeu o pau, quando o relatório da Policia Judiciária refere a fls. 75 “Quanto ao objecto utilizado, referiu que antes da chegada da GNR, o tinha colocado no interior do quintal e mais tarde, atirou para a parte de cima de um dos anexos, existente nas traseiras da casa, deslocando-se de seguida ao local, mostrando a sua localização exata aos inspetores.”

H) Considerou-se, ainda provado que o arguido sofre de “A Síndrome de Apneia Obstrutiva de Sono (SAOS) foi verificada no exame polissonográfico realizado, sendo avaliada como de intensidade moderada. Trata-se de uma perturbação caraterizada por episódios de apneia ou hipopneia durante o sono, resultantes de obstrução das vias áreas superiores, que podem resultar em microdespertares e sono pouco reparador. Pode resultar em sonolência diurnal e fadiga, que, por sua vez, podem resultar em alguma lentificação psicomotora e alterações em provas cognitivas que exijam sustentação da atenção ou processamento rápido da informação”.

I) No entanto, tal facto não foi valorado na medida da pena e na desculpabilização da actuação do arguido.

J) Em face do princípio da livre apreciação da prova o juiz é livre de relevar ou não os elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação

L) Os limites a essa liberdade de valoração da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, a máxima da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.

M) É notório que o arguido tentou interromper a actividade de furto/roubo que estava a desenvolver-se, o que conseguiu.

N) Nos termos do artigo 32.º do Código Penal, constitui legitima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

O) Assim, e em conformidade, com esta linha de raciocínio estamos perante um acto de legitima defesa, Ainda que excessiva devido ao estado de nervos em que o arguido se encontrava e , por isso, deverá o recorrente ser isento de punição.

N) Posto isto, analisando os factos provados, à luz do que se deixa salientado, sem dúvida "que se apresentam comprovados todos os elementos objectivos e subjectivos integrantes de um crime de homicídio simples previsto pelo artigo 131 do Código Penal, mas também que: a) havia, por parte da vitima uma agressão actual, ou seja, um desenvolvimento, iminente, aos interesses patrimoniais do arguido e ilícita, por o seu autor não ter o direito de a fazer, b) houve, por parte do arguido, com a prática dos factos provados, agressão a vida da vitima, em defesa do bem acima referido, como meio necessário, na impossibilidade, manifesta, de recorrer a força pública, para repelir ou paralisar a actuação do autor do furto, actual e, ilícita, como acima ficou indicado; c) agiu o arguido com o propósito de defesa, "animus deffendendi". d) Porém, com uso de meio excessivo, injustificável, irracional, para se defender, através de meio letal.

O) Só que o excesso do meio usado pelo arguido ficou a dever-se, como resulta da matéria de facto apurada, ao “contexto factual e de emoção psíquica de tensão, ansiedade e de nervosismo, para a qual a conduta do ofendido contribui de forma relevante”.

P) Daí que haja que considerar o aludido excesso como asténico e não censurável, por falta de culpa, com a consequente não punição do arguido, uma vez que sem culpa não há punição criminal, de acordo com o n.º 2 do artigo 33º do Código Penal.

P) À cautela de patrocínio, considera-se que a pena aplicada será Proporcional e adequada, por forma a alcançar a justa punição do arguido e a realizar as exigências de prevenção geral e especial, se fixada na pena única 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, tal como proposto no relatório social junto aos autos

Q) O arguido considera justo e equitativo a pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, caso não seja absolvido, por satisfazer as necessidades de punição e de prevenção geral e especial do tipo de ilícito em causa.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito,

Deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser o arguido absolvido!

Subsidiariamente, caso o restante pedido seja julgado improcedente, requer-se a fixação da pena em 4 anos de prisão, suspensa na sua execução.

4. O Ministério Público, junto da Relação, na resposta ao recurso, pronunciou-se no sentido de ser o recurso intempestivo e que, assim não se considerando, dever ser o mesmo julgado improcedente.

5. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer em que concluiu não merecer o recurso provimento.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, as questões que o recorrente suscita são as seguintes:

1 – Vício do erro notório na apreciação da prova;

2 – Legítima defesa e excesso de legítima defesa;

3 - Medida concreta da pena, que o arguido-recorrente considera excessiva.

2. Do acórdão recorrido

2.1. Foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

«1. O arguidoDD residia, com a sua mulher, EE, e a filha mais nova do casal, FF, na moradia, sita na Rua ..., sua propriedade, situada em zona residencial.

2. A habitação é uma moradia térrea com quintal e vários anexos nas traseiras.

3. No dia 30.10.2022, cerca das 06:30 horas, desconhecidos acederam ao quintal da residência do arguido com o intuito de se apoderarem e fazerem seus os objetos que dali conseguissem retirar, o que fizeram, tendo subtraído, entre outros, uma gaiola com um periquito, uma escada de alumínio, quatro facas de pesca e um rádio, objetos de valor não apurado.

4. Nesse mesmo dia, o arguido formalizou queixa-crime contra desconhecidos, junto do Posto Territorial da GNR da..., à qual foi atribuído o NUIPC 1100/22.1...

5. Na sequência, o arguido ficou nervoso e apreensivo, por sentir que estava em situação de perigo, não só em relação à sua própria pessoa, como da sua família e dos seus bens, pelo que teve dificuldade em adormecer e acordava ao menor ruído.

6. No dia 31.10.2022, cerca das 05h00, estando alerta relativamente ao furto à sua residência ocorrido na noite anterior, o arguido, ao ouvir o seu cão ladrar, resolveu levantar-se e apurar o que se passava.

7. O arguido dirigiu-se à porta de entrada da habitação, a qual abriu para aceder ao quintal, e, nessa altura, viu BB passar em frente à sua residência, já na via pública, procurando abandonar o local e levando consigo duas frigideiras e um rádio, de valor não apurado, mas certamente inferior a €100,00, objetos que identificou como sendo seus e acreditou terem sido subtraídos do interior do seu quintal.

8. Por forma a interpelar tal indivíduo, o arguido muniu-se de um pau de eucalipto, com cerca de 1 metro e 48 cm de comprimento, que tinha no seu quintal, e dirigiu-se à via pública, onde abordou BB, que circulava à sua frente, de costas para si, questionando-o “já andas aqui outra vez?” e “espera aí!”.

9. BB voltou-se para trás, para ver quem o interpelava, após o que se virou, novamente, para a frente, tendo acelerado o passo, procurando abandonar o local.

10. Na ocasião, BB não se fazia acompanhar de qualquer arma ou objeto que lhe permitisse defender.

11. Não satisfeito com essa atitude, o arguido foi no encalço de BB e, usando o pau de eucalipto de que previamente se havia munido, desferiu, com ele e num movimento lateral direito, de cima para baixo, uma forte pancada na cabeça de BB, tendo este caído desamparado no chão, desfalecido.

12. O arguido regressou à sua habitação e solicitou à sua mulher que pedisse socorro, tendo esta ligado para o 112, relatando o sucedido.

13. Após, na tentativa de ocultar a sua atuação, arremessou o pau de eucalipto, que havia usado para atingir BB, para o telhado de um dos anexos existente nas traseiras do quintal da sua residência, com cerca de 1,90 m de altura.

14. Na sequência, compareceu no local, além da GNR, uma ambulância que transportou BB ao Hospital ....

15. O óbito de BB foi declarado pelas 08:30 horas, desse mesmo dia ........2022.

16. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu, além do mais, traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento, hemorragia no tronco cerebral, com hematoma subdural agudo, sendo que, no local onde a pancada foi desferida, apresentava ferida de natureza contusa com afundamento ao toque/fratura no crânio.

17. O arguido sabia que a cabeça é uma zona sensível do corpo humano, que aloja órgãos vitais, como é o cérebro, sabendo que uma pancada na cabeça é suscetível de provocar a morte de um ser humano, factos que o arguido bem conhecia e que não o inibiram de agir do modo descrito.

18. Não obstante tal conhecimento, perante a fuga de BB, o arguido usou o pau de eucalipto de que previamente se havia munido, para lhe desferir uma forte pancada na cabeça, como fez, afundando-lhe o crânio, em consequência do que BB veio a falecer, poucas horas depois.

19. O arguido tinha conhecimento que, ao desferir tal pancada na cabeça de BB, onde se encontram alojados órgãos vitais, lhe causaria lesões adequadas a provocar-lhe a morte, como aconteceu, resultado que conhecia, aceitou e alcançou, não obstante saber que aquele apenas pretendia abandonar o local, fugindo de qualquer confronto físico.

20. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas empreendidas não lhe eram permitidas e eram punidas por lei.

21. À data dos factos, o arguido apresentava o diagnóstico Insónia Crónica (multifatorial).

22. Insónia Crónica é um diagnóstico genérico que inclui casos de dificuldades em iniciar ou manter sono com sensação subjetiva de sono pouco reparador, podendo resultar em queixas cognitivas semelhantes às descritas no ponto 5 para a SAOS. No caso concreto do Examinando, existe evidência polissonográfica de presença de perturbação do sono de longa data – apresentando alterações da arquitetura do sono compatíveis com uma insónia multifatorial, para a qual contribuem atualmente a SAOS (principal contributo), a perturbação de ajustamento, bem como a própria cronicidade do sono pouco reparador. É uma perturbação anterior aos factos, cuja data de início é também impossível de determinar.

23. Apresentava, ainda, o diagnóstico de Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono.

24. A Síndrome de Apneia Obstrutiva de Sono (SAOS) foi verificada no exame polissonográfico realizado, sendo avaliada como de intensidade moderada. Trata-se de uma perturbação caraterizada por episódios de apneia ou hipopneia durante o sono, resultantes de obstrução das vias áreas superiores, que podem resultar em microdespertares e sono pouco reparador. Pode resultar em sonolência diurnal e fadiga, que, por sua vez, podem resultar em alguma lentificação psicomotora e alterações em provas cognitivas que exijam sustentação da atenção ou processamento rápido da informação.

25. No caso do Examinando, a SAOS é de intensidade moderada. Verificam-se vários microdespertares ao longo da noite, com movimentos dos membros. Esta perturbação é, no caso do Examinando, o principal contributo para a sua sensação de sonolência ao despertar e ao longo do dia. Ainda que não seja possível precisar a data de início da perturbação, o que também se verifica na vasta maioria dos casos deste diagnóstico, esta é anterior aos factos, estando presentes sintomas da mesma há várias décadas, o que também é compatível com o nível moderado atual, sendo a perturbação de evolução habitualmente muito lenta.

26. Atualmente, tem ainda o diagnóstico de Perturbação de Ajustamento.

27. A Perturbação de Ajustamento é uma resposta psicológica a um stressor identificável, considerada desadaptativa ou excessiva. Tem início após, no máximo, 3 meses do evento, com sintomas desproporcionais à natureza do stressor, podendo classificar-se em depressiva, de ansiedade, da conduta ou mista, conforme o tipo de sintomas predominantes. Ainda que dependa de fatores individuais (história biográfica, temperamento, capacidade de coping), presume-se que sem o evento externo não teria tido lugar. Geralmente é uma perturbação de intensidade ligeira a moderada e duração curta, não superior a seis meses após remoção do stressor, podendo, no entanto, ser persistente caso se mantenha a situação que lhe deu origem.

28. No caso concreto do Examinando, a Perturbação de Ajustamento manifesta-se por sintomas depressivos reativos aos factos em avaliação, sendo uma perturbação posterior aos factos, pelo que não estava presente no momento dos mesmos.

29. O arguido nasceu em ..., localidade na qual residiu até aos 29 anos. O seu crescimento decorreu no contexto do agregado familiar nuclear, sendo o quarto elemento de uma fratria de seis. Começou a realizar trabalho aos 6 anos, a cuidar dos animais que os pais tinham, e a escola que viria a abandonar aos 12 anos, tendo concluído o primeiro ciclo. Após a saída da escola, o arguido ajudou os pais na agricultura, e aos 16 anos começou, paralelamente, a trabalhar na construção civil para poder ajudar a família. Aos 18 anos iniciou o cumprimento do serviço militar obrigatório, tendo assentado praça em .... Na deslocação para o quartel sofreu acidente grave de viação, do qual terá tido sequelas neurológicas cuja gravidade ou impacto não nos foi possível avaliar. Aos 22 anos, após ter concluído a sua formação militar, regressa a casa e volta a trabalhar na construção civil.

30. Com 27 anos, e após 7 anos de namoro, o arguido casou com EE, tendo o casal morado 2 anos em ... e, posteriormente, fixado residência em ..., mantendo ambos trabalhos regulares, o arguido na área da construção civil, em funções de motorista, a mulher como operária em fábrica de confeções. Da relação nasceram as duas filhas do casal, GG, atualmente, com 32 anos, e FF, com 23 anos.

31. Entre 2010 e 2013, na sequência de crise imobiliária, o arguido esteve desempregado, dado que a empresa para a qual trabalhava encerrou. Beneficiou de subsídio de desemprego e concluiu o 2º ciclo de escolaridade.

32. Em 2013, o arguido conseguiu colocação laboral em empresa de transportes na área da distribuição alimentar, na qual ainda se mantém.

33. À data dos factos, o arguido trabalhava como motorista de distribuição e recebia o salário mínimo acrescido do valor de horas extraordinárias. A mulher trabalhava como auxiliar de ação educativa em Agrupamento de Escolas do concelho da ... auferindo, também do salário mínimo nacional. A filha mais nova trabalhava na cozinha de restaurante em Lisboa auferindo de valores similares, contudo, estaria de baixa médica na sequência de acidente em serviço. Pagam cerca de 500 euros de prestação bancária pela aquisição da habitação. Beneficiavam de situação económica estável e suficiente para as necessidades.

34. A dinâmica relacional era estruturada, sendo a ligação entre os elementos próxima em termos afetivos, estando a vivenciar o luto da sogra do arguido com quem coabitaram durante cerca de 18 anos, e de quem Carlos Costa seria próximo.

35. As rotinas do arguido seriam divididas entre o trabalho e as vivências familiares, não existindo relato de outras convivências sociais frequentes ou qualquer comportamento aditivo.

36. O arguido, em abstrato, e ao nível do discurso mostrou plena consciência da gravidade do ocorrido, tendo sido inteligível a presença, neste, de valores morais e princípios normativos de conduta, pese embora, dentro de um esquema mental rígido.

37. Na sequência destes factos, o arguido está sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação sujeita a meios de controlo à distância (vigilância eletrónica) desde 02/11/2022.

38. O arguido encontra-se medicado e beneficia de apoio psicoterapêutico regular. Apesar deste suporte especializado, o arguido sente momentos de angústia e sofrimento.

39. Na comunidade onde reside e no local de trabalho, o arguido é visto como pessoa honesta, bom pai de família e bom trabalhador.

40. O arguido não tem antecedentes criminais».

2.2. Foi dada como não provada a seguinte factualidade (transcrição):

«Da audiência de discussão e julgamento, não resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

a. O arguido sofre, em regra, de inércia de sono, conseguindo ter plena consciência ao fim de quinze minutos a meia hora, após acordar.

b. A inércia de sono é uma condição natural do ser humano, podendo ser mais evidente em determinados indivíduos e caracteriza-se por acordar e ter uma lentidão, uma demora para ficar desperto ou produtivo.

c. É um período temporário de sonolência e a pessoa pode estar até no seu melhor, ter dormido bem.

d. A inércia do sono consiste num estado fisiológico de comprometimento do desempenho cognitivo, que ocorre imediatamente após o despertar.

e. A inércia do sono persiste durante a transição do sono para a vigília e ocorre por quinze a trinta minutos após esse despertar, mas pode levar até algumas horas para se dissipar completamente.

f. Então, o indivíduo pode experimentar sensações de sonolência e desorientação.

*

A restante matéria alegada não foi considerada provada ou não provada, por estar em contradição, não ter relevância ou interesse para a decisão da causa ou consubstanciar matéria de direito ou matéria conclusiva. Não foi, igualmente, considerada provada ou não provada, a matéria que, embora com redação diversa por utilização de outra linguagem, repete factualidade».

2.3. Na fundamentação da decisão de facto do acórdão da 1.ª instância consta o seguinte (transcrição parcial):

«(…)

Considerando os pressupostos supra enunciados e tendo presente as regras da experiência comum, para formação da sua livre convicção (cfr. artigo 127º do mesmo diploma), o Tribunal analisou e examinou a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente as declarações tomadas ao arguido, em sede de primeiro interrogatório judicial realizado a 02.11.2022 (auto de fls. 131 a 145, gravadas em suporte técnico junto a fls. 146), uma vez que, em audiência de julgamento, este declarou exercer o direito ao silêncio, conjugadas com os depoimentos das testemunhas inquiridas, nesta sede, e com a extensa prova documental junta aos autos, concretamente a comunicação de notícia de crime elaborada no Serviço de Piquete do DIC ..., da PJ (fls. 2 e 3), o auto de notícia e aditamento, que deu origem ao NUIPC 1103/22.6..., elaborado no Posto ..., da GNR (fls. 18 a 27 do Apenso 1103/22.6...); a ficha de identificação civil da vítima BB (fls. 37 e 38) e as fichas de identificação civil, policial e prisional do arguido (fls. 33 a 64); o auto de diligência relativo à deslocação à morgue do Hospital ..., para onde a vítima foi transportada, tendo sido realizada inspeção ao hábito externo do cadáver, com especial relevância para as fotografias, que documentam o estado em que a vítima ficou em consequência das lesões que lhe foram infligidas, e para as conclusões dele constantes (fls. 65 a 70); registo telefónico, e respetiva transcrição, do pedido de socorro efetuado para o “Centro Operacional 112” (fls. 71 a 74); o auto de diligência relativo à deslocação à residência do arguido AA e à busca domiciliária, por este autorizada/consentida, realizada à respetiva habitação (fls. 75 e 76); o auto de busca e apreensão relativo à busca domiciliária realizada à residência do arguido (fls. 77 e 78); auto de diligência (fls. 201 a 202); relatório de urgência referente à vítima BB (fls. 224 a 227) e boletim de informação clínica (fls. 257 a 259); certificado de óbito (fls. 264). Considerou-se, igualmente, a informação clínica do arguido, junta a fls. 422, as fotografias de fls. 310 e ss., o relatório social elaborado pela DGRSP (fls. 460 a 462) e certificado de registo criminal do arguido que antecede.

Atendeu-se, ainda, ao teor dos relatórios periciais, estes apreciados à luz do previsto no nº 1 do artigo 163º do Código de Processo Penal, nomeadamente o relatório de exame pericial realizado ao local do crime, com especial relevo para as fotografias dele constantes, principalmente da arma do crime (fls. 80 a 91); o relatório de exame pericial (fls. 184 a 192), com recolha de vestígios hemáticos numa toalha e reportagem fotográfica; o relatório de exame pericial (fls. 246 a 248), relativo aos vestígios hemáticos existentes no “pau de madeira”, pedidos e quesitos a fls. 218 a 221; o relatório de exame (fls. 281 e 281v.), relativo a análises efetuadas a amostras de sangue da vítima; o relatório de autópsia (fls. 284 a 286); o relatório de exame médico legal de psiquiatria (fls. 502 a 504v.).

Concatenando todos os elementos probatórios supra elencados, não subsistem dúvidas sobre as circunstâncias em como ocorreram os factos. Concretizando.

A factualidade vertida como provada em 1 e 2 decorre das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos das testemunhas EE e FF, respetivamente, mulher e filha do arguido, bem assim do Inspetor da Polícia Judiciária HH, que se deslocou à residência do arguido e elaborou auto de busca domiciliária aí realizada, conforme consta de fls. 77 e 78, tendo aí consignado a descrição da moradia onde reside o agregado familiar do arguido.

Os factos provados 3 a 7 resultam da conjugação das declarações prestadas pelo arguido com os depoimentos prestados quer pelas testemunhas EE e FF, quer pela testemunha II, militar da GNR no Posto ..., complementado pelo teor do auto de notícia e aditamento de fls. 18 a 27 do Apenso 1103/22.6...

Relativamente à dinâmica dos factos, o arguido afirmou que, pelas 5h, ao ouvir o seu cão ladrar, dirigiu-se à porta e viu um indivíduo a levar as suas coisas, concretamente um rádio e duas frigideiras, o que o deixou desorientado, além de se encontrar ensonado, por não ter conseguido dormir na sequência do assalto ocorrido da noite anterior. Referiu que, como só queria reaver as suas coisas, por não saber se o indivíduo estava armado, levou consigo um pau para o assustar e ele nunca mais lá voltar ao seu quintal. Descreveu o pau como sendo uma estaca, que punha no diospiro para não cair.

O arguido relatou então que, como queria parar o indivíduo, disse-lhe “já andas aqui outra vez?”, mas ele continuou, foi atrás dele e dizendo-lhe “espera aí!”, tendo ele começado a andar mais depressa, após o que, sem perceber onde lhe ia acertar, deu-lhe com o pau na cabeça sem querer, nunca pensou aleijar o indivíduo. Afirmou que não queria matar o indivíduo, queria que lhe devolvesse as coisas que levava.

Referiu que o indivíduo não teve qualquer atitude ameaçadora, mas queria fugir. Mencionou que só conhecia o indivíduo de vista, embora nunca tivesse falado com este.

Do auto de inspeção ao hábito externo do cadáver, por referência às fotografias, que documentam o estado em que BB ficou em consequência das lesões que lhe foram infligidas, e das conclusões dele constantes (fls. 65 a 70 e fls. 201 a 202), bem assim dos esclarecimentos prestados pela testemunha HH, Inspetor da Polícia Judiciária, resulta que o ferimento responsável pelo traumatismo crânio-encefálico, que provocou a morte da vítima, considerando a gravidade e a profundidade que acarretou, localizava-se na região frontoparietal e, dada a morfologia, teve necessariamente de ser produzido com um instrumento contundente, num movimento lateral direito, de cima para baixo.

Outrossim, deste auto de inspeção conclui-se que a morfologia dos restantes ferimentos observados na vítima, sendo de menor gravidade, em particular ao nível da face, coadunam-se com a queda no asfalto, local onde foi encontrada prostrada, na posição de decúbito ventral. Igualmente, os ferimentos observados no dorso dos dedos, atenta a ausência de ferimentos nas palmas das mãos e quase ausência nos joelhos, extrai-se que a vítima caiu no asfalto desamparada e inerte, sendo notório que não esboçou qualquer gesto, com as respetivas consequências físicas, ao nível das palmas das mãos e joelhos, tão vulgares nas quedas frontais, quando o indivíduo se encontra consciente e age por reflexo para amparar a queda. Tão-pouco foi observada qualquer outra lesão com características defensivas, ou seja, a vítima terá sido surpreendida pelo arguido, encontrando-se desprevenida aquando da pancada desferida por este.

Do relatório de exame pericial realizado ao local do crime, com especial relevo para as fotografias dele constantes (fls. 80 a 91), principalmente da arma do crime (fls. 89), resulta que o arguido desferiu a pancada com o pau de eucalipto com cerca de 1 metro e 48 cm de comprimento.

Desta realidade global emerge, por si só, considerando a direção em que o arguido movimentou este pau, a forma como o posicionou e a zona da cabeça em que atingiu o ofendido, bem assim conjugado com as restantes feridas que este sofreu apenas na face e no dorso dos dedos, na sequência da queda no asfalto, local onde foi encontrada prostrada, na posição de decúbito ventral (e face à ausência de ferimentos nas palmas das mãos e quase ausência nos joelhos), que o arguido seguiu no encalço de BB, que circulava à frente daquele, de costas para si, procurando abandonar o local. Tais circunstâncias foram admitidas pelo próprio arguido, ao afirmar que o indivíduo não teve qualquer atitude ameaçadora, querendo apenas fugir.

Por sua vez, do teor do relatório de autópsia, constante de fls. 284 a 286, retira-se que:

“1. Em face dos dados necrópsicos, da informação circunstancial e do resultado dos exames toxicológicos, a morte de BB foi devido às lesões traumáticas crânio-encefálicas.

2. Esta é causa de morte violenta.

3. Tais lesões denotam ter sido produzidas por ação de natureza contundente, sendo compatíveis com agressão com pau de madeira, conforme consta da documentação clínica e informação prestada pela polícia judiciária. (…)”.

Torna-se, assim, evidente a violência da atuação do arguido, que desferiu uma forte pancada na cabeça de BB, sendo tanto mais potenciada pelo movimento de cima para baixo executado, quando se constata ter sido atingida uma zona reveladora de especial risco para a esfera do destinatário, por acondicionar órgãos vitais e ser fortemente irrigada em vasos sanguíneos, provocando pois risco de maior sangramento e, nessa medida, suscetível de provocar a morte de um ser humano, tal como sucedeu, porquanto a vítima desfaleceu de imediato.

Assim, concatenando os relatórios de inspeção judiciária de fls. 65 a 70 e fls. 201 a 202, nos termos supra expostos, com os esclarecimentos prestados pelos Inspetores da PJ, as testemunhas HH e JJ, por referência aos relatórios de exame pericial ao local do crime de fls. 80 a 91 e aos vestígios hemáticos existentes no “pau de madeira”, bem assim com o teor das declarações prestadas pelo arguido, conclui-se, sem qualquer sombra de dúvida, muito menos razoável, que deve julgar-se como plenamente demonstrada a realidade factual descrita como provada de 8 a 11.

A factualidade assente em 12 resultou do registo telefónico do pedido de socorro efetuado pela testemunha EE para o “...” e respetiva transcrição (“andavam aqui uns ladrões”, “[es]tão dois homens aqui deitados” “porque o meu marido bateu-lhe com um pau”.), constante de fls. 71 a 74, conjugado com o depoimento desta em audiência de julgamento, que confirmou ter visto o seu marido com o pau na mão, circunstância que foi, igualmente, mencionada pela testemunha FF.

Relativamente às circunstâncias descritas no facto provado 13, as declarações tomadas ao arguido revelaram-se, neste particular, incongruentes e inconsistentes, ao afirmar que, quando regressou a sua casa, atirou o pau com que atingiu a vítima para dentro do seu quintal, alegando ser o local onde costuma colocar vários paus e varas que usa na jardinagem.

Neste contexto ainda, o arguido afirmou ter referido ao militar da GNR, que primeiro se deslocou ao local naquela madrugada, que bateu na vítima com um soco na cabeça, tendo apenas em momento posterior, perante a informação da morte do indivíduo com um instrumento contundente, admitido ao Inspetor da PJ que não desferira um soco e indicado a localização do pau com que desferira a pancada (fls. 89).

As declarações assim tomadas ao arguido foram confirmadas, nesta parte, pelas testemunhas II, militar da GNR, e HH, Inspetor da PJ, que elaborou o auto de inspeção judiciária de fls. 75 e 76 e o auto de busca e apreensão relativo à busca domiciliária realizada à residência do arguido (fls. 77 e 78).

Conjugados os depoimentos dos Inspetores da PJ, HH e KK, resulta que o pau de madeira com vestígios biológicos/hemáticos encontrava-se no telhado de um dos anexos da habitação do arguido (cfr. fls. 80 a 91), aproximadamente a dois metros do solo, onde eram visíveis vários outros objetos (fls. 89).

Concatenando este acervo probatório, resulta que, entre o momento em que o arguido regressou a casa com o pau, que havia usado para atingir BB, e a chegada das autoridades ao local, deslocou-se às traseiras do quintal da sua residência e arremessou-o para um dos telhados dos anexos ali existentes (cfr. fls. 80 a 91), o que não se coaduna com a conduta por si descrita.

Acresce que só em momento posterior e quando confrontado com a morte da vítima com o uso de um instrumento contundente, admitiu a globalidade dos factos tal-qualmente por si praticados.

Perante este enquadramento fáctico, não pode deixar de se concluir, por ter mais sustentação probatória e razoabilidade da realidade, que o arguido arremessou o pau de eucalipto, que havia usado para atingir BB, para o telhado de um dos anexos existente nas traseiras do quintal da sua residência, cerca de 1,90 m de altura, na tentativa de ocultar a sua atuação.

O facto provado 14 decorre das declarações tomadas ao arguido e do depoimento das testemunhas II e KK, ambos militares da GNR, tendo desde logo o estado da vítima sido considerado grave no local da ocorrência, carecendo de ser ventilado mecanicamente pela VMER e assim transportado e admitido na unidade hospitalar.

Os factos provados 15 e 16 resultam da conjugação do teor do relatório de urgência de fls. 224 a 227, do boletim de informação clínica de fls. 257 a 259 e do certificado de óbito de fls. 264.

No que respeita à convicção acerca da atitude interna do arguido, importa apreciar e analisar a ação objetivamente praticada pelo arguido considerada provada, que permite, segundo as máximas da experiência comum, esclarecer a subjetividade da sua ação e revelar a verdadeira vontade.

Desde logo, não se suscitam dúvidas de que o arguido sabia que a cabeça é uma zona sensível do corpo humano, que aloja órgãos vitais, como o cérebro, sendo tal circunstância do saber da generalidade dos cidadãos, pelo que sabia igualmente que uma pancada na cabeça é suscetível de provocar a morte de um ser humano, factos que, contudo, não o inibiram de agir do modo descrito.

Com efeito, não obstante tal conhecimento, objetivamente, o arguido desferiu num movimento lateral direito, de cima para baixo, uma pancada na cabeça da vítima, usando para tanto um pau de eucalipto, com 1 metro e 48 cm de comprimento. Como consta das conclusões da inspeção ao hábito externo do cadáver, por referência às fotografias, que documentam o estado em que a vítima ficou em consequência das lesões que lhe foram infligidas, o ferimento responsável pelo traumatismo cranioencefálico, que provocou a morte da vítima, considerando a gravidade e a profundidade dos danos físicos que acarretou, localizava-se na região frontoparietal e, dada a morfologia, teve necessariamente de ser produzido com um instrumento contundente, num movimento lateral direito, de cima para baixo.

Face à direção em que movimentou o pau, à forma como o posicionou e ao local que atingiu o ofendido, na cabeça, região que aloja órgãos essenciais à vida, conclui-se que o arguido tinha conhecimento que, ao desferir tal pancada na cabeça de BB, causaria as lesões adequadas a provocar-lhe a morte, como aconteceu, resultado que conhecia, aceitou e alcançou.

Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu, além do mais, traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento, hemorragia no tronco cerebral, com hematoma subdural agudo, sendo que, no local onde a pancada foi desferida, apresentava ferida de natureza contusa com afundamento ao toque/fratura no crânio, em resultado que faleceu pelas 08:30 horas, desse mesmo dia 31.10.2022.

O arguido defendeu-se alegando que não estava em si quando agiu, encontrava-se desorientado e ensonado, por não ter conseguido dormir durante essa noite, por causa do assalto ocorrido na noite anterior ao seu quintal.

Dos factos provados decorre que, no dia 30.10.2022, cerca das 06:30 horas, desconhecidos acederam ao quintal da residência do arguido e subtraíram, entre outros, uma gaiola com um periquito, uma escada de alumínio, quatro facas de pesca e um rádio, objetos de valor não apurado, na sequência do que, logo nesse dia, o arguido formalizou queixa-crime contra desconhecidos, junto do Posto Territorial da GNR da..., à qual foi atribuído o NUIPC 1100/22.1...

Não se suscitam dúvidas que o arguido estava nervoso e apreensivo, na sequência do que ficou alerta relativamente ao furto ao quintal da sua residência ocorrido na noite anterior, tal como admitido pelo próprio e referido quer pela sua mulher e também pela sua filha, que com ele ali habitam. Neste particular, a testemunha II, militar da GNR, afirmou ter observado, quando se deslocou ao quintal daquela residência, a montagem de um mecanismo feito com fios de pesca e latas. Também as testemunhas HH e JJ relataram que presenciaram, na manhã do dia seguinte, a instalação de um alarme por uma empresa de segurança.

Ficou igualmente provado, tal-qualmente decorre do teor do relatório de exame médico-legal de psiquiatria, junto a fls. 502 a 504v., que, à data dos factos, o arguido apresentava diagnóstico de Insónia Crónica (multifatorial) e de Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono, sendo esta de intensidade moderada, apresentando ademais atualmente o diagnóstico de Perturbação de Ajustamento – factos provados 23 a 30.

A Insónia Crónica é um diagnóstico genérico que inclui casos de dificuldades em iniciar ou manter sono com sensação subjetiva de sono pouco reparador, podendo resultar em queixas cognitivas semelhantes às descritas no ponto 5 para a SAOS. No caso concreto do arguido, existe evidência polissonográfica de presença de perturbação do sono de longa data – apresentando alterações da arquitetura do sono compatíveis com uma insónia multifatorial, para a qual contribuem atualmente a SAOS (principal contributo), a perturbação de ajustamento, bem como a própria cronicidade do sono pouco reparador.

Por sua vez, a Síndrome de Apneia Obstrutiva de Sono (SAOS) foi verificada no exame polissonográfico realizado, sendo avaliada como de intensidade moderada. Trata-se de uma perturbação caraterizada por episódios de apneia ou hipopneia durante o sono, resultantes de obstrução das vias áreas superiores, que podem resultar em microdespertares e sono pouco reparador. Pode resultar em sonolência diurnal e fadiga, que, por sua vez, podem resultar em alguma lentificação psicomotora e alterações em provas cognitivas que exijam sustentação da atenção ou processamento rápido da informação. Esta perturbação é, no caso do arguido, o principal contributo para a sua sensação de sonolência ao despertar e ao longo do dia.

Neste contexto, tal como mencionado no relatório pericial de psiquiatria junto a fls. 502 e ss., “a SAOS e a Insónia Crónica, podem resultar em dificuldades cognitivas relacionadas com a sonolência. No entanto, estas dificuldades são relacionadas com a sustentação da atenção e com a velocidade de processamento e não resultam em défice na capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos genericamente. Ainda que se pudesse admitir que, em casos mais graves que o do Examinando, pudessem resultar num atraso nessa capacidade, a mesma apenas seria afetada por breves segundos e a descrição dos factos revela que desde o despertar até aos factos decorreu um período muito superior àquele em que esta capacidade estaria afetada.

11. Efetivamente, o Examinando terá despertado com o ladrar do cão, foi capaz de processar o mesmo para se questionar sobre qual seria a origem, deslocando-se à janela, vendo um vulto, deslocando-se até ao exterior, pegando no ramo e acabando por agredir o outro indivíduo. Ora todos estes “passos” demonstram capacidade de raciocínio mantida, bem como capacidade motora.

12. Assim, não só a natureza e intensidade das perturbações detetadas não é compatível com uma incapacidade para avaliar a ilicitude dos seus atos ou para se determinar de acordo com essa avaliação, como a natureza dos próprios factos demonstra que as capacidades cognitivas e volitivas estavam mantidas.

13. Acresce que nenhuma das perturbações detetadas configura o conceito de anomalia psíquica grave, pelo que ainda que no abstrato se pudesse considerar uma diminuição daquelas capacidades (o que não é o caso concreto), não configuraria os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 20º do Código Penal.

14. Pelo exposto, não estão presentes os pressupostos médico-legais de inimputabilidade.”

Assim, conclui-se que não há qualquer elemento suscetível de colocar em causa a capacidade do arguido para, no momento dos factos, ter capacidade de avaliar a ilicitude do seu comportamento e se adequar ao mesmo.

O arguido sabia que, ao munir-se de um pau, que colocara estrategicamente, em momento anterior e local de fácil acesso, e desferir uma pancada na cabeça de BB, que seguia à sua frente e de costas para si, num movimento lateral direito, de cima para baixo, causaria lesões adequadas a provocar-lhe a morte, como aconteceu ao sofrer afundamento ao toque / fratura do crânio, na sequência do que faleceu poucas horas depois.

Tal como supra ficou exposto, o arguido estava alerta relativamente ao furto ao quintal da sua residência ocorrido na noite anterior, o que o deixou desorientado e enervado, mas daqui não se vislumbra nem uma situação de anomalia psíquica, nem uma situação de perturbação psíquica que colocasse em crise a sua capacidade para saber o que estava a fazer e se determinar de acordo com tal.

Na verdade, logo na porta de entrada da sua habitação, o arguido viu BB passar no exterior do seu quintal, em plena via pública, e decidiu a seguir no encalço deste, pois queria reaver as suas coisas. Neste momento inicial, por não saber se BB estava armado, o arguido decidiu levar consigo o pau, que colocara anteriormente em local de fácil acesso, para o assustar e nunca mais lá voltar ao seu quintal.

De seguida, indo no seu encalço, o arguido interpelou sucessivamente BB, questionando-o primeiramente “se já andava ali outra vez” e, como este continuou a avançar, foi atrás dele, dizendo-lhe ainda “espere aí!”, mas este ainda acelerou mais o passo. Neste momento, torna-se evidente que o arguido se apercebeu que BB não trazia consigo qualquer arma ou objeto que lhe permitisse defender, que, aliás, evitava o confronto físico e procurava abandonar o local.

Neste contexto, após interpelar por duas vezes BB, que continuava a avançar na via pública, levando consigo as duas frigideiras e um rádio, o arguido fez uso do pau que se munira previamente e deferiu uma pancada, num movimento lateral direito, de cima para baixo, na direção da sua cabeça.

Neste momento, a finalidade da perseguição movida pelo arguido a BB modificou-se irremediavelmente.

Se num momento inicial, o arguido foi no encalço de BB para reaver as suas coisas, levando consigo um pau para o assustar e ele nunca mais lá voltar ao seu quintal; em momento subsequente, não satisfeito com a atitude de BB, que abandonava o local, levando consigo as duas frigideiras e um rádio, o arguido desferiu uma violenta e forte pancada na direção da cabeça daquele, tendo este caído desamparado no chão, desfalecido.

Ora, a intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, resulta de factos objetivos que a indiciem; tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, que deriva de factos dos quais se infira.

Dos comportamentos assumidos pelo arguido não resulta a adotação de qualquer atitude defensiva da sua parte, antes decorre que o arguido queria parar e deter BB de modo a confrontá-lo, reaver as suas coisas e obstar a que voltasse ao seu quintal. Certo é que o arguido agiu numa situação em que, desde a véspera, se vinha sentindo nervoso e apreensivo, em situação de perigo, não só em relação à sua própria pessoa, como da sua família e dos seus bens (facto provado 5), mas essa situação exterior não o impedia de compreender o que estava a fazer e de se determinar em conformidade, tanto mais que mencionou conhecer BB de vista, embora nunca tivesse falado com este.

Assim, conclui-se, sem qualquer sombra de dúvida, muito menos razoável, que se deve julgar como plenamente demonstrada que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, na concretização do mencionado propósito de atingir BB, com um pau na cabeça, admitindo a possibilidade de lhe tirar a vida e aceitando-a, mediante o recurso a força física, não obstante saber que aquele apenas pretendia abandonar o local, fugindo.

Os factos provados 31 e 41 resultaram da descrição da vivência do arguido, considerando o relatório social elaborado pela DGRSP e a informação clínica do arguido, junta a fls. 422, bem assim os depoimentos das testemunhas LL, MM, NN, OO Ferreira dos Santos Portela Saramago e PP, que foram inquiridas sobre a forma de ser daquele.

A ausência de antecedentes criminais resulta do teor do certificado de registo criminal juntos aos autos (facto provado 42).

Finalmente, quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provadas as circunstâncias que nessa qualidade se descreveram, resultando expressamente da discussão constante do relatório de exame médico legal de psiquiatria (fls. 502 a 504v.), que: “o conceito de “inércia do sono” não está validado cientificamente com certeza suficiente para ser incluído nas classificações oficiais de doenças, não tendo, por isso, também validade suficiente para ser utilizado no contexto forense. No entanto, a descrição subjetiva realizada deste síndrome poderá corresponder a um sintoma associado a determinadas perturbações do sono, nomeadamente a perturbações do sono REM (que não se verificaram) e epilepsia (que também não se verificou). Assim, a sensação subjetiva de dificuldade no despertar corresponde no caso concreto do Examinando a sonolência resultante das perturbações definidas anteriormente, não constituindo uma perturbação primária grave.»

*

3. Apreciando

Nota prévia:

Não se suscitam quaisquer questões sobre a tempestividade do recurso, pois mostra-se paga a multa processual devida pela prática do acto no 2.º dia útil subsequente ao termo do prazo legalmente previsto para o efeito, nos termos do disposto no artigo 107.º-A, alínea b), do CPP.

3.1. Da cognoscibilidade por este STJ das questões relativas à decisão de facto

3.1.1 Estabelece o artigo 400.º, n.º1, alíneas e) e f), do CPP:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…).»

O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.

Por sua vez, dispõe o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».

Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, preceitua que «O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redação dada pela Lei n.º 94/2021.

Da conjugação destas disposições resulta, numa formulação sintética, que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:

- penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme;

- penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.

Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico (cf., entre muitos arestos que estão disponíveis para consulta, os acórdãos do STJ: de 11.03.2021, Proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; 12.01.2022, Proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; 20.10.2022, Proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; 30.11.2022, Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

No caso em apreço, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso direto de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância, mas antes recurso de decisão confirmatória in mellius da Relação relativa a pena superior a 8 anos de prisão – a pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão passou para 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses, pelo que tal decisão é recorrível para o STJ, nos termos dos artigos 400.º, n.º1, alínea f), a contrario, e 432.º, n.º1, alínea b), do CPP.

De acordo com o supra transcrito artigo 434.º, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pois o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).

Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito (entre muitos, o acórdão de 08.11.2023, Proc. n.º 808/21.3PCOER.L1.S1).

3.1.2. O recorrente retoma no presente recurso as mesmas questões anteriormente colocadas no recurso interposto para a Relação de Lisboa.

Na conclusão C), o recorrente diz ser notório o erro na apreciação da prova, alegando, em suma, para esse efeito, nas conclusões seguintes: que o tribunal “a quo” “fez tábua rasa do depoimento do inspetor CC quando o mesmo afirmou que o arguido não teve intenção de matar o ladrão e referiu que, na casa do arguido, estava uma empresa de segurança a montar um sistema de alarme”; se o arguido estava nervoso, estava inquieto, não agiu da forma mais racional, porque a vítima o impediu de o fazer; o tribunal “ a quo” quer a todo o custo dizer que o arguido escondeu o pau, quando o relatório da Policia Judiciária refere, quanto ao objecto utilizado, que o arguido referiu “que antes da chegada da GNR, o tinha colocado no interior do quintal e mais tarde, atirou para a parte de cima de um dos anexos, existente nas traseiras da casa, deslocando-se de seguida ao local, mostrando a sua localização exata aos inspetores.”

A primeira observação que se impõe é a de que, conforme já se disse supra e é incontroverso na jurisprudência deste tribunal, o recorrente não pode alicerçar o seu recurso para o STJ na invocação de vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP.

Por conseguinte, as questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido relativas à decisão da matéria de facto excedem os poderes de cognição do Supremo, que das mesmas não pode conhecer.

No entanto, no exercício da eventual deteção oficiosa de vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não deixou de se proceder a leitura atenta de todo o acórdão da Relação, incluindo a parte da decisão em que se conheceu do recurso da matéria de facto, sendo tal decisão destituída de quaisquer vícios - o que se consigna.

A segunda observação é a de que, mesmo no pressuposto de que o recorrente pudesse – e não pode – firmar o seu recurso na invocação do vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, al. c), do CPP, tal vício teria de ser evidenciado pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo. Não serve o vício do erro notório para sindicar a apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

No caso em apreço, o recorrente invoca o teor do depoimento do inspetor CC e do relatório da Policia Judiciária, o que significa que pretende extrair o vício invocado da valoração das provas, como já antes fez no recurso interposto para a Relação.

O acórdão recorrido concluiu que a decisão da 1.ª instância “não padece do vício de erro notório na apreciação da prova nem de qualquer um dos demais previstos nas diversas alíneas do art.º 410.º, n.º2, do CPP” e, analisando a fundamentação da decisão de facto e verificando “que o resumo da prova aí realizado está de acordo com a prova produzida”, manteve a decisão de facto tal como foi fixada pela 1.ª instância.

Como já se disse, os poderes de cognição do STJ encontram-se circunscritos ao conhecimento da matéria de direito, pelo que a matéria de facto confirmada pelo acórdão encontra-se definitivamente estabilizada.

3.2. Do enquadramento jurídico-penal

3.2.1. Alega o recorrente ter agido em legítima defesa, com excesso não censurável e, por isso, não punível.

3.2.1.1. A legítima defesa, como causa de justificação, constitui o exercício de um direito: o direito de legítima defesa que tem, entre nós, assento na Constituição da República (artigo 21.º), no Código Civil (artigos 337.º e 338.º), estando previsto, para efeitos penais, nos artigos 31.º, n.º2, alínea a) e 32.º, do Código Penal (diploma que passaremos a designar por CP).

De harmonia com o disposto no artigo 32.º do CP:

«Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.»

O artigo 33.º, sobre “excesso de legítima defesa”, por sua vez, dispõe:

«1 - Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.

2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.»

Antes de mais, o exercício do direito de legítima defesa supõe a existência de uma agressão por parte de alguém, entendendo-se por agressão todo e qualquer comportamento humano (ação ou omissão, ainda que se discuta se cabe legítima defesa apenas relativamente a omissões impróprias ou impuras, ou se também cabe contra omissões próprias ou puras) que represente uma ameaça para interesses do defendente ou de terceiro protegidos pela ordem jurídica na sua totalidade (e não só necessariamente da ordem jurídico-penal), devendo a agressão ser atual - isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente - e ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável (cf. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado – 18.ª edição/2007, p. 167), só evitável ou neutralizável através de uma ação ou ato de defesa, ato que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios suficientes para evitá-la ou neutralizá-la.

Como se disse, só é admissível exercer legítima defesa contra agressões atuais. A agressão será atual quando é iminente, já se iniciou ou ainda persiste, pois a defesa só pode legitimar-se antes de ter terminado a agressão, ou seja, enquanto há possibilidade de se repelir a ofensa.

A determinação dos critérios para afirmar que uma agressão já é atual ou ainda é atual constitui matéria problemática, sendo decisiva a situação objetiva e não o que seja representado pelo agredido ((cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 411).

Questiona-se, pois, o início da atualidade da agressão e o fim da atualidade da agressão, pois a legítima defesa encontra-se delimitada por uma janela (início e termo) temporal.

A agressão é iminente quando o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado, o que é exemplificado por Figueiredo Dias (ob. cit., p. 411) com a paradigmática situação de quem dispara quando o agressor leva a mão ao bolso para sacar do revólver com o qual pretendia atirar sobre o defendente. Segundo o referido autor, mesmo que nesta situação não pudesse, porventura, falar-se ainda de tentativa [o que, adiantamos, pode ser objeto de discussão, pois pode entender-se existir, nesse caso, um ato de execução da tentativa de homicídio, de acordo com o artigo 22.º, n.º2, al. c)], não deverá ser negado a quem disparou o direito de impedir por legítima defesa uma agressão que, embora ainda não iniciada, se deveria seguir imediatamente.

Parte da doutrina apela, a este propósito, ao regime da tentativa e à definição de atos de execução do artigo 22.º do CP, para o estabelecimento do momento em que a agressão já é atual para efeitos de legítima defesa, enquanto outra parte admite que será iminente a agressão que ameaça realizar-se através de atos imediatamente anteriores à fase de tentativa, debate que, para o efeito dos presentes autos, não importa desenvolver.

Quanto ao termo da atualidade da agressão, a defesa pode ter lugar até ao último momento em que a agressão ainda persiste.

Como definir esse último momento?

Faria Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, 1999, pp. 48 e ss), a propósito do momento de consumação do crime de furto, da legítima defesa e da distinção entre perfeição e consumação, ou consumação formal e consumação material ou exaurimento, sustenta que com a apropriação, com o efetivo e real domínio de fato sobre a coisa, está o crime de furto consumado (consumação formal ou perfeição) e que, não bastando o instantâneo domínio de facto sobre a coisa, será “irrecusável aceitar que tem de haver um mínimo de tempo que permita dizer que um efetivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente”, ainda que não se exija que “o domínio de facto se tenha de operar em pleno sossego ou em estado de tranquilidade”. Exemplifica que “ninguém compreenderia que ao entrar em sua casa e ao ver um ladrão que tentava escapar pela porta traseira com um saco cheio de coisas furtadas não pudesse exercer o direito de legítima defesa na medida em que o furto já estaria consumado, isto é, o ladrão já teria o instantâneo domínio de facto sobre a coisa”, mas “se A furta um objeto da loja X e o proprietário desta (B) só se apercebe do ato criminoso depois de A já estar na rua, ainda que só por breves instantes, é claro que o crime se consumou. A deverá ser punido por crime de furto consumado e B já não poderá exercer o direito de legítima defesa”.

Os exemplos apresentados pelo referido autor são dos mais debatidos, a propósito dos crimes contra a propriedade, nomeadamente o do crime de furto.

Figueiredo Dias (ob. cit., pp. 413-414) sustenta que nem sempre pode fazer-se coincidir o momento do término da atualidade da agressão com o da consumação formal. Neste contexto, independentemente da posição que se tome acerca do momento da consumação no crime de furto, o entendimento mais razoável, segundo o dito autor, é o de que está coberta pela legítima defesa a resposta necessária para recuperar a coisa subtraída se a reação tiver lugar logo após o momento da substração, enquanto o ladrão não tiver logrado a posse pacífica da coisa.

Terá de haver uma reação imediata, logo após o momento da subtração, uma imediata perseguição à ação de lesão do bem, à subtração da coisa, em ordem a arrancar do agressor o objeto furtado ou a forçá-lo ao seu abandono. Será o caso do agente do furto que é surpreendido no momento da subtração e que foge com a coisa, sendo de imediato perseguido. Os factos praticados depois desse momento já não estarão cobertos pela legítima defesa, uma vez que a agressão deixou de ser atual, e só poderão estar justificados por ação direta se estiverem preenchidos todos os requisitos desta causa de justificação. Fora desse contexto, estamos já no domínio do tirar desforço, da reação vingativa.

Concretizando os requisitos da ação de defesa, exige-se a necessidade da defesa e/ou a necessidade do meio (sendo que, para Taipa de Carvalho, diferentemente de Figueiredo Dias, necessidade do meio de defesa ou necessidade da ação de defesa têm o mesmo significado - Direito Penal Parte Geral, Volume II, 2004, pp. 185 e ss., particularmente 214). A justificação pressupõe que na ação de defesa sejam usados os meios necessários para repelir a agressão atual e ilícita. O meio será necessário se for um meio idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados de resposta, for o menos gravoso para o agressor (F. Dias, ob. cit., p. 419), sendo o juízo de necessidade reportado ao momento da agressão, de natureza ex ante, tendo em vista o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão, a perigosidade do agressor e a sua forma de atuar, bem como os meios de que se dispõe para a defesa, a aferir objetivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido. Para Taipa de Carvalho (ob. cit., p. 190) são duas as características ou pressupostos do “meio necessário”: a adequação ou idoneidade e a menor danosidade do meio utilizado.

No que concerne ao elemento subjetivo, grande parte da nossa jurisprudência e certo setor da doutrina continuam a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio (acórdãos do STJ, de 91.07.03, 92.06.25 e 93.01.21, proferidos nos processos n.º 41982, 42682 e 42837), mas a doutrina mais recente corre no sentido de que, existindo o conhecimento da situação de legítima defesa, não deverá fazer-se a exigência adicional de uma co-motivação de defesa (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 433; Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, 1995, 375/387).

Numa tese algo mista, Fernanda Palma, no seu artigo «Legítima Defesa», incluído na obra «Casos e Materiais de Direito Penal» [coordenação de F. Palma/José Manuel Vialonga e Carlota Pizarro de Almeida, Almedina, 2004, p. 159-173], sustenta:

«A legítima defesa exige uma efectiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma proteção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma ação conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir.»

3.2.1.2. Está assente que o arguido residia, com a sua mulher e a filha mais nova do casal, numa moradia, sua propriedade, situada em zona residencial, sendo a habitação uma moradia térrea com quintal e vários anexos nas traseiras.

No dia 30.10.2022, cerca das 06:30 horas, desconhecidos acederam ao quintal da residência do arguido com o intuito de se apoderarem e fazerem seus os objetos que dali conseguissem retirar, o que fizeram, tendo subtraído, entre outros, uma gaiola com um periquito, uma escada de alumínio, quatro facas de pesca e um rádio, objetos de valor não apurado.

Nesse mesmo dia, o arguido formalizou queixa-crime contra desconhecidos, junto do Posto Territorial da GNR ....

Na sequência, o arguido ficou nervoso e apreensivo, por sentir que estava em situação de perigo, não só em relação à sua própria pessoa, como da sua família e dos seus bens, pelo que teve dificuldade em adormecer e acordava ao menor ruído.

No dia 31.10.2022, cerca das 05h00, estando alerta relativamente ao furto ocorrido na noite anterior, o arguido, ao ouvir o seu cão ladrar, resolveu levantar-se e apurar o que se passava. Dirigiu-se à porta de entrada da habitação, a qual abriu para aceder ao quintal, e, nessa altura, viu BB passar em frente à sua residência, já na via pública, procurando abandonar o local e levando consigo duas frigideiras e um rádio, de valor não apurado, mas certamente inferior a 100,00€, objetos que identificou como sendo seus e acreditou terem sido subtraídos do interior do seu quintal.

Por forma a interpelar tal indivíduo, o arguido muniu-se de um pau de eucalipto, com cerca de 1 metro e 48 cm de comprimento, que tinha no seu quintal, e dirigiu-se à via pública, onde abordou BB, que circulava à sua frente, de costas para si, questionando-o “já andas aqui outra vez?” e “espera aí!”.

BB voltou-se para trás, para ver quem o interpelava, após o que se virou, novamente, para a frente, tendo acelerado o passo, procurando abandonar o local.

Na ocasião, BB não se fazia acompanhar de qualquer arma ou objeto que lhe permitisse defender-se.

O arguido foi no encalço de BB e, usando o pau de eucalipto de que previamente se havia munido, desferiu, com ele e num movimento lateral direito, de cima para baixo, uma forte pancada na cabeça de BB, tendo este caído desamparado no chão, desfalecido.

O arguido regressou à sua habitação e solicitou à sua mulher que pedisse socorro, tendo esta ligado para o 112, relatando o sucedido.

Após, na tentativa de ocultar a sua atuação, arremessou o pau de eucalipto que havia usado para atingir BB, para o telhado de um dos anexos existente nas traseiras do quintal da sua residência, com cerca de 1,90 metros de altura.

O óbito de BB foi declarado pelas 08:30 horas, desse mesmo dia 31.10.2022, pois, em consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu, além do mais, traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento, hemorragia no tronco cerebral, com hematoma subdural agudo, sendo que, no local onde a pancada foi desferida, apresentava ferida de natureza contusa com afundamento ao toque/fratura no crânio.

Mais deu-se como provado que o arguido sabia que a cabeça é uma zona sensível do corpo humano, que aloja órgãos vitais, como é o cérebro, sabendo que uma pancada na cabeça é suscetível de provocar a morte de um ser humano, factos que o arguido bem conhecia e que não o inibiram de agir do modo descrito. Não obstante tal conhecimento, perante a fuga de BB, o arguido usou o pau de eucalipto de que previamente se havia munido, para lhe desferir uma forte pancada na cabeça, como fez, afundando-lhe o crânio, em consequência do que BB veio a falecer, poucas horas depois. O arguido tinha conhecimento que, ao desferir tal pancada na cabeça de BB, onde se encontram alojados órgãos vitais, lhe causaria lesões adequadas a provocar-lhe a morte, como aconteceu, resultado que conhecia, aceitou e alcançou, não obstante saber que aquele apenas pretendia abandonar o local, fugindo de qualquer confronto físico. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas empreendidas não lhe eram permitidas e eram punidas por lei.

Perante este quadro, o tribunal de 1.ª instância, após fazer uma apresentação do regime da legítima defesa, afirmou que a agressão perpetrada por BB era ilícita e atual, mas que a sustação desta agressão pelo arguido através da forte pancada desferida na cabeça daquele, mediante o uso do pau de eucalipto, que lhe afundou o crânio, em consequência do que faleceu poucas horas depois, apresenta-se como manifestamente desnecessária e desproporcional.

Mais referiu que, no caso concreto, inexiste aquele específico pressuposto estrutural à legítima defesa, a vontade de defesa ou animus defendendi, sendo a ação do arguido plenamente desassociada de qualquer intuito defensório, “sendo sim de ajuste de contas face à situação de furto dos seus bens anteriormente verificado”.

Concluiu no sentido de que o arguido não atuou em legítima defesa, pelo que tão-pouco se pode considerar ter agido com excesso de legítima defesa.

Diz-se o seguinte no acórdão da 1.ª instância:

«(…) o excesso de legítima defesa, que já se situa entre as causas de exclusão da culpabilidade, consiste numa ação que, pressuposta sempre uma real situação de legítima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão.

Com efeito, nos termos do artigo 33.º do Código Penal, sob a epígrafe “excesso de legítima defesa”, cita-se:

“1 - Se houver excesso nos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito, mas a pena pode ser especialmente atenuada.

2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.”

Neste plano, o ato praticado com excesso de legítima defesa não é lícito, mas sim ilícito (ao contrário do que se aludiu com o ato praticado em legítima defesa), somente aquele que se encontra nessa situação usa meios excessivos e que não se justificam para se defender.

Por sua vez, a não censurabilidade a que se refere o n.º 2 respeita ao excesso nos meios empregados resultante da perturbação, medo ou susto, desde que não seja censurável, que é assim suscetível de afastar a punição, porquanto sem culpa do agente não há punição criminal.

No caso em apreciação, conforme supra se deixou exposto, o arguido Carlos Costa não atuou com excesso de legítima defesa, por não se verificarem os pressupostos da legítima defesa, que acima se considerou não estarem devidamente preenchidos, prejudicando, pois, uma análise posterior cingida à proporcionalidade dos meios empregues na defesa face à agressão anterior.

Sem atuação em legítima defesa, é de excluir a atuação com excesso, como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, nos Acórdãos proferidos a 12-06-1997, in CJSTJ1997, t.II, p. 238; a 27-01-1988, BMJ 373/317 (o excesso de legítima defesa pressupõe os requisitos da legítima defesa, excedendo-se o réu nos meios), de 19-04-1989, BMJ 386/222 (o excesso respeita apenas aos meios necessários para repelir a agressão, não aos requisitos iniciais de legítima defesa, dos quais se não pode abdicar); a 07-06-2006, CJSTJ 2006, t.II, p. 209 (a falta de legítima defesa afasta o excesso de meios, o excesso de legítima defesa, por natural inconciliabilidade, nos termos do artigo 33º, n.º 1, do Código Penal).

Termos em que improcede a tese defensória aventada pelo arguido em ver declarada a verificação do excesso de legítima defesa, por ausência do condicionalismo da situação de legítima defesa, uma vez que somente o agente que se encontra nessa situação de legítima defesa usa meios excessivos e que não se justificam para se defender.

Conclui-se, assim, que dos factos provados não existem causas que justifiquem a conduta do arguido, afastando assim o desvalor da ação e do resultado produzido, nos termos previstos no artigo 31.º do Código Penal, bem como causas de exclusão da sua culpa.

(…).»

Por sua vez, o acórdão da Relação – que é o acórdão recorrido – assinala:

«Ora como se afirma na fundamentação do acórdão recorrido, quando o arguido vai no enlaço da vítima e a interpela questionando-o, primeiramente, afirmando “se já andava ali outra vez” e, como este continuou a avançar, foi atrás dele, dizendo-lhe ainda “espere aí!”, tendo este acelerado, ainda, mais o passo, neste momento, torna-se evidente que o arguido se apercebeu que BB não trazia consigo qualquer arma ou objeto que lhe permitisse defender-se, e que, aliás, evitava o confronto físico e procurava abandonar o local.

Neste contexto, após interpelar por duas vezes a vítima BB, que continuava a avançar na via pública, levando consigo as duas frigideiras e um rádio, o arguido fez uso do pau que se munira previamente e deferiu, com ele, uma forte pancada, num movimento lateral direito, de cima para baixo, na direção da cabeça da vítima.

Afirma-se, na fundamentação do acórdão recorrido «Neste momento, a finalidade da perseguição movida pelo arguido a BB modificou-se irremediavelmente.

Se num momento inicial, o arguido foi no encalço de BB para reaver as suas coisas, levando consigo um pau para o assustar e ele nunca mais lá voltar ao seu quintal; em momento subsequente, não satisfeito com a atitude de BB, que abandonava o local, levando consigo as duas frigideiras e um rádio, o arguido desferiu uma violenta e forte pancada na direção da cabeça daquele, tendo este caído desamparado no chão, desfalecido.

Ora, a intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, resulta de factos objetivos que a indiciem; tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, que deriva de factos dos quais se infira.

Dos comportamentos assumidos pelo arguido não resulta a adotação de qualquer atitude defensiva da sua parte, antes decorre que o arguido queria parar e deter BB de modo a confrontá-lo, reaver as suas coisas e obstar a que voltasse ao seu quintal (…)

Assim, conclui-se, sem qualquer sombra de dúvida, muito menos razoável, que se deve julgar como plenamente demonstrada que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, na concretização do mencionado propósito de atingir BB, com um pau na cabeça, admitindo a possibilidade de lhe tirar a vida e aceitando-a, mediante o recurso a força física, não obstante saber que aquele apenas pretendia abandonar o local, fugindo».

Deste modo atento a natureza e pressupostos da legitima defesa que supra deixamos expostos, os factos provados que não se mostram impugnados, nos termos do art. 412º, nº3 do CPP e ponderada a fundamentação da prova supra referida, conclui-se que esta se mostra correctamente valorada pelo tribunal « a quo» e cumprido o vertido no art.º 127º do C.P.Penal.

Não se pode, assim, concluir que, no caso concreto, ocorreu uma situação enquadrável na legítima defesa.

Logo, falece razão ao recorrente ao invocar a legitima defesa .

E consequentemente não poderá procede, igualmente, qualquer situação de excesso de legitima defesa.

Conforme determina o n. 1, do artigo 33º do Código Penal "se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada".

A lei é clara, para que se verifique excesso de legítima defesa é necessário que ocorram os pressupostos da legítima defesa, uma vez que o excesso só poderá verificar-se em relação aos meios empregados na defesa - cfr. neste sentido, por todos, o acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 1988, no B.M.J. 373, 317 .

Ora, se não ocorreram os pressupostos da legítima defesa que leva, como consequência, à não existência desta, é óbvio que também não pode verificar-se o excesso de legítima defesa.»

No caso, a verificar-se legítima defesa, seria relativamente à ofensa da propriedade do arguido, pelo furto de duas frigideiras e um rádio, de valor não apurado, mas certamente inferior a 100,00€ - valor diminuto, no plano penal.

O arguido não presenciou qualquer ato de furto. O que se dá como assente é que, no dia em causa, cerca das 05h00, estando alerta relativamente ao furto ocorrido na noite anterior, o arguido, ao ouvir o seu cão ladrar, resolveu levantar-se e apurar o que se passava (estava deitado, por conseguinte). Dirigiu-se à porta de entrada da habitação, a qual abriu para aceder ao quintal, e, nessa altura, viu BB passar em frente à sua residência, já na via pública, levando consigo duas frigideiras e um rádio, objetos que identificou como sendo seus e acreditou terem sido subtraídos do interior do seu quintal.

O arguido ainda se muniu de um pau de eucalipto, com cerca de 1 metro e 48 cm de comprimento, que tinha no seu quintal, e dirigiu-se à via pública, onde circulava a vítima, abordando-a pelas costas - “já andas aqui outra vez?” e “espera aí!”.

Seguindo o exemplo supra referido, apresentado por QQ, do furto por A de um objeto da loja X, em que o proprietário desta (B) só se apercebe do ato criminoso depois de A já estar na rua, ainda que só por breves instantes, e seguindo a posição desse autor, o ora arguido já não poderia exercer o direito de legítima defesa, não se considerando a agressão atual.

Curiosamente, o acórdão da 1.ª instância cita o referido autor para extrair, para o caso em apreço, a conclusão contrária: a da atualidade da agressão.

Poder-se-á questionar se, no caso em apreço - em que o arguido não surpreendeu BB na prática do furto, mas estava deitado, levantou-se, foi à porta e visualizou aquele quando o mesmo estava fora da sua propriedade, a passar em frente à sua residência, já a circular na via pública, levando consigo duas frigideiras e um rádio, “objetos que identificou como sendo seus e acreditou terem sido subtraídos do interior do seu quintal”, tendo-se ainda munido do mencionado pau de eucalipto que tinha no quintal, lançando-se depois no encalço de BB -, estava verificada a necessária reação de imediatidade, logo após a subtração, numa exigência de continuidade espácio-temporal, que delimita a janela de atualidade da agressão, para quem não a identifica, no seu término, com o tempo até à consumação formal.

Essa questão não é colocada pelas instâncias, sendo que o tribunal de 1.ª instância refere, expressamente, como já se disse, existir agressão atual.

O que ressalta da factualidade provada é que o arguido, perante a atitude de BB quando abordado, nas circunstâncias descritas - voltou-se para trás, para ver quem o interpelava, após o que se virou, novamente, para a frente, tendo acelerado o passo, procurando abandonar o local, não se fazendo acompanhar de qualquer arma ou objeto que lhe permitisse defender-se (ou atacar, acrescentamos) -, não hesitou em desferir, num movimento lateral direito, de cima para baixo, uma forte pancada na cabeça de BB, com o pau de eucalipto de cerca de 1 metro e 48 cm de comprimento, de que se munira previamente, o que fez com dolo homicida, afundando-lhe o crânio com as consequência que se conhecem: a morte de BB, poucas horas depois.

Pressupondo a atualidade da agressão, sobressai a desproporção do seu significado e da reação do arguido, em função da crassa desproporção do peso da agressão para o arguido e da defesa para o agressor (agente do furto): foi morto um homem em razão do furto de duas frigideiras e de um rádio, de valor certamente inferior a 100,00€.

Não está em causa a caracterização da agressão (realizada pela vítima) como socialmente irrelevante, no sentido da sua insignificância, mas antes a consideração de que, ainda que podendo ser de algum modo “significante”, nem por isso deixa de estar presente uma manifesta e crassa desproporção com a reação do arguido.

Neste contexto, verdadeiramente essencial e decisiva é a imagem global do facto complexivo constituído, de um lado, pela atuação de BB e, do outro, a ação de impedir aquela (no pressuposto de se considerar atual) através do uso de um meio em manifesta desproporção dos bens em confronto, lesando, dolosa e irremediavelmente com esta conduta, a vida alheia.

Há autores que, a este propósito, em lugar de colocarem a questão à luz da necessidade do meio, introduzem diretamente uma ideia de proporcionalidade dos bens jurídicos em conflito, como condição de legitimidade da defesa, inclusivamente excluindo essa legitimidade quando a defesa de bens patrimoniais determine a morte ou lesões graves à integridade física do agressor.

Fernanda Palma (A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, Volume I, AAFDL, 1990, pp. 466 e ss.) sustenta que uma ponderação entre os bens jurídicos do agressor e do defendente, e a exigência de proporcionalidade qualitativa, é sempre necessária quando os bens atingidos pela defesa sejam a vida ou a integridade física “substancial” e, correlativamente, os bens colocados em perigo pela agressão não o sejam. A legítima defesa pode lesar bens jurídicos de valor superior aos que assegura, mas não pode haver uma desproporção qualitativa entre esses bens. Se o bem a salvaguardar pertencer ao núcleo dos bens intangíveis, que exprimem a essencial dignidade da pessoa humana, o defendente pode lesar – se necessário for – quaisquer bens do agressor, incluindo a sua própria vida (legítima defesa ilimitada), mas não assim quando estão em causa bens não pertencentes a esse núcleo intangível (legítima defesa limitada).

Taipa de Carvalho, depois de, criticando a posição de Fernanda Palma, ter defendido a não aplicação à legítima defesa da exigência de proporcionalidade dos bens (A Legítima Defesa, Coimbra Editora, 1995, p. 409 e ss.), passou a entender, após a publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 457/99, de 5.11, sobre a utilização de armas de fogo pelas forças policiais, que a tese da exigência de “proporcionalidade qualitativa” entre os bens objeto da agressão e os bens objeto da ação de defesa, anteriormente defendida por Fernanda Palma, passou a ter acolhimento legal, sendo essa exigência aplicável não só às polícias, mas também à legítima defesa privada, isto é, à legítima defesa exercida pelo agredido ou por um terceiro particular (Direito Penal Parte Geral, Volume II, 2004, pp. 197 e ss. Este novo entendimento é criticado por Joaquim Sabino Rogério, O excesso na legítima defesa à luz dos fins das penas, Almedina, 2023).

Figueiredo Dias (ob. cit., p. 428), embora considere que a ideia de proporcionalidade dos bens jurídicos em conflito “se revela, a nossos olhos, infiel a pressupostos básicos do fundamento justificante da legítima defesa e, na verdade, tanto à ideia de prevenção do Direito sobre o ilícito, como ao irrenunciável efeito preventivo desta causa de justificação; confundindo até limites perigosos – e, em boa lógica, a partir de certo ponto inextricáveis – as causas justificativas da legítima defesa e do direito de necessidade”, não deixa de mencionar um argumento a favor dessa conceção a partir da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, acabando por dizer (ob. cit., p. 429) que “não deixa de ser compreensível que se negue a necessidade da defesa de bens patrimoniais face a agressões ilegais não violentas à custa da morte do agressor com dolo intencional!”

Diz o referido autor (ob. cit. 429):

«A perspetiva que pode conduzir à exclusão da necessidade da defesa e nos parece seguramente mais próxima do seu fundamento justificante é a que se liga à ideia, relativamente já antiga, segundo a qual não pode ser legítima a defesa que se revela notoriamente excessiva face aos bens agredidos e que, nessa medida, representa um abuso de direito de legítima defesa. Não se trata aqui tanto da hierarquia ou do valor (jurídico) dos valores em conflito, quanto sobretudo da comparação objetiva do significado jurídico-social da defesa com o peso da agressão para o agredido. A necessidade da defesa deve ser negada sempre que se verifique uma insuportável (do ponto de vista jurídico) relação de desproporção entre ela e a agressão: uma defesa inadmissivelmente excessiva e, nesta acepção, abusiva, não pode consistir simultaneamente defesa necessária; logo porque não pode de modo algum representar-se como uma defesa do Direito contra o ilícito na pessoa do agredido.»

A questão da desproporcionalidade (vista na dimensão de uma relação de desproporção insuportável entre a defesa e a agressão) que é vista, em Figueiredo Dias, no âmbito da necessidade da defesa – a defesa que representa um abuso de direito não é necessária -, é separada por Taipa de Carvalho do requisito da necessidade: a necessidade do meio para impedir a agressão atual e ilícita é um pressuposto de justificação por legítima defesa, a que acresce um outro pressuposto que é o da referida “proporcionalidade qualitativa”, segundo o qual “a ação de defesa não pode lesar bens jurídicos do agressor que sejam qualitativamente mais valiosos que os bens objeto da agressão”. Faltando esse pressuposto de justificação, não há uma situação de legítima defesa.

Regressando ao caso concreto, temos que o arguido tirou a vida a BB, afundando-lhe o crânio ao desferir uma forte pancada, pelas costas, na cabeça daquele, com um pau de eucalipto de cerca de 1 metro e 48 cm de comprimento, dolosamente, porque o referido BB lhe furtou duas frigideiras e um rádio, de valor tido legalmente como diminuto (e não há sequer qualquer elemento para ajuizar que aqueles concretos bens tivessem, para o arguido, um qualquer valor de outro tipo, superior ao venal). Tendo como objetivo a recuperação dessas “coisas”, a desproporção entre os bens jurídicos em confronto é inequivocamente clamorosa, pelo que, parafraseando RR, a necessidade da defesa deve ser negada: uma defesa inadmissivelmente excessiva e, nesta acepção, abusiva, não pode consistir, simultaneamente, defesa necessária. Ou, em alternativa, no entendimento de Taipa de Carvalho, é manifesta a falta de proporcionalidade qualitativa entre os bens jurídicos objeto da agressão e da ação de defesa.

Mesmo que não se exigisse um “animus defendendi”, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do arguido, certo é que a conduta deste nem sequer é explicável como defesa na linguagem social, no quadro da imagem global do facto.

Neste contexto, faltando os pressupostos da legítima defesa, não é de equacionar o seu excesso.

Realmente, o excesso de legítima defesa pressupõe a verificação dos pressupostos da legítima defesa, embora excedendo o agente a respetiva conduta de defesa, pela desproporcionalidade ou inadequação de meios, na situação concreta.

Fala-se, a este propósito, em excesso intensivo de legítima defesa e excesso extensivo de legítima defesa: intensivo pela utilização de um meio de defesa desnecessário para realizar o objetivo de impedir a agressão (ultrapassagem dos limites da intensidade da ação); extensivo quando a ação do defendente se prolonga apesar de já estar neutralizada a ação de agressão (ultrapassagem dos limites temporais da ação).

O artigo 33.º, n.º1, 1.ª parte, refere-se ao excesso intensivo.

Nessas circunstâncias, o facto típico praticado não é justificado, mas sim ilícito, “mas a pena pode ser especialmente atenuada”.

Se o excesso for asténico não censurável, ou seja, “resultar de perturbação, medo ou susto” causado pela agressão, o agente não é punido, o que não acontece sendo o excesso esténico, isto é, devido a rira, rancor, retaliação ou vingança.

In casu, não está em causa um excesso de legítima defesa, porquanto, pelas razões sobreditas, não se considera existir, sequer, uma situação de legítima defesa.

Não deixamos de observar que a circunstância de o arguido ter ficado “nervoso e apreensivo”, pelos factos do dia anterior, e bem assim o diagnóstico de Insónia Crónica (multifatorial) e de Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono, de intensidade moderada, não denotam o estado de perturbação, medo ou susto que o arguido invoca a seu favor como causa da sua ação.

Em conclusão, não se verifica legítima defesa, nem, logicamente, excesso da mesma.

O arguido não invoca no recurso em apreço, como fez no recurso anterior para a Relação, o artigo 133.º do CP, mas ainda assim não deixamos de observar que da factualidade provada não resulta que o mesmo tenha agido dominado por um estado emocional que o tenha colocado numa situação de exigibilidade diminuída, enquadrável na “compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral”, conforme previsto no mencionado artigo.

3.3. Da determinação da pena

Alega o recorrente que a pena imposta é excessiva.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, pp. 227 e ss.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:

«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e bem assim as relevantes no plano da prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.

O tribunal de 1.ª instância impôs a pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

A Relação baixou a pena para 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

A argumentação desenvolvida pelo recorrente para sustentar a aplicação de uma pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, parte de pressupostos que não têm correspondência nos factos provados.

Estando em causa uma pena de 8 anos e 4 meses de prisão, fixada no quadro de uma moldura penal abstrata de prisão de 8 a 16 anos, facilmente se descortina o infundado da pretensão do recorrente, de redução da pena a 4 anos de prisão, ademais suspensa na sua execução.

O tribunal recorrido sopesou todas as circunstâncias relevantes no plano da culpa e da prevenção, e identificou e explicitou as suas razões para fixar a pena concreta na estreita proximidade do limite mínimo da moldura, relevando as circunstâncias que beneficiam o arguido - ausência de antecedentes criminais; inserção em termos familiares, sociais e profissionais; boa reputação;

comportamento prévio da vítima; estado de apreensão e nervosismo causado pelos acontecimentos da véspera -, pelo que, não havendo fundamento para atenuação especial em razão do invocado excesso, não se vislumbra como poderia a pena ser fixada em valor inferior, razão por que deve ser negado provimento ao recurso.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de janeiro de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Vasques Osório (1.º Adjunto)

Celso Manata (2.º Adjunto)