I - A norma do artigo 310.º n.ºs 1 e 3 do CPP, lida em conformidade com o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º n.º 1, da Constituição da República e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, deve ser interpretada no sentido de ser recorrível a decisão (no caso, o acórdão da Reação recorrido), subsequente à decisão de pronúncia, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da invocada violação das regras de competência do Tribunal, por invocada ilegalidade da composição do tribunal coletivo que pronunciou o arguido por dois crimes de que vinha acusado.
II - O julgamento do recurso pelas Juízas Desembargadoras a quem o mesmo foi inicialmente distribuído, num caso em que o exame preliminar e os vistos foram anteriores à transferência para outros tribunais, tendo sido determinado pelo CSM que ficassem em exclusividade e acumulação de funções na Relação da pendência do recurso, para apreciação e decisão do mesmo, não se traduz em qualquer designação arbitrária ou discricionária de juiz, nem na criação contra legem de um tribunal ad hoc.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – RELATÓRIO
1. AA, com os restantes sinais dos autos, veio interpor recurso do acórdão de ........2024, da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu “julgar totalmente improcedentes todos os requerimentos efetuados”, nomeadamente o apresentado pelo referido arguido a arguir a inexistência/nulidade/irregularidade do acórdão de ........2024 do mesmo coletivo da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Anteriormente, o Tribunal Central de Instrução Criminal, por decisão instrutória de ........2021, no que releva para o caso, não pronunciou o arguido AA por dois crimes de branqueamento de que vinha acusado.
Na sequência, no provimento de recurso interposto pelo Ministério Público da parte da decisão instrutória de não pronúncia, foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa o acórdão de ........2024 que, revogando nessa parte a decisão recorrida, pronunciou o arguido AA pela prática, em coautoria com outros arguidos no processo, de dois crimes de branqueamento.
O arguido/ora recorrente arguiu a inexistência do dito acórdão de ........2024, com base na alegação de que o mesmo foi proferido por coletivo integrado por duas Desembargadoras que, na referida data, já não pertenciam ao Tribunal da Relação de Lisboa e, para o caso de assim se não entender, invocou a sua nulidade (artigo 119.º do Código de Processo Penal), alegando terem sido violadas as normas legais relativas ao modo de determinar a competência do tribunal, e, ainda, também para o caso de assim se não entender, a sua irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Sobre essa arguição recaiu o supra mencionado acórdão, do mesmo coletivo, de ........2024, que constitui o acórdão ora recorrido.
2. O recorrente formulou as seguintes conclusões (transcrição):
Questão Prévia – Objecto e Admissibilidade do presente recurso
A) A decisão recorrida é o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de ... de ... de 2024, que decidiu “julgar totalmente improcedentes todos os requerimentos efectuados”, assim rejeitando a verificação das invalidades identificadas e arguidas (inexistência/nulidade/irregularidade);
B) A questão suscitada foi decidida em primeira instância pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e, mais especificamente até, pelas próprias Sr.ªs Juízas Desembargadoras visadas que, assim, decidiram, sobre si mesmas, que elas próprias tinham competência para proferir o Acórdão em causa.
C) A matéria em causa relativa à composição do Tribunal e competência material deste para julgar o recurso interposto é estrutural, estando em causa a violação do princípio do juiz natural. Impõe-se, assim, que a sua análise seja objecto de recurso junto de Tribunal hierarquicamente superior, ou seja, junto do Supremo Tribunal de Justiça, para que, dessa forma, outros Juízes que não em primeira instância, outros Juízes que não as próprias visadas, possam objectivamente aferir da matéria da competência destas e da própria constituição do Tribunal para proferir a decisão que revogou o despacho de não pronúncia.
D) Aquela importância é de tal ordem que a escolha do juiz do processo e respectiva composição dos concretos Tribunais rege-se pela CRP, no n.º 1 e n.º 9 do artigo 32.º e, no plano infraconstitucional, pelo sistema de regras que definem e densificam aquele princípio do juiz natural, enquanto corolário do princípio da legalidade em matéria penal.
E) Princípio cuja existência, é tida como garantia dos cidadãos, prevenindo as interferências e arbitrariedades do poder do Estado.
F) No caso concreto não é possível assegurar que a aferição dos juízes competentes para conhecer da matéria controvertida observou as prescrições da lei. Não tendo, pois, sido respeitada a garantia ínsita naquele princípio constitucional.
G) O presente recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça deverá ser admitido.
Em situação em tudo análoga à presente o Tribunal Constitucional já veio decidir nesse sentido: “c) Julgar inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente à decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal de Instrução Criminal”. Acórdão 482/2014 (processo 663/2013), de 25 de Junho de 2014.
H) Analisados, como se analisam nas motivações apresentadas, os excertos relevantes desse Acórdão, deverá concluir-se pela admissibilidade do presente recurso.
I) Como ali analisado, também nos presentes autos, é recorrível a decisão, subsequente à decisão que decidiu pronunciar o arguido, que aprecie a arguição de nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal da Relação de Lisboa.
J) De tal forma que negar o direito a uma reapreciação da questão da incompetência material do Tribunal que proferiu a decisão recorrida significaria admitir a ausência de defesa, e com ela, ausência também de tutela efetiva do direito ao juiz legalmente predeterminado, em negação do núcleo essencial do princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido (artigo 32.º, n.º 1 da Constituição). De tal forma que, também aqui, “inevitável será concluir que a irrecorribilidade da decisão que conhece da arguição de incompetência material (e da nulidade processual dela decorrente) compromete os valores tutelados pelo princípio do juiz natural, e nessa medida, fere o núcleo essencial do direito de defesa do arguido”.
K) Deverão, pois, as normas identificadas ser interpretadas em homenagem e em um contexto de interpretação em conformidade com a Constituição, pelo que os artigos 310º, n.º 1 (a contrario), 399.º, 400.º, n.º 1 (a contrario) e 401.º, n.º 1, al. b), do CPP deverão interpretar-se de forma a permitir e legitimar o recurso que ora se interpõe junto do Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de violação das regras e princípios constitucionais supra identificados.
Requerimento apresentado pelo ora Recorrente
L) O ora Recorrente arguiu a inexistência/nulidade/irregularidade do Acórdão proferido (em ...) pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Este Tribunal da Relação rejeitou tal arguição, o que fez no Acórdão datado de ... de ... de 2024. Esta é, pois, a decisão recorrida, objecto do presente recurso.
M) As magistradas judiciais em causa, ou seja, quer a Sr.ª Juíza Desembargadora Relatora BB quer a Sr.ª Juíza Desembargadora 2.ª Adjunta CC pertenciam, inicial e originariamente, ao Tribunal da Relação de Lisboa.
N) E pertenciam a tal Tribunal quando receberam os autos do recurso interposto pelo Ministério Público (da decisão instrutória), não existindo dúvidas que nesse período praticaram aí actos.
O) Porém, no dia ... de ... de 2023 estas magistradas judiciais, por se ter tornado pleno e efectivo o “movimento judicial ordinário de ...”, passaram a fazer parte do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Guimarães. Reflexamente, nesse mesmo dia ... de ... de 2023 tais magistradas judiciais deixaram de pertencer ao Tribunal do qual faziam parte, ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa.
P) Se tomaram posse naqueles outros Tribunais da Relação, então, necessariamente, deixaram de integrar os quadros do Tribunal da Relação de Lisboa. É uma evidência.
Q) A inscrição do presente processo em tabela, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, ocorreu no dia ... de ... de 2024. Ou seja, tal inscrição ocorreu cerca de 5 meses após aquelas juízas terem deixado de pertencer ao Tribunal da Relação de Lisboa. O Acórdão em causa foi proferido no dia ... de ... de 2024.
R) O Acórdão proferido em ... é um Acórdão inexistente. E, claro está, inexistente porque proferido por magistradas judiciais que já não faziam parte do Tribunal da Relação de Lisboa. Que, à data da prolação do Acórdão não integravam o Tribunal da Relação de Lisboa. Proferido por magistradas judiciais que já tinham tomado posse em outros distintos Tribunais da Relação.
S) O processo foi inscrito em tabela no ano de ..., sendo que muito antes, no ano de ..., tais magistradas já tinham tomado posse noutro Tribunal, já não integravam o quadro de juízes efectivos do Tribunal da Relação de Lisboa. Conforme o atestam os documentos juntos com o requerimento apresentado pelo ora Recorrente, em especial a Deliberação do Plenário Ordinário do Conselho Superior de Magistratura, n.º 841/..., de ... de ... de 2023, publicada no dia ... de ... de 2023, na Parte D, n.º. 169, págs. 215 e ss da 2.ª série do Diário da República, que tem como objecto o “Movimento judicial ordinário de ...”, pág. 216.
T) O CPP não prevê qualquer norma aplicável a esta realidade de facto. Pelo que há necessariamente que recorrer ao disposto, de forma subsidiária, no CPC. O n.º 1 do artigo 217.º do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, dispõe que “o mesmo se observa [é logo feita segunda distribuição] caso, mais tarde, o relator fique impedido ou deixe de pertencer ao tribunal”. Ou seja, o ordenamento jurídico tem uma solução para o caso em que o relator deixe de pertencer ao tribunal: É logo feita segunda distribuição.
U) O que se percebe bem atentas as normas e princípios já analisados relativos ao âmbito e consequências do princípio do juiz natural. Qualquer outra solução – que não proceder à segunda distribuição – viola aquelas regras e princípios, viola a estrutura acusatória do processo, porque qualquer outra solução que não passe por atribuir o processo na forma em que ele deve originariamente ser distribuído é susceptível de pôr em causa a garantia atribuída pelo Estado aos seus cidadãos, como amplamente desenvolvido supra. O que basta para que não se aceite outro tipo de solução nos casos em que o juiz (desde logo o relator) deixe de pertencer ao Tribunal.
V) Igual conclusão se retira do disposto no n.º 2 do artigo 49.º do EMJ: “A transferência dos juízes da Relação não prejudica a sua intervenção nos processos já inscritos em tabela”. Ou seja, a contrario, nos processos não inscritos em tabela a transferência dos juízes da Relação prejudica a sua intervenção no processo. Ou seja, se os juízes da Relação foram transferidos e o processo não estiver inscrito em tabela, então a sua intervenção está irremediavelmente prejudicada.
W) Tendo já aquelas magistradas judiciais em mãos o recurso que havia sido interposto, e inclusive tendo já praticado actos, de duas uma:
Ou inscreviam o processo em tabela antes de efectivada a sua transferência – o que manifestamente não ocorreu,
Ou teriam de ter sustado a sua candidatura a concurso destinado a novo movimento judicial ordinário – o que manifestamente não ocorreu.
X) O Acórdão proferido em ... de ... de 2024 nos presentes autos é, pois, acto jurídico inexistente porque praticado por magistradas judiciais sem qualquer competência para o efeito, desde logo porque por juízas não pertencentes já a este Venerando Tribunal mas a outros.
Y) Interpretação contrária das normas identificadas materializada aceitar-se ser possível e ser válido um Acórdão proferido por magistradas judiciais que, antes da inscrição do processo em tabela haviam sido transferidas para outro Tribunal, sem ter tido lugar a obrigatória distribuição, o que viola a Constituição da República Portuguesa.
Z) Estaria sempre em causa uma decisão surpresa, a interpretação de qualquer outra norma que não as invocadas e que não tem a virtualidade de alterar a conclusão alcançada: é inexistente o Acórdão proferido por magistradas judiciais quando estas haviam já sido transferidas para outro Tribunal antes da inscrição do processo em tabela, não se tendo, pois, procedido à obrigatória distribuição dos autos a novo colectivo. A invocação de qualquer outra norma com interpretação contrária a tal conclusão configurará também ela sempre uma interpretação contrária à Constituição da República Portuguesa.
AA) Em ambas as situações descritas, interpretação contrária à aqui defendida viola os princípios gerais que conformam a estrutura do processo penal português como estrutura acusatória, violam os princípios, garantias e direitos fundamentais a processo justo e equitativo, da legalidade processual e do juiz legal, consagrados nos artigos 20.º, 32.º, 216.º, n.º 1, 217.º, n.º 3, da Lei Fundamental.
BB) Se assim não se entender – reconhecimento da verificação da inexistência arguida –, subsidiariamente, deverá ser declarada a verificação da nulidade insanável daquele Acórdão atento o disposto na al. a) do artigo 119.º do CPP, na medida em que, considerada a realidade factual subjacente, é manifesto terem sido violadas as regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal.
CC) Nulidade insanável que resulta também do disposto na al. e) do artigos 119.º do CPP, na medida em que é manifesto terem sido violadas as regras de competência do tribunal.
DD) Subsidiariamente, se assim não se entender, verifica-se, nos termos previstos no artigo 123.º do CPP, a irregularidade do Acórdão.
EE) A deliberação tomada no dia ... de ... de 2023 pela Divisão de Quadros Judiciais e de Inspecção da Secção de Assuntos Gerais do Conselho Permanente Ordinário do Conselho Superior de Magistratura – n.º .../DSQMJ/2394 de ...-...-2023, nos termos da acta n.º 9/... – ...-...-2023, não tem como efeito a obliteração das normas quer do CPP, quer do CPC, quer o próprio n.º 2 do artigo 49 do EMJ.
FF) Em resumo: i) aquela divisão não tinha competências para deliberar o que deliberou violando-se assim as competências do Plenário do CSM; ii) Esta deliberação refere que as magistradas judiciais em causa foram transferidas no MJO de ... para os Tribunais da Relação do Porto e de Guimarães. Ora, como se viu, sendo esta deliberação de ..., a verdade é que tal movimento apenas terá tido eficácia em ..., conforme publicação no Diário da República; iii) A deliberação invoca uma norma – o artigo 29.º do EMJ – que não tem qualquer relação com a manutenção do regime de exclusividade, acumulação de funções e distribuição de serviço, mas, ao invés, com a “Remuneração”; iv) é patente que a transferência em causa (seja em antes de ... seja em Setembro) ocorreu em momento temporal anterior ao da inscrição do processo em tabela; v) o regime da exclusividade e a inexistência de distribuição de serviço não afectam, de forma alguma, assim como, naturalmente, não afastam as regras previstas no CPC (obrigatoriedade de segunda distribuição) e no n.º 2 do artigo 49.º do EMJ.
A Argumentação do Tribunal da Relação de Lisboa que Sustentou Não se Verificar Qualquer Invalidade – Contestação a tal Argumentação
GG) A resposta ao requerimento apresentado pelo ora Recorrente surgiu através do Acórdão proferido no dia ... de ... de 2024 e que, como identificado, constitui a decisão objecto do presente recurso. Tal acórdão decidiu “julgar totalmente improcedentes todos os requerimentos efectuados”.
Entendeu-se que:
HH) Em primeiro lugar, o artigo 217.º do CPC não é aplicável ao caso. O que se aplica é o disposto no n.º 4 do artigo 49.º da LOSJ. Este entendimento é, sempre com o devido respeito, “descabido”. O artigo 217.º do CPC aplica-se no caso concreto, o mesmo não sucedendo com aquela norma da LOSJ.
II) As Sr.ªs Juízas Desembargadoras não mudaram simplesmente de secção. Mudaram de Tribunais, para onde foram transferidas e nos quais tomaram posse. E, como sempre relembrado, antes da inscrição do processo em tabela.
JJ) Aquela interpretação acolhida na decisão recorrida configura manifesto erro de interpretação, quer heurística quer hermenêutica, sem qualquer possibilidade de interpretação analógica ou extensiva.
KK) Em segundo lugar, o Acórdão recorrido defende que estando em causa um recurso processual penal, há que ter presentes que os artigos 423.º, n.º 5 e 424.º n.º 2, do CPP e ainda o disposto no artigo 328.º-A que consagra o princípio da plenitude da assistência dos juízes. A invocação destas normas não tem qualquer sentido, sendo que a argumentação acolhida revela evidente confusão de planos entre o que seja o julgamento do recurso em conferência e o julgamento do recurso em audiência. Estas normas não podem aplicar-se ao presente caso concreto, como amplamente exposto.
LL) Os factos não ocorreram como pressuposto por aquelas normas: nem julgamento em audiência nem início de discussão em conferência dado que a transferência das Sr.ªs Juízas Desembargadoras ocorreu vários meses antes da inscrição do processo em tabela. A posição assumida na decisão incorrida demonstra clara confusão de planos em que ocorre o julgamento de um recurso – conferência versus audiência –, misturando regimes e esquecendo que, em um caso ou outro, a inscrição do processo em tabela tem de ocorrer antes da transferência do juiz para que se possam aplicar as normas que invoca.
MM) Em terceiro lugar, as próprias decisoras do Acórdão recorrido começam por admitir que com o movimento ordinário de ..., “a Exma. Senhora Juíza Desembargadora Relatora e a Exma. Senhora Juíza Desembargadora 2.ª Adjunta, com efeitos a partir de ... de ... de 2023, terem sido transferidas, respetivamente, para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal da Relação de Guimarães, e tendo deixado, por isso, de pertencer ao quadro dos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa”. Porém sustentam a sua competência em Deliberação do CSM.
NN) A verdade é que a deliberação em causa não tem a virtualidade de afastar o que está disposto nos diplomas legais que se têm analisado, desde logo no CPP e no CPC. O facto de a deliberação ter determinado que após 1 de Setembro tais magistradas judiciais tivessem ficado ou não em exclusividade para prolação de Acórdão não afasta a violação das normas já invocadas. Acresce ser indiferente terem estado as magistradas em causa em exclusividade ou não. Para os efeitos que aqui se discutem, é completamente indiferente que o CSM tenha determinado que a Sr.ª Desembargadora Relatora BB e a Sr.ª Juíza Desembargadora 2.ªAdjunta CC só tramitaram este ou vários outros processo.
OO) O que releva é que, antes de inscrito o processo em tabela, as magistradas judiciais em causa foram transferidas. Se só tinham este ou vários processos em mãos isso é irrelevante, assim como é irrelevante o estatuto remuneratório que lhes foi fixado.
PP) O facto de as magistradas em causa terem acedido ao movimento ordinário de ..., de este ter produzido efeitos em ... de ... de 2023, e de o processo ter sido inscrito em tabela apenas em ... é que constitui o ponto central da questão. Transferidas as Juízas em ..., antes da inscrição do processo em tabela, o processo tinha necessariamente de ser remetido a nova distribuição.
QQ) Há necessariamente que concluir que, nos termos expostos, o Acórdão proferido em ... de ... de 2023 é inexistente (ou insanavelmente nulo ou ainda irregular). O que se requer que seja reconhecido por este Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de violação das normas e princípios identificados
RR) Por fim, as magistradas judiciais em causa tentam ainda operar uma suposta distinção entre o que é pertencer formalmente a um Tribunal e materialmente a outro Tribunal. Trata-se de argumentação sem qualquer sentido e ilegal, porque violadora das regras constitucionais e infralegais que materializam o princípio do juiz natural.
SS) As magistradas judiciais em causa tomaram posse em um Tribunal antes da inscrição do processo em tabela. E dizer isto é dizer tudo o que é necessário para solução do presente caso: o acórdão proferido é inexistente, insanável nulo ou irregular, nos termos expostos.
O que se requer que seja reconhecido por este Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de violação das normas e princípios identificados.
TT) Sim, tinha de ser feita segunda distribuição necessariamente. Sim, tem total aplicação o disposto no artigo 217.º do CPC. Não, o princípio da celeridade processual não pode nunca justificar uma ilegal aferição do juiz competente e natural do processo. O argumento segundo o qual o processo tem de andar rapidamente não justifica o atropelo da aferição de quem é o juiz e como se compõe um tribunal legitimo e competente. Não, como visto o princípio da plenitude da assistência dos juízes não tem de ser harmonizado porque não é, pura e simplesmente, aplicável. O processo não tinha sido inscrito em tabela antes da transferência, foi o contrário, ou seja, verificou-se a transferência e respectiva tomada de posse e só depois a inscrição do processo em tabela para poder ser efectuada a conferência.
UU) Em quarto lugar, a decisão recorrida erra também ao interpretar incorrectamente o estatuído no n.º 2 do artigo 49.º do EMJ.
VV) Em quinto e último lugar, é manifestamente insuficiente a interpretação que se efectua na decisão recorrida do princípio do juiz natural. As normas orgânicas e processuais reguladoras da matéria devem permitir a determinação do tribunal que há-de decidir o processo, fundada em critérios objectivos, não sendo, portanto, admissível que essa determinação resulte de critérios discricionários. Tudo o que corresponda a critérios diferentes dos legalmente impostos e aplicáveis, ou seja, fora das normas invocadas, traduz-se em critério discricionário.
WW) No caso concreto o Tribunal em causa, atenta a sua composição, e por violação das normas e princípios identificados, é incompetente, criado contra legem logo trata-se de tribunal ad hoc criado. Nenhuma das três dimensões do princípio do juiz natural foi respeitada pela decisão recorrida.
XX) Este princípio, mais do que garantia dos juízes – que não é – trata-se de verdadeira e efectiva garantia dos cidadãos, prevenindo as interferências e arbitrariedades do poder do Estado. Visando aquele princípio, assim como a própria configuração da estrutura processual penal constitucionalmente reconhecida, garantir ao arguido que o processo, o seu processo, é julgado pelo juiz competente para o efeito, em observância do disposto em lei anterior, o facto é que tal garantia não se verifica in casu.
YY) O que se pretende é também evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Aceitar a interpretação acolhida na decisão recorrida seria aceitar essa ilegal interferência. Relembrando-se que o «juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1.ª instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais coletivos».
ZZ) Afastar no caso concreto o disposto no artigo 217.º do CPC, e inclusive o disposto no n.º 2 do artigo 49.º do EMJ, atentas as coordenadas de facto de tal caso concreto é ilegal e inconstitucional, por violação do identificado princípio.
AAA) O artigo 217.º do CPC contém a expressão caso, mais tarde, expressão esta que terá de ser correctamente interpretada, o que não se verifica na decisão recorrida. Não é, pois, por as magistradas judiciais em causa terem praticado alguns actos no início do processo que per se e por efeito da lei a sua competência está inatacavelmente decidida independentemente do que venha a ocorrer posteriormente.
BBB) Ocorrendo a transferência do juiz antes de inscrito em tabela o processo então tem necessária aplicação o disposto neste artigo 217.º do CPC.
CCC) Não interpretar assim esta norma equivale à directa violação do princípio do juiz natural. Logo a uma interpretação inconstitucional.
DDD) Por tudo isto, ao contrário do que resulta da decisão recorrida, deverá reconhecer-se e declarar-se a inexistência do Acórdão proferido em ... ou, subsidiariamente, nos termos expostos, a sua nulidade ou, subsidiariamente ainda, a sua irregularidade. O que desde já se requer junto deste Supremo Tribunal de Justiça.
TERMOS EM QUE,RESPEITOSAMENTE,REQUER A V.EX.ªS:
- A ADMISSÃO DO PRESENTE RECURSO, ATENTOS OS FUNDAMENTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS EXPOSTOS;
- SEJA REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, POR VIOLAÇÃO DAS NORMAS E PRINCÍPIOS IDENTIFICADOS, LEGAIS E CONSTITUCIONAIS, RECONHECENDO-SE CONSEQUENTEMENTE A INVALIDADE, POR INEXISTÊNCIA OU, SUBSIDIARIAMENTE, ATENTAS AS NULIDADES IDENTIFICADAS OU, SUBSIDIARIAMENTE AINDA, ATENTA A IRREGULARIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDO EM 25 DE JANEIRO DE 2024, COM TODOS OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS,
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
3. O Ministério Público, junto da Relação, respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido de que o acórdão recorrido deve ser confirmado concluindo (transcrição das conclusões):
1. O recurso deve ser rejeitado, na medida em que o Acórdão de 2/5/2024 não é suscetível de ser enquadrado na alínea a) do n.º 1 do art. 432.º do Código de Processo Penal, nem na exceção prevista na parte final da norma transcrita art. 432.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal e não admite recurso ordinário, sendo que, além disso, à recorribilidade das decisões da Relação proferidas em recurso, aplica-se o regime consagrados nos artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, alíneas c) a f) do Código de Processo Penal, daí que o Acórdão não se mostra recorrível em mais um grau de recurso ordinário, e também não se mostra recorrível nos termos do disposto no art. 433.º do Código de Processo Penal e o Acórdão não conheceu do objeto do processo e muito menos a final, limitou-se apenas a apreciar a invalidade objecto de arguição, constituindo, por isso, uma decisão judicial de natureza meramente interlocutória, só admitindo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões judiciais que, sendo definitivas, conheceram a final do objeto do processo, ou ao menos decidam pôr termo à causa.
2. Porém, no caso de não haver lugar à rejeição do recurso, o Recorrente deve ser notificado, ao abrigo do disposto nos artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, 2ª parte, do Código de Processo Penal, para vir aos autos, no prazo de 10 dias, apresentar as conclusões de recurso, procedendo a um efetivo resumo das razões do seu pedido, sob pena de rejeição do recurso.
3. O recurso interposto pelo Recorrente não constitui o meio processual adequado para desencadear qualquer procedimento de modo que seja proferida decisão a conhecer da suposta ilegalidade da deliberação do Conselho Superior da Magistratura, nomeadamente, se competia ou não ao Plenário ou se podia ser deliberado por uma das respetivas secções, por delegação de competência, a acumulação de serviço das Exmas. Juízas Desembargadoras, relatora e adjunta, que a partir de .../.../2023 deixaram, por transferência para outro tribunal, de pertencer à Relação de Lisboa.
4. As deliberações do Conselho Superior da Magistratura são impugnáveis judicialmente através do procedimento contencioso legalmente previsto e apenas por quem tenha legitimidade.
5. A deliberação de .../.../2023 da Secção de Assuntos Gerais do Conselho Permanente Ordinário do Conselho Superior de Magistratura, tomada dentro da sua competência e poderes de gestão, consolidou-se em termos jurídico-processuais, produzindo os devidos efeitos.
6. Nos autos de recurso, tendo como relatora a Ex.ma Juíza Desembargadora BB, como 1.ª Adjunta a Ex.ma Juíza Desembargadora DD e 2.ª Adjunta a Ex.ma Juíza Desembargadora CC, foi proferido, no dia ... de ... de 2023, pela referida relatora, despacho de exame preliminar, determinando que os autos fossem a vistos simultâneos e, oportunamente, à conferência.
7. Tendo sido feito o exame preliminar e ordenados os vistos simultâneos, a partir de .../.../2023 o projeto de acórdão que foi apresentado passou a estar em discussão entre as Juízas Desembargadoras que pertenciam ao coletivo, sendo que nessa altura ainda não estava publicado em Diário da República o movimento judicial ordinário de 2023.
8. Foi no contexto dos autos de recurso terem já despacho de exame preliminar proferido nos autos pela juíza relatora e vistos de juízas adjuntas já assinados, e com discussão do projeto de acórdão já adiantada que a Secção de Assuntos Gerais do Conselho Permanente do Conselho Superior de Magistratura tomou a mencionada deliberação de .../.../2023, a qual, por isso mesmo, e atendendo ao facto do recurso ter sido distribuído inicialmente às referidas juízas em .../.../2023, não deixou de observar, a par de outros princípios de processo penal, também o princípio do juiz natural, não tendo havido, pois, qualquer intervenção de terceiros na escolha do tribunal para dizer o direito no caso em apreço, nem qualquer imposição do Conselho Superior de Magistratura para que fosse tal coletivo de Juízas Desembargadoras a proceder ao julgamento do recurso.
9. Ora, face à Deliberação do Conselho Superior da Magistratura, a Senhora Juíza Desembargadora Relatora e a Senhora Juíza Desembargadora 2.ª Adjunta, a partir de ... de ... de 2023 continuaram a ter competência funcional e capacidade para o exercício de poderes jurisdicionais nos presentes autos.
10. A ser assim, e contrariamente ao sustentado pelo Recorrente, o Tribunal em causa, na sua composição, respeitou as normas legais aplicáveis e o princípio do juiz natural, sendo competente e de modo algum foi criado contra legem, não se tratando, pois, de qualquer tribunal ad hoc, antes pelo contrário, foram observadas as regras legais relativas ao modo de determinara composição do tribunal, bem como as regras da competência do Tribunal, daí que o Acórdão de .../.../2024 não enferma de inexistência jurídica, nem das nulidades insanáveis previstas nas alíneas a) e e) do art. 119.º, nem de irregularidade prevista no art.123.º, ambas as disposições do Código de Processo Penal.
11. Por outro lado, e contrariamente ao sustentado pelo Recorrente, e no que concerne à falta ou irregularidade da segunda distribuição e aplicando subsidiariamente o Código de Processo Civil, o Acórdão de .../.../2024 também não enferma de inexistência jurídica, nem de nulidade insanável, nem de irregularidade.
12. O art. 217.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não pode deixar de ser conjugado com o art. 205.º, n.º 1, do mesmo diploma legal (Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 28/11/2024, proferido no Proc. n.º 122/13.8TELSB.L1-G. S1e relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Senhor Dr. Celso Manata).
13. No que concerne à falta ou irregularidade da distribuição (primeira ou segunda), o n.º 1 do art. 205.º do Código de Processo Civil afasta a aplicação da regra geral das nulidades contida no art. 195.º do mencionado diploma legal (cfr., neste sentido, António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado,3ª Edição, anotação ao art. 205.º; e Prof. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2, Coimbra 1945, Pág. 527).
14. A ser assim, se a falta ou irregularidade da distribuição não é cominada com o regime das nulidades, é evidente que muito menos o será com o regime da inexistência jurídica, regime mais gravoso que o das nulidades, daí que, e quando muito, em tal caso apenas se poderá verificar apenas a irregularidade prevista no n.º 1 do art. 205.º do Código de Processo Civil.
15. No entanto, e atento o regime traçado no n.º 1 do art. 205.º do Código de Processo Civil, tal irregularidade apenas poderá ser reclamada por qualquer interessado ou suprida oficiosamente até à decisão final.
16. O Recorrente, sendo sabedor da prolação anterior do exame preliminar e de que os autos tinham ido a vistos simultâneos, de ter sido notificado de despacho proferido em .../.../2023 pela Exma. Juíza Desembargadora Relatora (referência citius 20289152), de ter tido conhecimento, certamente, do movimento judicial ordinário de ..., devidamente publicado no Diário da República de .../.../2023, e de ter consultado as inscrições em tabela do processo em .../.../2023 e .../.../2024, acabou por ter tido conhecimento da transferência das Ex.mas Juízas Desembargadoras em ..., no entanto, deveria ter arguido a irregularidade da falta da segunda distribuição antes de ter sido proferido o Acórdão de .../.../2024, sendo que só a veio a arguir após ter sido proferido o referido Acórdão.
17. Daí que com a prolação e publicação do Acórdão de .../.../2024 ter-se-ia sanado a irregularidade da falta da segunda distribuição.
18. Assim sendo, e ainda que por mera hipótese de raciocínio tivesse sido cometida a irregularidade da falta da segunda distribuição, tal irregularidade não afetaria os atos praticados, nomeadamente o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 25/1/2024 (ver, neste sentido, Ac. do STJ de 27/7/2022, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Senhor Dr. Ernesto Vaz Pereira e Ac. do STJ de 28/11/2024, proferido no Proc. n.º 122/13.8TELSB.L1-G. S1e relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Senhor Dr. Celso Manata).
19. Aliás, e também nesse sentido, escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre o seguinte: «Apesar da distribuição ter a finalidade de assegurar a aleatoriedade na determinação do juiz do processo (…), a sua falta, tal como qualquer irregularidade que nela se verifique, não afeta o efeito dos atos posteriores praticados à data da reclamação ou suprimento oficioso do vício, afastando-se, portanto, a aplicação do art.195.º-2 (…) Mas a nulidade do ato de distribuição em si mesmo só se sana com a sentença final, podendo até lá a distribuição ser praticada ou repetida (arts. 210.º-a e 213.º-3, 1ª parte), sob reclamação ou por conhecimento oficioso do vício, com efeito limitado aos atos ainda não praticados e sem pôr em causa a eficácia dos atos anteriores. Assim, se na Relação ou no Supremo o processo tiver já os vistos necessários para julgamento do recurso (arts. 657.º, nºs 2 a 4, e 679.º), a nova distribuição já não se fará, sendo o processo julgado pelos juízes que tiverem vista».
20. O art.49.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, no segmento legal que preceitua «A transferência dos juízes da Relação não prejudica a sua intervenção nos processos já Inscritos em tabela», apenas goza de efeito e eficácia legal limitada ao caso expressamente previsto, ou seja, à situação estatutária de transferência dos juízes da Relação aquando dos movimentos judiciais, funcionando tal norma como condição de transferência dos juízes da Relação e cláusula de salvaguarda quanto aos processos já inscritos em tabela,
garantindo, por via disso, a aplicação dos princípios do juiz natural e da plenitude da assistência dos juízes.
21. A ser assim, o mencionado preceito legal não tem qualquer efeito processual em concretos processos criminais, nomeadamente o efeito que o Recorrente lhe pretende atribuir.
22. Pois, terminados os vistos, o processo entra em tabela para julgamento, sendo que a inscrição prévia do processo em tabela é um mero ato de secretaria (cfr., neste sentido, na jurisprudência, o Acórdão do STJ de 15/5/2024, proferido no Proc. n.º 122/13.8TELSB.L1.S1, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Senhor Dr. Jorge Gonçalves e, na doutrina, o Professor José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, Coimbra 1981, 456).
23. No caso dos autos, o projeto de acórdão passou a estar em discussão a partir de19/6/2023 entre as Juízas Desembargadoras e só não foi inscrito em tabela antes de 1/9/2023 devido à reconhecida complexidade excecional do processo, pelo número de volumes e apensos e extensão da acusação, decisão objeto de recurso e peças recursórias e subsequentes, no entanto, os vistos estavam praticamente terminados, daí que a tal situação não pode deixar de se aplicar o mesmo preceito legal.
24. À luz do compromisso estabelecido entre, por um lado, o princípio do juiz natural e, por outro lado, os princípios da imparcialidade e isenção dos juízes – imprescindíveis à noção de processo equitativo – que se justifica a interpretação com as devidas adaptações, que à fase de recurso em que se encontravam os presentes autos, resulta que a Exma. Juíza Desembargadora Relatora, a quem processo foi distribuído, que assinou os vistos, devia continuar como Relatora do acórdão. O mesmo sucedendo com a Exma. Juíza Desembargadora Adjunta.
25. Não se vislumbra, qualquer violação dos princípios do juiz natural, da plenitude de assistência dos juízes e das garantias de defesa do Recorrente, não sendo caso de considerar existentes as inconstitucionalidades suscitadas decorrentes da interpretação levada a efeito pelo tribunal relativamente à competência da Exma. Juíza Desembargadora Relatora e da Exma. Juíza Desembargadora 2ª Adjunta para julgar o recurso interposto.
26. O princípio do juiz natural na perspetiva do valor que o Recorrente lhe pretende atribuir não tem um valor absoluto e não prevalece sobre os demais princípios, sendo que em caso de conflito entre princípios, haverá necessidade de, segundo o critério doutrinário da «concordância prática», os harmonizar de maneira que nenhum deles se sobreponha absolutamente aos outros, restringindo cada um deles na medida do estritamente necessário para permitir a realização dos demais (cfr., neste sentido, o Acórdão do STJ de 24/4/2024, proferido no Proc. n.º 5/15.5GEBRG.G1.S1-D, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Senhor Dr. João Rato).
27. O Acórdão recorrido mostra-se correctamente fundamentado.
28. A ser assim, a argumentação apresentada pelo Recorrente não tem qualquer fundamento e como tal o douto Acórdão recorrido não merece nenhum reparo ou censura.
4. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), limitou-se a apor o seu visto.
5. Colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões apresentadas - que pecam por excesso, muito embora se entenda não carecerem de aperfeiçoamento -, as questões que o recorrente suscita são as seguintes:
- da inexistência / nulidade / irregularidade do acórdão da Relação de Lisboa, proferido em janeiro de 2024, em razão da intervenção no mesmo da Ex.ma Sr.ª Juíza Desembargadora Relatora e da Ex.ma Sr.ª Juíza Desembargadora 2.ª adjunta, por alegada violação do princípio do juiz natural;
- Inconstitucionalidade das interpretações normativas das normas infraconstitucionais invocadas, nomeadamente dos artigos 217.º, do Código de Processo Civil, e 49.º, n.º2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por alegada violação dos princípios gerais que conformam a estrutura do processo penal português, como estrutura acusatória, princípios, garantias e direitos fundamentais a processo justo e equitativo, da legalidade processual e do juiz legal, consagrados nos artigos 20.º, 32.º, 216.º, n.º 1, 217.º, n.º 3, da Lei Fundamental.
O Ministério Público, na sua resposta, questiona a admissibilidade do recurso.
2. Do acórdão recorrido
O acórdão recorrido, de 2.05.2024, julgou improcedente o requerimento apresentado pelo arguido/ora recorrente, tendo indeferido a arguição de inexistência / nulidade / irregularidade do acórdão da Relação de Lisboa, de 25.01.2024.
A propósito das questões suscitadas pelo ora recorrente, acerca da intervenção, no acórdão de 25.01.2024, das Sr.ª Juíza Desembargadora Relatora e da Sr.ª Juíza Desembargadora 2.ª Adjunta, diz-se no acórdão recorrido:
«3. A violação das “regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal” e as “regras de competência do tribunal”- nulidades absolutas insanáveis previstas nas alíneas a) e e) do artigo 119.º do Código de Processo Penal. A incompetência das magistradas. A nulidade e / ou inexistência do acórdão.
Nos termos do art. 119.º do CPP, constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.
Como foi determinada a composição deste tribunal?
Veja-se a informação dada pela Secção central a 09.02.2024.
(…)
O processo foi distribuído à relatora e, em consequência, às Sr.ªs Juízes Adjuntas.
As Magistradas que compunham o Colectivo, atenta a complexidade do processo e os milhares de folhas que o compunham, foram colocadas em regime de exclusividade, tendo começado o estudo do processo.
Aquando do concurso ordinário ocorrido em 2023 a relatora e uma das adjuntas foram movimentadas para outros tribunais.
Antes da tomada de posse no “novo” tribunal a aqui relatora já tinha enviado o processo para os vistos das Colegas e da Ex. Sr.ª Presidente, tendo-se seguido, relativamente a esta e ao substituto legal, a tramitação necessária à invocação do impedimento e escusa, respetivamente.
Na verdade, à data em que a ora relatora e a segunda adjunta neste recurso foram movimentadas, respetivamente, para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal da Relação de Guimarães, no movimento ordinário de 2023, já a sua competência para tramitar e proferir acórdão nestes autos estava fixada.
A competência material de cada tribunal em questões penais está regulada no CPP, e subsidiariamente nas leis de organização judiciária, e determina-se em razão da natureza das causas e, em certas circunstâncias muito contadas, também da qualidade das pessoas, e, ao mesmo tempo, de acordo com a repartição própria da predefinição das regras sobre competência territorial.
Dispõe o artigo 418º do CPP que 1 - Concluído o exame preliminar, o processo, acompanhado do projeto de acórdão se for caso disso, vai a visto do presidente e dos juízes-adjuntos e depois à conferência, na primeira sessão que tiver lugar.
2 - Sempre que a natureza do processo e a disponibilidade de meios técnicos o permitirem, são tiradas cópias para que os vistos sejam efectuados simultaneamente.
Tal resulta do disposto no art.º 49.º, n.º 4, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) que dispõe que "Quando o relator mudar de secção, mantém-se a sua competência e a dos seus adjuntos que tenham tido visto para julgamento."
As razões que presidem à manutenção da competência do relator e dos adjuntos quando mudam de secção são as mesmas que estão na base da mudança de tribunal: o relator já elaborou o projecto do acórdão e os adjuntos já se inteiraram do mesmo.
Além deste nosso entendimento, o Conselho Superior da Magistratura, por deliberação de 14.07.2023 decidiu “determinar que as Emas, Senhoras Juízas Desembargadoras Dra. BB e Dra. CC, que foram transferidas no MJO de 2023 para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal da Relação de ... respetivamente, se mantenham em exclusividade, em regime de acumulação de funções nos termos do disposto no artigo 29.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e sem distribuição de serviço nos Tribunais da relação para os quais foram transferidas, na apreciação e decisão do processo n.º 122/13.8..., do Tribunal da Relação de Lisboa, até ao próximo dia 30 de setembro, prorrogável em caso de necessidade, se entretanto a decisão não tiver sido proferida".
Esta solução traduz um respeito integral pelo princípio do juiz natural. O processo foi distribuído aleatoriamente ao colectivo que assim se manteve, a partir de Setembro de 2023, em acumulação de funções até à sua publicação.»
3. Apreciando
3.1. Questão da admissibilidade do recurso
O TCIC, por decisão instrutória de ........2021, no que para aqui releva, não pronunciou o arguido AA, por dois crimes de branqueamento de que vinha acusado.
Na procedência de recurso interposto pelo Ministério Público da parte da decisão instrutória de não pronúncia, foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa o acórdão de ........2024 que, revogando a decisão recorrida, no que para aqui releva, pronunciou o arguido AA pela prática, em coautoria com outros arguidos no processo, de dois crimes de branqueamento.
Como já se disse supra, o arguido/ora recorrente arguiu a inexistência do dito acórdão de ........2024, com base na alegação de que o mesmo foi proferido por coletivo integrado por duas Desembargadoras que, na referida data, já não pertenciam ao Tribunal da Relação de Lisboa e, para o caso de assim se não entender, invocou a sua nulidade (artigo 119.º do CPP), alegando terem sido violadas as normas legais relativas ao modo de determinar a competência do tribunal, e, ainda, também para o caso de assim se não entender, a sua irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Sobre essa arguição recaiu acórdão, do mesmo coletivo, de ........2024, de que o arguido AA interpôs recuso para o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi admitido na Relação, por despacho de
........2024, com fundamento em que, não sendo recorrível o acórdão que decidiu o recurso da decisão da 1.ª instância, nos termos das alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP, também não é igualmente admissível recurso do acórdão em causa.
O recorrente apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, pugnando pela revogação do despacho reclamado por, alegadamente, se fundar em normas inaplicáveis ao caso concreto, para depois referir, em síntese, que o recurso tem necessariamente que ser admitido uma vez que suscitou a inexistência/nulidade/irregularidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em ........2024, por flagrante violação das regras relativas à composição do tribunal e competência das Senhoras Juízas Desembargadoras para proferir tal acórdão, tendo a questão suscitada sido decidida em 1.ª instância pelo Tribunal da Relação e pelas Desembargadoras visadas, tendo invocado os n.ºs 1 e 9 do artigo 32.º da CRP.
Acrescentando que a admissão do recurso é imposta pela própria configuração da estrutura processual penal constitucionalmente reconhecida que garante ao arguido que o seu processo é julgado pelo juiz competente para o efeito, invocando o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 428/2014, de 25 de junho de 2014, no qual se decidiu: “c) julgar inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente à decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal de Instrução Criminal.”
Conclui ser recorrível a decisão em causa, devendo os artigos 310.º, n.º 1, a contrario, 399.º, n.º 1, a contrario e 401, n.º 1, alínea b), do CPP, interpretar-se de modo a permitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
A reclamação foi decidida, favoravelmente, em ........2024, pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo, na sequência, sido proferido, na Relação, despacho de admissão do recurso, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
A decisão da reclamação, nos termos do artigo 405.º, n.º4, do CPP, parte final, não vincula o tribunal de recurso.
O Ministério Público, na resposta ao recurso, sustenta a inadmissibilidade do mesmo, alinhando, em suma, as seguintes razões:
- o acórdão de ........2024, no tocante à questão invocada, não é suscetível de ser enquadrado na alínea a), do n.º 1, do artigo 432.º, do CPP, já que tal norma só se reporta às decisões proferidas em 1.ª instância pela Relação e, no caso, o referido acórdão foi proferido em recurso, para além das decisões das Relações proferidas em 1.ª instância das quais cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça serem as que constam do artigo 12.º, n.º 3, alíneas a), c), d) e e), do CPP;
- o acórdão de ........2024 não admite recurso ordinário, sendo que, por mera hipótese, se se pudesse considerar um despacho de pronúncia que a Relação tinha proferido em 1.ª instância, ainda assim não admitia recurso porque a lei estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos e crimes constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público – artigo 310.º do CPP;
- a recorribilidade para o STJ de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b), do n.º 1, que se recorre «de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º», estabelecendo a alínea c) do seu n.º 1, serem irrecorríveis os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º» - no entanto, o acórdão de ........2024 não se enquadra na exceção prevista na parte final da norma transcrita;
- o acórdão de ........2024 que julgou improcedente o requerimento do arguido e indeferiu a arguição da inexistência/nulidade/irregularidade do acórdão de ........2024, não conheceu do objeto do processo e muito menos a final, constituindo, por isso, uma decisão judicial de natureza meramente interlocutória;
- à recorribilidade das decisões da Relação proferidas em recurso, aplica-se o regime consagrados nos artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, alíneas c) a f), do CPP, pelo que o acórdão de ........2024 não se mostra recorrível em mais um grau de recurso ordinário;
- não obstante o recorrente ter sustentado a admissão do recurso tendo por base o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, posição que acabou
por merecer acolhimento em sede de reclamação, a situação jurídico-processual relativa aos presentes autos é bem diferente da configurada no dito acórdão do Tribunal Constitucional, pois a fase processual nele abordada é a fase de instrução e, no caso dos autos, estamos no âmbito da fase de recurso;
- acresce que a declaração de inconstitucionalidade decidida pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 482/2014 (aceite também no acórdão n.º 203/2016) é restrita ao processo em que foi proferido, conforme resulta do disposto no n.º 1, do artigo 80.º, da LTC, na medida em que o efeito de caso julgado, decorrente da apreciação do mérito do recurso de fiscalização concreta, está circunscrito ao âmbito do «processo-base» em que se enxertou o recurso para o Tribunal Constitucional.
A nosso ver, o recurso é admissível, sendo de sufragar, no essencial, as razões apresentadas pelo Ex.mo Vice-Presidente do STJ, na decisão da reclamação apresentada pelo recorrente.
No caso, o recorrente invoca a violação do juiz natural por alegado vício na composição do coletivo que o pronunciou pelos dois crimes de branqueamento de que vinha acusado.
A competência material (e funcional) do tribunal exige a sua regular constituição, consubstanciando requisito de validade das respetivas decisões.
A decisão recorrida foi prolatada pela Relação de Lisboa, em recurso, não sendo, por isso, uma decisão que a Relação tenha proferido em 1.ª instância, mesmo na parte em que apreciou e decidiu a questão da violação das regras relativas à composição do tribunal coletivo, que o recorrente sustenta na circunstância de, segundo alega, as Exmas. Desembargadoras, relatora e 2.ª adjunta, já não pertencerem ao Tribunal da Relação de Lisboa quando foi aí prolatado o acórdão de 25.01.2024 que o pronunciou pelos crimes de branqueamento. Tal acórdão foi proferido em instância de recurso e não em 1.ª instância.
Como se assinala na decisão da reclamação, é sabido que o processo penal se estrutura por fases: as preliminares (inquérito e instrução), a de julgamento, a de recurso e a de execução (de decisões condenatórias). “Abundante parece ter de notar-se que na fase de recurso, necessariamente processada em tribunal superior, todas as decisões ou despachos são, evidentemente, de 2.ª instância, independentemente de incidirem sobre o mérito da causa ou apenas sobre questões atinentes à tramitação do procedimento. É, pois, a fase do processo que determina o grau da decisão nele proferida. Os tribunais superiores proferem decisões em 1.ª instância, apenas quando por lei lhe compete praticar atos jurisdicionais no inquérito, proceder à instrução ou tramitar o processo na fase de julgamento. Tanto deveria bastar para que o recorrente percebesse que os tribunais superiores não proferem decisões de 1.ª instância na fase de recurso.”
In casu, o acórdão recorrido, no tocante à questão invocada, não é suscetível de ser enquadrado na alínea a), do n.º 1, do artigo 432.º, do CPP, já que esta norma se reporta às decisões proferidas em 1.ª instância pela Relação, enquanto o referido acórdão foi proferido em instância de recurso, para além das decisões das Relações proferidas em 1.ª instância, das quais cabe recurso para o STJ, serem as que constam do artigo 12.º, n.º 3, alíneas a), c), d) e e), do CPP.
Não suscita dúvida que o acórdão de 24.01.2024 não admite recurso ordinário, sendo certo que, mesmo que, por mera hipótese, se pudesse considerar um despacho de pronúncia que a Relação tinha proferido em 1.ª instância, ainda assim não admitia recurso porquanto a lei estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos e crimes constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público.
Assim, o que está em causa é o recurso do acórdão recorrido, no qual o a Relação indeferiu a arguição, em incidente pós-decisório, da inexistência/nulidade/irregularidade fundada na alegada violação das regras legais sobre a composição do tribunal coletivo que, em recurso, pronunciou o arguido pelos dois crimes de branqueamento imputados na acusação pública.
A recorribilidade para o STJ de decisões penais está prevista no artigo 432.º, do CPP, dispondo a alínea b), do n.º 1, que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
A alínea c), do n.º 1, do artigo 400.º, estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º”.
O caso não se enquadra na exceção prevista na parte final da norma transcrita, sendo certo que o acórdão recorrido não conheceu do objeto do processo, e muito menos a final, limitando-se a apreciar a arguição de invalidade.
Como se disse na decisão da reclamação, somente admitem recurso para o STJ as decisões judiciais que, sendo definitivas, conheçam a final do objeto do processo, ou ao menos decidam pôr termo à causa. final, o que não é manifestamente o caso, razão por que, aplicando o regime geral dos recursos ordinários, o acórdão em causa não admitiria recurso.
Posto isto, concordamos com a análise contida na decisão da reclamação, de que extraímos:
«A questão decidida no acórdão do Tribunal Constitucional que invoca não sendo exatamente igual, apresenta alguns pontos comuns uma vez que o da Relação pronunciou o arguido pelos crimes de branqueamento.
Enquanto ali se discutia a competência material do TCIC para a instrução e prolação da decisão instrutória, aqui não se discute a competência da Relação de Lisboa para julgar o recurso do Ministério Público. Ali não se questionava se a decisão instrutória devia ser proferida pelo juiz A ou B ou C do TCIC (que funciona sempre com juiz singular), enquanto aqui se invoca a ilegalidade da composição do coletivo com fundamento na ilegalidade da manutenção na condução do processo, após transferência, das Exmas. Desembargadoras que eram, pela distribuição inicial, relatora e 2.ª adjunta.
Como distintos são as fases daquele e deste processo:
- ali o recurso do arguido não havia sido admitido vinha interposto de despacho do juiz de instrução, proferido em 1.ª instância que, em incidente pós-pronúncia, indeferiu requerimento em que se arguia a nulidade insanável do despacho de pronúncia por alegada violação das regras atributivas da competência material do TCIC para a instrução;
- aqui, o acórdão recorrido foi proferido na fase de recurso, ainda que também em incidente pós-decisório, se indeferiu a arguição de nulidade fundando-a em alegada ilegalidade da composição do tribunal coletivo por duas Desembargadoras que, à data da decisão de pronúncia, já não pertenciam ao tribunal.
De comum têm uma decisão instrutória de pronúncia e a posterior arguição de nulidade da mesma por alegada violação das regras da determinação do tribunal materialmente competente.
(…) a arquitetura da recorribilidade das decisões judicias é o que está consagrada no art. 32.º n.º 2 da Constituição da República.
É nesse travejamento que se fundou a declaração de inconstitucionalidade decidida pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 482/2014 e que o acórdão n.º 203/2016, parece ter seguido, citando-o.
Apresentando o caso duas coincidências relevantes:
- a existência de uma decisão de pronúncia do arguido;
- a nulidade indeferida foi arguida em incidente pós-despacho de pronúncia.
Para situações jurídico-adjetivas com essas semelhanças não é crível que um legislador razoável tivesse querido adotar ou impor soluções radicalmente diversas.
Explicitando:
- que admite recurso o despacho do juiz de instrução da 1.ª instância proferido em incidente pós-decisório ao despacho de pronúncia, no qual se indeferiu a arguição da nulidade da sua decisão instrutória com fundamento em alegada incompetência material;
- que não admite recurso o acórdão da Relação proferido em recurso, que em incidente pós-decisório ao acórdão que pronunciou o arguido, indeferiu a arguição da nulidade da sua decisão instrutória com fundamento em alegada incompetência material por violação das regras de composição do tribunal.
Tanto basta para se concluir pela aplicabilidade ao caso da norma do art. 310.º n.ºs 1 e 3 do CPP, interpretado em conformidade com o direito ao recurso consagrado no art. 32.º n.º 1 da Constituição da República e no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos segundo a qual “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, (…) sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”.
Assim, independentemente de a arguição da nulidade em causa ter sido conhecida pelo Tribunal da Relação, decidida em recurso e de não ter posto termo à causa; de o acórdão recorrido não ser suscetível de enquadramento na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º tendo em conta que esta norma se reporta às decisões proferidas em 1.ª instância pela Relação e, no caso, o referido acórdão foi proferido em instância de recurso, para além das decisões das Relações proferidas em 1.ª instância das quais cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça serem as que constam do artigo 12.º, n.º 3, alíneas a), c), d) e e), do CPP, nem encontrar respaldo em norma que encontre amparo no disposto no art. 433.º, ambos do CPP,; e ainda e tal como vem de dizer-se, de não se integrar na previsão da al.ª c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP uma vez que não conheceu a final do objeto do processo nem pôs termo à causa, todavia, porque contém um despacho de pronúncia do arguido proferido pela Relação e de a questão que fundamenta o recurso se centrar na alegada composição do colético que pronunciou o arguido, não se pode desconsiderar a declaração de inconstitucionalidade decidida pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 482/2014, aceite no seu acórdão n.º 203/2016, acima citado.
Assim, seguindo aquela jurisprudência e, consequentemente, aplicando ao caso a norma do art. 310.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, lidas à luz dos preceitos da CRP e da CEDH citados, com o “sentido de ser recorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente à decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal” por invocada ilegalidade da composição do tribunal coletivo que pronunciou o arguido pelos dois crimes de branqueamento de que vinha acusado, entende-se que o recurso deve ser admitido.»
Não se ignora que a situação jurídico-processual não coincide exatamente com a que está na origem do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, e bem assim que a declaração de inconstitucionalidade decidida pelo Tribunal Constitucional nesse acórdão (aceite também no acórdão n.º 203/2016) é restrita ao processo em que foi proferida, conforme resulta do disposto no n.º 1, do artigo 80.º, da LTC.
Existem, porém, como se diz na decisão da reclamação, duas coincidências particularmente relevantes: a existência de uma decisão de pronúncia do arguido; a nulidade indeferida, relativa à questão da competência, foi arguida em incidente pós-despacho de pronúncia.
As razões para que se admita recurso do despacho do juiz de instrução da 1.ª instância, proferido em incidente pós-decisório ao despacho de pronúncia, no qual se indeferiu a arguição da nulidade da sua decisão instrutória com fundamento em alegada incompetência material, estão presentes quando se trate de discutir a admissibilidade de recurso do acórdão da Relação (proferido em recurso), que em incidente pós-decisório ao acórdão que pronunciou o arguido, indeferiu a arguição da nulidade da sua decisão instrutória com fundamento em alegada incompetência material por violação das regras de composição do tribunal.
Daí concluir-se que a norma do artigo 310.º n.ºs 1 e 3 do CPP, lida em conformidade com o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º n.º 1, da Constituição da República e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, deve ser interpretada no sentido propugnado na decisão da reclamação, ou seja, no de ser recorrível a decisão (no caso, o acórdão recorrido), subsequente à decisão de pronúncia, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da invocada violação das regras de competência do Tribunal, por invocada ilegalidade da composição do tribunal coletivo que pronunciou o arguido pelos dois crimes de branqueamento de que vinha acusado.
Em suma, em consonância com as razões nesse sentido apresentadas na decisão da reclamação, acima transcritas, entendemos ser o recurso admissível, como acabou por ser admitido, com o efeito e regime de subida determinados no despacho de admissão.
3.2. Invoca-se a ilegalidade da composição do coletivo do acórdão de ........2024, com fundamento na intervenção no mesmo, após transferência, das Exmas. Desembargadoras que eram, pela distribuição inicial, relatora e 2.ª adjunta, do que resultam, segundo o recorrente, em alternativa, os vícios de inexistência, nulidade ou irregularidade do referido acórdão, por violação do princípio do juiz natural.
Assinale-se que o recorrente, nas razões que apresenta contra o acórdão recorrido, refere-se a alguns argumentos utilizados pelo Ministério Público, em exercício do contraditório, na resposta à arguição dos vícios – e, por conseguinte, em momento prévio à prolação do acórdão -, como se tais argumentos tivessem sido acolhidos – e não foram - no mesmo acórdão. É o que ocorre com muito do que se alega nas conclusões GG e seguintes, essencialmente reportadas a argumentos da dita resposta do Ministério Público à arguição dos vícios.
Sustenta o recorrente, em suma, que a intervenção no acórdão de ........2024, após transferência, das Exmas. Desembargadoras que eram, pela distribuição inicial, relatora e 2.ª adjunta, traduziu-se numa espécie de tribunal “ad hoc”, pois uma vez transferidas as Juízas em ..., antes da inscrição do processo em tabela, o processo tinha necessariamente de ser remetido a nova distribuição.
Vejamos.
Constata-se que nos autos principais, tendo como relatora a Ex.ma Juíza Desembargadora BB, como 1.ª Adjunta a Ex.ma Juíza Desembargadora DD e 2.ª Adjunta a Ex.ma Juíza Desembargadora CC, foi proferido, no dia ... de ... de 2023, pela referida relatora, despacho de exame preliminar, determinando que os autos fossem a vistos simultâneos e, oportunamente, à conferência (referência CITIUS ...) - despacho notificado ao ilustre mandatário do recorrente, com certificação CITIUS de ... de ... de 2023 (referência do documento ...).
As referidas magistradas que compunham o coletivo, atenta a complexidade do processo, foram colocadas em regime de exclusividade após a distribuição.
Na sequência do despacho de exame preliminar, foram dados vistos simultâneos, em ... de ... de 2023, assinados em ... de ... de 2023 pelas duas Ex.mas Desembargadoras Adjuntas, tendo o Ex.mo Juiz Presidente da Secção pedido a sua escusa, o que foi concedido por acórdão do STJ, de ... de ... de 2023.
Por força da Deliberação (extrato) n.º 841/2023, do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de ... de ... de 2023 (posterior, por conseguinte, ao referido despacho de exame preliminar), que aprovou o movimento judicial ordinário de 2023, publicada na 2.ª Série, n.º 169, do DR de 31.08.2023, a Ex.ma Juíza Desembargadora BB foi transferida para o Tribunal da Relação do Porto e a Ex.ma Juíza Desembargadora CC transferida para o Tribunal da Relação de ....
Por deliberação de ... de ... de 2023, da Secção de Assuntos Gerais do Conselho Permanente do Conselho Superior de Magistratura, foi decidido determinar que as Exmas. Senhoras Juízas Desembargadoras Dra. BB e Dra. CC, que foram transferidas no MJO de ... para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal da Relação de ... respetivamente, se mantivessem em exclusividade, em regime de acumulação de funções nos termos do disposto no artigo 29.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e sem distribuição de serviço nos Tribunais da relação para os quais foram transferidas, na apreciação e decisão do processo n.º 122/13.S...-L.1, do Tribunal da Relação de Lisboa, até ao próximo dia ..., prorrogável em caso de necessidade, se entretanto a decisão não tiver sido proferida.
Como se constata, pela consulta dos autos, a Ex.ma Juíza Desembargadora BB continuou a proferir despachos no processo, como relatora, após ... de ... de 2023, data em produziu efeitos o movimento judicial ordinário.
Em ... de ... de 2023, o recurso foi inscrito pela secretaria na tabela da sessão do dia ..., tendo sido, entretanto, proferido despacho pela Ex.ma relatora, em ... de ... de 2023, no sentido de que o acórdão se mantinha em discussão, pelo que o mesmo devia ser retirado da tabela, aguardando a Secção por despacho relativo à oportuna inscrição.
Finalmente, foi proferido despacho pela Ex.ma relatora, em ... de ... de 2024, com o seguinte teor: «Colhidos que estão os vistos, inscreva o processo em tabela para a próxima sessão de .... DN.»
Em ... de ... de 2024, foi proferido o acórdão supra referido, que julgou parcialmente procedente o recurso interposto – acórdão subscrito pelo mencionado coletivo de Ex.mas Juízas Desembargadoras.
As deliberações do Conselho Superior da Magistratura (CSM) são impugnáveis judicialmente através do procedimento contencioso legalmente previsto e apenas por quem tenha legitimidade e, em todo o caso, as deliberações do CSM ou das suas secções somente poderão ter efeitos no processo penal se, ignorando ou abrogando regras processuais e orgânicas que estabelecem o modo de encontrar o juiz natural do processo, se traduzirem na nomeação, ad hoc, de um ou mais juízes para tramitar e julgar a causa.
A matéria atinente à organização e competência dos tribunais entronca no princípio do juiz natural (ou juiz legal), previsto no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP), de onde decorre que a parcela de jurisdição atribuída a cada tribunal seja objeto de prévia e clara determinação legal.
Realmente, dispõe o n.º 9, do artigo 32.º, da CRP, que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior. É deste modo que o legislador constitucional define o princípio do juiz natural, enquanto corolário do princípio da legalidade em matéria penal, constituindo aquele princípio garantia dos cidadãos, prevenindo as interferências e arbitrariedades do poder do Estado.
O que está em causa é assegurar que a designação de um juiz ou de um tribunal para conhecer de determinada causa observou as prescrições da lei. Para tanto, as normas orgânicas e processuais reguladoras da matéria devem permitir a determinação do tribunal que há-de decidir o processo, fundada em critérios objetivos, não sendo, portanto, admissível que essa determinação resulte de critérios discricionários (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, p. 525; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª Edição, 1974, Reimpressão 2004, Coimbra Editora, pp. 321 e seguintes, e Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 1, ..., Universidade Católica Editora, pp. 61 e ss). Como ensina Figueiredo Dias (op. e loc. cit.), o princípio do juiz natural [ou do juiz legal] procura sancionar, de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente.
O princípio do juiz natural comporta três dimensões, a saber: a exigência de determinabilidade, que determina que o juiz chamado a decidir no caso concreto esteja previamente determinado através de leis gerais; o princípio da fixação de competência, que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz, e; a observância das determinações de procedimentos relativos à distribuição de processos, portanto, relativos à divisão funcional interna (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. e loc. cit.).
Atente-se que, sendo certo que o princípio em causa visa garantir que o processo é julgado pelo juiz competente para o efeito, em observância do disposto em lei anterior, o mesmo não tem, no entanto, natureza absoluta, podendo haver lugar à sua derrogação em circunstâncias extraordinárias, designadamente, por exemplo, quando o juiz natural não ofereça, no caso concreto, as imprescindíveis garantias de isenção e imparcialidade, ou quando, devido a doença prolongada daquele, o processo fique sem movimentação por período de tempo não razoável.
Assinale-se, igualmente, que a Lei n.º 67/2019, de ..., alterou o artigo 29.º da Lei n.º 21/85, de 30 de julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais — EMJ), prevendo o princípio geral da remuneração do exercício de funções jurisdicionais em acumulação. Fê-lo no capítulo II, sobre os deveres e direitos dos magistrados judiciais de ambas as instâncias e do Supremo Tribunal de Justiça, assim prevendo a medida de exercício de funções em acumulação em todos os tribunais judiciais, incluindo os tribunais superiores.
A aplicação desta medida pelo Conselho Superior da Magistratura tem longa tradição na 1.ª instância e, mais recentemente, em ..., também passou a fazer-se nos tribunais da Relação, permitindo-se o exercício de funções jurisdicionais em acumulação em tribunal da Relação diferente do da colocação, matéria presentemente objeto do Regulamento n.º 500/..., de 24.04.
Como já se disse, as Ex.mas Juízas Desembargadoras, atento o volume e complexidade do processo, foram colocadas em regime de exclusividade.
Entende-se, por isso, que não desaproveitando todo o trabalho já desenvolvido ao longo de meses de exclusividade, haja sido decidido que a Juíza Desembargadora relatora e a Juíza Desembargadora 2.ª adjunta, transferidas no movimento judicial ordinário de ... para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal da Relação de ..., respetivamente, se mantivessem em exclusividade, em regime de acumulação de funções nos termos do disposto no artigo 29.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e sem distribuição de serviço nos Tribunais da Relação para os quais foram transferidas, na apreciação e decisão do processo n.º 122/13.S...-L.1, do Tribunal da Relação de Lisboa.
Ou seja, em acumulação de funções na Relação de Lisboa (para o processo aqui em causa, no qual vinham a trabalhar em regime de exclusividade de há vários meses) e nos tribunal de Relação para que foram transferidas, ainda que sem distribuição de serviço nos mesmos.
Reafirmando que as deliberações do CSM são impugnáveis judicialmente através do procedimento contencioso legalmente previsto e apenas por quem tenha legitimidade, o recurso ora interposto não constitui meio processual adequado para desencadear qualquer procedimento de modo que seja proferida decisão a conhecer da suposta ilegalidade da deliberação do Conselho Superior da Magistratura, nomeadamente, se competia ou não ao Plenário ou se podia ser deliberado por uma das respetivas secções, por delegação de competência,
a acumulação de serviço das Exmas. Juízas Desembargadoras, relatora e adjunta, que a partir de ........2023 deixaram, por transferência para outro tribunal, de pertencer à Relação de Lisboa.
Porém, importa reter que, no caso em apreço, o despacho de exame preliminar e a assinatura dos vistos são anteriores à data em produziu efeitos o movimento judicial ordinário de ....
De harmonia com o disposto no artigo 418.º, do CPP, concluído o exame preliminar, o processo, acompanhado do projeto de acórdão se for caso disso, vai a vistos e, depois, à conferência, na primeira sessão que tiver lugar.
A lei processual penal vigente não se refere à inscrição prévia em tabela, que é um mero ato de secretaria, porquanto o processo vai à conferência, automaticamente, na primeira sessão que tiver lugar após os vistos, independentemente dessa inscrição (cf. anotação do Conselheiro Pereira Madeira, em anotação ao artigo 418.º, in “Código de Processo Penal Comentado” de António Henriques Gaspar, et al., 2.ª Edição Revista, Almedina, 2016; também Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, volume II, 5.ª edição atualizada, p. 694).
Quer isto dizer que, feito o exame preliminar e ordenados os vistos simultâneos, passa a estar em discussão, entre os juízes que compõem o coletivo, o projeto de acórdão que tenha sido apresentado.
Como já era entendimento do Prof. José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, Vol. V, Coimbra 1981, 449), o despacho do relator a ordenar os vistos marca o momento em que o processo entra na fase de julgamento final ou, dito de outro modo, o momento em que se inicia a fase do julgamento final, sendo que, terminados os vistos, o processo entra em tabela para julgamento por simples ato de secretaria (o mesmo autor e obra, p. 456).
Em processo penal, como já se disse, nem sequer está legalmente prevista a inscrição prévia em tabela.
A colegialidade não se verifica apenas no momento da discussão e subscrição do projeto de acórdão. Os vistos e a apresentação antecipada do projeto, seguida da eventual introdução das modificações, faz supor o pleno conhecimento do objeto do recurso e o acesso aos elementos pertinentes constantes do processo.
Assim, efetuado o exame preliminar e ordenados os vistos simultâneos, a
partir de ........2023, o recurso e o projeto de acórdão que foi apresentado passou a estar em discussão entre as Juízas Desembargadoras que pertenciam ao coletivo, sendo que nessa altura ainda não estava publicado em Diário da República o movimento judicial ordinário de ....
Foi, pois, neste contexto, dos autos de recurso terem já despacho de exame preliminar proferido nos autos pela Juíza Desembargadora relatora e vistos das Juízas Desembargadoras adjuntas já assinados, que foi tomada a mencionada deliberação de ........2023.
O recurso veio a ser decidido pelas Juízas Desembargadoras a que havia sido distribuído e que, antes da publicação no DR da transferência da relatora e da 2.ª adjunta para outros tribunais da Relação, já tinham assinado os vistos.
O princípio do juiz natural ou do juiz legal garantido pelo citado n.º 9, do artigo 32.º, da CRP, não tem por desiderato assegurar a imutabilidade do juiz ou juízes, antes evitar a designação arbitrária ou a escolha discricionária de um juiz ou tribunal e proibir a criação de tribunais ad hoc.
O julgamento do recurso pelas Juízas Desembargadoras a quem o mesmo foi distribuído, inicialmente, em ........2023, num caso em que o exame preliminar e os vistos são anteriores à transferência para outros tribunais, não se traduz em qualquer designação arbitrária ou discricionária de juiz, nem na criação contra legem de um tribunal ad hoc.
É certo que o artigo 217.º, n.º1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, estabelece que, se no ato da distribuição constar que está impedido o juiz a quem o processo foi distribuído, é logo feita segunda distribuição na mesma escala; o mesmo se observa caso, mais tarde, o relator fique impedido ou deixe de pertencer ao tribunal.
Esta disposição, porém, para além de não contender com a possibilidade de acumulação de funções em vários tribunais – caso em que não se pode dizer, em rigor, que o relator deixou de pertencer ao tribunal, precisamente por acumular funções em dois tribunais -, também não contende com o entendimento de que, proferido já exame preliminar e assinados os vistos, o que pressupõe a existência de projeto de acórdão colocado à discussão, a transferência de relator e adjuntos não determina a redistribuição do recurso, ou seja, se o processo já tem os vistos necessários para entrar em tabela (inscrição que não está prevista em processo penal, como já se viu), a redistribuição já não tem razão de ser e o recurso há-de ser julgado pelo juiz que proferiu o exame preliminar e os que puseram o visto.
Diz-se no acórdão recorrido:
«Tal resulta do disposto no art.º 49.º, n.º 4, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de ...) que dispõe que "Quando o relator mudar de secção, mantém-se a sua competência e a dos seus adjuntos que tenham tido visto para julgamento."
As razões que presidem à manutenção da competência do relator e dos adjuntos quando mudam de secção são as mesmas que estão na base da mudança de tribunal: o relator já elaborou o projeto do acórdão e os adjuntos já se inteiraram do mesmo.»
Não se duvida que o artigo mencionado reporta-se à mudança de secção, mas a justificação da manutenção da competência do relator e dos adjuntos, após exame preliminar e assinatura dos vistos, independentemente da transferência, tem por base a mesma razão de ser: o processo entrou na fase de julgamento final - o relator já elaborou o projeto do acórdão e os adjuntos já se inteiraram do mesmo.
No que toca à aplicação ao caso dos autos do artigo 49.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), no segmento que preceitua «A transferência dos juízes da Relação não prejudica a sua intervenção nos processos já inscritos em tabela», como norma de salvaguarda quanto aos processos já inscritos em tabela, além de não contender com a possibilidade de acumulação de funções em vários tribunais – mantendo as Ex.mas Juízas Desembargadoras, a partir de ... de ... de 2023, competência funcional e capacidade para o exercício de poderes jurisdicionais nos autos -, não pode perder de vista a circunstância já assinalada de, em processo penal, terminados os vistos, o processo entrar em fase de julgamento, sendo que a inscrição prévia do processo em tabela é um mero ato burocrático de secretaria, que nem sequer está previsto no CPP como condição a preencher para que se efetue o julgamento dos recursos em conferência.
Não identificamos no acórdão recorrido e no presente a adoção, como ratio decidendi, de quaisquer interpretações normativas das normas infraconstitucionais invocadas, nomeadamente dos artigos 217.º, do Código de Processo Civil, e 49.º, n.º2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por alegada violação dos princípios gerais que conformam a estrutura do processo penal português, como estrutura acusatória, princípios, garantias e direitos fundamentais a processo justo e equitativo, da legalidade processual e do juiz legal, consagrados nos artigos 20.º, 32.º, 216.º, n.º 1, 217.º, n.º 3, da Lei Fundamental.
Determinada a acumulação de funções e, independentemente desta, proferido exame preliminar e terminados os vistos das Juízas Desembargadoras adjuntas, antes da entrada em vigor do movimento judicial ordinário, a interpretação normativa daquelas normas no sentido de que se mantém a competência dos membros do coletivo abrangidos pelo movimento para julgarem o recurso penal, não fere qualquer princípio ou norma constitucional, não se vislumbrando qualquer violação dos princípios do juiz natural, da plenitude de assistência dos juízes e das garantias de defesa do recorrente.
Poder-se-á questionar por que razão o processo em causa não foi levado a conferência antes de ........2023, data em que entrou em vigor o movimento judicial ordinário de ..., explicação que poderá residir na reconhecida complexidade do processo, pelo número de volumes e apensos e extensão da acusação, decisão objeto de recurso e peças recursórias e subsequentes, que terão alargado a necessidade de discussão.
No entanto, os vistos estavam terminados, não havendo razão para entender de forma diversa da supra exposta quanto ao significado dos mesmos.
Por conseguinte, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, entendemos que tribunal em causa, na sua composição, respeitou as normas legais aplicáveis e o princípio do juiz natural, sendo competente, não se verificando a criação contra legem de qualquer tribunal ad hoc, pelo que o acórdão de ........2024 não enferma de inexistência jurídica, nem das nulidades insanáveis previstas nas alíneas a) e e) do artigo 119.º, nem de irregularidade prevista no artigo 123.º, ambas as disposições do CPP.
No que toca à inexistência jurídica da sentença, figura jurídica que a doutrina admite ao lado das nulidades da sentença, consiste num vicio radical que se verifica apenas quando à sentença falta um dos seus elementos essenciais: por exemplo, ser o acto emitido a favor ou contra pessoas fictícias ou imaginárias; não provir de pessoa investida de poder jurisdicional (que é o caso normalmente indicado como paradigmático); não conter a sentença uma verdadeira decisão ou conter uma decisão incapaz de produzir qualquer efeito jurídico. O Prof. Alberto dos Reis descreveu assim o vício: “o conceito de sentença inexistente constrói-se desta maneira: a sentença inexistente é o ato que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter eficácia jurídica própria de uma sentença. A sentença inexistente é um ato material, um ato inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença “ (Código de Processo Civil Anotado, V, pág.113).
Temos como manifesto não ser o caso, não se compreendendo a sua invocação.
Pelas razões sobreditas, também não identificamos as invocadas, em alternativa, nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alíneas a) e e) ou qualquer irregularidade nos termos do artigo 123.º, ambos os preceitos do CPP, vícios imputados pelo recorrente ao acórdão proferido em ... de ... de 2024, em razão da intervenção no mesmo da Ex.ma Sr.ª Juíza Desembargadora Relatora e da Ex.ma Sr.ª Juíza Desembargadora 2.ª adjunta.
Por fim, assinale-se que a eventual falta ou irregularidade da distribuição – que não se identifica existir - não é cominada com o regime das nulidades – e muito menos o será com o regime da inexistência jurídica -, sendo certo que mal se compreende que o recorrente, sabedor da prolação de despacho de exame preliminar e de que os autos tinham ido a vistos simultâneos, como certamente teve conhecimento da publicação em Diário da República do movimento judicial ordinário de ..., não se tenha inteirado de que a Sr.ª Juíza Desembargadora relatora continuou a despachar no processo, nem das inscrições em tabela de ........2023 e ........2024, não arguindo a alegada (na sua ótica) irregularidade da falta da segunda distribuição antes de ter sido proferido o acórdão de .......,2024, sendo que só a veio a arguir após a sua prolação.
Conclui-se que o recurso não merece provimento.
*
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).
Supremo Tribunal de Justiça, 29 de janeiro de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
António Latas (1.º Adjunto)
Celso Manata (2-º Adjunto)