PROCESSO DE INVENTÁRIO
SEGUNDA PERÍCIA
Sumário


O artº 1114.º do CPC não contém todo o regime sobre a avaliação de bens no processo de inventário, pelo que, em sede do mesmo, é admissível a realização de segunda perícia, desde que preenchidos os pressupostos do artº 487º do CPC.

Texto Integral


Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 21 de novembro de 2023 foi prolatado o seguinte despacho, com a referência Citius 51256028:
Referência ...01.
Segunda perícia:
Vieram os interessados AA e BB manifestar a sua discordância com o relatório pericial e os esclarecimentos subsequentemente prestados e requerer a realização de uma segunda perícia.
Resulta dos autos que, no dia designado para a realização da conferência de interessados, todos os interessados requereram a avaliação dos imóveis relacionados sob as verbas 27 a 39, bem como o ouro relacionado sob as verbas 5 a 12, por entenderem que os valores que constavam da relação de bens eram desajustados e inferior aos valores reais.
Em face do requerido, o Tribunal deferiu o requerido e determinou a realização da avaliação, nos termos do artigo 1114º do C.P.C..
Lido e analisado o relatório pericial apresentado pela Sra. Perita e, bem assim, os subsequentes esclarecimentos escritos prestados, verifica-se que a Sra. Perita procedeu à avaliação dos bens imóveis, tendo fundamentado devidamente as suas conclusões e explicitado os fatores e critérios que determinaram a sua avaliação.
Considerando o disposto no artigo 1114º do C.P.C. e o regime específico aí estabelecido, entende-se não ser legalmente admissível uma segunda perícia.
A propósito desta questão, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de maio de 2022 e de 27 de junho de 2022 (www.dgsi.pt).
“Com a reforma do processo de inventário, constante da Lei nº 117/2019, de 13 de setembro e as alterações introduzidas ao regime da “avaliação” de bens previsto no artigo 1114º do C.P.C., estabelecendo uma disciplina específica e eliminando a anterior remissão que, quanto a esta matéria, era feita para a parte geral do código, leva-nos a negar a admissibilidade de realização de uma segunda “perícia”, nos termos previstos nos artigos 487º a 489º do C.P.C.”.
Nestes termos e perante o exposto, indefiro a segunda perícia requerida.
Notifique.

Inconformados com a decisão, os interessados AA e BB apelaram em 12 de dezembro de 2023, formulando as seguintes conclusões:

1. Pronunciando-se quanto ao pedido de segunda avaliação pericial requerida pelos apelantes, o Tribunal a quo indeferiu-a com o fundamento de que “Considerando o disposto no artigo 1114º do C.P.C. e o regime específico aí estabelecido, entende-se não ser legalmente admissível uma segunda perícia.”
2. Entendem os recorrentes que o artigo 1114º do CPC não deve ser interpretado no sentido de que o legislador quis afastar a realização de segunda avaliação do regime especial do processo de inventário, pois, se o pretendesse fazer tê-lo-ia previsto expressamente.
3. De facto, sendo a perícia um meio de prova facultado às partes (artigos 388º do CC e 467º e seguintes do CPC), a segunda perícia constitui um meio de reação contra as inexatidões do resultado da primeira, ao dispor das partes ou do juiz, conforme plasmado nos 487º a 489º do CPC.
4. Tanto mais que, em certos casos, como sucede nos presentes autos em que estão em causa bens doados, a avaliação é o único meio de salvaguarda do apuramento do justo valor dos bens doados uma vez que os mesmos ficam excluídos das licitações.
5. Efetivamente, não podendo um interessado que discorde do valor atribuído aos bens doados objeto de primeira avaliação, corrigir o valor de um bem que repute injusto através de licitações, só o poderá fazer requerendo fundadamente a segunda avaliação.
6. Negar, por princípio, a possibilidade de requerer a segunda avaliação, atenta contra o princípio da tutela jurisdicional efetiva e contra o princípio do acesso ao direito e à justiça, tutelados no art. 20º da CRP.
7. O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art.º 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados.
8. Os recorrentes requereram a realização da segunda perícia, por existirem deficiências e contradições na primeira perícia.
9. No requerimento para a realização da segunda perícia os apelantes alegam os motivos pelos quais discordam da primeira perícia.
10. Os recorrentes expuseram os pontos de que discordam e as razões que impõem resultados diversos.
11. O direito à prova exige que às partes seja concedida a faculdade de se apresentar todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da verdade dos factos, sejam eles realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio – art. 6º, n.º 1, do CPC.
12. O despacho recorrido ao não admitir a segunda perícia com base numa interpretação restritiva do artigo 1114 do CPC não foi consequente com a premissa estabelecida no art. 487º, n.º 1, do CPC “que qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.
13. O art. 1114º, n.º 3, do CPC, não afasta a aplicabilidade do estabelecido quanto à prova pericial prevista para o processo comum, o que decorre do princípio geral estabelecido no artigo 549º, n.º 1, do CPC.
-vd. Acórdão da Relação de Guimarães de 04-10-2023; Acórdão da Relação de Évora de 24-02-2022 e Acórdão da Relação do Porto de 04-05-2022, em (wJJww.dgsi.pt).
14. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou as normas jurídicas acima, sucessivamente, convocadas.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V/Ex.as. doutamente suprirão, deve proceder o recurso, revogando-se o despacho recorrido e proferido Acórdão que admita a segunda perícia, por outro Perito.

No entanto, ao decidirem e como decidirem, farão V/Exas JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações. 
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.

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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
A questão a decidir consiste em apurar se em sede de processo de inventário é admissível a realização de segunda perícia.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório supra.
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B. Fundamentos de direito. 

Os recorrentes insurgem-se contra a interpretação feita pelo tribunal recorrido, defendendo que o artº 1114º do CPC não deve ser interpretado no sentido de que o legislador quis afastar a realização de segunda avaliação do regime especial do processo de inventário, pois se o tivesse pretendido fazer tê-lo-ia expressamente previsto.
Vejamos, então, se é assim.

Dispõe o artº 1114º do Código Civil:

Avaliação
1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:
a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;
b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.
Aditado pelo seguinte diploma: Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro

Como decorre do citado preceito, não há qualquer limitação expressa no que tange à possibilidade de requerer uma segunda perícia, sendo certo que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” – cfr. artº 9º, nº 3, do Código Civil – razão pela qual haverá que reconhecer razão aos recorrentes.
Acerca desta problemática, refere Miguel Teixeira de Sousa: “Perante o disposto no art. 549.º, n.º 1, CPC, só há que regular nos processos especiais a "regulamentação própria", ou seja, a regulamentação que se afasta das "disposições gerais e comuns". Em tudo o que não contrarie a aplicação das "disposições gerais e comuns", não é preciso nada regulamentar nesses processos especiais (e até é inconveniente que tal aconteça). Portanto, as "disposições gerais e comuns" são aplicáveis sempre que a "regulamentação própria" não seja exaustiva.
Salvo o devido respeito, não se encontra no disposto no art. 1114.º CPC nada que leve a concluir que o preceito contém todo o regime sobre a avaliação de bens no processo de inventário e que afaste, no que nele não se encontra regulado, a aplicação do regime geral da perícia (art. 467.º ss. CPC).” – cfr. https://blogippc.blogspot.com/search?q=invent%C3%A1rio&updated-max=2023-11-22T07:00:00Z&max-results=20&start=16&by-date=false, comentário de 26 de março de 2024 ao AcRC de 27/06/2023, processo nº 127/20.2T8FIG-A.C1.

Também jurisprudencialmente, a esmagadora maioria dos arestos propugna a admissibilidade de uma segunda avaliação:

I - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.
II - O regime especial previsto no âmbito do processo especial de inventário para a avaliação que nele tenha lugar não restringe, nem limita, tal diligência a uma única avaliação.
III - Assim sendo, à diligência de avaliação de bens em sede de inventário é aplicável o regime estabelecido no processo declarativo comum acerca da prova pericial (arts. 467.º e ss. do CPC), por via do disposto no artigo 549.º, n.º 1 do CPC, com a possibilidade da realização de segunda perícia. – cfr. AcRG de 4/10/2023, processo nº 165/20.5T8VVD-A.G1;
I - O prazo de 10 dias previsto no art. 487.º, nº 1 do CPC, para requerer a segunda perícia, quando tenha sido apresentado pedido de esclarecimentos, deve contar-se da notificação da resposta do senhor perito aos esclarecimentos suscitados, uma vez que só perante as respostas dadas pelo perito é que a perícia fica concluída e as partes ficam na posse da totalidade dos elementos que lhes permitem fundamentar a sua discordância e o motivo para requerer a segunda perícia.
II - Apresentado requerimento com identificação do motivo da discordância em relação ao relatório pericial e com a identificação dos pontos que se entende necessitarem de correção ou melhor apreciação, o juiz deve deferir a realização da segunda perícia, apenas o carácter impertinente ou dilatório ou a total ausência de fundamentação constituindo causa de indeferimento de tal requerimento. – AcRP de 7/12/2023, processo nº 1066/20.2T8PVZ-A.P1;
1. Em processo de inventário ao qual é aplicável o regime instituído pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, é admissível a realização de segunda perícia, desde que reunidos os requisitos previstos no art. 487º CPC. – cfr. AcRG de 11/01/2024, processo nº 3281/21.2T8VCT-A.G1;
I - A prova pericial tem por finalidade a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.
II - O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art. 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados.
III - Realizada a perícia e notificado o respetivo relatório às partes, o legislador estabeleceu duas formas diversas de reação que são distintas e compatíveis: a reclamação nos termos do artigo 485.º (no caso de existirem deficiências, ou contradição ou obscuridade no relatório) e a realização da segunda perícia nos termos do artigo 487 do CPCivil.
IV - A prova pericial, está sujeita, na respetiva produção, a um determinado número de regras de direito probatório formal.
V - Qualquer das partes pode requerer se proceda a segunda perícia, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (artigo 487º do CPcivil.
VI - Apresentando a parte requerimento enunciando os aspetos que considera deverem ser corrigidos o tribunal deve deferir a realização da segunda perícia, independentemente de avaliar se existe fundamento válido para essa discordância, sendo que só o carácter dilatório ou sem qualquer fundamentação constitui causa de indeferimento do requerimento para realização de segunda perícia.
VII - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.
VIII - A reclamação deduzida quanto á prova pericial, que visa complementar ou dar coerência à perícia, será indeferida, quando não se demonstre qualquer deficiência concreta ou obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou quando essa reclamação ultrapasse o objeto pericial e esteja apenas a ampliar ou a modificar o seu objeto fixado. – cfr. AcRP de 22/02/2024, processo nº 1621/20.0T8PVZ-A.P1.
- O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art. 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios.
II - O direito à prova implica que as partes tenham liberdade para demonstrar quaisquer factos do processo, mesmo que não tenham o respetivo ónus da prova. – cfr. AcRP de 21/03/2024, processo nº 2886/22....;
I - O artigo 1114.º do Código de Processo Civil não veda a realização de segunda perícia nos processos de inventário.
II - Discordando a parte dos resultados da primeira perícia pode requerer uma segunda perícia, devendo, para tanto, alegar fundadamente as razões da sua discordância: quais os aspetos da primeira perícia com que não concorda, razões porque não concorda e qual o motivo que torna verosímil que o resultado deva ou possa ser diferente.- Cfr. AcRP de 6/06/2024, processo nº 3151/21.4T8VFR-A.P1;
I - Não obstante o aditamento do artigo 1114º, nº 3 do CPC operado pelo o artigo 5º da Lei 117/2019 de 13.09), mantém-se o regime geral da prova pericial, consagrado nos artigos 487º a 489º, aplicável subsidiariamente ao processo de inventário, por força do disposto no artigo 549º do CPC.
II - A não realização de uma segunda perícia no processo de inventário não depende daquele aditamento, mas do não cumprimento das exigências do artigo 487º nº 1 do CPC. – Cfr. AcRP de 8/10/2024, processo nº 2004/21.0T8PRD-A.P1.

Contra o citado entendimento, e defendendo que no processo de inventário não é admitida segunda avaliação dos bens, apenas encontrámos o AcRC de 10/05/2022, processo nº 1734/20.9T8FIG-B.C1, e o já citado AcRC de 27/06/2023, processo nº 127/20.2T8FIG-A.C1.

Doutrinalmente, não conhecemos quem negue a possibilidade de uma segunda avaliação em sede de processo de inventário:

Carla Câmara in “O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial”, Almedina, 2021, páginas 90-91, nada refere sobre tal alegada impossibilidade;
Miguel Teixeira de Sousa (que defende essa possibilidade, nos termos que supra expusemos), Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, páginas 114-116, igualmente nada referem quanto a tal hipotética impossibilidade;
João Espírito Santo in “Inventário Judicial e Notarial”, AAFDL Editora, 2021, páginas 146-148, também nada opõe.
Em conclusão, em sede de processo de inventário é admissível a realização de segunda perícia, desde que preenchidos os pressupostos do artº 487º do CPC.

No caso vertente, o tribunal recorrido indeferiu tal diligência apenas por entender não ser admissível a realização de segunda perícia em sede de processo de inventário, conclusão com a qual não se concorda, nos sobreditos termos, razão pela qual procede o presente recurso.       
No que tange à imputação de custas, considerando que não houve contra-alegações e que os recorrentes tiraram proveito do recurso, nos termos da parte final do artº 527º, nº 1, do CPC, suportarão as custas deste.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto, revogando o despacho recorrido e determinando a realização de segunda perícia.
Custas pelos recorrentes, nos termos do artº 527º, nº 1, parte final, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 6 de fevereiro de 2025.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes.
2º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias.