ACIDENTE DE TRABALHO
FACTOS SOBRE OS QUAIS NÃO HAJA ACORDO NA TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
NATUREZA INDISPONÍVEL DOS DIREITOS
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
Sumário

I – Resulta da redação dos artigos 111.º e 112.º, n.º 1, do CPC, que esta apenas vincula as partes relativamente aos pontos diretamente abordados e acordados pelas partes na tentativa de conciliação e não para além destas.
II – Fazendo a interpretação do alcance de tais normativos, e particularmente do último, é imprescindível que sejam consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, e não meros conceitos e/ou conclusões que eventualmente se pudessem extrair desses factos, sendo certo que conclusões, juízos de valor, qualificações jurídicas, são atividades que transcendem a vontade das partes.
III – Se ficou em aberto a matéria respeitante à imputação de culpa no acidente (o que esteve na origem do acidente), transitando para a fase contenciosa essa questão, poderá discutir-se toda a factualidade atinente ao próprio acontecer do acidente, designadamente nos termos alegados pela seguradora na contestação atinentes à sua descaraterização como acidente de trabalho para efeitos do artigo 14.º da NLAT e, bem assim, na versão apresentada pelo sinistrado perante a exceção invocada pela seguradora que poderá reconduzir-se a uma situação de violação das normas de segurança por parte entidade empregadora para efeitos de agravamento da responsabilidade nos termos do artigo 18.º da NLAT.
IV - A reparação emergente de acidente de trabalho tem natureza indisponível e inderrogável, como resulta do disposto nos artigos 12.º e 78.º da NLAT, enquadrando-se nas questões, a que se reporta o artigo 74.º do Código de Processo do Trabalho, que poderão ser objeto de condenação extra vel ultra petitum.

[elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho)]

Texto Integral

Apelação/Processo nº 2856/21.4T8MAI-A.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho da Maia



Relatora: Germana Ferreira Lopes
1ª Adjunta: Rita Romeira
2ª Adjunta: Teresa Sá Lopes




Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I - Relatório

O presente processo especial para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho foi iniciado na sequência da participação do acidente sofrido pelo autor/sinistrado AA, quando este trabalhava por conta de A..., Lda., a qual havia transferido a sua responsabilidade infortunística laboral para a seguradora B...-Companhia de Seguros, SA, sendo que nessa participação o sinistrado solicitou a sua submissão a uma avaliação médica para que lhe fosse fixada uma IPP.

A participação do acidente foi subscrita por Ilustre Mandatária a quem o Sinistrado outorgou procuração forense (junta com a participação).

Na sequência de despacho do Ministério Público para junção aos autos de documentação, veio a Seguradora dar cumprimento ao solicitado, informando ainda que “o acidente dos autos foi descaraterizado como de trabalho e excluído o direito à reparação, nos termos legalmente previstos e por integração do disposto na alínea a) n.º 1 e n.º 2 do Artº 14º da LAT” – refª citius 29782027 de 31-08-2021.

Juntou, para além do mais, correspondência endereçada ao sinistrado e ao tomador de seguro (cartas de declinação de responsabilidade).

Analisada tal correspondência, verifica-se o seguinte:

* A carta datada de 21 de julho de 2020, dirigida a AA, tem o seguinte teor:

Informação

Acidente ocorrido em 03-01-2020

Estimado(s) Senhor(es)

Ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho acima referido, foi-nos participado o acidente de trabalho sofrido por V. Exa. em 3-01-2020.

Após averiguação efetuada pelos nossos serviços técnicos, concluímos que o acidente resultou do incumprimento das normas de segurança e saúde no local de trabalho, impostas pelo empregador e previstas na Lei, nomeadamente pelo não uso dos Equipamentos de Proteção Individual (óculos de proteção).

Nesta conformidade, informamos que declinamos toda e qualquer responsabilidade no acidente em causa, suas despesas e consequências, nos termos legalmente previstos e por integração no disposto na alínea a) n.º 1 e n.º 2 do Artº 14º da LAT (Lei e Acidentes de Trabalho).

Pelo exposto, assiste à B... o direito de reembolso de todas as despesas efectuadas com o processo, pelo que oportunamente será apresentada, ao responsável, nota discriminativa dos valores suportados.

(…)”.

* A carta datada de 21 de julho de 2020, dirigida a A..., Lda., tem o seguinte teor:

Informação

Acidente ocorrido em 03-01-2020

Estimado(s) Senhor(es)

Ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho acima referido, foi-nos participado o acidente de trabalho ocorrido com o vosso colaborador AA, em 3-01-2020.

Após averiguação efetuada pelos nossos serviços técnicos, concluímos que o acidente resultou do incumprimento das normas de segurança e saúde no local de trabalho por parte do trabalhador, nomeadamente pelo não uso dos Equipamentos de Proteção Individual (óculos de proteção).

Nesta conformidade, informamos que declinamos toda e qualquer responsabilidade no acidente em causa, suas despesas e consequências, nos termos legalmente previstos e por integração no disposto na alínea a) n.º 1 e n.º 2 do Artº 14º da LAT (Lei e Acidentes de Trabalho).

Pelo exposto, assiste à B... o direito de reembolso de todas as despesas efectuadas com o processo, pelo que oportunamente será apresentada, ao responsável, nota discriminativa dos valores suportados.

(…)”.

Foi solicitado exame médico ao INMLCF, IP, Delegação do Norte, sendo que depois da apresentação de relatórios preliminares e da realização de perícia de oftalmologia, em 1-03-2023, foi apresentado o respetivo relatório final de exame médico.

Nesse relatório, datado de 13-12-2022 consta, para além do mais, o seguinte:

- No item “Discussão

“1. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano (traumatismo do olho esquerdo com necessidade de evisceração do globo ocular, com posterior colocação de prótese ocular definitiva) atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a um etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e se exclui a pré-existência do dano corporal.

2. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 28-08-2020, tendo em conta a data da colocação de prótese ocular definitiva na C....

3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes:

- Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 04/01/2020 até 28/08/2020, fixável num período total de 238 dias.

4. A incapacidade permanente parcial resultante do acidente atual (…) é de 25% (…).”

- No item “Conclusões

“- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 28-08-2020;

- Incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 238 dias;

- Incapacidade permanente parcial fixável em 25%”.

Em 12-06-2023, veio a Seguradora apresentar o requerimento refª citius 35903506, no qual consta o seguinte:

A B... (…), vem muito respeitosamente, em cumprimento da notificação recebida, informar a V. Exa. que as remunerações auferidas pelo sinistrado e transferidas para a Seguradora através das folhas de férias são de valor inferior ao salário mínimo mensal, conforme se constata pelos documentos remetidos a esse Tribunal em 31-08-2021.

Contudo, informa esta Seguradora que a remuneração do sinistrado não poderá ser inferior à que resulta da lei, nomeadamente ao valor do salário mínimo em vigor à data do acidente, no valor de 635€.

Requer a junção aos autos e

Pede deferimento”.

O Ministério Público proferiu despacho refª citius 449899517, datado de 27-06-2023, com o seguinte teor:
“Uma vez que a entidade empregadora deste sinistrado tinha o seu salário integralmente transferido para a Companhia de Seguros, não é necessária a sua presença.
Para tentativa de conciliação, designo o próximo dia 5 de julho, pelas 14h30.
Notifique os intervenientes (sinistrado e seguradora)”.

Em 5-07-2023 teve lugar a tentativa de conciliação a que se refere o artigo 108.º e seguintes do Código de Processo do Trabalho, conforme consta do respetivo auto de não conciliação refª citius 450197160.

Do identificado auto de não conciliação consta o seguinte (transcrição):

«Auto de tentativa de conciliação

(Não conciliação)

(…)

Na ..., no dia 05 de julho de 2023, pelas 14h55, no gabinete da Exma. Procuradora da República deste Tribunal, Dra. BB, e por esta presidida,

(…)

Presentes:

Sinistrado: AA (…), fazendo-se acompanhar pela sua Ilustre Mandatária, a Sra. Dra. CC, cuja procuração se encontra junta aos autos.

Entidade Responsável: B...-Companhia de Seguros, S.A.(…), representada pelo Dr. DD, com procuração arquivada neste Tribunal.


**

Iniciada a diligência resulta dos autos que:

Pressupostos e prestações legais:

No dia 03 de janeiro de 2020, pelas 09h30, o sinistrado quando sob as ordens, direção e fiscalização de “A..., Lda.” (…), foi vítima de um acidente que ocorreu nas seguintes circunstâncias:

Ao tirar uma cavilha metálica, esta ter-se-á soltado, atingindo-o no olho esquerdo, uma vez que “não estava a usar proteção por não lhe ter sido dada pelo patrão”.

Como consequência resultou-lhe traumatismo do olho esquerdo.

Auferia o salário anual total, para estes efeitos, de €8.890 (€635x14 – salário base), o qual se encontra integralmente transferido para a companhia de seguros.

As lesões resultantes do acidente encontram-se descritas no auto de perícia médica de fls. 94 a 97 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, e no qual se determinou encontrar-se o sinistrado curado em 28 de agosto de 2020, mas afetado com uma IPP de 25%.

Assim sendo tem o sinistrado direito a uma pensão anual de € 1 555,75, calculada com base no salário acima referido e no coeficiente global de incapacidade (IPP) de 25%, obrigatoriamente remível, devida nos termos do disposto nos artigos 48.º, n.º 3, alínea c), e 75.º da Lei n.º 98/2009 de 04 de Setembro, a que corresponde o capital de remição de € 23.386,03.

Pelos períodos de incapacidades temporárias que sofreu o sinistrado não recebeu qualquer quantia da Companhia de Seguros tendo a reclamar a quantia de € 4.057,73.

O sinistrado gastou em despesas de deslocações a este Tribunal e ao INML do Porto a quantia de € 20.

Pelo Sinistrado foi dito que aceita o grau de desvalorização fixado pelo perito médico pelo que se concilia nos termos acima propostos.

Requer que os valores devidos pela Companhia de Seguros sejam pagos por transferência bancária para o seu IBAN com o número (…)

Pelo representante da Companhia de Seguros foi dito que a sua representada aceita a existência e caraterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e aceita a existência de uma apólice de acidentes de trabalho através da qual está transferida a responsabilidade pelo salário de € 635x14.

Não aceita a responsabilidade pelas consequências do acidente uma vez que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso dos EPI´s. Não aceita igualmente o resultado do exame médico realizado no INML do Porto, designadamente o grau de IPP.

Pelas razões expostas, não se concilia com o sinistrado.


**

Seguidamente, foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Dou as partes por não conciliadas devendo os autos ser remetidos à Secção de Processos para a Fase Contenciosa onde aguardarão a apresentação de ação por parte do sinistrado.

E para constar se lavrou o presente auto, que depois de lido e achado conforme vai ser assinado.».

Com data de 27-07-2023, o Sinistrado apresentou petição inicial a que se refere o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo do Trabalho - refª citius 36349840 -, contra a Seguradora B... e a Entidade Empregadora A..., Lda., formulando o seguinte pedido (transcrição):
“Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada provada por procedente e consequentemente por via dela:
I - Ser o acidente em causa sofrido pelo sinistrado, aqui Autor, em 03/01/2020, declarado e reconhecido como um típico acidente de trabalho por ter de considerar-se como produzido no tempo e local de trabalho face às características especificas das suas funções profissionais, ao serviço da entidade patronal e sob o controle, dessa sua entidade empregadora, e fruto disso a existência do nexo causal entre as lesões e o acidente.
II - Ser a 1ª Ré, seguradora, condenada a pagar ao A.:
a) E tendo como base o salário do sinistrado acima referido e a incapacidade de 25,00%, fixada pelo I.M.L. do Porto, uma pensão anual de 1.555,75€, correspondente ao capital de remição de 23.386,03€ (Vinte e três Mil Trezentos e Oitenta e Seis Euros e Três Cêntimos);
b) A título de Incapacidades Temporárias, a quantia de 4.057,73€ (Quatro Mil e Cinquenta e Sete euros e Setenta e Três Cêntimos);
c) 20.00€ (Vinte Euros) de despesas de transporte nas deslocações efectuadas ao I.M.L. do Porto e ao Tribunal;
d) Juros de mora á taxa legal de 4% desde a data do vencimento das prestações devidas e sobre o montante da pensão arbitrada desde a data até á entrega do capital de remição, nos termos do disposto no artigo 135º do Código de Processo do Trabalho e Portaria 291/03 de 8 de abril;
e) Que seja considerado que em consequência da lesão, ficou com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (I.P.A.T.H.) impossibilitando-o de realizar a atividade profissional que vinha desenvolvendo;
f) A quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais;
III – Subsidiariamente, e caso se verifique a não responsabilidade em reparar os danos do sinistro, por parte da 1ª Ré, seguradora, deverá a 2ª Ré, entidade patronal, ser condenada a pagar ao A.:
a) E tendo como base o salário do sinistrado acima referido e a incapacidade de 25,00%, fixada pelo I.M.L. do Porto, uma pensão anual de 1.555,75€, a que corresponde o capital de remição de 23.386,03€ (Vinte e três Mil Trezentos e Oitenta e Seis Euros e Três Cêntimos);
b) A título de incapacidades temporárias, a quantia de 4.057,73€ (Quatro Mil Cinquenta e Sete Euros e Setenta e Três Cêntimos);
c) 20.00€ (Vinte Euros) de despesas de transporte nas deslocações efectuadas ao I.M.L. do Porto e ao Tribunal;
d) Juros de mora á taxa legal de 4% desde a data do vencimento das prestações devidas e sobre o montante da pensão arbitrada desde a data até á entrega do capital de remição, nos termos do disposto no artigo 135º do Código de Processo do Trabalho e Portaria 291/03 de 8 de abril;
e) Que seja considerado que em consequência da lesão, ficou com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (I.P.A.T.H.) impossibilitando-o de realizar a atividade profissional que vinha desenvolvendo;
f) A quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais;
VI - Ser as RR., condenadas no pagamento das custas e demais encargos até final.”

Na petição inicial, quanto ao acidente, sua descrição/circunstâncias e consequências/danos, consta apenas o seguinte:

- “Que ocorreu no dia 3 de janeiro de 2020, pelas 9.30h, na ..., nas instalações da 2ª Ré, quando estava sob as ordens, direcção e fiscalização da sua entidade patronal, aqui 2ª Ré” – artigo 6.º da p.i.;

- “E que consistiu, no seguinte: No exercício das suas funções, o Autor, quando se encontrava a trabalhar, uma cavilha metálica, atingiu-o no olho esquerdo.” – artigo 7.º da p.i.;

- “Como consequência resultou-lhe um traumatismo do olho esquerdo, tendo sido submetido a várias intervenções cirúrgicas, tendo ocorrido várias infeções e tendo-lhe sido colocada prótese ocular esquerda” – artigo 8.º da p.i.;

- “As lesões resultantes do acidente encontram-se descritas no auto de perícia médica de fls. do pleito, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais. “– artigo 9.º da p.i.;

- “O Autor esteve com ITA, para realizar a sua actividade profissional desde o dia 04/01/2020 até ao dia 28/08/2020, tudo fixável num período de 238 dias.” – artigo 10.º da p.i.;

- “Reclama também o Autor o pagamento da quantia de 20.00€ (Vinte Euros), fruto dos gastos com o transporte nas deslocações ao IML e Tribunal” – artigo 28.º da p.i.;

- “Da lesão referida, adveio para o A. uma grande e feia deformação no rosto, mais concretamente no olho esquerdo, que lhe dificulta a visão.” – artigo 37.º da p.i.;

- “Nomeadamente um inchaço permanente e uma imperfeição, que causa ao A., jovem e bonito, até à data do acidente, enorme desgostoartigo 38.º da p.i.;

- “O A. sofrerá sempre dores constantes, não conseguindo exercer actividades que o obriguem a grande visualização, interferindo com o próprio cérebroartigo 40.º da p.i.;

- “Que seja considerado que em consequência da lesão, ficou com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (I.P.A.T.H.) impossibilitando-o de realizar a atividade profissional que vinha desenvolvendo.” artigo 41.º da p.i.;

- “Com necessidade no futuro de ser dependente no que diz respeito a ajudas técnicas e tratamentos médicos regulares, como por exemplo, fisioterapia, entre outros, de frequência a definir de acordo com o acompanhamento clínicoartigo 42.º da p.i.;

- “Refira-se que o A. sofreu e sofre de imensas dores a partir do momento em que teve o acidente supra relatado.” artigo 43.º da p.i.;

- “O A. tem conhecimento que necessita de cuidados médicos constantes e só a dificuldade económica a que se vê remetido o impede de já se ter submetido aos imprescindíveis e apropriados tratamentos.” artigo 44.º da p.i..

Na petição inicial referiu ainda o Autor que a responsabilidade infortunística se encontra totalmente transferida para a Ré Seguradora, mas esta não aceita a responsabilidade pelas consequências do acidente justificando-se nos termos expostos no auto de tentativa de conciliação (“Não aceita a 1ª Ré, seguradora, a responsabilidade pelas consequências do acidente, uma vez que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso dos EPI´s” – artigo 13.º da p.i.), nem aceita o resultado do exame médico realizado no INML, designadamente o grau de IPP, nem aceita pagar as despesas com as deslocações do Autor, ao Tribunal e ao INML, no valor de € 20,00 – artigos 14.º a 16.º da p.i..

Sustentou o Autor na petição que o cerne da questão do pleito será o de apurar a responsabilidade, concretamente a quem caberá o dever de reparar o sinistro, sendo que a 2.º Ré, entidade patronal, não esteve presente na tentativa de conciliação – artigos 18.º a 20.º da p.i.

Citadas as Rés, apenas a Ré Seguradora apresentou a contestação refª citius 37085495, aí concluindo nos seguintes termos:

Termos em que, com o douto provimento de Vª Excª e a aplicação do Direito próprio, se requer seja a acção julgada por adesão às invocadas causas excepcionatórias, sempre com todas as consequências legais”.

Deduziu, em primeira linha, defesa por exceção, traduzida na invocação de “Perda do direito à reparação por causa exclusiva e imputável à própria vítima, ora Demandante/AA”.

Para tanto, alegou, em síntese, que: o Autor recebeu da Ré Entidade Empregadora, aquando da sua admissão ao seu serviço, um par de óculos de proteção, em policabornato, da marca “luz optical” e modelo “60400”, produto certificado pela norma CE “EN170 2002: Proteção ocular individual”, em material inquebrável e transparente e co resguardos frontal e lateral suficientes e capazes de evitar o risco de entrada e/ou embate de qualquer objeto nos olhos dum qualquer operador que os utilize; no dia 3-01-2020, ao serviço da Ré empregadora, nas instalações da “D..., Lda,” quando o Autor aí se ocupava nos trabalhos de extração de pregos encravados numa palete, usava a ferramenta “pé de cabra”, mas não se equipou com os óculos de proteção de que dispunha”; o Autor naquele dia, como nos dias imediatamente anteriores e sempre ao serviço da Ré empregadora tinha desta instruções rigorosas para sempre usar o par de óculos de proteção que lhe fora entregue sempre que fizesse, entre outros de risco, o de trabalhos de extração de pregos no modo e forma descritos nos artigos 9º a 11º da contestação; foi exclusivamente por resultado de o Autor não usar, injustificadamente, os óculos de proteção de que dispunha que sofreu as lesões cuja reparação reclama.

Sustentou que o Autor incumpriu injustificadamente as disposições genéricas que lhe são impostas pelo artigo 281.º, n.º 7, do Código do Trabalho, além de que, ao trabalhar naquele modo e nas condições em que então o fazia, desrespeitou grosseiramente as disposições específicas que lhe são impostas pelos artigos 4.º, c), e 145.º da Portaria 53/71, na redação dada pela Portaria n.º 702/80.

Concluiu que o evento narrado como “causa de pedir ” ocorreu exclusivamente por resultado da decisão individual, voluntária e injustificada do Autor, enquanto concreto e temerário ato que, in casu, é subsumível como concreta violação, sem causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei e estabelecidas pelo empregador, além de que com patente negligência grosseira, o que consubstancia qualquer um dos cenários subsumidos no artigo 14º, nºs 1, a) e b) e 3 da Lei 98/2009, capaz de determinar a perda do direito à reparação, regime que expressamente invocou e requereu que fosse acolhido.

Requereu a abertura do apenso para fixação de incapacidade e requereu a realização da junta médica, formulando quesitos.

Com data de 6-12-2023 foi proferido o despacho refª citius 454439151 com o seguinte teor:
«Uma vez que nesta ação com processo especial emergente de acidente de trabalho não existe o ato processual de audiência prévia, concedo o exercício do contraditório ao Autor relativamente à matéria de exceção alegada pela Ré Seguradora.»

Nessa sequência, o Autor veio pronunciar-se na refª citius 37753675, respondendo à exceção invocada pela Ré Seguradora, pugnando pela sua improcedência e dizendo, em substância, que: repudia totalmente que o Autor possuísse uns óculos de material inquebrável e transparente; também repudia que os óculos de proteção entregues aquando da sua admissão ao serviço estavam em boas condições de utilização; como foi referido pelo próprio Sinistrado, no seu depoimento à “E... Gabinete Técnico de Peritagem, Lda.”, foram-lhe entregues uns óculos, mas estavam muito riscados e, por isso, resumidamente, não estavam em condições de serem utilizados e a entidade patronal bem sabia disso e mesmo assim não forneceu outros; a A..., Lda. nunca deu qualquer instrução rigorosa de utilização dos óculos, para além de saberem que estavam completamente danificados e não possibilitavam qualquer tipo de utilização e visualização com os mesmos; nunca tendo sido por sua vontade ou culpa qualquer violação, muito menos a que é alegada.


Foi proferida decisão refª citius 455440667, com o seguinte teor (transcrição[1], já que se trata da decisão recorrida):
«DESPACHO SANEADOR
O Tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e apresenta-se válido e regular.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária; são legítimas e; encontram-se regularmente patrocinadas em Juízo.
Inexistem nulidades, exceções dilatórias, questões prévias ou incidentes que cumpra conhecer e obstem à apreciação do mérito da causa.

*******

Ao abrigo do disposto no artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho, fixo o valor à ação de €102.463,76, sem prejuízo de acerto final.

*********

Previamente ao cumprimento da norma estatuída no artigo 131.º do Código de Processo do Trabalho impõe-se circunscrever o objeto do litígio, atento o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho.
Na tentativa de conciliação ocorrida em 05/07/2023 com a intervenção do Sinistrado e da Responsável ficou a constar que:
Pelo sinistrado foi dito que aceita o grau de desvalorização fixado pelo perito médico pelo que se concilia nos termos acima propostos”.
“Pela representante da Companhia de Seguros foi dito que a sua representada aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e aceita a existência de uma apólice de acidente s de trabalho através da qual está transferida a responsabilidade pelo salário de € 635 x 14.
Não aceita a responsabilidade pelas consequências do acidente uma vez que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso de EPI`s. Não aceita igualmente o resultado do exame médico realizado no INML do Porto,
designadamente o grau de IPP.
Pelas razões expostas, não se concilia com o sinistrado”.
Daqui resulta que a Responsável aceita a ocorrência e caracterização do acidente de trabalho, contudo, não se concilia por causa do incumprimento das normas de segurança
atenta a atuação culposa do empregador.
Por esta razão é que o Autor apresentou a petição inicial contra o Empregadora e contra a Responsável.
Todavia, a Responsável, apesar de se ter vinculado pela caracterização do acidente de trabalho, na contestação que apresenta nenhum facto alega para fundamentar a atuação culposa do empregador nos termos do artigo 18.º da LAT, antes alega factos para descaracterizar o acidente de trabalho nos termos do artigo 14.º da LAT.
Relativamente a esta questão decidiu o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 04/04/2022, com o n.º de processo 1537/14.0T8MAI.P1, com o n.º convencional JTRP000,
relatado pelo Venerando Juiz Desembargador Jerónimo Freitas, disponível para consulta in www.dgsi.pt/jtrp que “I – Conforme estabelece o art.º 112.º 1, do CPT, não se obtendo acordo, no auto da tentativa “(…) são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”, exigência legal que visa circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões em relação às quais não tenha havido acordo.
II – Em coerência com o fim visado pelo art.º 112.º, nos termos do art.º 131 n.º 1, al. c), ambos do CPT, o juiz deve “[C]onsiderar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”.
III – A seguradora sempre teve ao seu dispor os elementos essenciais para formular uma avaliação segura sobre a existência e qualificação do acidente como de trabalho, bem assim quanto à verificação do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, designadamente, o conhecimento sobre o facto participado como acidente de trabalho e o subsequente resultado de todo o processo de acompanhamento médico, iniciado pelos seus serviços clínicos após a participação daquele facto com vista a assegurar o tratamento ao sinistrado, durante o qual foram realizados exames complementares de diagnóstico e aquele foi observado em vários consultas médicas, podendo asseverar-se que no ato de tentativa de conciliação estava habilitada a tomar posição sobre a existência e caracterização do acidente e do nexo causal entre a lesão e o acidente.
VI – Retira-se do auto de tentativa de conciliação que a recorrente tomou posição concreta sobre os factos e não sobre conclusões: o acidente consta descrito com suficiência, o mesmo acontecendo quanto ao nexo causal entre o acidente e as lesões, sendo que quanto a estas, a remissão para o auto de exame médico dispensava a descrição exaustiva das lesões nele mencionadas.
V – Por conseguinte, quando o representante da seguradora declarou que “[….] aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente”, essa posição traduz uma aceitação expressa e inequívoca quer do acidente de trabalho descrito naqueles termos, quer da existência de nexo causal entre o mesmo e as lesões referidas no auto de exame médico singular, provocando-lhe, em consequência, “cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo”.
VI – Concluindo-se que houve aceitação expressa e reportada a factos concretos, quanto à existência e caracterização do acidente e ao nexo causal entre a lesão e o acidente, atento o disposto nos artigos 112.º, n.º 1 e 131.º, n.º 1, al. c) do CPT, ao proceder ao saneamento do processo, não podia o Tribunal a quo deixar de ter considerado assente a
matéria das alíneas E e F e, por decorrência lógica, com as razões que invoca no despacho recorrido cumpria-lhe decidir, como bem decidiu, indeferindo a reclamação” (sublinhado nosso).
No auto de tentativa de conciliação datado de 05/07/2023 descreve-se o acidente nos seguintes termos:
“Ao tirar uma cavilha metálica, esta ter-se-á soltado, atingindo-o no olho esquerdo, uma vez que “não estava a usar proteção por não lhe ter sido dada pelo patrão”.
Como consequência resultou-lhe traumatismo do olho esquerdo”.
Conforme supra transcrito a Seguradora declara que “aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente” aceitando expressamente e de forma inequívoca os factos descritos nos autos estando expressamente consignada a não utilização de proteção por não ter sido fornecida pela Empregadora e, como tal, em cumprimento do disposto no artigo 112.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, consta expressamente do auto de tentativa de conciliação se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente.
A Seguradora aceita o facto de a Empregadora não ter fornecido proteção ao trabalhador e, por isso, aceita a caracterização do acidente de trabalho, não se conciliando atento o incumprimento das regras de segurança no que tange à atuação culposa da Empregadora.
Só que ao invés de alegar factos para fundamentar a atuação culposa da Empregadora nos termos do artigo 18.º da LAT, alega factos para descaracterizar do acidente nos termos do artigo 14.º da LAT, cuja caracterização tinha expressamente aceite, bem assim o nexo de causalidade, por referência ao facto da ausência de EPI se dever à Empregadora.
Não pode a Seguradora alegar factos para demonstração de uma realidade contrária aquela que tinha aceite quer por referência ao facto concreto que o Sinistrado não usava proteção porquanto o patrão não lha forneceu, quer pela expressa posição assumida quanto à caracterização do acidente e, nesta conformidade, os factos alegados para a demonstração da descaracterização do acidente não serão tidos em conta, seja para os levar aos temas da prova, seja a final em sede de sentença por estarem fora do âmbito do litígio na fase contenciosa, atenta a posição expressa tomada pela Seguradora na fase conciliatória do processo.
Finalmente, nem o Autor nem a Ré Seguradora alegam um facto que seja para fundamentar a atuação culposa da Empregadora.
O que significa que os únicos temas da prova que temos no âmbito deste processo reportam-se às consequências do sinistro, mais concretamente, o grau de incapacidade para o trabalho, data da alta clínica, ajudas técnicas.
Isto posto.
*******

Nos termos e para os efeitos do artigo 131.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo do Trabalho, o Tribunal considera assentes os seguintes factos:
a) No dia 03/01/2020, pelas 9h 30m, o Sinistrado quando sob as ordens, direção e fiscalização de “A..., Lda.”, com o NIPC ...68, com sede na rua ..., ..., ... ... foi vítima de um acidente.
b) Ao tirar uma cavilha metálica, esta soltou-se, atingindo-o no olho esquerdo, uma vez que não estava a usar proteção.
c) Como consequência resultou-lhe traumatismo do olho esquerdo.
d) À data do sinistro era trabalhador “A..., Lda.”, desempenhando as funções de operador de triagem de resíduos.
e) Funções que consistiam em trabalhar, em todas as atividades da sua entidade patronal, inerentes à sua categoria profissional.
f) Por causa do acidente, o Autor sofreu traumatismo do olho esquerdo com necessidade de evisceração do globo ocular, com posterior colocação de próteses ocular definitiva, com perda total de visão do olho esquerdo.
g) No dia 3 de janeiro de 2020 0 Autor auferia, para efeito de responsabilidade infortunística-laboral, o salário anual total de € 8.890,00 (€ 635,00 x 14 meses – salário base).
h) A responsabilidade infortunística-laboral da entidade empregadora encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros B... Portugal, S.A. na totalidade do salário anual mencionado em g), mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...03.
********
Objeto do litígio.
AA, residente na rua ..., ..., ..., ... ..., alega, em síntese, ter sofrido um acidente de trabalho que lhe causou lesões, que por seu turno, lhe determinaram incapacidade temporária e permanente para o trabalho e, ainda, despesas de transporte, cuja regularização incumbe à Ré Empresa de Seguros por ter assumido o risco por meio de contrato de seguro válido e eficaz do ramo “Acidentes de Trabalho”.
Especifica que ficou a padecer de IPATH e, ficou dependente de ajudas técnicas e tratamentos médicos regulares.
Termina por peticionar ao Tribunal, a condenação da Ré Seguradora:
- a pagar ao Autor com base no salário identificado nos autos e na incapacidade de 25,00% fixada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, na pensão anual de € 1.555,75, a que corresponde o capital de remição de € 23.386,93;
- a pagar ao Autor a quantia de € 4.057,73 a título de indemnização pela incapacidade temporária;
- a pagar a quantia de € 20,00 a título de despesas de transporte nas deslocações efetuadas ao Instituto Nacional de Medicina Legal e ao Tribunal;
- a pagar juros de mora à taxa legal sobre a referida importância, a contar do vencimento da obrigação, nos termos do artigo 135.º do Código de Processo do Trabalho;
- a reconhecer a situação de IPATH e respetiva consequência;
- a pagar a quantia de € 75.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Subsidiariamente, caso se verifique a não responsabilidade da 1.ª Ré Seguradora em reparar os danos do sinistro, deverá ser condenada a 2.º Ré nos mesmo pedidos que foram formulados contra a 1.ª Ré.
*
A Ré B..., Companhia de Seguros, S.A., com sede na praça ..., ... ..., contestou a ação, alegando a causa exclusiva e imputável ao Autor na ocorrência do acidente, para além de contestar as conclusões extraídas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.
Termina por pugnar pela improcedência da ação, por não provada, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
*
Regularmente citada a Ré A..., Lda. não apresentou contestação.
*
Regularmente citado o Instituto da Segurança Social, IP, representado pelo seu Centro Distrital do Porto nos termos e para os efeitos da presente ação, não deduziu pedido de reembolso nestes autos.
*
Face à posição das partes, o objeto do litígio traduz-se no apuramento das consequências do sinistro.
*******
Temas da prova.
Tendo em consideração a posição das partes acima enunciada e a prova documental impõe-se a prova dos seguintes temas:
1 – O grau de incapacidade temporária para o trabalho de que o Autor padeceu por
causa do sinistro dos autos.
2 – A data da consolidação médico-legal das lesões.
3 – O grau de incapacidade permanente parcial de que fiou a padecer.
3 – Se o Autor ficou a padecer de IPATH.
4 – Se o Autor ficou dependente de ajudas técnicas e tratamentos médicos regulares e, em caso afirmativo, quais.
********

Tendo em consideração o objeto do litígio identificado, os temas da prova fixados e, os meios de prova indicados sem qualquer testemunha médico, não é caso de ordenar o desdobramento do processo nos termos do disposto nos artigos 131.º, alínea e) e 118.º do
Código de Processo
Assim sendo como é, não se ordena o desdobramento do processo nos termos do artigo 131.º, n.º 1, alínea e) e 132.º do Código do Trabalho, nem se realizará audiência final, uma vez que todos os factos necessários para a apreciação e decisão do mérito da causa se mostram fixados neste despacho saneador, à exceção dos que constam dos temas da prova a fixar por junta médica.
Tão só se realizará a junta médica com prévio cumprimento da 13.ª instrução geral da TNI, uma vez que para além deste meio probatório obrigatório os outros meios de prova arrolados pelas partes não servem para estabelecer consequências médicas de lesões e sequelas por si sofridas, seguida da prolação de sentença de acordo com o resultado da junta médica e de acordo com os factos assentes fixados neste despacho saneador.
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Nesta conformidade, ao abrigo do disposto na instrução 13.ª da TNI solicite ao Instituto de Emprego e Formação Profissional para proceder à análise do posto de trabalho do Sinistrado para avaliação da incapacidade resultante do acidente, nomeadamente, IPATH. Posteriormente será convocada Junta Médica da especialidade de Oftalmologia.
*
Notifique.».

Não se conformando com a decisão proferida, veio a Ré Seguradora Autora interpor recurso de apelação, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES (que se transcrevem):
“1) num conglomerado de há muito, definido no ordenamento jurídico português, a disciplina legal-adjetiva que rege a forma de uma qualquer “acção especial emergente de acidente de trabalho” subdivide-se em duas e distintas fases “fase conciliatória” e “fase contenciosa”, com especificidades e alcance normativos distintos, ainda que unos num fim comum, qual seja, o do inalienável e irrenunciável “direito à reparação” consagrado nos artigos 2º e 78º do seu diploma substantivo, a chamada LAT, aprovada pela vigente Lei nº 98/2009;
2) e se aquela primeira, “fase conciliatória” visa, enquanto seu primeiro desiderato e propósito último, a consecução dum “acordo” que vincule quais as concretas “prestações” fixadas ao credor/sinistrado titular do consagrado “direito à reparação” e as correspetivas obrigações que oneram o obrigado//empregador e/ou segurador, sob a égide, em exercício duplo e concomitante, do M.P., quer, por um lado, como garante do especialíssimo “princípio da legalidade” na correspondência entre o definidos nos artigos 7º e 23º ad citada L.A.T., e, por outro lado, enquilhando sindico desses direitos e obrigações, conforme prevê o nº 1 do competente C.P.T., aprovado pela Lei nº 107/2019;
3) tanto assim que, se aquela inicial “fase conciliatória” foi, até com discurso oficial durante algum tempo usado, chamada de “fase administrativa” duma acção deste espécie, já a subsequente “fase contenciosa” aproxima-se da matriz e da estrutura modelar-tipo duma qualquer acção judicial, ainda que sem abandonar vicissitudes e características distintivas próprias enquanto “acção especial”;
4) é exactamente no acolhimento e em razão do dessa sequenciação que o legislador legal-adjectivo exige o que transpõe no nº 1 do artigo 112º daquele C.P.T., i.é, que, se no desfecho da primitiva “fase conciliatória” se verificar a não consecução do “acordo” entre as identificadas partes, obrigatoriamente aí se consignarão posições sobre precisos e elencados itens, sob pena de virtual cominação a que alude o nº 2 desse preceito;
5) essa obrigatória e exigida decantação do dito nº 1 do artigo 112º do CPT, burila a concreta figura do “acidente de trabalho” que até já mostrou ser a “causa de pedir” dessa singular lide, pré-definindo o que virá a ser o “objecto do litígio” a prosseguir para instrução e discussão;
6) mas essa obrigação exigida aos litigantes, no escopo do dito 112º do C.P.T., e adequação processual para ulterior e subsequente “fase contenciosa” há-de perscrutar-se cum grano salis, i.é, exige-se às partes litigantes que “tomem posição sobre os factos” enunciados em cada um e todos no seu nº1;
7) ou seja, nessa posição expressa e formal a verter em respetivo “auto” soçobrarão, porque inadmissíveis, quaisquer conclusões ou juízos de valor “sobre factos”, verbis gracie, exprimindo sobre a existência de violação de normas de segurança dado ser, etimologicamente, discurso meramente conclusivo;
8) tudo, como em superior mestria, decidiu o S.T.J. quando proferiu aresto onde expressou que “na tentativa de conciliação devem as partes pronunciar-se sobre os vários pormenores factuais que podem interessar à decisão da causa… a deixar consignado em auto os factos que houve acordo das partes, consignando também em que não acordaram” (in acórdão de 30.Out.1996);
9) e essa precisa separação da tomada de posição “sobre os factos” enuncia ser, na “ratio” do citado preceito, uma obrigatória “delimitação se faça em termos factuais, não em termos meramente valorativos ou conclusivos” (in, acórdão do T.R.C de 24.Mai2022, procº nº 964/09.9TTLRA.C1);
10) e é por ser assim que “tendo em conta a função uniformizadora da jurisprudência do mais alto tribunal, entende-se que a seguradora não se encontra vinculada a discutira fase contenciosa apenas à questão de normas de segurança por parte do empregador, podendo discutir se o acidente se encontra descaraterizado” (in, citado acórdão do T.R.C. de 24Mai2022);
11) ora, no caso sub iudice, a Mma. Juíza “a quo” ao estreitar, em sede de saneamento da lide, uma restritivíssima admissão fáctica do que leva a “objeto do litígio”, despreza matéria fundamental antes alegada pela Recorrente, assume entendimento e perspetiva errónea ao ratio e ao fim perseguido pelo mecanismo do artigo 112º nº 1 do C.P.T.;
12) com isso e por isso, impõe-se revogar o proferido “despacho-saneador”, substituindo por peça de similar natureza mas que, concacetenando os propósitos exigidos no citado artigo 112º, nº 1 com o preciso fim enunciado pelo artigo 131º, nº 2, ambos do CPT, contemple como “objecto do litígio” e correspondentes “temas de prova” todos os “factos” usados, em contraditório, pela Recorrente, mormente os alegados e atinentes à existência do comportamento do Recorrido/sinistrado capaz de ter sido causa do evento lesivo e relevar enquanto culpa integrável na previsão do regime do artigo 14º da LAT e ainda a discussão do grau e natureza das sequelas de que padece em razão desse evento lesivo, este por via de segmento a individualizar em autónomo e formal “apenso para fixação de incapacidade”, nos termos do artigo 126º, nº 1 in fine do C.P.T.».

No requerimento de interposição do recurso, a Recorrente Seguradora requereu a fixação do efeito suspensivo ao recurso, prestando caução através de “apólice-seguro de caução” que juntou, no valor de capital seguro de € 102.463,76.

O Autor não apresentou contra-alegações.

O Tribunal a quo proferiu despacho, julgando idónea a prestação de caução e admitindo o recurso como de apelação, a subir em separado e com efeito suspensivo, sendo que consignou ainda fixar o valor à ação de € 27.463,76 (com a menção de que era “o valor que resulta do auto de tentativa de conciliação, para efeitos do artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho” (refª citius 457964538).

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87.º, n.º 3, do CPT, no qual consta o seguinte:
«1. Não se conformando com a decisão proferida no processo supra identificado, vem a Ré Seguradora, interpor recurso.
2. Entende a Recorrente que deverá ser revogado o Despacho-saneador e substituído por decisão que acolha as conclusões da recorrente, nomeadamente discussão de factos que podem descaracterizar o acidente, e fixação da Incapacidade ao Autor em Apenso autónomo.
3. Do auto de Não conciliação constam as declarações do Autor/sinistrado de que “”ao tirar uma cavilha metálica, esta ter-se-á soltado, atingindo-o no olho esquerdo, uma vez que “não estava a usar protecção por não lhe ter sido dada pelo patrão.” Como consequência resultou-lhe traumatismo do olho esquerdo.””
Não estando presente a entidade empregadora, não sendo adiada a diligência, convocando para a nova data a entidade empregadora face à declarada falta de Equipamento de Protecção Individual, não fornecido pela entidade empregadora, e eventual responsabilização desta pela ocorrência do acidente ou das consequências do acidente, e tendo sido instaurada acção, também, contra a entidade empregadora, podia esta ter invocado esta falta (pois a tentativa de conciliação é obrigatória na fase conciliatória do processo).
Sendo citada e nada tendo dito, nem requerido, nem apresentada contestação, deve considerar-se sanada.
4. A acção proposta pede, a final, a condenação da Ré Seguradora em vários pedidos e, subsidiariamente, (e caso não se verifique a responsabilidade em repara os danos do sinistro por parte da 1ª Ré seguradora), a ré entidade empregadora nos mesmos pedidos.
4.1. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, os pedidos feitos às RR, neste caso não deveriam ser iguais.
Tendo a Ré entidade empregadora transferido para uma entidade Seguradora a sua responsabilidade pela totalidade do salário, e sendo demandada esta, não haveria razão para demandar aquela.
4.2. Mas se se considerar, face às declarações do sinistrado no Auto de Não Conciliação, que não usava protecção porque não lhe tinha sido fornecida pela entidade empregadora, o “patrão”, e podendo considerar-se esta falta como causadora do acidente ou das suas consequências (portaria 53/71, de 03.02, com a redação da portaria 702/80, de 22.09), então, salvo melhor opinião, a acção deveria ser em primeiro lugar instaurada contra a entidade empregadora, nos termos do art.º 18º da LAT (actuação/omissão culposa da entidade empregadora), satisfazendo a seguradora/recorrente o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso, nos termos do art.º 79º, 3, da LAT
Nesta hipótese (que aparentemente o Autor pretenderia, também, ao peticionar a quantia de 75.000,00€ de danos morais), os valores pedidos à entidade empregadora, serão superiores aos pedidos, ou seja, serão os previstos no citado art.º 18º da LAT (sendo ainda possível a condenação se se verificarem os requisitos, nos termos do disposto no art.º 74º do CPT).
E tendo peticionado a quantia de 75.000,00€, de danos não patrimoniais mais 20,00€ de transportes e tendo a Ré Seguradora impugnado este pedido (v. artº. 25º da contestação), sempre implicava que tivesse de haver julgamento e produção de prova de factos que justificassem estes pedidos.
5. Atenta a posição da Ré Seguradora/recorrente, deverá o recorrido/sinistrado fazer prova de que não recebeu o equipamento de protecção – “um par de óculos” – ou que estavam impróprios para ser usados, como é referido.
Não sendo verdadeiro o que se diz no art.º 18º, 19º 22º e segs. da p.i., pois provando-se que por sua iniciativa o recorrido/sinistrado não usava “óculos de protecção”, poderá não ser ressarcido dos danos resultantes do acidente.
Como, pretendendo ser considerado incapaz para o trabalho habitual, talvez devesse ter requerido exame por junta médica e não aceitar a IPP que lhe foi fixada.
6. Do auto de tentativa de conciliação consta que a Seguradora/recorrente “aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e aceita a existência de uma apólice de acidentes de trabalho através da qual está transferida a responsabilidade pelo salário de 635,00€ x 14.
Não aceita a responsabilidade pelas consequências do acidente uma vez que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso dos EPI`s. Não aceita igualmente o resultado do exame médico realizado no INML do Porto, designadamente o grau de IPP.
Pelas razões expostas, não se concilia com o sinistrado.”
Na verdade, como se vê do douto Despacho recorrido, na sequência das declarações do sinistrado de que não usava equipamento de protecção individual – EPI – porque o patrão não lho tinha disponibilizado, dizendo a Recorrente/Seguradora, apenas, que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso de EPI`s, depreendia-se, como parece ter acontecido com o Douto Despacho recorrido, que se estava a referir à actuação da entidade empregadora.
Só depois, na contestação é que vem imputar essa violação das regras de segurança ao recorrido/sinistrado.
Ora esta posição da Recorrente/Seguradora podia/devia ter sido assumida logo na tentativa de conciliação, pois estava já habilitada para tal se considerarmos os documentos juntos com a contestação (nomeadamente Docs. 15 e 16).
Para este comportamento das partes, prevê o art.º 112º, 2, do CPT, a condenação, a final, como litigante de má-fé.
7. Depois imputando ao sinistrado o não uso do Equipamento de Protecção, admite, a recorrente, a ocorrência do acidente tal como descrito pelo sinistrado no auto de não conciliação.
As hipóteses de descaracterização do acidente a que se refere o art.º 14º do CPT, pressupõem a existência de um acidente, que, porém, pode não ser ressarcido se se verificarem as situações aí previstas.
É certo que não pode concluir-se já, que a entidade empregadora não disponibilizou Equipamento de Protecção Individual-EPI, pois não esteve na tentativa de conciliação e da não apresentação de contestação também não pode tirar-se tal ilação porque da p. i. não consta tal facto.
Como não podia a recorrente impugnar (como o fez no art.º 25º da contestação), o que consta do art.º 7º da p. i., que, na verdade deveria considerar-se provado, como foi, nas als. b), c) e f), dos factos provados, atenta a descrição feita pelo recorrido no auto de não conciliação e a posição da seguradora de que “aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e aceita a existência de uma apólice de acidentes de trabalho através da qual está transferida a responsabilidade pelo salário de 635,00€ x 14.”.
O Ac. da RP de 04.04.2022, proferido no processo n.º 1537/14.0T8MAI.P1, citado, conclui, também, que “Conforme estabelece o art.º 112.º 1, do CPT, não se obtendo o acordo, no auto da tentativa “(..) são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”, exigência legal que visa circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões em relação às quais não tenha havido acordo.
II - Em coerência com o fim visado pelo art.º 112.º, nos termos do art.º 131.º n.º 1, al. c), ambos do CPT, o juiz deve “[C]onsiderar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”.
III - A seguradora sempre teve ao seu dispor os elementos essenciais para formular uma avaliação segura sobre a existência e qualificação do acidente como de trabalho, bem assim quanto à verificação do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, designadamente, o conhecimento sobre o facto participado como acidente de trabalho e o subsequente resultado de todo o processo de acompanhamento médico, iniciado pelos seus serviços clínicos após a participação daquele facto com vista a assegurar o tratamento ao sinistrado, durante o qual foram realizados exames complementares de diagnóstico e aquele foi observado em várias consultas médicas, podendo asseverar-se que no acto de tentativa de conciliação estava habilitada a tomar posição sobre existência e caracterização do acidente e do nexo causal entre a lesão e o acidente.
IV - Retira-se do auto de tentativa de conciliação que a recorrente tomou posição concreta sobre factos e não sobre conclusões: o acidente consta descrito com suficiência, o mesmo acontecendo quanto ao nexo causal entre o acidente e as lesões, sendo que quanto a estas, a remissão para o auto de exame médico dispensava a descrição exaustiva das lesões nele mencionadas.
V - Por conseguinte, quando a representante da seguradora declarou que “[..] aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente”, essa posição traduz uma aceitação expressa e inequívoca quer do acidente de trabalho descrito naqueles termos, quer da existência de nexo causal entre o mesmos e as lesões referidas no auto de exame médico singular,” … .
E, como se concluiu no Ac. da RC de 25.10.2019, proc. 5068/17.8T8LRA-A.C1 (Felizardo de Paiva), www.dgsi.pt., “Do confronto dos artigos 111º e 112º do CPT podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto.
Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”
8. Porém, como acima se diz, e para além do referido sobre condições de segurança (como o fornecimento de EPI, uso destes e impossibilidade do seu uso por não estar funcional), estão impugnados os valores pedidos a título de indemnização por danos não patrimoniais e de transportes, no montante de 75.000,00€ e 20,00€, respectivamente.
Assim, quando a discordância entre as partes na tentativa de conciliação vá para além da questão da incapacidade, o meio processual adequado para dar início à fase litigiosa será a apresentação de petição inicial.
E, estando em discussão não apenas a questão da incapacidade, deverá, nos termos do art.º 131º, 1, e), e art.º 132º, 1, do CPT, ordenar-se o desdobramento do processo e organizar-se um Apenso para determinação da incapacidade para o trabalho, decidindo-se no processo principal as demais questões.
9. Nestes termos, ressalvando sempre diferente e melhor opinião, embora por diferentes razões e diversa fundamentação, deveria alterar-se o douto Despacho saneador, por forma que seja ordenado o desdobramento do processo, abrindo um processo Apenso para fixação da incapacidade para o trabalho do recorrido, apreciando e decidindo no processo principal as demais questões em litígio acima referidas.».

Não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.


***

II - Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho].

Assim, as questões a apreciar e decidir consistem em saber se a Ré Seguradora pode arguir na contestação a exceção de descaraterização do acidente nos termos e para os efeitos do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4-09, ou se tal matéria foi aceite na tentativa de conciliação, o que impedirá que a mesma seja levada aos temas de prova e, consequentemente, se o objeto do litígio se subsume apenas ao apuramento das consequências do sinistro como decidido e, bem assim, se deverá ser organizado apenso autónomo e formal para fixação de incapacidade.


***

III – FUNDAMENTAÇÃO

A factualidade a ter presente é a que decorre do desenvolvimento processual relevante que emerge do relatório efetuado em I.

A decisão recorrida circunscreveu o objeto do litígio às consequências do sinistro, mais concretamente e em sede de temas de prova, ao grau de incapacidade para o trabalho, data da consolidação médico-legal das lesões, se ficou a padecer de IPATH, ajudas técnicas e tratamentos médicos e, bem assim, considerou não ser de ordenar o desdobramento do processo, nem ser de realizar audiência final por considerar “que todos os factos necessários para a apreciação e decisão de mérito da causa, se mostram fixados neste despacho saneador, à exceção dos que constam dos temas da prova a fixar por junta médica”.

A Recorrente defende, em substância, que deve ser admitida a discussão sobre os factos que invocou em contraditório, mormente os alegados e atinentes à existência de comportamento do Recorrido capaz de ser causa do evento e relevar em termos de culpa integrável na previsão do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro e ainda do grau e natureza das sequelas de que padece em razão desse evento lesivo, este por via de autónomo e formal apenso para fixação de incapacidade.

O Exmo Procurador-Geral Adjunto conclui que deve ser ordenado o desdobramento do processo, abrindo apenso para fixação da incapacidade para o trabalho, decidindo-se no processo principal as demais questões em litígio, entre as quais, a questão da violação das regras de segurança para efeitos da responsabilidade agravada da Ré Entidade Empregadora (artigo 18º e 79.º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro) e a questão da violação das normas de segurança no trabalho imputável ao Autor/Sinistrado para efeitos de descaraterização do acidente a que se refere o artigo 14.º da mesma Lei e consequente não reparação dos danos decorrentes do acidente.

Vejamos.

O processo emergente de acidente de trabalho carateriza-se como um processo especial com natureza urgente e oficiosa [cfr. artigos 26.º, n.ºs 1, alínea e), e 3 e Título IV, Capítulo II, artigos 99.º e seguintes do CPT].

Tal processo compreende duas fases distintas, a saber: uma primeira, denominada fase conciliatória, de realização obrigatória e dirigida pelo Ministério Público; e, uma segunda, a fase contenciosa, de realização eventual e sob a direção do Juiz.

A fase conciliatória visa, como decorre da sua própria designação, alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente do trabalho para o sinistrado, mediante uma composição amigável, embora necessariamente sujeita a regras legais imperativas, pela natureza indisponível dos direitos (cfr. artigos 78.º e 12.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro[2]), atendendo aos interesses de ordem pública envolvidos.

A tramitação da fase conciliatória, tendo em vista alcançar o referido objetivo, compreende, por sua vez, três fases, mais precisamente: uma primeira de instrução, que tem em vista a recolha e fixação de todos os elementos essenciais à definição do litígio, de modo a indagar sobre a “(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo suscetível de ser homologado (artigos 104.º, n.º 1, 109.º e 114.º do CPT); uma segunda, que consiste na realização do exame médico singular (artigos 105.º e 106.º do CPT); e, finalmente, a tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, com a finalidade primordial de obtenção de acordo suscetível de ser homologado pelo Juiz (artigo 109.º do CPT).

O artigo 111.º do CPT, inserido da Subsecção I que regula a fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho e doença profissional, dispõe, sob a epígrafe
Conteúdo dos autos de acordo”, o seguinte:

“Dos autos de acordo constam, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.”

Por sua vez, o artigo 112.º do mesmo Código, sob a epígrafe “Conteúdo dos autos na falta de acordo”, estabelece o seguinte:

“ 1. Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respetivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.

2 – O interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um destes factos, estando já habilitado a fazê-lo, é, a final, condenando como litigante de má fé”.

Fazendo a interpretação do alcance de tais normativos, e particularmente do último, vem sendo defendido que é imprescindível que sejam consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, e não meros conceitos e/ou conclusões que eventualmente se pudessem extrair desses factos, entendimento que se sufraga[3].

Não se olvide que, nos termos do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT, são esses factos que devem ser tidos como assentes no despacho saneador, a fim de serem tomados em consideração na sentença (artigo 135.º do CPT).

Como consta no Acórdão desta Secção Social Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2024 (melhor identificado na nota de rodapé 3), «(…) não obstante dizer-se frequentemente que o auto de tentativa de conciliação delimita o objeto do processo, relativamente às questões em apreciação, no entanto, em face desde logo da atual redação do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT – no saneador consideram-se assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação -, como aliás já o referimos anteriormente, quer o acordo como o desacordo verificado na tentativa de conciliação deve incidir ou versar sobre factos, sendo que a questão de saber se esses factos, num ou noutro caso, deverão integrar/concretizar ou não o evento como acidente de trabalho é já um problema de qualificação jurídica, que apenas ao julgador compete resolver – conclusões, juízos de valor, qualificações jurídicas, são atividades que transcendem a vontade das partes. Daí que, por essa razão, no que também importa para o caso que se decide, o que deve constar do auto não é o acordo ou o desacordo das partes acerca da existência e caracterização do acidente ou acerca do nexo de causalidade, por se tratar de conceitos jurídicos, e sim, diversamente, o acordo ou o desacordo acerca dos elementos de facto que definem e caracterizam o acidente e o nexo causal”.

Como também vem sendo reconhecido, o objetivo da definição e posicionamento pressupostos no citado artigo 112.º é reduzir a litigiosidade das fases subsequentes e encaminhar a tramitação posterior dos autos, que será tanto mais simples quanto menos forem as questões controvertidas.

Mas, como também se salienta no citado Acórdão, “os direitos reclamados e sobre os quais terá de existir pronúncia das partes no sentido da sua aceitação ou não deverão assentar em factos previamente expostos e consignados no auto.”

Em linha com o defendido em diversos arestos desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, consideramos que resulta da redação dos referidos artigos 111.º e 112.º, n.º 1, do CPT, que esta (tentativa de conciliação) apenas vincula as partes relativamente aos pontos diretamente abordados e acordados e não para além destes[4].

Atente-se ainda que, no domínio do processo emergente de acidente de trabalho, existe um dever de conhecimento oficioso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis – em que, como se sabe, a condenação pode ser em quantidade superior ao pedido, ou em objeto diverso dele (artigo 74.º do CPT) -, tratando-se de matéria subtraída à disponibilidade das partes (artigo 12.º da NLAT)[5]. O direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho, à “justa reparação” tem assento no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa (cfr. ainda os artigos 283.º, n.º 1, do Código do Trabalho, o artigo 78.º da NLAT[6] e o artigo 127.º, n.º 1, do CPT[7]).

Temos assim por inequívoco que, tratando-se de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso[8], devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente do enquadramento jurídico que as partes tenham efetuado[9] e dos valores peticionados.

Feito este enquadramento, retomemos agora o caso dos autos.

Analisado o auto de tentativa de conciliação, verifica-se que no mesmo consta o seguinte:

«Iniciada a diligência resulta dos autos que:

Pressupostos e prestações legais:

No dia 03 de janeiro de 2020, pelas 09h30, o sinistrado quando sob as ordens, direção e fiscalização de “A..., Lda.” (…), foi vítima de um acidente que ocorreu nas seguintes circunstâncias:

Ao tirar uma cavilha metálica, esta ter-se-á soltado, atingindo-o no olho esquerdo, uma vez que “não estava a usar proteção por não lhe ter sido dada pelo patrão”.»

Ora, salvo melhor entendimento, esta “descrição” é reportada à enunciação do que segundo o Ministério Público, que presidiu à diligência, resultaria dos autos, em termos de circunstâncias do acidente, retribuição auferida, lesões sofridas em consequência do acidente, com enunciação das “prestações legais” a que, também segundo o Ministério Público, o Sinistrado teria direito.

De facto, nos termos do artigo 109.º do CPT, na tentativa de conciliação, o Ministério Público promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo.

Só na sequência dessa enunciação, surge no auto de tentativa de conciliação o posicionamento do Sinistrado e da Recorrente Seguradora.

Quanto ao descrito circunstancialismo do acidente, depois de exaustiva consulta da fase conciliatória do processo principal, verifica-se que o único local onde se alude a uma tal descrição é nos relatórios de exame médico do INML constantes dos autos, onde se inclui o relatório datado de 13-12-2022, mais precisamente no item “História do evento”.

Nesse item consta o seguinte:
A. História do evento (colhida em 17-08-2021)”
«(…)
A informação sobre o evento, a seguir descrita, foi prestada pelo examinando.
(…)
No dia 03/01/2020, pelas 09:30 horas, refere ter sofrido acidente de trabalho: ao tirar uma cavilha metálica, esta ter-se-á soltado, atingindo-o no olho esquerdo, mencionando não estar a usar “proteção por não ter sido dada pelo patrão”. Do evento terá resultado traumatismo do olho esquerdo.
(…)”.

Na participação do acidente o Sinistrado apenas referiu que foi vítima de um acidente de trabalho, no dia 3 de janeiro de 2020, que o iria incapacitar parcial e permanentemente, não contendo tal participação qualquer descrição do circunstancialismo do acidente.

Na participação do acidente feita pela Entidade Empregadora à Seguradora – junta com o requerimento de 31-08-2021 – consta no item tipo de trabalho que estava a ser realizado “estava a tirar pregos numa tábua”, no item circunstâncias do acidente “prego saltou para olho esquerdo”.

No caso dos autos, constitui realidade incontornável que a Entidade Empregadora não foi convocada para a diligência de tentativa de conciliação da fase conciliatória (no despacho que designou a diligência de tentativa de conciliação o Ministério Público consignou mesmo que não era necessária a sua presença, uma vez que a retribuição estava integralmente transferida para a Companhia de Seguros).

Ora, se depois o Ministério Público em sede de tentativa de conciliação considerou que afinal dos autos resultava aquele circunstancialismo, onde incluiu a menção a que o sinistrado “não estava a usar proteção por não lhe ter sido dada pelo patrão” (transcrevendo a menção constante do relatório médico na história do evento), não tendo convocado a Entidade Empregadora e não estando por isso a mesma presente, salvo o devido respeito, face às disposições conjugadas dos artigos 108.º e 109.º do CPT, deveria ter sido designada data para nova tentativa de conciliação, convocando agora para a mesma a Entidade Empregadora.

Com efeito, perante tal circunstancialismo, ainda que justificando maior pormenorização – de que não usava proteção porque não lhe tinha sido fornecida pela entidade empregadora, o “patrão”, e podendo perspetivar-se essa falta como causadora do acidente ou das suas consequências – cfr. Portaria n.º 53/71 de 3-02, com a redação introduzida pela Portaria n.º 702/80 de 22-09, (artigos 3º, 142.º, 145.º) -, então, perfilava-se como possível uma situação de responsabilidade agravada da Entidade Empregadora por apelo ao regime previsto no artigo 18.º da NLAT. Nessa situação, a Entidade Empregadora responde pelas prestações calculadas nos termos definidos no artigo 18.º, n.º 4, da NLAT e a Seguradora será solidariamente responsável pelo pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse culpa, sem prejuízo do direito de regresso perante a Entidade Empregadora, conforme dispõe o artigo 78.º, n.º 3, da NLAT.

Mas, não foi esse o procedimento seguido, sendo certo que se atentarmos nas “prestações legais” constantes do auto de tentativa de conciliação como o Sinistrado tendo direito nos moldes enunciados pelo Ministério Público, verifica-se que as mesmas traduzem tão-só as prestações normais, não comtemplando qualquer prestação agravada prevista no artigo 18.º da NLAT, sendo certo que o Sinistrado disse “aceitar o grau de desvalorização fixado pelo perito médico pelo que se concilia nos termos acima propostos”.

Já pelo representante da Seguradora foi dito que: “a sua representada aceita a existência e caraterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e aceita a existência de uma apólice de acidentes de trabalho através da qual está transferida a responsabilidade pelo salário de € 635x14.

Não aceita a responsabilidade pelas consequências do acidente uma vez que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso dos EPI´s. Não aceita igualmente o resultado do exame médico realizado no INML do Porto, designadamente o grau de IPP.

Pelas razões expostas, não se concilia com o sinistrado.”.

Importa salientar que deste posicionamento da Seguradora apenas resulta a aceitação pela Seguradora:

- Da factualidade atinente e relevante para concluir pela ocorrência do acidente, sua qualificação como acidente de trabalho e nexo de causalidade entre a lesão e o acidente – no dia 3 de janeiro de 2020, pelas 9h30, o Sinistrado quando sob as ordens, direção e fiscalização de A..., Lda., ao tirar uma cavilha metálica, esta soltou-se, atingindo-o no olho esquerdo, do que resultou como consequência traumatismo no olho esquerdo;

- Da factualidade atinente à transferência da responsabilidade através de apólice de seguro de acidentes de trabalho pelo salário de € 635,00x14 (ou seja, € 8.890,00) – apólice essa que se mostrava já junta aos autos na fase conciliatória.

A Seguradora posicionou-se ainda no sentido da não aceitação da sua responsabilidade pelas consequências do acidente “uma vez que não foram cumpridas as normas de segurança no local de trabalho, nomeadamente pelo uso de EPI´s”.

A decisão recorrida entendeu esta afirmação como sendo no sentido do incumprimento das normas de segurança atenta a atuação culposa do empregador, dizendo que a Seguradora se vinculou pela caraterização do acidente ao aceitar o facto de a Empregadora não ter fornecido proteção ao trabalhador, não se conciliando atento o incumprimento das regras de segurança no que tange à atuação culposa da Empregadora.

Ressalvando sempre o devido respeito por entendimento divergente, reconhecendo-se que o posicionamento da Seguradora deveria ter ficado plasmado no auto de conciliação em termos mais claros e inequívocos, considera-se que a sua posição se coaduna com aquela que assumiu na contestação que apresentou na fase contenciosa do processo.

Relembre-se que, na fase conciliatória do processo, a Seguradora tinha já comunicado ao Ministério Público que “o acidente dos autos foi descaraterizado como de trabalho e excluído o direito à reparação, nos termos legalmente previstos e por integração do disposto na alínea a) n.º 1 e n.º 2 do Artº 14º da LAT”.”, sendo certo que juntou aos autos as comunicações que dirigiu ao Sinistrado e à Tomadora de Seguro (Entidade Empregadora) onde fez constar “após averiguação efetuada pelos nossos serviços técnicos, concluímos que o acidente resultou do incumprimento das normas de segurança e saúde no local de trabalho por parte do trabalhador, impostas pelo empregador e previstas na Lei, nomeadamente pelo não uso dos Equipamentos de Proteção Individual (óculos de proteção)”.

Acresce que só numa situação subsumível ao artigo 14.º da NLAT é que é Seguradora poderia não aceitar a sua responsabilidade pela reparação do acidente no que respeita às prestações que estavam a ser propostas e reclamadas em sede de tentativa de conciliação – já que aceitou a verificação do acidente e sua qualificação como de trabalho e que se mostrava integralmente transferida para si a responsabilidade infortunística mediante contrato de seguro. Isto porque, como já se referiu supra, numa situação de responsabilidade agravada do empregador para efeitos do artigo 18.º da NLAT a Seguradora responde solidariamente pelas prestações normais (que eram aquelas que estavam a ser propostas), sem prejuízo depois do direito de regresso perante a Entidade Empregadora (artigo 79.º, n.º 3, da NLAT).

Saliente-se ainda que, nas situações prevenidas no artigo 14.º da NLAT, a consequência é a exclusão do direito à reparação, mas o evento desde que reconduzível a uma das situações enquadráveis nos artigos 8.º e 9.º da NLAT não deixa de ser terminologicamente qualificável como acidente de trabalho embora não confira o direito à reparação.

O Autor deu início à fase contenciosa do processo com a apresentação de petição inicial, instaurando a ação, como vimos, contra a Seguradora e a Entidade Empregadora, peticionando a final a condenação da Ré Seguradora em vários pedidos – entre os quais um pedido por danos não patrimoniais de € 75.000,00 - e, subsidiariamente, (“e caso se verifique a não responsabilidade em reparar os danos do sinistro, por parte da 1ª Ré, seguradora”) da Ré Empregadora nos mesmos pedidos.

Refira-se que, como evidenciam Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Ravara[10], «(…) [o] regime legal de reparação dos acidentes de trabalho não visa reparar lesões, dores ou sofrimentos não traduzíveis nas incapacidades descritas na lei, ou morte, pelo que não são reparáveis os danos não patrimoniais ou morais, exceto se o acidente de trabalho tiver ocorrido por culpa da entidade empregadora, conforme resulta do artº 18.º, n.º 1 da LAT.».

Tendo em conta o âmbito da reparação dos acidentes de trabalho, não se percebe os termos em que o Autor formula os pedidos – quanto à subsidiariedade -, como se aborda no parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto. Mas, trata-se de questão que ultrapassa o objeto do presente recurso.

Ora, uma vez que a Entidade Empregadora não teve intervenção na tentativa de conciliação da fase conciliatória, nem sequer pode considerar-se aceite, muito menos confessada, para efeitos do artigo 112.º e 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT, desde logo a seguinte materialidade: “não estava a usar proteção por não lhe ter sido dada pelo patrão”. Como a Entidade Empregadora não interveio na tentativa de conciliação, perfilando-se como entidade responsável que depois veio a ser demandada, o certo é que mesma não se posicionou, porque não lhe foi dada oportunidade para tanto, nos termos e para os efeitos do artigo 112.º do CPT [a verdade é também que, entretanto, a Entidade Empregadora foi citada para a fase contenciosa, nada tendo dito ou requerido, nem apresentou contestação, pelo que, como refere o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto, a situação estará sanada].

Nesta sede, apelamos às considerações tecidas no já identificado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-07-2024 (nota de rodapé 3), que se passará a transcrever, por merecerem a nossa inteira concordância e serem totalmente transponíveis para o presente caso.

Assim, consta de tal Acórdão o seguinte:
«Se todo o iter do acidente, v.g. quanto ao seu deflagrar e às eventuais circunstâncias [relevantes] que o rodearam, tivesse ficado definido – em termos de narração factual - em sede de tentativa de conciliação, e aceite pelos interessados, não teríamos dúvidas em afirmar que se tratava de «questão arrumada» (e quer dos factos resultasse que se tratava de um «simples» acidente de trabalho, de um acidente com agravamento da responsabilidade, ou deles resultasse a descaracterização do acidente), mas tal acordo não ocorreu.
Se ficou em aberto, como efectivamente é o caso, podendo discutir-se nesta fase, a matéria respeitante à forma como ocorreu o acidente, v.g. se na sua origem esteve a violação de regras de segurança por parte do sinistrado e/ou a sua actuação com negligência grosseira, parece não fazer sentido que essa discussão tenha, quanto à alegação dos autores, de ficar restringida ao que alegaram os beneficiários (através do seu mandatário) na tentativa de conciliação, e não possa abranger factos tendentes a demonstrar que o acidente ocorreu por culpa da entidade empregadora, v.g. por violação de normas de segurança [conquanto em sede de tentativa de conciliação não tenha sido colocada a questão da responsabilidade (agravada) da empregadora e os beneficiários/autores aleguem estes factos “ex novo", constatando-se, aliás, que do auto de tentativa de conciliação consta que os beneficiários declararam desconhecer então a “mecânica do acidente”].
Ademais, se é certo que «“todas as questões de facto sobre as quais tenha havido acordo não poderão ser, posteriormente, objecto de discussão, considerando-se definitivamente assentes”, devendo no despacho saneador ser dados como assentes esses factos, conforme impõe a al. c) do n.º 1, do art.º 131.º do CPT»[10], cabe perguntar, na situação presente e atinente à questão da responsabilidade pela reparação do sinistro (i. é, “da entidade responsável”; cf. n.º 1 do art. 112.º do CPT) que factos poderão, por, constando do auto de não conciliação, estarem porém assentes por acordo, transitar para a matéria de facto assente a integrar no despacho saneador?
Como decorre do que acima se expôs e relacionados com esta questão, apenas a existência do contrato de seguro e o valor da retribuição coberta.».

No presente caso, transitou controvertida para a fase subsequente a questão da imputação da culpa, da responsabilidade, sobre o acidente, sendo certo que não ficou definido em sede de tentativa de conciliação o circunstancialismo relevante que rodeou o acidente no que toca à temática da referida imputação.

Ademais, e como se evidencia no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-09-2024[11], «estando indiscutivelmente controvertida a questão da imputação de culpa no acidente (…), não se justifica restringi-la à culpa da empregadora, ficando o tema totalmente em aberto no que se refere à identificação dos culpados. Note-se que o objetivo do acordo na tentativa de conciliação é reduzir ao máximo o litígio na fase contenciosa, em prol da celeridade de um processo que reveste natureza urgente, oficiosa e pública. Não é este o caso dos autos, em que sobreveio para a fase posterior a imputação de culpa que assim poderá ser amplamente discutida em fase de julgamento”.

Em suma, confrontando o que consta do auto e o que estipula a lei, nos sobreditos termos, considera-se que na fase contenciosa do processo pode inequivocamente discutir-se toda a factualidade atinente ao próprio acontecer do acidente, designadamente nos termos alegados pela Seguradora atinentes à sua descaraterização como acidente de trabalho para efeitos do artigo 14.º da NLAT e, bem assim, na versão apresentada pelo Sinistrado perante a exceção invocada pela Ré Seguradora que poderá reconduzir a questão novamente à violação das normas de segurança por parte Entidade Empregadora para efeitos de agravamento da responsabilidade nos termos do artigo 18.º da NLAT [o Sinistrado, para além de impugnar a matéria invocada pela Seguradora, invoca que os óculos que lhe foram entregues aquando da sua admissão estavam completamente danificados – muito riscados - e não possibilitavam qualquer tipo de utilização e visualização com os mesmos].

Atente-se que, enquadrando-se o direito às prestações agravadas previsto no artigo 18.º da NLAT na reparação do acidente do trabalho, direito que é de existência e exercício necessários por ter subjacentes interesses de ordem pública, essa questão – e concretamente a questão da violação das regras de segurança prevista nesse normativo - é de conhecimento oficioso e, bem assim, é-lhe aplicável a regra contida no artigo 74.º do CPT.

Como evidencia Maria José Costa Pinto[12], o artigo 74.º do CPT «constitui precisamente um caso em que a lei impõe ao julgador um dever oficioso de aplicar a lei aos factos de que possa servir-se, em homenagem ao interesse e ordem pública que constituem pressuposto das normas imperativas e indisponíveis de natureza laboral, interesse este que é mais vasto do que o interesse individual dos titulares dos inerentes direitos na sua satisfação efectiva e que justifica a impossibilidade do afastamento da aplicação destas normas por livre determinação da vontade das partes. Partilham inequivocamente desta natureza de “preceitos inderrogáveis de leis”, as normas legais que estabelecem a reparação por virtude de acidente de trabalho. (…) Assim, constituindo o direito às pensões agravadas nos termos da LAT um direito de existência e exercício necessários, e desde que a causa de pedir se mantenha a mesma, estão reunidos os pressupostos da condenação “extra vel ultra petitum” e impõe-se o cumprimento do dever oficioso imposto pelo art. 74.º do CPT, aplicando a norma inderrogável que prevê a condenação no pagamento de pensões de valor superior ao peticionado.».

Nos presentes autos, está controvertida a questão da imputação de culpa no acidente – tendo em conta o alegado pela Seguradora na contestação e o invocado pelo Autor em resposta no exercício do contraditório que lhe foi facultado.

Por outro lado, está também impugnado o peticionado a título de despesas de deslocação no montante de € 20,00 e, bem assim, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Por outro lado, ainda, desde logo pelas peticionadas e controvertidas despesas de deslocação, faleceria a argumentação da decisão recorrida no sentido de não ser de ordenar o desdobramento do processo, nem ser de realizar audiência final.

Em conclusão, não é de manter a decisão recorrida, devendo os temas de prova contemplar também a matéria da exceção de descaraterização do acidente (artigo 14.º da NLAT) invocada pela Seguradora e a matéria com relevância excetiva invocada pelo Sinistrado em resposta em matéria da violação das regras de segurança pela entidade empregadora (artigo 18.º da NLAT) – com a inerente alteração do objeto do litígio - e, bem assim, a matéria referente às despesas de deslocação e danos não patrimoniais invocados pelo Autor na petição inicial.

Do mesmo passo, e não estando em discussão apenas a questão da incapacidade, deverá ordenar-se o desdobramento do processo e organizar-se um apenso para determinação da incapacidade para o trabalho [sendo que não se perfila como possível cindir a avaliação da incapacidade (se existe e qual o grau) da definição da(s) sequela(s) (que é o efeito permanente da lesão, estando interligado com a fixação da incapacidade] decidindo-se as demais questões no processo principal – artigos 131.º, n.º 1, alínea e), e artigo 132.º, n.º 1, do CPT.


***

IV – DECISÃO

Em face do exposto, acordam as Juízas Desembargadoras da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo:

- Os temas de prova contemplar também a matéria da exceção de descaraterização do acidente (artigo 14.º da NLAT) e a matéria da violação das regras de segurança pela entidade empregadora (artigo 18.º da NLAT) – com a inerente alteração do objeto do litígio - e, bem assim, a matéria referente às despesas de deslocação e danos não patrimoniais invocados pelo Autor na petição inicial, por forma a que, após julgamento, a final, seja proferida decisão quanto a tais matérias;

- Ser organizado um apenso para determinação da incapacidade para o trabalho (com a inerente definição das sequelas).


***

Custas da apelação por quem for responsável pelas custas (e na mesma proporção) a final.

Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Notifique e registe.


*


(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)



Porto, 13 de janeiro de 2025

Germana Ferreira Lopes [Relatora]

Rita Romeira [1.ª Adjunta]
Teresa Sá Lopes [2ª Adjunta]

________________________

[1] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos.
[2] Adiante NLAT.
[3] Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, os seguintes Acórdãos disponíveis in www.dgsi.pt – site onde se encontram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso: do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2006, processo 06S789, Relator Conselheiro Vasques Dinis; do Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2024, processo n.º 844/23.5T8PNf-A.P1, Relator Desembargador Nelson Fernandes; do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-07-2024, processo n.º 2976/21.5T8GMR-A.G1, Relator Desembargador Francisco Sousa Pereira.
[4] Vide, entre outros, o Acórdão desta Secção Social de 15-12-2021, processo n.º 2658/20.5T8VNG-A.P1, relatado pelo Desembargador Rui Penha.
[5] Nos termos do artigo 12.º da NLAT, é nula a convenção contrária aos direitos ou garantias conferidos por essa lei ou com eles incompatível (n.º 1). São igualmente nulos os atos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos nessa mesma lei (n.º 2).
[6] Nos termos do artigo 78.º da NLAT, os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida nessa lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.
[7] A questão da determinação da entidade responsável tem um tratamento específico na legislação processual laboral, estabelecendo o artigo 127.º, n.º 1, do CPT que, quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável,  o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na ação qualquer entidade que julgue ser eventual responsável.
[8] Sobre esta matéria veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-12-2018, Relator Conselheiro Ribeiro Cardoso, processo n.º 620/16.1T8LMG.C1.S1.
[9] Até porque nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC 3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
[10] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais — uma Introdução, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Coleção Formação Profissional, Centro de Estudos Judiciários, julho de 2013, página 35.
[11] Processo n.º 3494/21.7T8VNF.G1, Relatora Desembargadora Maria Leonor Barroso.
[12] In Prontuário de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, n.ºs 74-75, Coimbra Editora, “Violação de regras de segurança e higiene no trabalho: perspetiva jurisprudencial, páginas 223-224.