I - Nos recursos no âmbito contraordenacional laboral, a Relação, como regra, apenas conhece de matéria de direito (artigos 49.º, n.º 1, e 51.º. n.º 1, da Lei n.º 107/2009 de 14-09), sem prejuízo da apreciação dos vícios da matéria de facto nos termos previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
II – Os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, analisada na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória.
III - Na falta de previsão expressa, mas também na falta de qualquer disposição da qual se infira ter sido propósito do legislador laboral excluir deste âmbito a aplicação do regime da atenuação especial da coima, a que alude no art.º 18º, n.º 3 do DL 433/82 de 27/10, é admissível a atenuação especial da coima aplicadas a contraordenações laborais, nos termos do ao art.º 72.º do Código Penal, por remissão do art.º 32.º do citado DL 433/82,
IV – Só há lugar à atenuação especial da coima se, em concreto, a conduta da arguida, globalmente considerada, revelar uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da sua culpa ou da necessidade da pena, apresentando-se com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tal hipótese quando estatuiu os limites normais da moldura abstrata da coima.
(Da responsabilidade da Relatora)
Acordam os juízes da secção social do Tribunal da Relação do Porto
Relatório
A Autoridade para as Condições do Trabalho proferiu decisão administrativa de condenação contra a recorrente A..., SA, pela prática de uma contraordenação muito grave prevista pelo artigo 15.°, n.º 2, alínea c), e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, na coima de € 12.240 (120 unidades de conta).
A recorrente impugnou a decisão administrativa alegando, em síntese, que foi ultrapassado o prazo de instrução o que configura uma nulidade; que não praticou os factos porque assegurou condições de segurança e de saúde aos trabalhadores, deu-lhes formação nesta matéria quando entrou no refeitório em causa, os trabalhadores foram consultados e informados sobre questões de saúde e segurança no trabalho e como transitaram de outra empresa, já trabalhando em refeitórios já eram conhecedores dessas matérias, o departamento de qualidade da empresa avalia e previne os riscos, mas conta com empresa externa que ainda não tinha tido tempo para fazer a avaliação, o que veio a ser feito posteriormente, mas antes do levantamento do auto de notícia; ainda que assim não se entenda, a coima é exagerada, sendo suficiente uma advertência, privilegiando uma postura corretiva ao invés de uma postura sancionatória.
Procedeu-se a julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que julgou improcedente a impugnação e, em consequência, manteve a decisão administrativa.
Inconformada a arguida interpôs o presente recurso, com vista à revogação da sentença ou, subsidiariamente à atenuação especial da coima, concluindo a alegação nos seguintes termos:
«A - A recorrente discute os factos provados e não provados, os quais deveriam ser objecto das alterações defendidas supra, as quais, por economia processual, se dão aqui por reproduzida e integradas.
B - Face a essa matéria, a recorrente considera que não praticou qualquer infracção, tendo cumprido integralmente as suas obrigações em matéria de avaliação e prevenção de riscos, porquanto deu a conhecer às suas trabalhadoras os riscos para a segurança e saúde, bem como as medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço, as medidas e as instruções a adotar em caso de perigo grave e iminente, as medidas de emergência e primeiros socorros, de evacuação de trabalhadores e de combate a incêndios, bem como os trabalhadores ou serviços encarregues de as pôr em prática, ou seja, informou-os e preparou-os para tudo o que o Relatório de avaliação de Riscos pretende e visa alcançar.
C - Dentro do prazo concedido pelo Sr. Inspector AA entregou-lhe devidamente elaborado este Relatório, o qual já tinha pretendido efectuar.
D-A recorrente, demonstrou que dos 15 documentos exigidos pelo Sr. Inspector, representativos de 15 obrigações impostas por Lei, tinha 14 devida e atempadamente cumpridas e satisfeitas, sendo que alguns deles contemplam e abrangem o que se pretende com o Relatório de Avaliação de Riscos.
E - O Relatório de Avaliação de Riscos só cumpre o previsto na Lei se o empregador informar os trabalhadores do conteúdo do mesmo.
F- A recorrente informou as suas trabalhadoras do essencial desse conteúdo ao informar as suas trabalhadoras da Lista das medidas propostas e recomendações (formuladas) pelos serviços de SST (último) (art. 98°,2 da L. 102/2009) e ao ter procedido à Informação dos trabalhadores em SST (art. 18,19°,20° e 43° da L. 102/2009).
G-Apesar de não ter na data da visita da ACT, o dito Relatório, a recorrente cumpriu as suas obrigações legais, designadamente o disposto pelo artigo 15.°, n.º 2, alínea c), e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, tendo satisfeito o desiderado final a atingir pelo Relatório de Avaliação de Riscos.
Sem prescindir,
H - Se assim não se entender, parece à recorrente que a coima deveria ser alvo de Atenuação especial, porquanto arguida foi diligente e tentou apresentar o Relatório de Avaliação de Riscos no prazo concedido, o que fez, cumpriu todas as restantes obrigações impostas e solicitadas, não retirou qualquer benefício económico, as suas trabalhadoras nenhum dano sofreram, físico ou doutro tipo e as restantes obrigações e informações em matéria de SST foram plenamente cumpridas.
I - Foram violadas as disposições dos art. 14° e 15° da Lei 102/2009, pelo que o recurso deve proceder.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1. Nos termos do artigo 51.° n° 1 do RPCLSS, no domínio do recurso contraordenacional laboral, a 2.ª instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões de facto, pelo que deve ser indeferido o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, inexistindo do mesmo modo qualquer dos vícios previstos no artigo 410.°, n.°2 do Código de Processo Penal.
2. A contraordenação aqui em discussão é muito grave pelo que não era admissível a emissão de um auto de advertência atento o preceituado no artigo 10.°, n.°1, alínea d) da lei n.°107/2009 de 14.09, na redação em vigor à data da pratica dos factos.
3. A sanção foi aplicada no mínimo legal, não sendo admissível a admoestação por não se tratar de contraordenação leve, nos termos preceituados no artigo 48.° da Lei 107/2009 de 14.09, não sendo, no nosso entender aplicável a atenuação especial à responsabilidade contra-ordenacional por infrações à legislação laboral, pelo que não pode ser atendida a pretensão do recorrente.»
O recurso foi regularmente admitido e, neste tribunal, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Considerando o teor do requerimento de interposição e as conclusões da recorrente (art.º 412.º do Código de Processo Penal), importa que este tribunal se pronuncie sobre as seguintes questões:
1 – alteração da matéria de facto provada e não provada;
2 – se a recorrente praticou a contraordenação que lhe foi imputada;
3 – atenuação especial da coima.
Em 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
«1) É arguida A..., S.A., NIF ...25, com sede em Rua ..., Edifício ..., ... ... e local de trabalho na Escola Básica e Secundária ..., sita em Avenida ..., ... ..., exercendo outras atividades de serviço de refeições (CAE 56290), na qualidade de entidade empregadora.
2) Representa a arguida BB, NIF ...23..., com morada em Rua ..., ..., Condomínio ..., ... ....
3) Em 23/03/2022 foi efectuada visita inspetiva ao local de trabalho.
4) Foi verificado pessoal, direta e imediatamente pelo inspector autuante, à data e hora da visita inspetiva, que se encontrava ao serviço da ora arguida, sob ordens, direção e fiscalização e mediante retribuição, as seguintes trabalhadoras:
• CC, NIF ...27..., admitida em 15/09/2021;
• DD, NIF ...71..., admitida em 15/09/2021;
• EE, NIF ...35..., admitida em 15/09/2021;
• FF, NIF ...86..., admitida em 22/09/2021.
5) A entidade empregadora foi notificada para apresentação de vários documentos, nomeadamente do Relatório de Avaliação de Riscos.
6) No cumprimento da notificação, foi remetido, de entre outros documentos, "Relatório de Avaliação de Actividades de Segurança e Saúde no Trabalho", elaborado pela empresa prestadora de serviços externos B..., Lda.
7) Da análise do documento remetido, verifica-se que o mesmo foi elaborado em 04/04/2022, em resultado de visita ocorrida em 29/03/2022.
8) A arguida não diligenciou no sentido de proceder à identificação dos perigos e avaliação dos riscos, tendo o relatório sido elaborado apenas no dia 04/04/2022, após a visita inspetiva, apesar do início da prestação do trabalho ter ocorrido em setembro de 2021, no local de trabalho identificado.
9) Os trabalhadores referidos já trabalhavam no referido refeitório por conta de outras empresas, tendo a recorrente, quando passou a explorar o refeitório em causa, dado informação inicial sobre vários aspetos, incluindo segurança no trabalho.»
E foram considerados como não provados os seguintes factos:
«1) A arguida já tinha solicitado a avaliação de riscos à empresa B..., mas não conseguiu fazer antes da visita inspectiva;
2) A recorrente deu formação aos trabalhadores sobre segurança no trabalho e os trabalhadores já tinham conhecimento dessas regras.»
*
Importa começar por dizer que, reportando-se os autos a contraordenações laborais é aplicável o regime jurídico aprovado pela Lei n.º 107/2009 de 14/09, na redação anterior à Lei 13/2023, de 03/04, atenta a data da prática dos factos, e subsidiariamente, nos termos do seu art.º 60.º, os preceitos reguladores do processo de contraordenação previstos no regime geral das contraordenações (DL 433/82 de 27/10), termos em que de acordo com o art.º 41.º deste último diploma legal é ainda aplicável o Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações e por via do art.º 4.º deste, é também aplicável o Código de Processo Civil.
A primeira questão suscitada pela arguida é relativa à decisão proferida sobre a matéria de facto, pretendendo que sejam aditados factos provados e que seja considerada provada matéria que o tribunal considerou como não provada, pretensão que fundamenta na prova documental e testemunhal produzida nos autos.
O recurso para a Relação em sede de processo contraordenacional laboral, como regra, está circunscrito à matéria de direito (artigo 51.º, n.º 1, da Lei n. 107/2009 de 14/09), estando excluída a intervenção em sede de matéria de facto, sem prejuízo da apreciação de vícios decisórios ao nível da matéria de facto previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que podem ser invocados em sede de recurso e até apreciados oficiosamente.
Como tal, não é possível nesta instância recursiva conhecer de eventual erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, ao qual, atento o teor das alegações e das conclusões do recurso, se reconduz a pretensão da arguida, que nessa medida não pode senão improceder.
E ainda que a Relação possa conhecer do vício consubstanciado no erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, no caso, adiantamos, desde já que, tal situação não se verifica.
Com efeito, dispõe este último preceito que: “2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: (…) c) Erro notório na apreciação da prova”.
Na medida em que nele, a questão que se coloca nos autos foi exaustivamente apreciada de forma com a qual concordamos na íntegra e que não exprimiríamos melhor, transcreve-se o que ficou dito no Ac. deste tribunal de 03/06/2024[1]:
“Constitui jurisprudência uniforme e sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, no que concerne à apreciação do vício do erro notório na apreciação da prova (como, aliás, de qualquer outro dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal), que o mesmo só releva se decorrer do texto da própria decisão recorrida, encarada por si ou conjugada com as regras da experiência comum, analisada na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo, ou até mesmo produzidos em julgamento (salvo se os factos forem contraditados por documentos que fazem prova plena, não arguidos de falsidade).
Em consonância com este entendimento, e pronunciando-se especificamente sobre o erro notório na apreciação da prova, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-02-2005[2] o seguinte:
«O "erro notório na apreciação da prova", (…) constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum".
Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.
Em síntese de definição, estes são os elementos que hão-de conformar a apreciação, em cada caso, sobre a ocorrência do mencionado vício (cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, no BMJ nºs. 476, pág. 82; 477, pág, 338; 478, pág. 113; 479, pág. 439, 494, pág. 207 e 496, pág. 169).
O vício tem de resultar, como se referiu, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência.
Os vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP não podem, por outro lado, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.».
Tendo em conta a sobredita amplitude de conhecimento e o que carateriza os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, perante a motivação recursiva apresentada, forçoso é concluir que a Recorrente não aponta à decisão recorrida qualquer um dos indicados vícios, pretende é pôr em causa a decisão da matéria de facto, querendo fazer prevalecer a sua convicção sobre a prova produzida à formada pelo Tribunal a quo, para tanto socorrendo-se de elementos externos à sentença recorrida.
No caso, a prova dos factos mencionados pela Recorrente não decorre, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, da sentença recorrida. Decorrerá, na perspetiva da Recorrente, dos meios de prova, documental e testemunhal produzidos, o que extravassa os poderes cognitivos, em sede de apreciação da matéria de facto, conferidos pelo artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Refira-se que, atentando no elenco dos factos provados e não provados, quer considerados individualmente, quer conjugados entre si, não se identifica qualquer incoerência, contradição lógica ou desfasamento à luz das regras de experiência comum.
A Recorrente, como vimos, coloca a questão noutro prisma, atacando o processo de formação da convicção do julgador, por entender não ter valorado devidamente a prova testemunhal e documental produzida.
No entanto, como se disse, tal linha argumentativa não consubstancia o vício de erro notório de apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Não se vislumbra pela análise da fundamentação da decisão da matéria de facto, ou seja, os fundamentos que justificam a convicção formada, sustentada na prova que é aí mencionada, qualquer erro de lógica na construção do raciocínio, a mínima incoerência que seja, ou sequer desfasamento em relação às regras da experiência comum.
Também nesta sede, o Tribunal a quo, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, valorou a prova produzida nessa matéria, não resultando do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», qualquer erro notório na apreciação da prova.
Quanto aos documentos para os quais a Recorrente apela, não estão em causa documentos com força probatória plena que tenham sido desconsiderados pelo Tribunal a quo.
Relembrando o entendimento acima explanado quanto ao vício de erro notório na apreciação da prova, este não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, sendo certo que é este último que a Recorrente procura evidenciar no recurso apresentado em sede de matéria de facto, o que, como se disse, extrava os poderes cognitivos deste Tribunal, em sede de apreciação da matéria de facto .»
Ora, tal como na situação retratada no acórdão que vem de se transcrever parcialmente, no caso, analisada a sentença recorrida é evidente que a mesma não padece de qualquer vício na sua construção, apresentando-se no que respeita à decisão da matéria de facto como lógica e coerente, não sendo a invocação da prova produzida, seja documental seja testemunhal, meio apto para evidenciar o erro da decisão, já que o mesmo sempre teria ser intrínseco, revelado pelos próprios termos da sentença por si ou conjugada com as regras da experiência comum, globalmente analisada e não por elementos externos a ela, ainda que constantes dos autos, pelo que se conclui pela inexistência do vício de erro notório na apreciação da prova a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Diga-se, por fim, que também não se verifica qualquer outro dos vícios previstos no referido art.º 410.º, nº 2, designadamente nas suas alíneas a) e b) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, respetivamente), sendo que, a matéria de facto dada como provada é suficiente no sentido da conclusão retirada quanto ao preenchimento do tipo legal da contraordenação em causa e à responsabilização da recorrente pela mesma e não enferma de qualquer contradição.
O recurso, improcede, assim, nesta parte.
Para tanto alegou que cumpriu integralmente as suas obrigações em matéria de avaliação e prevenção de riscos, porquanto deu a conhecer às suas trabalhadoras os riscos para a segurança e saúde, bem como as medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço, as medidas e as instruções a adotar em caso de perigo grave e iminente, as medidas de emergência e primeiros socorros, de evacuação de trabalhadores e de combate a incêndios, bem como os trabalhadores ou serviços encarregues de as pôr em prática, ou seja, informou-as e preparou-as para tudo o que o relatório de avaliação de riscos pretende e visa alcançar.
Afirmou ainda que dentro do prazo concedido pelo Sr. Inspetor entregou devidamente elaborado o relatório, o qual já tinha pretendido efetuar; demonstrou que dos 15 documentos exigidos pelo Sr. Inspetor, representativos de 15 obrigações impostas por Lei, tinha 14 devida e atempadamente cumpridas e satisfeitas, sendo que alguns deles contemplam e abrangem o que se pretende com o relatório de avaliação de riscos; que o relatório de avaliação de riscos só cumpre o previsto na lei se o empregador informar os trabalhadores do conteúdo do mesmo; que a recorrente informou as suas trabalhadoras do essencial desse conteúdo ao informar as suas trabalhadoras da lista das medidas propostas e recomendações (formuladas) pelos serviços de SST (último) (art.º 98°, 2 da Lei n.º 102/2009) e ao ter procedido à informação dos trabalhadores em SST (art.º 18º,19°,20° e 43° da Lei n.º 102/2009).
E referiu ainda que, apesar de não ter na data da visita da ACT, o dito relatório, cumpriu as suas obrigações legais, designadamente o disposto pelo artigo 15.º, n.º 2, alínea c), e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, tendo satisfeito o desiderato final a atingir pelo relatório de avaliação de riscos.
A arguida foi condenada pela prática de uma contraordenação muito grave prevista pelo artigo 15.°, n.º 2, alínea c), e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, que determina que «O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção: (...) c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos».
Ora, em boa medida, a procedência da pretensão da recorrente dependia da alteração da matéria de facto, já que a aquela se sustenta em matéria que não têm respaldo no acervo factual fixado em 1.ª instância. Tal alteração, como vimos, não ocorreu, o que compromete, desde logo, a posição da recorrente.
Da matéria de facto provada, resulta, pelo contrário, e a recorrente admite-o, que, à data da visita inspetiva ocorrida em 23/03/2022, não tinha procedido à identificação dos riscos previsíveis no local de trabalho em causa, só tendo feito a avaliação de riscos em momento posterior. Tanto basta para que, reportando-se o início da atividade no local de trabalho em causa a setembro de 2021, cerca de 6 meses antes da visita inspetiva, a infração se tenha consumado. Acresce que a circunstância de os trabalhadores referidos já trabalharem no referido refeitório por conta de outras empresas, tendo a recorrente, quando passou a explorar o refeitório em causa, dado informação inicial sobre vários aspetos, incluindo segurança no trabalho não é apta ao cumprimento da obrigação legal em casa, tanto mais que tal como afirmado na sentença recorrida não é possível afirmar “que os trabalhadores tinham formação e conhecimento das regras de segurança no trabalho por terem sido trabalhadores de outras empresas, porque não sabemos que formação lhes foi dada, apenas se admitindo que terá havido uma informação inicial sobre estas matérias.”
Inexiste, pois, fundamento para concluir que a recorrente não praticou a contraordenação pela qual foi condenada.
O Ministério Público, por sua vez, nas contra-alegações invocou que a atenuação especial não é aplicável à responsabilidade contraordenacional por infrações à legislação laboral.
Não concordamos com o Ministério Público. Na verdade, tal como se pode ler no Ac. RP de 14/07/2021[3] (do qual o Ministério Público, certamente por lapso, extraiu a conclusão contrária) “Em face da remissão expressa constante do artigo 32.º do RGCO, tanto mais que neste diploma se não regula o instituto da atenuação especial da pena, é aplicável neste âmbito o regime previsto no artigo 72.º do Código Penal.”
De facto, nos termos do disposto pelo art.º 549.º do Código do Trabalho “As contra-ordenações laborais são reguladas pelo disposto neste Código e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra-ordenações”.
Ora, na falta de previsão expressa, mas também na falta de qualquer disposição da qual se infira ter sido propósito do legislador laboral excluir deste âmbito a aplicação do regime da atenuação especial da coima, a que alude no art.º 18º, n.º 3 do DL 433/82 de 27/10, com referência ao art.º 72.º do Código Penal, aplicável por via do disposto pelo art.º 32.º do citado DL 433/82, se conclua pela admissibilidade da atenuação especial da coima prevista para as contraordenações laborais.
É, contudo, condição de tal atenuação da coima, face ao disposto pelo art.º 72º, nº 1 do Código Penal, a existência de circunstâncias anteriores, posteriores ou contemporâneas à contraordenação que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Na verdade, o instituto da atenuação especial da pena deve ser aplicado em situações excecionais, que reclamam um tratamento diferenciado relativamente ao padrão do legislador na determinação da moldura da pena aplicada.
A este respeito pode ler-se no Ac. RP de 17/09/2014[4] “Conforme ensina a doutrina, o legislador sabe estatuir, à partida, as molduras penais atinentes a cada tipo de factos que existem na parte especial do Código Penal e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos pode assumir. Porém, entende, ainda, a mesma doutrina, que o sistema só pode funcionar de forma justa e eficaz se contiver válvulas de segurança, vendo estas como circunstâncias modificativas. Por isso, quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo padrão de casos que o legislador teve em mente à partida, aí haverá um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. Resumindo a tendência dominante na nossa jurisprudência, que segue a par a mencionada doutrina, podemos afirmar que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios. Conforme se acentua, na linha do que vem de ser exposto, no Acórdão de 17/10/02, do S.T.J., Processo n.º 3210/02, da 5.ª Secção (Relator: Sr. Juiz Conselheiro Pereira Madeira): «Como instituto, a atenuação especial da pena surgiu em nome dos valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade. Surgiu da necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais - quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva - a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa».”
Assim, o que importa é perceber, se no caso concreto, a conduta da arguida, globalmente considerada, revela uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da sua culpa ou da necessidade da pena, apresentando-se com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tal hipótese quando estatuiu os limites normais da moldura abstrata da coima.
E do ponto de vista do tribunal tal não se verifica no caso concreto.
Na verdade, está em causa uma contraordenação muito grave e para se concluir pela atenuação, em concreto, da culpa, não é suficiente que se trate de uma conduta negligente.
Por outro lado, o facto de a arguida ter corrigido a situação após a ação inspetiva, não se afigura como situação excecional que reclame um tratamento diferenciado relativamente à moldura aplicável, sendo certo que, admitir o contrário, seria legitimar a atuação de todos quantos decidem iniciar e manter atividades sujeitas às obrigações legais violadas, sem as cumprir, beneficiando de tais atividades; seria ignorar que aquilo que o legislador pretende evitar é o início e manutenção das atividades em tais circunstâncias. Ao apresentar relatório de avaliação de riscos, o que, de resto só fez a 04/04/2022, após a visita inspetiva e em resultado dela, a arguida não fez mais do que aquilo a que estava obrigada para futuro, nada que possa de qualquer modo mitigar a ilicitude da sua atuação anterior ou sequer a sua culpa.
Acresce que não se pode ignorar que só passados cerca de seis meses do início da atividade no local de trabalho inspecionado é que foi regularizada a situação.
Assim, não se nos afigura que a situação retratada nos autos deva ser considerada de tal modo excecional que reclame um tratamento diferenciado relativamente à moldura aplicável. De resto, e bem, a coima concreta aplicada corresponde ao mínimo de tal moldura, tendo sido ponderada de forma adequada a gravidade da situação.
Entendemos, pois, que, no caso concreto, não estão verificados os pressupostos de que dependia a pretendida atenuação especial da coima.
Por conseguinte, improcede o recurso também nesta parte.
Por todo o exposto acorda-se julgar o recurso improcedente, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente - art.º 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Maria Luzia Carvalho (relatora)
Rita Romeira (1.ª adjunta)
Sílvia Gil Saraiva (2.ª adjunta)
______________________________
[1] Processo n.º 2308/23.9T9VLG.P1, acessível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido veja-se também o Ac. RP de 09/01/2020, processo n.º 1204/19.8T8OAZ.P1, no qual foi adjunta a aqui 1.ª adjunta.
[2] Nota[4] do acórdão com o seguinte teor: “Processo 04P4721, Relator Conselheiro Henriques Gaspar”.
[3] Processo n.º 3226/20.7T8OAZ.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Processo n.º 656/13.4TBPNF.P2, acessível em www.dgsi.pt