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PLURALIDADE DE EMPREGADORES
CEDÊNCIA OCASIONAL DE TRABALHADORES
ESQUEMA ATÍPICO DE CIRCULAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Sumário
I - A pluralidade de empregadores depende do preenchimento cumulativo de requisitos de natureza substantiva e formal. II - A cedência ocasional de trabalhadores tem uma estruturação jurídica mais simples, mas também está dependente do preenchimento cumulativo de requisitos de natureza substantiva e formal. III - Estamos perante um esquema atípico de circulação da força de trabalho no caso de ocorrer cisão no estatuto do empregador, obrigando-se uma entidade a pagar a retribuição e utilizando outra diretamente os serviços dos trabalhadores, sendo que, não possuindo a primeira licença para exercer atividade como empresa de trabalho temporário, nos termos previstos na lei, respondem solidariamente ambas as entidades.
Texto Integral
Processo n.º 6854/23.5T8PRT.P1
(secção social)
Relatora: Juíza Desembargadora Sílvia Gil Saraiva
Adjuntos: Juiz Desembargador Nelson Nunes Fernandes
Juíza Desembargadora Germana Ferreira Lopes
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Recorrente: “A..., Lda.”
Recorridos: AA BB CC DD
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Sumário:
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Acordam os Juízes subscritores deste acórdão da quarta secção, social, do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO[1]: AA; BB; CC e DD (Autores), instauraram contra “B..., Lda.”[2] e “A..., Lda.” (Rés), a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, formulando os seguintes pedidos:
A) Ser declarada a nulidade do despedimento dos AA., por ilícito, com as consequências legais;
B) Ser condenada a 1ª Ré a pagar a cada um dos AA. o salário já vencido relativo ao mês de agosto e parte de setembro, bem como os vincendos até à data do transito em julgado da sentença e a liquidar em execução desta, acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
C) Ser condenada a 1ª Ré a pagar ao 1º A. a quantia de € 1.556,31, a título de retribuições e prestações complementares, sem prejuízo do direito à compensação caso não venha alguma das partes a optar pela reintegração, no montante de 4.110,00 se o trabalhador optar por ser indemnizado em vez de ser reintegrado na empresa ou de 8.220,00, se o empregador requerer ao tribunal a não reintegração do trabalhador, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 382,50 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
D) Ser condenada a 2ª Ré a pagar ao 1º A. a quantia de € 11.255,03 relativa ao trabalho complementar, descanso compensatório não facultado ao trabalhador e de férias não gozadas, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 793,75 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
E) Ser condenada a 1ª Ré a pagar ao 2º A. a quantia de € 1.556,31, a título de retribuições e prestações complementares, sem prejuízo do direito à compensação caso não venha alguma das partes a optar pela reintegração, no montante de 4.110,00 se o trabalhador optar por ser indemnizado em vez de ser reintegrado na empresa ou de 8.220,00, se o empregador requerer ao tribunal a não reintegração do trabalhador, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 382,50 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
F) Ser condenada a 2ª Ré a pagar ao 2º A. a quantia de € 11.255,03 relativa ao trabalho complementar, descanso compensatório não facultado ao trabalhador e de férias não gozadas, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 793,75 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
G) Ser condenada a 1ª Ré a pagar ao 3º A. a quantia de € 1.556,31, a título de retribuições e prestações complementares, sem prejuízo do direito à compensação caso não venha alguma das partes a optar pela reintegração, no montante de 4.110,00 se o trabalhador optar por ser indemnizado em vez de ser reintegrado na empresa ou de 8.220,00, se o empregador requerer ao tribunal a não reintegração do trabalhador, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 382,50 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
H) Ser condenada a 2ª Ré a pagar ao 3º A. a quantia de € 11.255,03 relativa ao trabalho complementar, descanso compensatório não facultado ao trabalhador e de férias não gozadas, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 793,75 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
I) Ser condenada a 1ª Ré a pagar ao 4º A. a quantia de € 1.556,31, a título de retribuições e prestações complementares, sem prejuízo do direito à compensação caso não venha alguma das partes a optar pela reintegração, no montante de 4.110,00 se o trabalhador optar por ser indemnizado em vez de ser reintegrado na empresa ou de 8.220,00, se o empregador requerer ao tribunal a não reintegração do trabalhador, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 382,50 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
J) Ser condenada a 2ª Ré a pagar ao 4º A. a quantia de € 11.255,03 relativa ao trabalho complementar, descanso compensatório não facultado ao trabalhador e de férias não gozadas, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 793,75 e dos vincendos, computados até efetivo e integral pagamento.
Os Autores alegam, em síntese, terem sido contratados pela 1.ª Ré através de um contrato de trabalho a termo incerto, tendo ficado estipulado que a sua remuneração ficaria dependente do pagamento da fatura pela empresa utilizadora, conforme contrato de prestação de serviços de cedência de trabalhadores celebrado entre as Rés.
Alegam ainda que, no cumprimento do acordado, receberam ordens da 1.ª Ré para trabalharem numa obra adjudicada à 2.ª Ré, consistente na construção de um supermercado da cadeia C..., em ..., na ilha ..., com início a 8 de julho de 2022.
Acrescentam que o horário de trabalho era o imposto pela 2.ª Ré.
Em 03 de setembro de 2022, com a conclusão da obra, os Autores foram dispensados pelas Rés.
Dias depois, a 1.ª Ré comunicou-lhes verbalmente aos Autores que tinham abandonado o trabalho na ilha ... e que, por esse motivo, estavam despedidos.
Assim, ficaram por liquidar os valores ora reclamados, a título de trabalho suplementar, violação do descanso compensatório e férias não gozadas.
A 1.ª Ré, regularmente citada, não apresentou contestação.
Por sua vez, a 2.ª Ré contestou, arguindo a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, por não ser a entidade empregadora dos Autores. Alegou ainda ter liquidado à 1.ª Ré todos os valores devidos pela cedência dos trabalhadores.
Realizou-se audiência prévia, na qual foi julgada improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade suscitada. A Meritíssima Juíza procedeu ainda à delimitação do objeto do litígio, e enunciou os temas de prova.
Após a realização da audiência final, foi proferida sentença a 07.03.2024, cujo dispositivo é o seguinte:
«Tudo visto e nos termos acima expostos, julga-se a presente ação parcialmente procedente por provada, e em consequência, declara-se que os aqui Autores se encontravam vinculados a contrato de trabalho por tempo indeterminado com ambas as aqui demandadas, mais se declarando a ilicitude do despedimento que foi comunicado pela R. B... e em consequência condena-se esta mesma demandada a reintegrar os ora AA. nos seus postos de trabalho sem perda de antiguidade. Mais se condenam as ora RR. a pagar a cada um dos aqui AA., de forma solidária, a quantia de € 5.691,28 (cinco mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e oito cêntimos) a título de créditos laborais vencidos e não liquidados, acrescida dos respetivos juros de mora vencidos, à taxa legal, desde a data da citação e dos vincendos até integral pagamento. Custas por AA. e RR. na proporção do respetivo decaimento, fixando-se em 1/3 para cada uma das partes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido aos AA. Registe e notifique.» (Fim da transcrição)
Da referida sentença, a 2.ªRé/Recorrente interpôs recurso de apelação, pugnando pela sua revogação.
Termina as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Os Autores/Recorridos apresentaram contra-alegações, opondo-se à procedência do recurso.
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A Meritíssima Juíza a quo admitiu o recurso interposto como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Por despacho de 16.09.2024 (ref.ª 18471888 citius), os autos foram remetidos à primeira instância para a fixação do valor da causa e pronunciamento sobre a arguida nulidade da sentença.
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Por despacho de 14.10.2024 (ref.ª 464295122 citius), a Meritíssima Juíza a quo fixou o valor da causa em 17.073,84 € e pronunciou-se sobre a arguida nulidade da sentença.
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Recebidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer.
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A 2.ª Ré/Recorrente respondeu ao parecer do Ministério Público.
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Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:
O objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente [artigos 635.º, n.º3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, ex vi, artigo 1.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo do Trabalho], por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso e da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
As questões a decidir são as seguintes:
- Da impugnação da matéria de facto dada como provada (considerar como não provados os factos que a 2.ª Ré/Recorrente elenca na sua primeira conclusão, e, adicionalmente, considerar como provado o facto elencado na 13.ª conclusão);
- Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
- Do erro na aplicação do direito.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO: Matéria de facto dada como provada em primeira instância[3]
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1) Os aqui Autores foram admitidos pela Ré B..., em 05.07.2022, para prestar serviço para a empresa, A..., Lda., NIPC ..., com sede na Estrada ..., ... ..., ..., ..., Ilha 1..., Açores, sob a sua autoridade e direção e no âmbito da sua organização, com a categoria profissional de pedreiro de 1ª.
2) Os AA. AA, CC e DD e a R. B... assinaram, com data de 04 de julho de 2022, um contrato de trabalho a termo incerto – cfr. documentos juntos com a p.i. cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
3) Foi convencionada, para todos os aqui demandantes, a retribuição mensal de € 772,00, acrescido de duodécimos de subsídio de Natal e de Férias, no valor unitário de € 65,12, prémio de produtividade no valor de € 155,92, ajudas de custo no transporte de € 155,92, com o fornecimento de duas refeições, almoço e jantar e de alojamento no local da realização do trabalho, num total de € 1.370,00.
4) Foi estipulado pela Ré B... que o pagamento dos vencimentos dos AA. ficava dependente do pagamento da fatura pela empresa utilizadora do trabalho.
5) Foi convencionado o horário de trabalho de 40 horas semanais, distribuídas de segunda a sexta, com descanso ao sábado, domingo e feriados.
6) Foi ainda convencionado o período experimental nos primeiros 30 dias de execução do contrato.
7) Em execução do convencionado, os aqui demandantes receberam ordens da 1ª Ré, B..., para ir trabalhar para uma obra adjudicada à 2ª Ré A... de construção de um edifício de supermercado da cadeia C..., em ..., na ilha ....
8) Para esse fim, a 1ª Ré adquiriu para os ora AA. a passagem aérea, com saída de Lisboa em voo direto para ... no dia 7 de julho e os demandantes iniciaram o trabalho em obra no dia 8 de julho. 9) O horário de trabalho imposto pela Ré A..., era de segunda a sexta-feira, com início às 08h00 e termo às 20h00 ou 21h00 horas, com intervalo de 1 hora para almoço, aos sábados com início às 08h00 e termo às 20h00, aos domingos, com início às 08h00 e termo às 12h00 e aos dias feriados, com início às 08h00 e termo às 20h00 horas. 10) Os AA. eram obrigados pelo encarregado da obra a trabalhar, ininterruptamente, todos os dias, sem descanso semanal, pois se não trabalhassem, ficavam sem refeições e sem alojamento para dormir.
11) Aos aqui demandantes foi pago o trabalho prestado do dia 8 a 31 de julho, o montante de € 1.642,31 no dia 16 de agosto de 2022. E, os AA. trabalharam na referida obra de construção civil até 3 de setembro, data da conclusão da mesma obra, ficando apenas a faltar os trabalhos exteriores de abertura de arruamentos de acesso e colocação do asfalto.
12) Quando os AA. terminaram o trabalho, as RR. mandaram-nos de regresso ao continente.
13) A Ré B... não enviou aos AA. a comunicação por carta registada com A/r para as suas residências.
14) A R. B... não possui licença para exercer atividade como empresa de trabalho temporário.
15) Quando a Ré B... mandou os AA. regressar a Lisboa, encontravam-se por pagar o vencimento e acréscimos salariais relativos ao trabalho prestado no mês de agosto e setembro, no montante de € 1.370,00 e € 186,81, para cada um deles. 16) A Ré A..., não pagou aos AA. as horas de trabalho suplementar prestadas diariamente em número de 6 horas de segunda a sexta-feira, em número de 12 horas aos sábados, de 4 horas aos domingos e de 12 horas em dias feriado, situação que se iniciou em 8 de julho e terminou em 3 de setembro. 17) Esta mesma R. também não lhes facultou os dias de descanso compensatório.
18) Os AA. trabalharam 16 dias úteis em julho e 4 sábados e 4 domingos; no mês de agosto trabalharam 22 dias úteis, trabalharam ainda no dia feriado nacional de 15 de agosto, 4 sábados e 4 domingos e no mês de setembro trabalharam 1 dia útil, 1 sábado e 1 domingo
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Matéria de facto dada como não provada em primeira instância Após a discussão da causa, os factos que se consideram não provados, são os seguintes: - A 1ª Ré dedica-se à atividade de prestação de serviços de cedência de trabalhadores e a 2ª Ré à atividade de construção de edifícios. - A 2.ª R. celebrou contratos de cedência ocasional de trabalhador com a 1.ª R. - Logo que ficaram concluídas as tarefas para cuja execução em obra os AA. foram contratados pela 1.ª R. B..., a 2.ª R. comunicou àquela, que os seus serviços não mais seriam necessários à execução de trabalhos na obra em questão. - Dias mais tarde, a 1ª Ré comunicou verbalmente aos AA. que tinham abandonado a obra em que se encontravam a trabalhar na ilha ... e, que por isso, estavam despedidos. - Os AA. abandonaram a obra a partir do dia 3 de setembro de 2022, presumindo-se que o fizeram na sequência de comunicação que lhes terá sido dirigida pela 1.ª R. nesse sentido.
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Da impugnação da decisão de facto:
(considerar como não provados os factos que a 2.ª Ré/Recorrente elenca na sua primeira conclusão, e, adicionalmente, considerar como provado o facto elencado na 13.ª conclusão)
Como é sabido, nos termos do disposto pelo, n.º 1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, incumbe ao Recorrente, em primeiro lugar, circunscrever o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considerados viciados por erro de julgamento, com indicação da decisão que a seu ver deveria ter sido proferida [alíneas a) e c) do n.º 1] e, em segundo lugar, fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa [alínea b), do n.º 1].
Na verdade, se ao Tribunal é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da sua decisão em matéria de facto (artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto o respetivo ónus de impugnação, ou seja o ónus de expor, em termos claros e suficientes, os argumentos que, extraídos da sua própria apreciação crítica dos meios de prova produzidos, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal a quo.
Conforme é observado por António Abrantes Geraldes[4], quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras: «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (negrito nosso)[5] b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; (negrito nosso) c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (negrito nosso) (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (negrito nosso) (…).» (Fim da transcrição)
Não obstante este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.[6]
Conforme salientam, Abrantes Geraldes. Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires deSousa[7]: «(…) O Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação (STJ 9-6-16, 6617/07, STJ 31-5-16, 1572/12, Supremo Tribunal de Justiça 28-4-16, 1006/12, Supremo Tribunal de Justiça 11-4-16, 449/410, Supremo Tribunal de Justiça 19-2-15, 299/05 e STJ27-1-15, 1060/07).» (Fim da transcrição)
Sublinham tais autores que, o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que, na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[8]. (negrito nosso)
Sem embargo, a impugnação da decisão de facto não se basta com a afirmação pelo recorrente da sua discordância face ao decidido, sustentada em referências imprecisas, genéricas ou descontextualizadas, ou a mera reprodução parcial de um outro segmento parcial e descontextualizado de algum ou alguns dos depoimentos, sendo certo que é o apelante que impugna a decisão da matéria de facto quem está em melhores condições para apontar, fundadamente, os eventuais erros de julgamento existentes ao nível da decisão de facto.
Aliás, conforme é mencionado por Ana Luísa Geraldes[9] a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou de parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova produzidos, através da sua análise global, devidamente ponderada, em termos críticos, segundo as regras da lógica, da experiência e das regras da ciência, eventualmente convocáveis no caso concreto.
Assim sendo, neste contexto de apreciação global e crítica da prova produzida: «mostra-se facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências da apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.» (Fim da transcrição)
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte à formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na motivação da decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas produzidas e registadas, apontando eventuais disparidades, contradições ou incorreções que afetem a decisão recorrida.
É hoje pacífico que o objetivo do 2.º grau de jurisdição na apreciação de facto não é a simples repetição do julgamento, mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento.
Com efeito, decorre do n.º 1, do artigo 662.º, do Código de Processo Civil, que: «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Sendo igualmente indiscutível que, sem prejuízo da correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão de facto e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, sujeito às mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis em 1.ª instância, os elementos de prova que se mostrem acessíveis imponham uma solução diversa da antes acolhida.
Logo, afasta-se a tese que a modificação da decisão de facto só pode ter lugar em casos de erro manifesto de apreciação dos meios probatórios ou, ainda, que a Relação, atentos os princípios da imediação e da oralidade, não pode contrariar o juízo formulado em 1.ª instância relativamente a meios de prova que foram objeto de livre apreciação.
Todavia, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do Código de Processo Civil
É assim dentro destes limites objetivos que o artigo 662.º do Código de Processo Civil, atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Conforme sublinha António Abrantes Geraldes[10]:
«(…) quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementadas ou não pelas regras de experiência.» (Fim da transcrição)
Ademais no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento, ou da livre convicção, face ao qual o Tribunal aprecia livremente as provas sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Anote-se ainda o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414.º do Código de Processo Civil, segundo o qual: «a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem ofacto aproveita.»
Sem prejuízo do relevo de tais princípios e sem escamotear que o Juiz em 1.ª instância se encontra, por via do imediato contacto com a produção da prova, em particulares condições para efeito de julgamento da matéria de facto (condições que, por regra, não são repetíveis em sede de julgamento na Relação), dúvidas não existem que o pensamento legislativo consagrado no citado artigo 662.º, n.º 1 [e, ainda, no n.º 2 alíneas a) e b) do mesmo preceito legal] aponta no sentido de a Relação se assumir: «(…) Como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem (…), fica claro que a Relação tem autonomia decisória competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.»[11] (Fim da transcrição e negrito nosso)
Reiterando as sábias palavras de António Abrantes Geraldes [12] os objetivos projetados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição determinam o seguinte:
a) «Reapreciação dos meios de prova especificados pelo recorrente através da audição das gravações e/ou da leitura das transcrições que porventura sejam apresentadas.
b) Conjugação desses meios de prova com outros indicados pelo recorrido ou que se mostrem acessíveis, por constarem dos autos (v.g. documentos, relatórios periciais, atas de inspeção judicial ou relatórios de verificações não judiciais qualificadas) ou da gravação (v.g. depoimentos ou declarações de parte, depoimentos de testemunhas ou esclarecimentos verbais prestados por peritos).
c) Renovação de algum ou alguns depoimentos cuja audição suscite dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou mesmo produção de novos meios de prova que potenciem a superação das dúvidas sérias sobre a prova anteriormente produzida. (negrito nosso).
d) Formação da convicção autónoma em relação à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão as modificações que forem consideradas pertinentes (negrito nosso).
e) Sem embargo da ponderação das circunstâncias que rodeiam o julgamento da matéria de facto, a Relação goza no exercício desta função dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 607.º, n.º 5, e a que especificamente se alude nos arts. 396.º (prova testemunhal), 359.º (presunções judiciais), 351.º (reconhecimento não confessório), 376.º, n.º 3 (certos documentos), 391.º (prova pericial), todos do CC, e arts. 466.º, n.º 3 (declarações de parte), e 494.º, n.º 2, do CPC (verificações não judiciais qualificadas).
f) Consequentemente está afastada, em definitivo, a defesa de que a modificação na decisão da matéria de facto apenas deve operar em casos de “erros manifestos”, assim como é insuficiente que na apreciação do recurso de apelação, na parte que envolva a decisão da matéria de facto, a Relação se limite a aludir a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas, sem efetiva ponderação dos meios de prova que foram produzidos e que se mostrem acessíveis. Sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, desde que a Relação, no quadro da aplicação do art. 662.º, acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, deve refletir em nova decisão esse resultado[13].» (Fim da transcrição e negrito nosso).
De todo o modo, isto é, sem prejuízo dos aludidos poderes da Relação, ao nível da reapreciação dos meios de prova produzidos em 1ª instância e formação da sua própria e autónoma convicção, a alteração da decisão de facto deve ser efetuada com segurança e rodeada da imprescindível prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efetiva audição dos respetivos depoimentos, e os fundamentos indicados pelo julgador da 1.ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo recorrente.
Com efeito conforme é sublinhado por Ana Luísa Geraldes[14], em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida[15], deverá prevalecer a decisão proferida pela 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.» (Fim da transcrição)
Mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.» (Fim da transcrição)
Quer isto dizer que na reapreciação da prova pela 2.ª instância, não se procura obter uma nova (e diversa) convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência e da lógica, atendendo aos elementos probatórios que constam dos autos, e aferir, assim, nestes termos, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido – artigo 640º, n.º 1 alínea b), parte final, do Código de Processo Civil.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Sem embargo, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1.ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa[16]: «Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…), estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…). Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n. º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.» (Fim da transcrição)
Assim, para que a decisão da 1.ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1.ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Não obstante, e apesar da apreciação em primeira instância ser construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede à «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1.ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…). Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada.»[17] (Fim da transcrição)
Contudo, importa dizê-lo, no contexto do julgamento da matéria de facto, seja ao nível da 1.ª instância, seja ao nível da sua reapreciação no Tribunal de 2.ª instância, a reconstrução histórica do material fáctico não persegue uma verdade absoluta ou uma certeza naturalística (própria de outros ramos das ciências), mas um grau de certeza empírica e histórica, baseada num alto grau de probabilidade.
Como salienta Manuel de Andrade: «a prova não é certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica).»[18] (Fim da transcrição)
Feito este enquadramento, cumpre aferir os pontos concretos que este Tribunal deve apreciar:
A 2.ª Ré/Recorrente impugna os factos elencados na sua primeira conclusão – pontos 9); 10); 16) e 17) -, e pretende, adicionalmente, que se considere provado o facto elencado na 13.ªconclusão.
Os factos impugnados são os seguintes: «9) O horário de trabalho imposto pela Ré A..., era de segunda a sexta-feira, com início às 08h00 e termo às 20h00 ou 21h00 horas, com intervalo de 1 hora para almoço, aos sábados com início às 08h00 e termo às 20h00, aos domingos, com início às 08h00 e termo às 12h00 e aos dias feriados, com início às 08h00 e termo às 20h00 horas. 10) Os AA. eram obrigados pelo encarregado da obra a trabalhar, ininterruptamente, todos os dias, sem descanso semanal, pois se não trabalhassem, ficavam sem refeições e sem alojamento para dormir. (…) 16) A Ré A..., não pagou aos AA. as horas de trabalho suplementar prestadas diariamente em número de 6 horas de segunda a sexta-feira, em número de 12 horas aos sábados, de 4 horas aos domingos e de 12 horas em dias feriado, situação que se iniciou em 8 de julho e terminou em 3 de setembro. 17) Esta mesma R. também não lhes facultou os dias de descanso compensatório.» (Fim da transcrição)
O Tribunal a quo fundamentou os factos impugnados do seguinte modo: «O Tribunal baseou a sua convicção, nos contratos de trabalho acima indicados, no elenco referente à factualidade dada como assente; quanto a estes documentos verifica-se que a assinatura aposta nos documentos é apenas a do A. DD, pelo que ou o mesmo A. assinou todos os contratos de trabalho ou os AA. não remeteram aos autos os documentos devidamente assinados pelos próprios, sendo que quanto ao A. BB inexiste qualquer contrato de trabalho referente ao mesmo. No entanto, os demandantes foram categóricos a afirmar que todos estiveram a exercer as mesmas funções, no mesmo local, nas mesmas condições e as suas afirmações não foram contraditadas por qualquer outro meio de prova apresentado pelas ora demandadas, tendo todos subscrito as declarações infra indicadas juntas aos autos pela demandada A..., pelo que se consideraram demonstrados os respetivos contratos de trabalho. Atendeu-se ainda aos recibos de vencimento juntos aos autos pelos AA. com a sua p.i.; na declaração de aceitação de cedência dos trabalhadores subscrita pelos aqui demandantes (e ainda por um terceiro não interveniente na presente lide), juntas com a contestação apresentada pela 2ª R. e no ofício doIEFP de 16/11/2023 referente à inexistência de licença da 1ª demandada para exercer atividade como empresa de trabalho temporário. Para além destes documentos, o Tribunal considerou o depoimento da seguinte testemunha: - EE, disse ser encarregado da aqui demandada A... desde há 9 anos, e recorda-se de ter exercido funções na empreitada referente à construção do imóvel onde os aqui demandantes estiveram também a trabalhar; afirmou que os demandantes tinham alojamento e que desconhece quem os contratou, sendo que os mesmos trabalhavam das 08h00 às 12h00 horas e das 13h00 às 17h00 horas, tendo também as refeições pagas pela demandada A..., num restaurante perto da indicada obra; afirmou ainda que desconhece quem comunicou aos AA: que deveriam ir embora e quem lhes pagou a passagem aérea da ilha ..., nos Açores, para o Continente. Esta testemunha, no entanto, demonstrou não só incertezas quanto ao trabalho prestado efetivamente pelos aqui demandantes, relativamente aos quais demonstrou quase desconhecer quem eram e o que fizeram em concreto na construção do edifício em causa, sendo que quando questionado quanto aos horários de trabalho a cumprir, foi categórico ao afirmar o acima relatado, pelo que as contradições e falta de isenção evidenciada foram evidentes e diminuíram acentuadamente a sua credibilidade. No mais, atendeu-se às declarações de parte dos aqui demandantes CC, DD e BB, os quais foram unânimes em afirmar que a sua admissão foi integralmente tratada mediante trocas de emails entre os próprios e a R. B..., a qual tinha sede em Lisboa enquanto os AA. se encontravam a residir em Esposende. Mais declararam que começaram a trabalhar na obra de construção civil nos Açores em Julho de 2022, cumprindo um horário de trabalho que se prolongava diariamente até às 20h00 ou 21h00 horas, e exercendo as suas funções, como pedreiros, aos sábados, domingos e feriados, já que lhes era dito que se não trabalhassem não podiam nem comer, em ficar a dormir no alojamento que lhes foi disponibilizado pela R. A..., tendo trabalhado cerca de dois meses, até ao início do mês de Setembro de 2022 (dia 3), tendo apenas auferido um mês de retribuição por transferência bancária. Declararam ainda os indicados AA. que a R. B... lhes enviou as passagens de avião para regressarem ao continente, mas quando chegaram a Lisboa ninguém os atendeu, por parte desta demandada, pelo que tiveram de regressar às suas residências pelos seus próprios meios.» (Fim da transcrição) Cumpre apreciar e decidir:
Verifica-se que a 2.ª Ré/Recorrente cumpriu os ónus que impedem sobre quem impugna a decisão da matéria de facto, impondo-se, portando, o reexame dos factos impugnados.
Após a audição e análise das declarações de parte dos Autores e depoimento da testemunha prestados na audiência final, constata-se que a sentença recorrida, sintetizou, de forma clara e detalhada, os aspetos relevantes da prova oral.
Não há elementos novos a acrescentar à fundamentação apresentada pela Meritíssima Juíza a quo.
Considerando o conjunto probatório, conclui-se que não existe erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
Com efeito, a versão dos factos trazida a juízo e dada como provada nos pontos 9), 10)16) e 17), encontra sólido amparo nas declarações de parte dos autores CC; DD; BB, as quais, em conjunto e de forma convergente, corroboram a veracidade desses factos, conforme a exaustiva fundamentação da decisão recorrida.
Nos termos do artigo 466.º, n.º 3, do Código de Processo Civil: “O tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Lê-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2020 (relator. Moreira do Carmo), Processo n.º 286/17.1T8GVA.C1[19], o seguinte:
«A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal (art. 466º, nº 3, do NCPC), e a Relação, na apreciação da impugnação da matéria de facto, age sobre o império do princípio da livre apreciação da prova, tal como a 1ª instância (ao abrigo do art. 607º, nº 5, 1ª parte, ex vi do art. 663º, nº 2, do NCPC).» (Fim da transcrição)[20]
As declarações de parte são livremente apreciadas pelo juiz, tendo, portanto, o mesmo valor probatório que os demais meios de prova, cabendo ao julgador avaliar a sua credibilidade.
Neste sentido, veja-se, ainda, o sumariado no Acórdão desta Relação de 19.01.2015 (relatora: Rita Romeira), Processo n.º 3201/12.5.TBPRD-A.P1[21]: «(…) IV – Na sequência dos poderes que tem de ouvir qualquer pessoa, incluindo as partes, por sua iniciativa, nada obsta a que o tribunal, na busca da verdade material, tome em consideração, para fins probatórios, as declarações não confessórias da parte, as quais serão livremente apreciadas, nos termos do art.º 607.º, n.º 5, do CPC; V – No entanto, sendo as declarações prestadas pelas partes, sob juramento, cfr. art.º 459.º do CPC, podem ser valoradas pelo tribunal para fundar a sua convicção acerca da veracidade de factos controvertidos favoráveis a qualquer delas.»[22] (Fim da transcrição)
No caso em apreço, a espontaneidade e a minúcia das declarações prestadas pelos Autores, bem como a autenticidade da narrativa em termos temporais, emocionais e espaciais, conferem-lhes elevada credibilidade, corroborando a versão dos factos por eles exposta.
Ademais, adotam-se, na íntegra, os considerandos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2017 (relator: Luís Filipe Pires de Sousa), Processo n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7[23], que refere:
«(…) A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi o exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha. (…) Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações das partes e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.» (Fim da transcrição)
Por fim, o depoimento prestado pela testemunha arrolada pela Ré - EE -, revelou-se impreciso e carente de detalhes relevantes para os factos em discussão.
A testemunha respondeu de forma evasiva (respondendo frequentemente «não sei»), mostrando-se pouco convincente e pouco credível.
Referiu apenas recordar-se do Autor DD (e não os demais), desconhecendo quando e porque motivo os trabalhadores saíram da obra, e quem comprou a passagem aérea.
Disse não saber para quem os Autores trabalhavam, mas admitiu ser ele quem lhes dava ordens no local de execução da obra do supermercado C..., em ..., na ilha .... Por estes motivos, mantém-se inalterados os referidos pontos de facto.
Analisemos agora se procede a pretensão da 2.ª Ré/Recorrente em dar como provado o seguinte: “- A 2.ª R. celebrou contratos de cedência ocasional de trabalhador com a 1.ª R.” (Fim da transcrição)
Sem razão, contudo.
Com efeito, o acordo de cedência ocasional de trabalhador entre cedente e cessionário está sujeito à forma escrita [vide, o artigo 290.º do Código do Trabalho (2009)[24]].
Ora, nos termos do artigo 220.º do Código Civil (inobservância da forma legal): “A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”.
No caso concreto, não foi junto aos autos qualquer documento escrito que comprove a existência desse acordo (formalidade ad substanciam).[25]
É unânime a distinção doutrinária entre formalidades ad substantiam e formalidades ad probationem, radicando a primeira na sua insubstituibilidade por outro meio de prova, cuja inobservância gera a nulidade, enquanto a falta das segundas pode ser suprida por outros meios de prova, embora mais difíceis. Em conclusão, a impugnação da matéria de facto improcede na sua totalidade, pelos motivos expostos.
*
IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO:
Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia:
Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixa de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
É pacífico que sendo a nulidade da sentença, ressalvada a que decorra da falta de assinatura (artigo 615.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), um vício que não é de conhecimento oficioso (artigo 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), a alegação precisa dos fundamentos fácticos substanciadores do concreto vício invocado é imprescindível para a delimitação rigorosa dos poderes de cognição do tribunal ad quem, já que este se há-de mover dentro do concreto vício suscitado pelo recorrente, ainda que sem prejuízo da liberdade de qualificação jurídica que sempre assiste ao tribunal (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Salientam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa[26], o seguinte:
«Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente, ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.» (Fim da transcrição).
É unânime que a nulidade da sentença (vícios de forma) não se confunde com eventual erro de julgamento quer de facto, quer de direito.
Sobre a nulidade suscitada a Meritíssima Juíza a quo pronunciou-se nos seguintes termos: «Compulsados os autos verifica-se que a aqui recorrente veio invocar nas suas alegações de recurso o excesso de pronúncia constante da decisão final proferida, decorrente do entendimento ali vertido de que, no caso dos autos, estamos perante uma situação de pluralidade de empregadores. Ora, analisada a decisão final em apreço, verifica-se que, da factualidade ali dada como assente, consta expressamente que a ora recorrente e demandada suportava despesas referentes aos aqui demandantes (nomeadamente quanto ao seu alojamento e refeições) o que resultou dos meios de prova indicados na fundamentação de facto da mesma decisão final. Ora, o Tribunal não se encontra vinculado aos argumentos de direito apresentados pelas partes, desde que respeite os limites impostos pelo art. 608º do C.P.C. conhecendo as questões que lhe tenham sido suscitadas nos autos pelos respetivos intervenientes. Considera-se, pois, que na decisão final em análise o Tribunal se limitou a apreciar as questões colocadas pelos aqui demandantes, pese embora tenha analisado a factualidade dada como assente, inserindo-a em figura jurídica não indicada, o que se insere, em nosso entender, nos limites processualmente impostos pela norma acima indicada, pelo que se entende que inexiste qualquer nulidade, mantendo-se inalterada a decisão em crise.»
Conforme dispõe o artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil:
“O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
Lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2017 (relator: Tomé Gomes), Processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1[27], o seguinte: «(…) Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.» (Fim da transcrição)
Assim, analisando a sentença proferida, verifica-se que a mesma se cinge ao thema decidendum, respeitando o pedido e a causa de pedir (artigo 609.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo de eventuais discordâncias quanto à interpretação e aplicação do direito.
Face ao exposto, improcede a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
*
Do erro na aplicação do direito:
A sentença sob recurso fundamenta a sua decisão na análise dos seguintes pontos:
A – Analisa a justificação para a inclusão do termo incerto nos contratos de trabalho celebrados entre a Ré “B...” e os Autores.
B – Verifica a inexistência de contrato de trabalho escrito com o Autor BB.
C – Conclui que os contratos de trabalho celebrados entre a Ré “B...” e os Autores são por tempo indeterminado, devido à invalidade da cláusula do termo incerto neles aposta e à inobservância da forma escrita no caso do Autor BB.
D – Exclui a cedência ocasional de trabalhadores.
E – Considera existir uma situação de pluralidade de empregadores.
F – Decreta o despedimento ilícito e a reintegração dos Autores na 1.ª Ré.
G – Condena solidariamente ambas as Rés ao pagamento de 5.691,28 € aos Autores, a título de retribuições vencidas, trabalho suplementar e proporcionais de férias.
Em sede recursiva, a 2.ª Ré/Recorrente contesta apenas a questão identificada em E, e a consequente condenação solidária no pagamento da quantia de 5.691,28 €, acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal desde a data citação, e vincendos até integral pagamento.
A Recorrente alega erro na aplicação do direito, nomeadamente na conclusão pela existência de pluralidade de empregadores. Analisemos:
A pluralidade de empregadores encontra-se prevista no artigo 101.º do Código do Trabalho.
Esta norma prevê a possibilidade de um trabalhador prestar serviço a vários empregadores.
Contudo, a sua admissibilidade depende do preenchimento cumulativo de requisitos substantivos e formais.
Os requisitos substantivos previstos no n.º 1, exigem que:
a) Exista entre os empregadores uma relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo[28].
b) Os empregadores possuam estruturas organizativas comuns.
No caso “sub judice”, não se verifica qualquer relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo enquadrável nas formas societárias previstas no Código das Sociedades Comerciais, nem as duas Rés detinham estruturas organizativas comuns (ex: instalações, equipamentos ou recursos partilhados).
Falha, portanto, este requisito substantivo, bem como o requisito formal [nos termos do n.º 2, do citado artigo 101.º, o contrato de trabalho com pluralidade de empregadores deve ser escrito e conter as indicações previstas nas alíneas a) a c)].
Assim, discordamos da subsunção jurídica efetuada pelo Tribunal a quo, que enquadrou os factos na figura da pluralidade de empregadores.
Contudo, tal não implica a procedência do recurso interposto pela 2.ª Ré/Recorrente.
É crucial questionar se estamos perante uma falsa externalização, um “outsourcing” forjado, uma intermediação fraudulenta de terceiros, ou uma cedência ilícita de trabalhadores.
Como refere Joana Nunes Vicente[29], o princípio da proibição de cedência de trabalhadores vive, nas últimas décadas, um contexto de menor hostilidade, manifestada através da regulamentação jurídica da figura do trabalho temporário e, por força da admissibilidade de figuras como a cedência ocasional de trabalhadores.
Ou seja, a cedência de trabalhadores passou a registar uma admissibilidade condicionada pela verificação de determinados pressupostos.
Não obstante, a proibição da cedência de trabalhadorpara utilização de terceiro, salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, continua a ser uma garantia do trabalhador [artigo 129.º, n.º 1, alínea g)].
O artigo 288.º define a cedência ocasional como a disponibilização temporária de um trabalhador, pelo empregador, para prestar trabalho a outra entidade, à qual fica sujeito o poder de direção, mantendo-se o vínculo contratual inicial.
Importa tecer algumas considerações (sucintas) sobre a natureza jurídica desta figura.
Na cedência ocasional, o trabalhador de uma empresa passa a exercer a sua atividade noutra empresa, sob a direção desta, mas mantendo o vínculo contratual com a primeira, que continua a ser a entidade empregadora.
Esta estrutura triangular, em que o trabalhador de uma empresa trabalha para outra sob as ordens desta última, só pode subsistir ocasionalmente, ou seja, temporariamente.
Terminada a cedência, o trabalhador regressa à sua empresa de origem.
Na sua forma mais pura, a cedência ocasional consiste no negócio jurídico pelo qual uma empresa cede, provisoriamente, a outra, usualmente integrada no mesmo sector de atividade económica, um ou mais trabalhadores conservando, no entanto, o vínculo jurídico-laboral que com eles mantém.
Assim, a cedência ocasional distingue-se da cessão da posição contratual do empregador, dado que a transmissão não é definitiva nem global e que o cessionário não se substitui integralmente ao cedente, e não se identifica com o trabalho temporário, uma vez que envolve trabalhadores que não foram admitidos pelo cedente com o único propósito de virem a ser cedidos, isto é, a atividade produtiva do empregador não se reconduz, exclusiva ou principalmente, à cedência de trabalhadores, ao contrário do que se verifica com as empresas de trabalho temporário.
Mas a admissibilidade de cedência ocasional pressupõe a verificação cumulativa das condições contidas nas alíneas a) a d) do artigo 289.º, n.º 1, a saber:
a) O trabalhador esteja vinculado ao empregador cedente por contrato de trabalho sem termo;
b) A cedência ocorra entre sociedades coligadas, em relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, ou entre empregadores que tenham estruturas organizativas comuns;
c) O trabalhador concorde com a cedência;
d) A duração da cedência não exceda um ano, renovável por iguais períodos até ao máximo de cinco anos.
No caso em análise, verifica-se que três dos quatro trabalhadores foram contratados pela 1.ª Ré através de contrato de trabalho a termo incerto e, como acima se expôs, não estamos perante uma relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo subsumível nas formas societárias previstas no Código das Sociedades Comerciais, nem as duas Rés possuíam estruturas organizativas comuns.
O que reforça a conclusão de que não se trata de uma cedência ocasional de trabalhadores, mas sim de uma outra modalidade de contratação, a ser devidamente qualificada.
Acresce que, ao contrário do que sucede no trabalho temporário, a cedência ocasional de trabalhadores apresenta uma estrutura jurídica mais simples
Com efeito, os trabalhadores cedidos são já elementos do quadro de pessoal da empresa cedente, pelo que não faria sentido a celebração de um contrato de trabalho temporário, e só a cedência, em si mesma, tem de ser objeto de negócio específico: o chamado «contrato de cedência ocasional» (artigo 290.º), o qual carece de declaração de concordância do trabalhador [artigo 289.º, n.º 1, alínea c)].
Tendo em conta os factos provados, verifica-se que:
● Os Autores foram admitidos pela 1.ª Ré, em 05.07.2022, para prestar serviço para a 2.ª Ré, na ilha ..., Açores, sob a sua autoridade e direção e no âmbito da sua organização, com a categoria profissional de pedreiro de 1.ª [ponto provado em 01)]
● Foi estipulado pela 1.ª Ré que o pagamento dos vencimentos dos Autores ficava dependente do pagamento da fatura pela empresa utilizadora do trabalho [ponto provado em 04)]
● Em execução do convencionado, os aqui demandantes receberam ordens da 1ª Ré para ir trabalhar para uma obra adjudicada à 2ª Ré de construção de um edifício de supermercado da cadeia C..., em ..., na ilha ... [ponto provado em 07)]
● Para esse fim, a 1ª Ré adquiriu para os Autores a passagem aérea, com saída de Lisboa em voo direto para ... no dia 7 de julho, e os demandantes iniciaram o trabalho na obra no dia 8 de julho [ponto provado em 08)]
● O horário de trabalho imposto pela 2.ª Ré era de segunda a sexta-feira, com início às 08h00 e termo às 20h00 ou21h00 horas, com intervalo de 1 hora para almoço, aos sábados com início às 08h00 e termo às 20h00, aos domingos, com início às 08h00 e termo às 12h00 e aos dias feriados, com início às 08h00 e termo às 20h00 horas [ponto provado em 09)]
●Os Autores eram obrigados pelo encarregado da obra a trabalhar, ininterruptamente, todos os dias, sem descanso semanal, pois se não trabalhassem, ficavam sem refeições e sem alojamento para dormir [ponto provado em 10)]
● Quando os Autores terminaram o trabalho, as RR. mandaram-nos de regresso ao continente [ponto provado em 12)]
● A 1.ª R. (“B...”) não possui licença para exercer atividade como empresa de trabalho temporário [ponto provado em 14)].
Assim, conclui-se que a situação em análise se aproxima mais do regime do trabalho temporário.
Com efeito, a 1.ª Ré com o mero intuito de ceder a sua utilização à 2.ª Ré celebrou com os Autores, no dia 05.07.2022, três contratos de trabalho a termo incerto e um outro por tempo indeterminado, desempenhando estes as funções de pedreiro de 1.ª, desde o dia 08 de julho até ao dia em que terminaram os trabalhos, na construção de um edifício de supermercado da cadeia C..., em ..., ilha ..., sob as ordens e direção da 2.ª Ré, que determinou o horário de trabalho.
Como refere, João Leal Amado[30]: «Em lugar da dialética relacional trabalhador-empregador, aqui temos uma dialética mais complexa, entre o trabalhador temporário e o utilizador, dando azo, portanto, a um modelo tripartido de vínculo laboral que, enquanto tal, foge ao paradigma clássico da relação de trabalho.» (Fim da transcrição)
Como é sabido, o contrato de trabalho de trabalho temporário está regulado nos artigos 172.º e sgs.
Realiza-se num esquema triangular, com base no qual a empresa de trabalho temporária (ETT) fornece a outra pessoa, o utilizador, mão de obra que aquela contrata e retribui, mas cabendo ao utilizador o exercício de poder de direção.
Analisando o quadro factual em que a prestação de trabalho dos Autores se desenvolveu na ilha ..., é forçoso concluir estar-se perante um esquema atípico de circulação da força de trabalho.
Tal atipicidade deriva da cisão operada no estatuto do empregador, entre a obrigação de pagar a retribuição (que permanecia na 1.ª Ré), e a utilização direta dos serviços dos trabalhadores (que cabia à 2.ª Ré).
No entanto, é evidente que a 1.ª Ré não possui licença para exercer atividade como empresa de trabalho temporário, nos termos previstos pelo Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25 de setembro[31].
O que acarreta inevitáveis consequências jurídicas.
De acordo com o disposto no n.º 1, do artigo 173.º:
“1.É nulo o contrato de utilização, o contrato de trabalho temporário ou o contrato por tempo indeterminado para cedência temporária celebrado por empresa de trabalho temporário não titular de licença para o exercício da respetiva atividade”.
Note-se que, com a alteração introduzida no n.º 3, do citado artigo 173.º, pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril, havendo nulidade do contrato de trabalho temporário ou do contrato de trabalho por tempo indeterminado para cedência temporária por ter sido celebrado por empresa de trabalho temporário não titular de licença para o exercício da respetiva atividade, passou a considerar-se que o trabalho é prestado ao utilizador em regime de contrato de trabalho sem termo, e não à empresa de trabalho temporário, como previa o regime anterior.
Além disso, por força dos n’s 1 e 2 do artigo 174.º, o qual consagra um regime excecional de responsabilidade, temos que:
“1. A celebração de contrato de utilização de trabalho temporário por empresa de trabalho temporário não licenciada responsabiliza solidariamente esta e o utilizador pelos créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, relativos aos últimos três anos, bem como pelos encargos sociais correspondentes. 2. A empresa de trabalho temporário e o utilizador de trabalho temporário, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com a empresa de trabalho temporário ou com o utilizador se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são subsidiariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador e pelos encargos sociais correspondentes, assim como pelo pagamento das respetivas coimas.” (negrito nosso)
Face ao exposto, conclui-se que a 2.ª Ré/Recorrente é solidariamente responsável pelo pagamento dos créditos dos Recorridos emergentes do contrato de trabalho, a título de retribuições vencidas, trabalho suplementar e proporcionais de férias.
Ainda que se discorde da qualificação jurídica dada pelo Tribunal a quo, as conclusões do recurso são improcedentes, devendo ser confirmada a decisão recorrida.
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V.DECISÃO:
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Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I) Em julgar totalmente improcedente a impugnação da matéria de facto.
II) Julgar, no mais, improcedente o recurso interposto pela 2.ª Ré e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao Regulamento Custas Processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).
Valor do recurso: o da ação (artigo 12.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).
Notifique e registe.
Porto, 13 de janeiro de 2025.
Sílvia Saraiva
Nelson Nunes Fernandes
Germana Ferreira Lopes
________________ [1] Segue-se, com ligeiras alterações, o relatório da decisão recorrida. [2] Note-se que a Ré “B..., Lda.”, conforme consta da certidão permanente junta aos autos em 13.11.2023, foi dissolvida e a sua liquidação encerrada em 03 de agosto de 2023, ou seja, durante a pendência da ação, sem que, contudo, se tenha dado cumprimento ao disposto nos artigos 162.º, 163.º, n’s 2, 4 e 5 e 164.º n’s 2 e 5, todos do Código das Sociedades Comerciais. [3] Objeto de transcrição - os factos postos em causa pela Recorrente estão destacados a negrito (e os não provado em itálico); Nota: oficiosamente procedeu-se à numeração dos factos provados. [4] GERALDES, António Santos Abrantes, in “Recursos em Processo Civil”, 7.º Edição; Edições Almedina, S.A. p. 197-199. [5] Nota: A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a), do n.º 2, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, neste sentido, veja-se, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2015, (relator: Tomé Gomes), Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1; (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza). Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Veja-se, todavia, sobre a admissibilidade da impugnação de factos em bloco, desde que interligados, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021, Processo n.º 1006/11 (relator: Júlio Gomes), e de 19.05.2021, Processo n.º 4925/17 (relator: Chambel Mourisco), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. [6] Vide, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.12.2015 (relator: Melo Lima), Processo n.º 3217/12.12.1TTLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, e o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023 (relatora: Ana Resende), Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 (Recurso para Uniformização de Jurisprudência), publicado no Diário da República n.º 220/2023, I Série, de 13-11-2023, pp. 44.º a 65.º, com a declaração de retificação n.º 35/2023, publicado no Diário da República, I Série, de 28.11.2023, que uniformizou a jurisprudência nos seguintes moldes: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.». O certo é que da leitura da sua fundamentação extrai-se que para cumprir os ónus legais, o Recorrente sempre terá de alegar e levar para as conclusões sob pena de rejeição do recurso, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, conforme o estabelecido na alínea a), do n-º 1, do artigo 640.º do Código de Processo Civil. [7] GERALDES, António Abrantes; PIMENTA, Paulo, e SOUSA, Luís Filipe Pires de, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I (parte geral e processo de declaração), 3.ª Ed. Edições Almedina, S.A., p. 832.º. [8] Vide, neste sentido, por todos. GERALDES, António Abrantes, PIMENTA, Paulo, e SOUSA, Luís Filipe Pires de, op. citada, p. 822.º, e ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nele mencionados: de 18.01.2022, Processo n.º 701/19 (relatora: Maria João Vaz Tomé); de 06.05.2021, Processo n.º 618/18 (relator: Nuno Pinto Oliveira); de 11.02.2021, Processo n.º 4279/17 (relatora: Maria da Graça Trigo); de 12.07.2018, Processo n.º 167/11 (relator: Ferreira Pinto) e de 21.03.2018, Processo n.º 5074/15 (relator: Ferreira Pinto), todos disponíveis in www.dgsi.pt. [9] GERALDES, Ana Luísa, “Impugnação e Reapreciação da Decisão da Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas”, I volume, pág. 589 e sgs. [10] Vide, neste sentido, por todos. GERALDES, António Abrantes, op. citada, p. 333.º. [11] Vide, neste sentido, por todos, GERALDES, António Abrantes, op. cit., pág. 334; e, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.09.2013, Processo n.º 1965/04.TBSTB.E1.S1 (relator: Azevedo Ramos), disponível in www.dgsi.pt, comentado por SOUSA, Teixeira, nos Cad. De Direito Privado, n.º 44, pp. 29.º e sgs. ou, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.05.2017, Processo n.º 5164/07.0TLSB-B.L1.S1 (relatora: Ana Luísa Geraldes), também disponível in www.dgsi.pt. [12] Vide, neste sentido, por todos, GERALDES, António Abrantes, op. cit., pp. 352.º e 353.º; e ainda o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 07.09.2017, Processo n.º 959/09 (relator: Tomé Gomes), disponível in www.dgsi.pt. [13] Vide, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.12.2021, Processo n.º 513/19 (relator: Vieira e Cunha), disponível in www.dgsi.pt [14] Vide, neste sentido, por todos, GERALDES, Ana Luísa, op. cit. Pp. 509.º e 610.º. [15] Nota: a qual tem de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respetivos registos fonográficos. [16] SOUSA, Miguel Teixeira, in “Estudos sobre o novo Código de Processo Civil”, Edições Almedina, S.A, p. 347. [17] Vide, neste sentido, SOUSA, Luís Filipe, “Prova Testemunhal”, Edições Almedina, S.A, p. 389. [18] ANDRADE, Manuel, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 192; no mesmo sentido, vide, ainda, VARELA, Antunes, in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 435-436. Dizendo este último Professor: «A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto» (Fim da transcrição) [19] Disponível in www.dgsi.pt. [20] Sobre a problemática da valoração das declarações de parte, veja-se, entre outros, o seguinte post de Miguel Teixeira de Sousa, de 24 de julho de 2020, no Blogue do IPPC, in https://blogippc.blogspot.com/2020/07/jurisprudencia-2020-37.html, em anotação ao citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2020. [21] Disponível in www.dgsi.pt. [22] Disponível in www.dgsi.pt. [23] Disponível in www.dgsi.pt. [24] Diploma legal a que iremos fazendo referência, sem menção diversa – vide, o artigo 7.º, n.º 1, do diploma preambular da Lei n.º 07/2009, de 12 de fevereiro. [25] Apenas foram juntos aos autos pela 2.ª Ré/Recorrente com a sua contestação declarações de concordância dos trabalhadores com a cedência. [26] Veja-se, por todos, GERALDES, António Santos Abrantes; PIMENTA, Paulo, SOUSA, Luís Filipe Pires de, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, artigos 1.º 1 702.º, 3.ª Edição, 2024, Edições Almedina, S.A., p. 793.º e 794.º [27] Disponível in www.dgsi.pt. [28] Estão abrangidas as sociedades coligadas: em relação de participações recíprocas [artigos 482.º, alínea b) e 485.º do CSC]; de domínio [artigos 482.º, alínea c) e 486.º do CSC] e de grupo [artigos 482.º, alínea d) e 488.º e sgs. do e 485.º do CSC]. [29] VICENTE, Joana Nunes, in Questões laborais n.º 32, Coimbra Editora, S.A., pp. 182.º e sgs. [30] AMADO, João Leal, in Contrato de Trabalho, à luz do novo Código do Trabalho, Coimbra Editora. 2009, p. 123.º. [31] O Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25.09, regula o regime jurídico do exercício e licenciamento das agências privadas de colocação e das empresas de trabalho temporário (alterado pelas Leis 5/2014, de 12 de fevereiro, 146/2015, de 9 de setembro, 28/2016, de 23 de agosto, e 13/2023, de 3 de abril).