CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
REQUISITOS
PROPRIEDADE
USUFRUTO
Sumário

I - Nos termos do disposto no n.º 1 do referido art.º 205.º do Código Penal pratica o crime de abuso de confiança quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade. Dai radicando o tipo objetivo de ilícito, o objeto da ação é uma coisa móvel alheia.
II - O usufruto encontra-se previsto no art.º 1439.º do Código Civil, traduzindo-se no direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância. A compressão do direito de propriedade decorrente do usufruto não afeta o seu conteúdo residual. É o proprietário que continua a ser o titular do direito de propriedade, não o usufrutuário.
III - Assim, o usufrutuário, como facilmente se alcança da própria definição legal do instituto do usufruto e dos poderes que confere, não pode proceder à alienação do direito de propriedade, que continua a pertencer ao proprietário.
IV - Considerando os elementos típicos do crime de abuso de confiança e os poderes conferidos pelo instituto do usufruto, que não afetam o núcleo essencial da propriedade, preenche os elementos típicos da norma incriminatória do art.º 205.º, n.º 1, do Código Penal o usufrutuário que aliena onerosamente, vendendo-os, os bens que recebeu a esse título.

Texto Integral

Processo n.º 113/20.2GACPV.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum e com a intervenção do Tribunal Coletivo, por acórdão de 12.07.2024, em que é arguida AA, foi decidido:
a) condenar a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado do artigo 205º, nºs 1 e 4, b) do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
a) suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, nos termos do artigo 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal, acompanhado do dever, nos termos dos artigos 51º, nº1, c) do Código Penal, de:
i.entregar a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros), até ao termo do período da suspensão, juntando o respetivo comprovativo aos autos, à Associação ...;
b) declarar perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial no montante de 1.100,00€ (mil e cem euros), nos termos do artigo 110º do Código Penal, condenando a arguida no seu pagamento, sem prejuízo dos direitos do ofendido nos termos do mencionado artigo 110º, nº6 e 130º, nº3 ambos do Código Penal.


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Inconformada, a arguida recorreu.
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1. Pela venda de alguns dos bens móveis de que era usufrutuária vitalícia, pode a arguida vir a ser civilmente responsabilizada, mas nunca condenada pelo crime previsto no art. 205º, nº 4 do Código Penal.
2. Exactamente porque, no nosso ordenamento jurídico, antes como hoje, a imputação do crime de abuso de confiança pressupõe sempre que quem recebe a coisa a recebe a título precário, sobre ela exercendo a posse em nome alheio.
3. Conforme EDUARDO CORREIA sustentava ainda no domínio do Código de 1886 e o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA acolheu já no domínio do novo Código (Ac. STJ de 22.01.97, comentado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7º, fascículo 3º, Julho-Setembro de 1997, pág. 485 e segs.), no crime de abuso de confiança pressupõe-se sempre que quem faz a entrega mantém sobre a coisa um direito real e que quem a recebe a vai possuir em nome alheio.
4. Tal Acórdão (com erro de datação facilmente detectável) foi recolhido no Comentário Conimbricense do Código Penal, com o aplauso expresso de FIGUEIREDO DIAS – cfr. ob. cit., ed. 1999, tomo II, pág. 102.
5. Tal não ocorre na figura do usufrutuário, que possui a coisa em nome próprio, no exercício de um direito real de gozo, que lhe atribui a fruição plena e exclusiva das respectivas utilidades (art. 1439º do Código Civil e ORLANDO DE CARVALHO, “Direito das Coisas”, Coimbra Editora, 2012, págs. 174 a 176 e MOTA PINTO, “Direitos Reais”, pág. 413 e in Revista de Estudos e Direitos Sociais, ano XXI, págs. 153 a 181).
6. Direito de gozo pleno esse que integra as principais faculdades do direito de propriedade (disposição, uso e fruição exclusivas), e lhe permite alienar livremente o seu direito e, por vezes, a coisa (art. 1444º, nº 1,1448º, nº 1 e 1451º, nº 1, todos do Código Civil).
7. Mas sobretudo lhe permite onerar livremente a coisa ou o direito com a constituição de qualquer direito real de garantia, incluindo hipoteca, penhor, servidão ou novo usufruto – PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. III, pág. 403/404.
8. Pelo que na expressão “título não translativo de propriedade” constante do texto do actual art. 205º não pode ver-se incluído o usufruto, precisamente por este se assumir como o direito a exercitar em exclusivo, mesmo contra o nu proprietário, as faculdades essenciais de que se reveste o direito de propriedade (não transferindo a propriedade plena, dele não pode dizer-se que não transmite, embora temporariamente, as facetas essenciais do direito de propriedade).
9. Para efeitos do disposto no art. 205º do Código Penal, o usufruto não é pois um título não translativo da propriedade.
10. Sendo que o dever de restituição consagrado no art. 1483º do Código Civil não resulta de qualquer dever de fidúcia ou de relação pessoal de confiança com o nu proprietário, mas sim da extinção (in casu, por morte) do direito real de usufruto.
11. Quaisquer conflitos entre os titulares de direitos reais sobre a mesma coisa resolvem-se, por força da lei, nos termos do disposto nos arts. 1482 e 1471 do Código Civil, isto é, no foro cível, com reivindicação da coisa ou reclamação da indemnização pelos danos, sempre fora de qualquer possibilidade de tipificação penal.
12. A interpretação da norma do art. 205º, nº 1, do Código Penal efectuada em contrário pelo Acórdão recorrido, no sentido de querer ver incluída na expressão “título não translativo de propriedade” daquele preceito constante, a situação do usufrutuário vitalício instituído em testamento, torna aquele preceito afectado do vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da legalidade, na sua vertente do princípio da tipicidade e ainda dos princípios da adequação, da necessidade e da subsidiariedade da intervenção penal, previstos respectivamente nos arts. 29º, nºs 1 e 3 e 18, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
13. Por sua vez, o Acórdão recorrido dá como assente que o Município ... é o legítimo proprietário dos móveis a que o presente processo se refere.
14. Mas tal conclusão é absolutamente insustentável, por ilegalidade manifesta de tal entendimento.
15. Na verdade, nos termos do testamento relatado de págs. 8v. a 9v. do Acórdão recorrido, o Município é um mero legatário condicional de tais bens, protegido pois por uma mera expectativa de os poder vir a adquirir quando se se cumprir a condição suspensiva, que lhe foi imposta pelo testador, de criar a Casa Museu ... (o que aliás tinha sido juridicamente balizado pela pronúncia).
16. Antes disso, isto é, antes da condição suspensiva se encontrar verificada, a titularidade de tais bens pertence à herança aberta e indivisa do testador, perante a qual a arguida se apresenta como herdeira condicional e legatária.
17. O Município é pois um legatário condicional e não um verdadeiro legatário, sendo que os bens móveis referenciados continuam a integrar um património autónomo (herança) inteiramente sob administração (arts. 2237º, nº 1 e 2238º do Código Civil), sem que se possam atribuir quaisquer bens concretos a qualquer dos interessados.
18. Estamos pois perante um património em suspenso (CARVALHO FERNANDES, “Lições de Direito das Sucessões”, 4ª ed., 2012, pág. 522) com incertezas quanto ao destino dos bens que o integram, sem que se possa concluir ser o Município ... o proprietário dos mesmos.
19. Protegido por uma mera expectativa, o Município apenas pode apresentar-se como eventual titular do direito em momento futuro, pelo que a “invocação do art. 205º, nº 4 do Código Penal como forma de reagir ao comportamento da arguida, a admitir-se, mais não representaria senão a utilização da norma penal como um mecanismo de prevenção de riscos, esquecendo que o crime de abuso de confiança é um crime de resultado de dano” – PAULA RIBEIRO DE FARIA, Parecer junto, pág. 25.
20. O crime de abuso de confiança exigiria, para a sua verificação, “não só a titularidade efectiva do direito de propriedade por parte de quem a invoca, como a sua lesão, não bastando o perigo concreto dessa lesão” – aut. e ob. cit., pág. 26.
21. Também por isso, torna-se inadmissível a ordem dada pelo Acórdão recorrido (págs. 45/46) de “restituição” ao Município dos bens móveis referenciados, os quais integram o direito de usufruto em que a arguida se acha investida por testamento.
22. E dos quais ela foi instituída, nos presentes nos autos, fiel depositária.
23. Nos termos do art. 186º do Código de Processo Penal, que o Acórdão invoca para tal decisão, os bens apreendidos, quando se tornem desnecessários para efeitos probatórios, devem ser restituídos ao seu titular (neste caso a usufrutuária dos mesmos, direito que exerce não só sobre os móveis questionados como sobre toda a Casa e Quinta ... e respectivo recheio).
Para além das normas e preceitos adiantados na conclusão seguinte (24ª) diga-se desde já que, a este título, o Acórdão recorrido violou o disposto no art. 186º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.
24. Por errada interpretação e aplicação, violou ainda o Acórdão recorrido, com relação à matéria sumariada nas conclusões atrás elencadas, o disposto no art. 205º, nº 4, do Código Penal com referência aos arts. 1444º, 1446º, 1471º, 1482º, 1483º, 2237º, nº 1 e 2238º do Código Civil.
25. Interpretando aquele preceito (art. 205º, nº 4, do CP), como se disse na conclusão 12º, contra o disposto nos arts. 18º, nºs 1 e 2 e 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da República.
26. As conclusões apresentadas conduzem pois à inevitável solução da absolvição da arguida de toda a imputação criminal que lhe foi feita e a revogação integral do Acórdão recorrido, incluindo as determinações quanto à pena aplicada (págs. 38 a 42), quanto à perda de vantagens a favor do Estado (págs. 43 a 45), quanto ao destino dos objectos apreendidos (págs. 45/46), quanto às custas criminais (pág. 46), quanto ao pedido de indemnização civil (pág. 47 a 51) e quanto às custas cíveis (pág. 51).
27. Ou seja: devem ser revogadas integralmente as decisões proferidas no Acórdão (págs. 52 e 53), quer quanto à parte criminal quer quanto à parte cível.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, com base nas razões atrás aduzidas e em outras que o douto suprimento de V. Exªs. adiantar, revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que absolva a arguida do crime por que foi condenada, com todas as consequências legais por ser da lei e de justiça.


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O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta, pugnando no sentido de que deve negar-se provimento ao recurso e manter-se o acórdão recorrido.

Sem formular conclusões, alega, em síntese, o seguinte:

RESPONDENDO:

AA não se insurge contra os factos havidos por provados, centrando o seu dissenso em termos de matéria de direito.

Compulsando a materialidade assente compreende-se que a recorrente no último trimestre de 2019 contactou vários indivíduos, a quem vendeu inúmeros bens - dos quais era usufrutuária e cujo proprietário era o Município ... - recebendo como pagamento a quantia de €400,000,00, dos quais se apoderou.

Convém aquilatar á prática de crime de Abuso de Confiança, p. e p. no art. 205º/1, 4-b) do CP que assim estabelece:

1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

(…)
4 - Se a coisa ou o animal referidos no n.º 1 forem: (…)
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Reconhece-se como constitutivos do referido tipo legal os seguintes elementos:

» a apropriação ilegítima;

» de coisa móvel;

» entregue por título não translativo de propriedade.

Para a verificação do último dos mencionados requisitos - que aliás, distingue o crime de abuso de confiança do furto – basta que o agente se encontre investido num poder quanto à coisa, isto é, numa “relação fáctica de domínio sobre ela”, não sendo, pois necessário, um ato material de entrega da mesma. - cfr. Figueiredo Dias in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pp. 101, § 14

In casu, dúvidas não existem quanto à verificação da referida circunstância, como de resto, se pode extrair da circunstância bens elencados na matéria provada se acharem na esfera de poder da arguida.

Contudo, o crime apenas se consuma quando o agente se aproprie da coisa que antes que lhe fora entregue.

Apropriar consiste em o agente fazer sua, a coisa alheia que antes recebera uti alieno, passando a dispor da coisa animus domini.

Porém, esta mudança não “pode ser um mero fenómeno interior até porque cogitationis poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento, que o revele e execute” - cfr. Figueiredo Dias, ob., cit, § 103, pp. 103.

Vale por significar que a vontade do agente actuar animu domini, carece de ser demonstrada por atos objetivos, reveladores de que ele já estar a dispor da coisa como se fosse sua.

Neste sentido, exarou-se no colendo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10 de Janeiro de 2002, in CJ/STJ, Ano X, Tomo I, p. 162:

“O crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente que receba a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini, devendo, porém, entender-se que a inversão do título da posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente está a dispor da coisa como se sua fosse”.

O dolo, em qualquer das suas modalidades, é exigido relativamente à totalidade dos elementos do tipo objetivo do ilícito em apreço, tratando-se, pois, de crime de congruência total.

O esteio da argumentação recursivamente tecida estriba-se no entendimento que o segmento típico “por título não translativo da propriedade” não abarca a situação do usufrutuário, pois este enquanto titular de um direito real de gozo, não deteria a coisa a título precário, nem em nome alheio.

Ora, o estatuto do usufrutuário assemelha-se ao do proprietário na medida em que nele radicam amplos poderes de uso e fruição da coisa, mas diferentemente do direito real máximo, não lhe assiste a faculdade de livre disposição sobre os bens objeto do usufruto podendo, o que é coisa diferente, trespassar o próprio direito de usufruto – cfr. art.s 1444º/1, 1446º/1 do CCivil

Na verdade, não se andará longe da verdade caso se afirme que o usufrutuário em relação do “nu-proprietário” surge como uma espécie de “possuidor em nome alheio”, pois apesar de investido “ius utendi et fruendi”, encontra-se desprovido do “ius abutendi”, sendo certo, por outro lado, que a posse exercida será sempre em termos de direito de usufruto e não em termos de direito de propriedade.

Igualmente de interesse se perfilha o basilar dever do usufrutuário de restituir a coisa ao proprietário, findo o usufruto – cfr. art. 1483º do CCivil

A conjuntura fáctica, devidamente indagada, transmite que a arguida alienou múltiplos haveres sobre os quais incidiram o seu direito de usufruto e recebeu a contrapartida pecuniária.

Um efeito essencial do contrato de compra e venda consiste na “transmissão da propriedade da coisa, o que mercê do princípio da consensualidade, acontece por mero efeito do contrato – cfr. art.s 408º/1, e 879º -a do CCivil.

Efetivamente, com tais negócios, a arguida manifestou “animus domini, agindo, apesar de destituída de título que justificasse, como se fosse proprietária, embora sendo apenas usufrutuária.

Nessa lógica, integrou no seu pecúlio, a montante, bens que sabia não lhe pertencerem - contrariando a vontade do proprietário dos mesmos - e a jusante, o dinheiro gerado com a venda, recebido como preço.

É precisamente o momento de disposição dos bens móveis que demonstra a “apropriação” e uma inerente conformação como “dona e senhora” dos mesmos, faceta que arguida percebeu, a todas as luzes, como não correspondente à verdade.

Ademais, questiona-se, abrindo mão dos referidos bens que, por via da alienação, integraram o património de terceiros, como poderia a arguida cumprir a sua obrigação de os restituir –cfr. art. 1483º do CCivil

Vale por significar que todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de Abuso de Confiança, p. e p. no art. 205º/1 se encontram preenchidos, tal como a qualificativa inscrita no n.º 4-b) do mesmo preceito, considerado o valor venal dos bens.

Assinala-se, em acrescento, observando o mesmo episódio sob o prisma do terceiro adquirente e no pressuposto - agora aqui conjeturado como mera hipótese de trabalho – que tivesse sido convencido pela arguida que a mesma era dona e legitima proprietária dos bens móveis – não sendo isso verídico – e confiando nessa falsa realidade tivesse pago o preço pedido, sempre se poderia concluir pela prática de crime de Burla, p. e p. no art. 217º/1 do CP, no qual figuraria como ofendido, não o legítimo proprietário das coisas – este protegido pelo art. 205º/1 do CP - mas quem por elas pagou, prejudicando respetivo património – cfr. art. 68º/1-a) do CP

Daqui se conclui pela inequívoca e eminente relevância jurídico-penal da conduta perpetrada, nas suas mais diversas dimensões.

Por último, abordemos, de relance, a segunda matriz argumentativa do recurso, relativa à qualidade do Município ..., aqual, daóticadaarguida reduz-sea“mero legatário condicional” (sic), jamais de proprietário.

Nesta particularidade, oferece-nos apenas relembrar que foi recebido por provado que a referida entidade administrativa era proprietária da “raiz” dos referidos bens – vide, entre o mais, §1, §26 e §27 dos factos assentes

Ora, nos termos do art. 412º/3-a) CPP incide sobre o recorrente o ónus de especificar, quer na motivação do recurso stricto sensu, quer nas conclusões – cfr. 417º/3 do CPP – os pontos fácticos que entende erradamente julgados.

Com efeito, a exigência legal visa possibilitar que o Tribunal ad quem possa facilmente perceber quais as questões concretamente levantadas que, aliás, delimitarão o objeto do próprio recurso e, particularmente para o que ora interessa, os termos da impugnação ampla da matéria de facto.

Perscrutando a apelação constata-se que a factualidade respeitante ao Município ... acima recenseado, não foi alvo de impugnação, pelo que se deverá considerar definitivamente consolidada assim como fixada a quo.

Sendo este um ónus que recaía sobre o recorrente em exclusivo, o Tribunal ad quem, no âmbito da impugnação ampla, a ele não se poderá substituir e preencher essa lacuna, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia.

Uma questão, porém, surge: padecendo os recursos da deficiência apontada, não deveria o Venerando Tribunal permitir, através de convite, o aperfeiçoamento?

Também nesse particular a jurisprudência manifesta-se unívoca, sendo de destacar, pela acuidade, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.01.2009, cit, cujo teor reproduzimos na parcela pertinente:

(…)como reiteradamente vem acentuando o Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido. Daí que o artigo 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal imponha o dever de convite tão quando «a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º».

Se o recorrente não faz, como no caso dos autos, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, não lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez queo conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite”.

Atribuir à recorrente a hipótese de preencher a identificada lacuna significaria uma segunda chance para produzir o recurso – que, em rigor, seria sempre um novo recurso - e beneficiar de um prazo, notoriamente já esgotado – cfr. art. art. 411º/1-b) do CPP

Em suma, o acórdão sobrevive incólume aos argumentos apontados no recurso e não padecendo dos vícios deconhecimento oficioso especificados no art. 410º/2-a)-b)-c) do CPP, apresenta-semerecedor de venerando juízo confirmatório.


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O Município ... também apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Formula as seguintes conclusões:
1. Ao contrário do sustentado pela arguida não existe qualquer impossibilidade legal da Recorrente ter praticado o crime de abuso de confiança por alienar bens móveis compreendidos no legado do usufruto.
2. O tipo objetivo do crime de abuso de confiança consiste na apropriação ilegítima de coisa móvel que foi entregue ao agente por título não translativo da propriedade.
3. Ora, o testamento pelo qual a arguida foi instituída co usufrutuária dos bens vendidos não é, em relação a si, um título translativo do direito de propriedade, pois transmitiu-lhe o direito de gozo temporário da coisa, enquanto ao Município assistente transmitiu a raiz da coisa, ou a nua propriedade.
4. O bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança é a propriedade e não existe qualquer fundamento para que o conceito de propriedade para efeitos do direito penal seja diferente do conceito de propriedade do direito civil, como se, para efeitos de não incriminação do crime de abuso de confiança, a constituição do direito do usufruto constituísse um título translativo da propriedade.
5. Por outro lado, o que distingue verdadeiramente o direito de propriedade do direito de usufruto é o poder de disposição da coisa, que existe naquele e não neste, pois o usufruto consiste no direito de usar, fruir e administrar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância, com a obrigação de, findo o usufruto, entregar a coisa ao proprietário (cfr. artºs 1.439º, 1446º e 1.483º, do CC).
6. Se bem que a entrega não tem necessariamente de traduzir-se num ato material e praticado pelo ofendido, no início, e pelo usufrutuário, no termo do usufruto, antes pode ocorrer por força da lei ou ser até um ato natural, como acontece no caso do testamento em que a coisa é entregue “legalmente” ao usufrutuário por força da morte do testador e, se vitalício, como é o caso dos autos, é restituída “legalmente” ao proprietário de raiz por morte do usufrutuário.
7. Na medida em que tem o dever de entregar a coisa ao proprietário findo o usufruto, o usufrutuário não a pode alienar na sua pendência, pois se goza do “ius utendi e fruendi”, não goza do “ius abutendi”, que pertence ao proprietário (de raiz).
8. Logo, em relação à raiz das coisas móveis que, em concreto, compõem o usufruto, trata-se de coisas alheias e relativamente a elas o usufrutuário age como um “possuidor” em nome alheio, pelo que, alienando-as, ou pondo-as para venda, como o fez a arguida, está a inverter o título da posse e, com isso, a apropriar-se ilegitimamente das mesmas; ou seja, a arguida recebeu as coisas “uti alieno” e com a venda das mesmas passou a comportar-se “uti dominus”, fazendo suas coisas alheias, violando o bem jurídico que a norma incriminadora pretende proteger: a propriedade (não o usufruto).
9. Assim, o usufrutuário é possuidor legítimo da coisa em nome próprio no que respeita às vertentes do gozo sobre a mesma e possuidor em nome alheio relativamente às vertentes do direito de propriedade pertencentes ao nu proprietário.
10. Pelo que, não é correto afirmar-se, como diz a Recorrente, que em caso de “conflito de posses próprias”, este apenas pode ser dirimido no âmbito do direito civil, e já não no âmbito do direito penal, o que não encontra arrimo nem em conceções dogmáticas dominantes, nem em razões histórias que devam manter-se.
11. Acresce que, embora não faça parte dos elementos do tipo do crime de abuso de confiança, também na apropriação ilegítima da coisa pelo usufrutuário, verificada com a inversão do título da posse, existe a violação do dever de fidúcia do usufrutuário para com o proprietário de raiz.
12. Com efeito, no caso, a relação de fidúcia foi estabelecida pelo dono da coisa (o proprietário testador); quando o mesmo no testamento dispôs do usufruto e da raiz da propriedade a favor de pessoas diferentes, confiou que os usufrutuários sucessivos e simultâneos, em que se inclui a arguida, fruiriam das coisas que constituem o usufruto mas com a obrigação de as conservar para, findo o usufruto, o proprietário, nessa altura proprietário pleno, as afetar ao destino que que o próprio testador quis: a criação e manutenção de uma casa museu: “A Casa Museu ...”.
13. Ao vender, ou por à venda, os bens confiados em usufruto, a arguida violou essa relação de confiança - transmitida pela morte do testador ao proprietário de raiz, o Município ... (passando a com ele estar estabelecida), - na medida em que tal ato de apropriação ilegítima impede a sua entrega ao proprietário e compromete, pelo menos relativamente às peças vendidas e não recuperadas, o fim a que o testador as destinou e ao qual o assistente está obrigado, e quer, afetá-las.
14. Encontram-se, assim, verificados, todos os elementos objetivos do crime de abuso de confiança (a apropriação ilegítima, de coisa alheia, detida ou possuída por título não translativo de propriedade).
15. Sendo que o elemento subjetivo, que preenche com qualquer uma das modalidades do dolo, também se verifica, resultando dos atos de disposição da coisa, reveladores da intenção da arguida inverter o título da posse e de se apropriar de bens que bem sabia não lhe pertencerem, como resulta da sua interpretação de acordo com as regras da experiência comum e do normal acontecer.
16. Por outro lado, a interpretação do artº 205, nº 1, do CP, efetuada pelo Acórdão recorrido, de querer ver incluída na expressão título não translativo da propriedade a situação do usufrutuário vitalício instituído em testamento não torna aquele preceito afetado do vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade, na vertente do princípio da tipicidade, previsto e consagrado no artº 29, nºs 1 e 3 da CRP, bem como pela violação dos princípios da adequação, da necessidade e da subsidiariedade da intervenção penal, garantidos pelo artº 18, nºs1 e 2, da mesma Constituição.
17. Também não assiste fundamento à Recorrente quando afirma que o assistente Município não é proprietário dos objetos vendidos ou postos à venda pela arguida, tendo apenas uma mera expetativa de o vir a ser, pois a propriedade está sujeita a condição suspensiva e enquanto esta estiver pendente as raiz dos bens pertence à herança ilíquida e indivisa do testador.
18. Em primeiro lugar, essa propriedade (nua propriedade) a favor do Município foi dada como provada no Acórdão recorrido (factos 1, 6, 7, 26, 27, 35 e 36) e no recurso a arguida não impugna a matéria de facto.
19. Por outro lado, o legado da nua propriedade dos bens móveis está apenas sujeito ao encargo que impende sobre o legatário de criar e manter a Casa Museu quando se extinguir o usufruto e a propriedade plena se consolidar na sua esfera jurídica e a uma condição resolutiva: se não criar a Casa Museu ou a mesma deixar de funcionar durante cinco anos consecutivos tais bens reverterão para BB e seus herdeiros e na falta destes, o que não se verifica, para arguida.
20. Assim, conciliando as suas diversas cláusulas, resulta, com meridiana clareza, que o testamento deve ser interpretado do seguinte modo: após a morte do autor da herança (testador), a propriedade da raiz ficou a pertencer ao Município ... e o usufruto foi deferido a CC e, de seguida e simultaneamente, às suas filhas BB e AA, sendo que com a extinção do usufruto o Município adquirirá a propriedade plena dos bens legados em nua propriedade.
21. Pelo que terão de improceder todas as conclusões do recurso a que se responde.


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O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a arguida apresentou resposta, concluindo pela procedência integral do recurso.

Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.


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II. FUNDAMENTAÇÃO:

Objeto do recurso

Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

No caso concreto, considerando tais conclusões, a questão suscitada no recurso e que importa decidir é a seguinte:

> Preenchimento dos elementos típicos do crime de abuso de confiança.

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Factos provados no acórdão recorrido [transcrição da parte relevante]:
1. Por testamento outorgado no dia 22 de Abril de 1996, no Nono Cartório Notarial de Lisboa, DD, solteiro, maior, nascido em ../../1908, determinou quanto ao seu património, no ponto dois sob o título “Bens do concelho ...”:
i.A casa ... com todas as suas edificações, principais e secundárias sejam quais forem, incluindo até o edifício da adega que está fora dos portões da quinta, e compreendendo ainda todos os respetivos terrenos agrícolas, jardins e matas, tudo situado na vila e freguesia ..., será, nessa generalidade, em usufruto vitalício mas sucessivo, primeiro para o já mencionado CC e, depois da morte deste para, em comum e partes iguais, suas filhas BB e AA, bem como para os filhos ou filhas primogénitos, havidos de casamento, se os houver, daquelas, ficando a raiz desse total para uma Casa Museu, que terá a designação de “Casa Museu ...”, mantida e a funcionar pelo Município ..., que da mesma terá o direito;
ii.O recheio, seja qual for, existente na sobredita Casa ... e suas dependências, incluindo alfaias agrícolas, tonéis e pipas, e ainda tudo o mais necessário e inerente ao funcionamento quer do uso doméstico da mesma casa, quer da sua parte agrícola, ficarão nos mesmos regimes de usufruto vitalício e sucessivo, primeiro para CC, e depois para as sobreditas BB e AA, e os filhos ou filhas primogénitos das mesmas, sempre havidos de casamento, se os houver, tal como na precedente alínea a), ficando outrossim os usufrutuários autorizados a, livremente, arrendarem edifícios fora da Casa ... propriamente dita, mas nunca o poder de fazer quanto a esta última ou parte dela;
iii.Determina que a partir da morte do último dos referido usufrutuários, isto é, depois da extinção do usufruto total, a raiz de todos os bens imóveis acima referidos na alínea a) será para o Município ..., com a condição e na obrigação de manter e fazer funcionar na aludida Casa ... uma Casa Museu, que terá a designação de “Casa Museu ....
- Lega ao referido Município, mas apenas em nua propriedade, os bens de natureza móvel existentes na propriamente dita “Casa ...”, que para o efeito a seguir ficam enumerados expressamente, com exclusão, assim de quaisquer outros:
- Tudo o que estiver na casa de entrada;
- Tudo quanto ao quarto do terreiro;
- Tudo quanto ao quarto antigo, incluindo um tinteiro de prata e cristal;
- Tudo quanto à sala grande, ou dos retratos;
- Tudo quanto ao quarto novo, incluindo um tinteiro de prata;
- Tudo quanto à sala de estar, incluindo um tinteiro de prata;
- Tudo quanto à sala de jantar, incluindo dois candeeiros de prata eletrificados, o centro de mesa de prata e cristal e seis jarrinhas de prata, o serviço de chá de prata de cinco peças, antigo, com armas gravadas de timbre de águia, um par de candelabros de prata de dois lumes cada, antigos, e a bandeja de prata lavrada, retangular, bem como a bandeja de prata antiga de gomos;
- Tudo quanto ao quarto grande, incluindo o tinteiro de prata grande;
-Tudo quanto à sala de passagem com exceção de loiças e vidros;
-Tudo quanto ao quarto onde costuma dormir o testador, com exclusão de livros e bibelots, mas incluindo uma salva bilheteira de prata com pé, e armas gravadas ao centro;
- Tudo quanto à sala do arco, no rés-do-chão;
- Tudo quanto ao escritório-livraria, mas apenas em relação ao mobiliário propriamente dito;
-Tudo quanto à capela, e ainda quanto aos paramentos, quadros, pratos e objetos de culto que se encontrem na casa, seja onde for;
-A cama de bilros, uma bandeja de prata D. João V com armas gravadas, que estão no quarto do canto.
(…)

k) Todas as loiças, pratas e outros objetos de arte e decoração, além dos que já ficaram mencionados em alíneas anteriores, que possam existir à hora da morte do testador, na Casa ... ou noutros locais do concelho, poderão ficar destinados em carta ou cartas assinadas pelo mesmo, revertendo o restante que não for designado, para BB e AA, em comum e partes iguais;”
2. Na sequência do óbito de DD, ocorrido em 19 de Março de 1997, os testamentários elaboraram uma relação de bens, que o testamenteiro CC apresentou na Repartição de Finanças de Paço de Arcos em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior ao dia 17 de Outubro de 1997.
3. Dessa relação de bens consta a seguinte discriminação:
- artigos 1º a 17º “Dinheiro”;
- artigos 18º a 34º “Títulos – papéis de crédito”;
- artigos 35º a 37º “Objetos de ouro e prata”;
- artigos 38º e 39º “Legado à irmã Dª EE”;
- artigo 39ºA “Legado à FF”;
- artigos 40º e 41º “Legado a BB”;
- artigo 42º “Legado em comum a BB e AA”;
- artigo 43º “Legado a CC”;
- artigo 44º “Legado em raiz ao Município ... e em usufruto a CC”;
- artigo 45º “Outros móveis”;
- artigos 46º a 77º “Legado em raiz à Câmara Municipal ... e em usufruto vitalício e sucessivo para Dª EE e depois às filhas desta Dª GG e de HH”;
- artigo 78º “Legado em usufruto a CC e em raiz a AA”; (Casa 1...)
- artigos 79º e 80º “Legado a Dª EE”;
- artigos 81º a 84º “Legado a BB”;
- artigo 85º “Legado a CC”;
- artigos 86º a 99º “Legado em raiz à Câmara Municipal ... e em usufruto vitalício e sucessivo a BB e AA e filhos primogénitos destas”;
- artigos 100º a 109º “Legado em raiz a BB e em usufruto a CC, AA e filhos de BB e AA”;
- artigos 110º a 150º “Bens imóveis”.
4. De acordo com a relação de bens elaborada pelos testamenteiros e na qual declararam que não se procederia a inventário, à arguida AA apenas foram legados, com propriedade plena, em comum com a sua irmã BB, os bens descritos no artigo 42: “Duas caixas ovais, dois açucareiros, uma leiteira, uma jarra pequena e um vaso pequeno para flores, quatro floreiras, duas tampas de escova, um faqueiro sem talheres de peixe, um faqueiro completo, tudo em prata.”
5. Nessa mesma relação de bens ficou também definido que dos bens descritos no artigo 78º a arguida recebia a raiz e o seu pai o usufruto, estando em causa bens que compunham o espólio da Casa 1....
6. No dia 22 de Agosto de 2019 faleceu o usufrutuário CC, tendo a arguida tomado posse da Casa ... no dia 20 de setembro de 2019.
7. A partir dessa altura, a arguida, que bem conhecia o teor do testamento outorgado por DD e a relação de bens que concretizava os bens móveis que constituíam o espólio da Casa ..., cuja raiz havia sido legada ao Município ... e o usufruto havia sido por si herdado na sequência do óbito do pai, decidiu levar para a sua residência e vender parte dos bens que constituíam esse espólio, ficando com as quantias monetárias que adviessem dessas vendas.
8. Em cumprimento de tal desígnio, em data não concretamente apurada, mas que se situa no último trimestre do ano de 2019, a arguida contactou II, antiquário e proprietário do estabelecimento denominado “A...”, aberto ao público na Rua ..., A e C, em Lisboa, com o propósito de lhe vender objetos pertencentes ao espólio da Casa ....
9. Na sequência de tal contacto, a arguida e II acordaram no sentido de este se deslocar até ... para ver as peças que lhe interessasse.
10. Após II concretizar a referida visita e visualizar as peças que aí se encontravam, comprou os seguintes objetos (fls. 418 a 422), pelos quais recebeu quantia não concretamente apurada, mas que se situa entre 20 mil e 30 mil euros:
- Dois barómetros;
- Uma cómoda ao estilo D. José;
- Três brasões em pedra (posteriormente devolvidos à arguida);
- Um desenho de Henrique Pousão (posteriormente devolvido à arguida);
- um conjunto, num total de seis, cadeiras ao estilo D. José;
- Algumas imagens de santos, nomeadamente uma imagem de São Francisco de joelhos.
11. Passado pouco tempo, em momento não apurado, mas que igualmente se situa no último trimestre do ano de 2019, II dirigiu-se também a casa da arguida sita em ..., concelho de Oeiras, onde esta possuía as seguintes peças da Casa ..., cuja proveniência bem conhecia:
- Pinturas, nomeadamente um autorretrato do pintor Auguste Roquemont e uma pintura naturalista deste mesmo autor;
- Objetos em prata em número e com características que não foi possível apurar;
- Documentos em número e com características que não foi possível apurar.
12. A arguida vendeu ainda, no decurso do último trimestre de 2019, a II por, pelo menos, 1.500,00€, os seguintes bens pertencentes ao espólio da Casa ...:
- Um teliz de veludo vermelho, do Séc. XVIII;
- Uma sela forrada a veludo vermelho, do Séc. XVIII;
- Um Xairel;
- Um par de Capeladas;
- Um par de coldres, todos em veludo vermelho e do Séc. XVIII.
13. Uma parte dos referidos bens adquiridos por II foram vendidos a JJ, nomeadamente um conjunto de seis cadeiras D. José e um retrato miniatura de figura masculina (...) do Séc. XIX, tendo este, ainda adquirido mais 6 cadeias idênticas, provenientes da Casa ..., na B....
14. No dia 03 de Fevereiro de 2020, JJ celebrou um contrato de prestação de serviços para colocação de bens à venda em leilão com a leiloeira C..., a quem entregou, para venda, o teliz, a sela forrada, o xairel, o par de Capeladas, o par de coldres, todos em veludo vermelho e do Séc. XVIII (Fls. 871 e 872).
15. No dia 22 de Abril de 2020, JJ entregou, a título de consignação, à empresa D..., uma pintura miniatura, com figura masculina (...) do Séc. XIX, pertencente ao espólio da “Casa ...” (Fls. 429, 430).
16. Já no ano de 2020 e no decurso da investigação realizada no presente processo, dos objetos vendidos a II, a arguida AA recuperou os seguintes (fls. 518, 521 a 525) que levou novamente para a Casa ...:
- Uma pintura a óleo, contendo o autorretrato do pintor Auguste Roquemont;
- Uma pintura a óleo, com natureza morta, de Auguste Roquemont;
- Dois barómetros com guarnição em metal dourado
- Uma imagem de São Francisco de joelhos.
17. Em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2019, a arguida contactou KK, antiquário, com o propósito de lhe vender objetos pertencentes ao espólio da Casa ....
18. Após tal contacto, a arguida e KK acordaram no sentido de este, acompanhado de LL, que colabora consigo nas compras e vendas de antiguidades, se deslocarem até ... para ver as peças que lhes interessavam, tendo nesse dia a arguida vendido os seguintes bens pertencentes ao espólio da Casa ..., recebendo pelos mesmos valor que não foi possível determinar, mas nunca inferior a 1.500,00€, designadamente:
- Par de mesas de jogo em pau-santo, com embutidos em espinheiro, representando motivos clássicos, avaliadas em, pelo menos, 600,00€;
- Capacete ibérico. Calva em ferro batida de uma só peça, com pequena aba, avaliado em, pelo menos, 400,00€;
- Capacete do tipo usado pelos piqueiros portugueses durante a Guerra da Restauração de 1640, avaliado em, pelo menos, 200,00€;
- Uma espada europeia de oficial de cavalaria da primeira metade do Séc. XIX, avaliada em, pelo menos, 200,00€;
- Sabre inglês para tropas de cabalaria ligeira, modelo regulamentar de 1821, avaliado em, pelo menos, 100,00€;
- Dois sabres da primeira metade do Séc. XX, para a prática de esgrima, avaliado em, pelo menos, 100,00€;
- Par de floretes de finais do Séc. XIX, para a prática de esgrima, avaliado em, pelo menos, 50,00€;
- Ponta de alabarda portuguesa do Séc. XVIII, em ferro recortado e vazado, e espigão recto de secção quadrangular, avaliado em, pelo menos, 100,00€;
- Pistola inglesa de bolso avaliada em, pelo menos, 50,00€;
- Pistola europeia de bolso avaliada em, pelo menos, 50,00€;
- Espingarda portuguesa de caça avaliada em, pelo menos, 100,00€;
- Duas espadas portuguesas decorativas em, pelo menos, 75,00€
19. Na sequência da referida visita, KK e LL no dia 26 de Outubro de 2019 (fls. 115), regressaram à Casa ... para levarem os seguintes objetos pertencentes ao espólio da Casa ..., que compraram à arguida pela quantia de 6.000,00€:
- Seis quadros com motivos religiosos (fls. 314, 315, 457 e 458);
- Diversos paramentos (fls. 459);
- Uma fonte em pedra granito;
- Duas lanternas em metal (fls. 312);
- Um móvel contador (fls. 311);
- Seis cadeiras, de estilo S. José;
- Dois cadeirões estofados (fls. 312);
- Duas frentes de lareira (fls. 312);
- Dois relógios (fls. 310 e 316).
20. A maioria dos referidos bens adquiridos por KK e LL foram vendidos a MM.
21. No dia 21 de Outubro de 2019, MM celebrou um contrato de prestação de serviço de leilão com a sociedade E..., S.A., através do qual lhe vendeu os seguintes objetos pertencentes ao espólio da Casa ...:
- Par de mesas de jogo em pau-santo, com embutidos em espinheiro, representando motivos clássicos, avaliadas em, pelo menos, 600,00€;
- Conjunto de seis cadeiras S. José em pau-santo, com tabelas recortadas e vazadas, avaliadas em, pelo menos, 3.000,00€;
- Um ecrã de lareira romântico em pau-santo com trabalho de talha representando motivos vegetalistas, avaliado em, pelo menos, 600,00€
- Um par de Fauteuils românticos armoriados (par de cadeirões dourados, com brasão e estofo em tecido), em madeira dourada a ouro fino, com entalhes. Fundo e costas estofadas a tapeçaria de Aubusson com armas brasileiras e elementos vegetalistas, avaliados em, pelo menos, 900,00€
- Um Relógio de caixa alta, caixa portuguesa D. João V, em madeira marmoreada e esponjada, sendo a “cabeça” entalhada com volutas e palmetas, avaliado em, pelo menos, 1.500,00€;
- Um Relógio de mesa Carlos X com estrutura em cristal de Baccarat de piquinhos e espiralados, com quatro colunas jónicas e bronzes dourados e cinzelados, representando folhas de acanto, avaliado em, pelo menos, 900,00€;
- Capacete ibérico. Calva em ferro batida de uma só peça, com pequena aba, avaliado em, pelo menos, 400,00€;
- Capacete do tipo usado pelos piqueiros portugueses durante a Guerra da Restauração de 1640, avaliado em, pelo menos, 200,00€;
- Uma espada europeia de oficial de cavalaria da primeira metade do Séc. XIX, avaliada em, pelo menos, 200,00€;
- Sabre inglês para tropas de cavalaria ligeira, modelo regulamentar de 1821, avaliado em, pelo menos, 100,00€;
- Dois sabres da primeira metade do Séc. XX, para a prática de esgrima, avaliado em, pelo menos, 100,00€;
- Par de floretes de finais do Séc. XIX, para a prática de esgrima, avaliado em, pelo menos, 50,00€;
- Ponta de alabarda portuguesa (Séc. XVIII) em ferro recortado e vazado, e espigão recto de secção quadrangular, avaliado em, pelo menos, 100,00€;
- Pistola inglesa de bolso avaliada em, pelo menos, 50,00€;
- Pistola europeia de bolso avaliada em, pelo menos, 50,00€;
- Espingarda portuguesa de caça avaliada em, pelo menos, 100,00€;
- Duas espadas portuguesas decorativas avaliadas em, pelo menos, 75,00€
22. Para além dos descritos lotes de bens, a arguida retirou ainda da Casa ... e levou para a sua residência, em Oeiras, várias pinturas, móveis e paramentos, melhor caracterizados nas fotografias de fls. 267 a 303.
23. Na pendência da investigação em curso nos presentes autos, em datada não concretamente apurada do ano de 2020, mas certamente anterior a 07 de Outubro de 2020, a arguida recuperou e levou novamente para a Casa ... os seguintes bens (fls. 304 a 307):
- Um relógio de caixa alta;
- Duas lanternas;
- Um contador indo-europeu;
- Um par de fauteuils com brasão;
- Uma frente de lareira com brasão;
- Uma frente de lareira;
- Uma pintura alusiva a São Francisco;
- Um retrato de Domingos Joaquim Pinto Lemos;
- Um retrato de Bernardo Pinto Ribeiro Seixas, Bispo de Bragança e Miranda;
- Uma pintura alusiva a Santo António junto a um rio;
- Um relógio de caixa alta, olhos de lua;
- Um desenho a carvão de Henrique Pousão;
- Doze cadeiras com assento em verguinha;
- Três pedras em granito com armas/brasão;
- Uma fonte em pedra, em duas partes.
24. Em datada não concretamente apurada, mas que certamente se situa entre 07 de Outubro de 2020 e 15 de Janeiro de 2021, a arguida levou novamente para a Casa ... duas pinturas sobre madeira, com moldura, uma representativa de Nossa Senhora com o Menino e outra, de dupla face, representando quatro santos numa face e motivos florais noutra, ambas em mau estado de conservação (fls. 457 a 459), que tinha anteriormente levado para a sua casa em Oeiras.
25. Em consequência das vendas supra descritas, a arguida recebeu, pelo menos, 40.000,00€, que fez seus.
26. A arguida agiu deliberada e conscientemente, tendo como propósito integrar no seu património os bens móveis pertencentes ao espólio da Casa ..., assim como as quantias monetárias resultantes da venda de parte deles, apesar de bem saber que os mesmos se encontravam na sua posse apenas para os usar e fruir, estando impedida de lhes dar destino, nomeadamente retirando-os, sem consentimento do Município ..., da Casa ....
27. A arguida sabia ainda que ao assim proceder contrariava os interesses e a vontade do Município ..., detentor da raiz desses bens.

Do pedido de indemnização cível

28. O recheio existente à morte do testador contribuiu para que a Casa e Quinta ... tivessem sido classificados como Monumento de Interesse Público pela Portaria nº740-FP/2012, de 31.12, publicado no DR, II Série, nº252.

29. Ao subtrair, fazer desaparecer e alienar o recheio que não lhe pertencia, a arguida causou ao demandado o prejuízo correspondente ao valor das peças não recuperadas e ou por si não restituídas no âmbito das diligências de inquérito.

30. Os referidos bens móveis que a arguida subtraiu na Casa ..., pertencentes, em nua propriedade ao demandante, com o propósito de integrar o seu património, foram legados com o fim, e condição, do Município ... vir a instalar e manter na Casa ... a "Casa Museu ...".

31. Para além do seu valor material, o referido espólio é fundamental para assegurar as "vivências" e o "ambiente" que na Casa ... existiram, desde o século XVII, como residência nobre.

32. O desaparecimento desses objetos dos concretos locais onde se encontravam nos diversos aposentos da Casa ... implica uma perda de importância para o Município ... e para a comunidade local que representa.

33. Que se vê privada da fruição e dos benefícios de um bem cultural de relevante importância para o desenvolvimento e engrandecimento de ... e das suas gentes.

34. Para além disso, o desaparecimento desses objetos dos concretos locais onde se encontravam nos diversos aposentos da Casa ..., afeta irremediavelmente os elementos que presidiram e determinaram a caracterização e classificação da Casa ... como património cultural.

35. Sob a epígrafe de “condições gerais”, no ponto quatro, alínea s), ficou determinado que “Fica outrossim bem determinado que tanto em relação aos bens situados no concelho ... como no de Oeiras e deixados apenas em usufruto, sejam quais forem as respetivas raízes terão como destino para os primeiros o Município ..., e para os segundos o Município ..., em qualquer dos casos com a obrigação e na condição dessas entidades promoverem a criação, manutenção e funcionamento das Casas Museus que lhe competem respetivamente, ou sejam, a Casa Museu ... e a Casa Museu 1...”;

36. Sob a epígrafe de “Condições”, alínea c) ficou determinado que “Se os beneficiários Município ... e Município ... não aceitaram as deixas que lhe ficaram acima feitas respetivamente e nos precisos termos que neste testamento constam, e se qualquer das Casas Museus que lhe ficar a incumbir deixar de funcionar durante cinco anos consecutivos, todos os bens que estiverem em causa passarão imediatamente (…) quanto ao Município ... e Casa Museu ... para a plena propriedade de BB, ou os seus herdeiros se ela já não existir, e na falta destes para AA e depois para os herdeiros desta, tanto os desta como os da BB, havidos de casamento.


*

Quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos, no acórdão consta o seguinte:

A arguida vem pronunciada da prática de um crime de abuso de confiança do artigo 205º, nºs 1 e 4, b) do Código Penal por referência ao artigo 202º, a) do mesmo diploma legal.

Do crime de abuso de confiança qualificado

Estatui-se no artigo 205º do Código Penal que:

“Abuso de confiança

1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - A tentativa é punível.

3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - Se a coisa ou o animal referidos no n.º 1 forem:

(…)

b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”

O conceito de valor consideravelmente elevado é dado pelo artigo 202º, b) do Código Penal, de acordo com o qual é aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

A unidade de conta, que serve para exprimir o valor da taxa de justiça, é atualizada anual e automaticamente de acordo com o indexante dos apoios sociais (IAS), devendo atender-se, para o efeito, ao valor da UC respeitante ao ano anterior, nos termos do artigo 5º, nº2 do Regulamento das Custas Processuais.

De acordo com o artigo 22º do decreto que aprovou o Regulamento das Custas Processuais – Decreto-Lei nº34/2008, de 26-02 – na data da sua entrada em vigor [que ocorreu em 20 de abril de 2009, conforme dispõe o artigo 26º do Decreto-Lei nº34/2008], a unidade de conta foi fixada em um quarto do indexante dos apoios sociais (IAS) vigente em dezembro do ano anterior, arredondada à unidade Euro, devendo ser atualizada anualmente com base na taxa de atualização do IAS.

Para o ano de 2008 o IAS foi fixado em €407,41, de acordo com a Portaria nº9/2008, de 03-01. Por conseguinte, 1/4 desse valor é €102,00, ou seja, é este o valor da unidade de conta a partir de 20 de abril de 2009, que se mantém imutável até à presente data.

Assim, para efeitos penais, a partir desta data, valor consideravelmente elevado passou a corresponder à quantia de 20.400,00€ (=200x102,00€).

O bem jurídico tutelado por este tipo legal de crime é o património. Refere Figueiredo Dias (em anotação ao tipo legal de crime da apropriação, in CCCP, Coimbra, 1999, p. 94, §1) que aqui protege-se exclusivamente a propriedade, por oposição ao crime de furto em por via do qual, além da propriedade, se protege a incolumidade da posse ou da detenção de uma coisa móvel.

No que concerne aos elementos objetivos do tipo, traduzem-se os mesmos na atuação do agente que, em virtude de ato ou negócio jurídico com a obrigação de proceder à sua devolução ao transmitente ou a terceiro recebe certa coisa móvel e que faz a coisa sua, através da prática de atos de que resulte inequivocamente a inversão do título da posse ou da detenção, revelado numa conduta externa incompatível com a vontade de restituir a coisa, tal como, a recusa ou a omissão de entrega depois de interpelado para o efeito (neste sentido vide Figueiredo Dias, in ob. cit. CCCP, §34).

A referência a coisa móvel excluiu os créditos e quaisquer outros direitos, que não são coisas nem em sentido material, nem em sentido jurídico, do objeto do crime.

A coisa móvel tem de ser alheia, decorrendo esta exigência do elemento típico da “apropriação”, atenta a circunstância do preceito não o referir expressamente.

A este propósito refere Figueiredo Dias (in ob. cit. p. 98, §10), que o critério decisivo é aquele que é fornecido pelo direito civil, sendo segundo este, “alheia” toda a coisa que “pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente, sendo por isso integrado o elemento típico em exame por coisas de que o agente é (apenas) comproprietário” (itálicos do Autor) (em sentido diferente, entendendo que apenas se verificará o crime quando a coisa não for divisível sem prejuízo para o seu valor ou, sendo divisível, o comproprietário subtrai mais do que o seu quinhão vide Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário ao Código Penal”, UCE, 5ª ed., p. 885, n.15 por remissão da n. 5, p. 902), o que não sucederá nos casos de “património coletivo”, por caber a cada uma das pessoas o direito por completo, exceto quando se verifique a divisão em quotas ideais e o agente ultrapassar a divisão feita.

Aliás, tendo a doutrina entendido de forma unânime que a coisa vendida com reserva de propriedade (cfr. artigos 409º e 93º do Código Civil) constitui, à luz da lei penal “coisa alheia” e se e enquanto a reserva persistir, pode o comprador incorrer na prática do crime de abuso de confiança, desde que preenchidos os demais elementos típicos.

A entrega da coisa por título não translativo da propriedade implica que o agente no momento da apropriação já tenha a posse ou a detenção da coisa, mas não a propriedade.

Ao referir-se a posse ou a detenção, não pretende o legislador reenviar o intérprete para o exato conteúdo jurídico dos conceitos de posse e detenção, exigindo a lei a “entrega”, significando que tais conceitos devem aqui ser entendidos mais latamente e que deve fazer-se equivaler ao recebimento de uma coisa móvel constitutivo de uma relação fática de domínio sobre ela (cfr. Figueiredo Dias in ob. cit. p. 100, §14 e 15).

A entrega não tem de traduzir-se num ato material, antes pode ocorrer por força da lei, por entrega legal, dando aquele Autor com exemplo um testamento que, por morte do testador, é “legalmente” entregue ao testamenteiro.

O título não translativo da propriedade incluiu todo e qualquer ato ou negócio jurídico pelo qual o agente é investido material ou apenas formalmente no poder de disposição da coisa e fica obrigado à sua devolução ao transmitente ou a um terceiro.

Incumbe ao direito privado dizer quais os títulos que integram a tipicidade. No Código Penal de 1886 fazia-se uma enumeração dos títulos que podiam dar origem ao crime de abuso de confiança, mas de forma meramente exemplificativa, por àquela enumeração se seguir uma cláusula geral. Todavia, por naquela redação se fazer menção à obrigação de restituição em “valor equivalente”, e em particular quando se tratava de dinheiro, vários equívocos jurisprudenciais e doutrinais ocorreram.

Tendo em vista evitar tais erros, a redação atualmente consagrada não visa afastar a enumeração anteriormente feita, nem o seu caráter meramente exemplificativo, antes tendo o legislador adotado uma formulação geral, mas sem aquela menção, afastando assim, as meras violações do direito de crédito do âmbito da norma.

Daí que se nos afigure impróprio, como advoga a defesa, que apenas os títulos equivalentes aos anteriormente previstos (v. g. depósito, mandato, comissão, administração, comodato ou que tenha haja sido recebido para trabalho, ou emprego determinado) possam integrar a previsão normativa por apenas estes não implicarem uma transmissão da propriedade, entendida esta em sentido amplo.

Com efeito, regressando ao bem jurídico protegido pelo tipo de crime de abuso de confiança – exclusivamente a propriedade – s. m. o. não pode entender-se que a norma não protege a propriedade perante direitos reais inferiores, ainda que tenham características parcialmente comuns, mas não iguais, àquele.

A transmissão da coisa por via da constituição do usufruto não implica a transferência da propriedade, nem a posse legítima e em nome próprio que o usufrutuário tem lhe confere a qualidade de proprietário.

Recorrendo à definição legal de “posse”, verifica-se que decorre do artigo 1251º do Código Civil que “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”

Ora, o usufruto é, de acordo com a noção legal do artigo 1439º do Código Civil, o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância, ou seja, um direito real distinto e inferior ao direito de propriedade, não podendo o seu titular dispor da coisa. Donde o respetivo título constitutivo insere-se na previsão normativa do artigo 205º do Código Penal quando se refere ao “título não translativo da propriedade”.

De outra perspetiva, afigura-se-nos que, para sustentar uma interpretação ampla do conceito de propriedade, não se pode invocar o AUJ nº7/2011, de 27.04, por via do qual foi uniformizada a jurisprudência no sentido de que:

No crime de dano, previsto e punido no artigo 212º, nº1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa «destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada», e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afetado no seu direito de uso e fruição.”

Na verdade, ali apenas se fixou uma interpretação relativamente a uma questão estritamente processual, que respeita unicamente à legitimidade para apresentar a queixa, e somente se equiparou o possuidor que se encontra no gozo da coisa de forma legítima ao proprietário, na medida em que aquele for afetado no seu direito e nunca contra o proprietário da coisa.

A apropriação, enquanto elemento objetivo do crime de abuso de confiança, traduz-se na inversão do título da posse ou detenção através de um ou mais atos concludentes do agente de que resulte inequivocamente a intenção do agente fazer coisa sua a coisa, como por exemplo, quando o agente a coloca à venda, aliena, penhora ou doa a coisa ou recuse a restituição ou a omita quando interpelado para o efeito.

Acresce ainda, de acordo com os ensinamentos da doutrina, um elemento novo para, além da apropriação, a relação de fidúcia que existe entre o agente e o proprietário ou entre o agente e a própria coisa que importa o especial dever de restituir a coisa.

Relativamente aos elementos subjetivos, o tipo legal de crime em causa admite qualquer modalidade de dolo.

Da matéria de facto dada como provada, resulta que a arguida, no circunstancialismo de tempo, lugar e modo descrito nos factos provados, por via de testamento, lhe foi transmitida a posse, para que exercesse o direito de usufruto que lhe foi deixado, dos bens que compunham o recheio da Casa ..., melhor identificados nos factos provados, além de outros, e procedeu à venda a terceiros de uns e retirou outros da Casa ... e levou-os a sua residência.

Relativamente ao requisito de coisa móvel, o mesmo encontra-se preenchido por se tratar de mobiliário, objetos de decoração e vestuário, face à definição de coisa móvel dada pelos artigos 204º a contrario e 205º do Código Civil.

No que se refere ao carácter alheio da coisa, verifica-se que a arguida não detém nenhum direito de propriedade sobre os bens, conforme resultou apurado, pelo que, ainda que tenha direito a ter tais bens na sua posse, não os pode alienar, e, por isso, são-lhe os mesmos alheios.

A referida transmissão por não representar, de forma alguma, a transferência da propriedade, tendo esta sido transmitida, pela mesma via do testamento, a terceiro, in casu, aqui assistente/demandante, não legitima a apropriação da coisa.

Com efeito, ainda que a transmissão legitime a posse dos referidos objetos, esta tem de ser exercida de acordo com o conteúdo estabelecido na lei para o usufruto, ou seja, nunca pode legitimar atos de disposição da coisa, pois que, a mesma tem de ser restituída ao proprietário findo o prazo do referido direito.

É que ainda que o usufruto comprima e coexista com a propriedade, não se confunde com esta. Daí que esteja vedado ao usufrutuário a venda do bem objeto do usufruto.

Os atos de disposição praticados (venda e deslocação para a sua residência) são, aliás, inequívocos de inversão do título da posse, nomeadamente da arguida ter passado a possuir a coisa não como usufrutuária, mas como proprietária, retius, são inequívocos da intenção da arguida se apropriar dos bens do demandante, na qualidade de proprietária.

Esclarece ainda Figueiredo Dias (in ob. cit., pp. 103 e 104, § 22 a 25) que “Sob que forma deve concretamente manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que (…) se revele por atos concludentes que o agente inverteu o título da posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário”.

Por último, no que refere à relação de fidúcia, estatuindo-se na lei que o usufruto é temporário (cfr. artigo 1439º do Código Civil) e que tem a duração prevista no negócio jurídico, nunca podendo exceder a vida do usufrutuário (cfr. artigo 1443º do Código Civil), é claro o dever de restituição no seu termo.

No caso concreto, verifica-se também existir essa relação de fidúcia por o transmitente do usufruto ter determinado, no testamento, que no seu término, os bens deveriam ser entregues ao Município ..., na qualidade de nuo proprietário. Relação que foi violada na medida em que a venda e a deslocação dos bens com o fito de os tornar seus, impede a sua entrega.

Assim, por todo o exposto, verifica-se o preenchimento de todos os elementos objetivos do tipo legal de abuso de confiança do artigo 205º, nº1 do Código Penal.

Sendo o conjunto dos bens de valor consideravelmente elevado, por corresponder a mais de 200 unidades de conta (=20.400,00€), igualmente se encontra preenchido o elemento que determina a agravação da pena nos termos do nº4 do artigo 205º, por referência ao artigo 202º, b) do Código Penal.

Tendo ficado demonstrado que a arguida quis apropriar-se dos referidos bens, apesar de saber que não lhe pertenciam e que havia a obrigação de os entregar ao Município ... findo o direito do usufruto, verifica-se igualmente o preenchimento dos elementos subjetivos do tipo.

Resultou ainda provado que a arguida sabia que a sua conduta era contrária ao Direito, verificando-se, por isso, que agiu com culpa.

Inexiste qualquer causa de exclusão de ilicitude ou culpa considerando que atuou de forma livre, deliberada e consciente.

Em consequência, deverá ser condenada pela prática do crime de abuso de confiança qualificado que vinha pronunciada.

Relativamente à questão suscitada da inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o usufrutuário quando dispõe dos bens que lhe forem entregues para gozo do direito que lhe confere aquela denominação é inconstitucional por violação do princípio da tipicidade, face ao que se acaba de expor, não se pode julgar a mesma procedente. Antes, entende-se que a hipótese do usufrutuário poder transmitir a propriedade de uma coisa, que não é sua, por via de um contrato de compra e venda sem que incorra na prática de um crime de abuso de confiança é que corresponderia a uma interpretação ilegal e essa sim inconstitucional por desproteção do bem jurídico da propriedade consagrado no artigo 62º da Lei Fundamental que o tipo legal do crime de abuso de confiança do artigo 205º do Código Penal visa proteger.

Se é certo que o legislador prevê sanções civis para o uso indevido da coisa pelo usufrutuário, tais como o direito de exigir que lhe seja entregue a coisa consagrado no artigo 1482º do Código Civil (neste sentido vide Rui Pinto Duarte, O “mau uso por parte do usufrutuário”, em especial no tocante ao usufruto de participações sociais, in https://arevista.stj.pt/wp-content/uploads/2023/07/a-REVISTA-MIOLO-03.pdf, citado pela defesa), não é menos correta a asserção de que tal não importa o afastamento das sanções criminais tout court. Ainda que estas se devam restringir aos casos mais graves de lesão dos bens jurídicos protegidos, não se alcança, como se possa negar a tutela penal do proprietário que vê desaparecer a coisa sobre a qual incide o seu direito pela apropriação ilegítima de quem não tem o direito de dispor da mesma (sendo que s. m. o. não se alcança que aquele Autor o defenda)..

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Decidindo a questão objeto do recurso

Condenada pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, a recorrente alega que os respetivos elementos típicos não se mostram preenchidos. Em síntese, argumenta que sendo usufrutuária vitalícia dos bens móveis que alienou, jamais poderia cometer tal delito, porquanto tais bens não lhe foram entregues “por título não translativo da propriedade”.

Vejamos.

Nos termos do disposto no n.º 1 do referido art.º 205.º do Código Penal, pratica o crime de abuso de confiança quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade. Dai radicando o tipo objetivo de ilícito, como escreve Jorge de Figueiredo Dias, o objeto da ação é por isso, tal como no furto, uma coisa móvel alheia[1]. Porque cabe ao direito civil decidir do carácter alheio da coisa, será alheia toda a coisa que, segundo esse direito, pertence “pelo menos em parte”, a outra pessoa que não o agente[2]. Quanto à conduta típica, reside na apropriação ilegítima dessa coisa alheia, que, nas palavras da lei, tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade. No momento da apropriação, o agente tem a posse ou a detenção da coisa, mas não a propriedade. A entrega não tem que traduzir-se em um acto material, antes pode ser uma entrega que ocorre por força da lei e, neste sentido, uma entrega legal (…). Ponto é em todo o caso, evidentemente, que à entrega da coisa corresponde o seu recebimento pelo agente…[3]. Pertence também ao direito privado dizer o que seja título não translativo da propriedade, elemento nuclear da conduta típica[4] que a recorrente diz não se verificar. Quanto ao elemento típico apropriação, como também escreve Jorge de Figueiredo Dias[5], traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (…): o agente, que receberá a coisa “uti alieno”, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objetivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – “uti dominus”; é exatamente nesta realidade objetiva que se traduz a “inversão do título da posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação. Necessário é, pois, que o agente por actos concludentes, inverta o título da posse e passe a comportar-se perante a coisa “como proprietário”. Em suma, como assinala o citado autor[6], no abuso de confiança o agente terá que se apropriar da coisa para si (…). O que evidentemente sucede quando dá a coisa a outra pessoa, seja gratuitamente ou contra uma qualquer vantagem.

O usufruto encontra-se previsto no art.º 1439.º do Código Civil, traduzindo-se no direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância. A lei é clara no sentido de que o poder de uso e fruição da coisa atribuído ao usufrutuário é de duração temporária e se encontra condicionado por uma série de limites negativos. Como escreve José Alberto C. Vieira[7], o usufrutuário tem o gozo pleno da coisa, o que significa que enquanto o usufruto durar o proprietário fica inibido de a gozar. (…) Fala-se então em nua propriedade ou em nu proprietário para mencionar a propriedade cujo direito esteja onerado com um usufruto. Todavia, essa compressão do direito de propriedade não afeta o seu conteúdo residual. O proprietário é e continua a ser o titular do direito de propriedade e não o usufrutuário[8], o que faz toda a diferença para a questão que nos ocupa. Temos, pois, como sublinha José Alberto C. Vieira[9], que o usufruto não pode ser assimilado à propriedade, mesmo que temporária, o que, aliás, não tem arrimo no Direito positivo. Assim, desde já se adianta que o usufrutuário, como facilmente se alcança da própria definição legal do instituto e dos poderes que confere, não pode proceder à alienação do direito de propriedade, que continua a pertencer ao proprietário, mas apenas a disposição [trespasse] do próprio direito de usufruto, e ainda assim com limitações (art.º 1444.º, n.º 1, do Código Civil). Aliás, se lhe fosse possível alienar a coisa que usufrui ficaria esvaziada a obrigação de a restituir ao proprietário findo o usufruto (art.º 1483.º do Código Civil).

Aqui chegados, considerando os elementos típicos do crime de abuso de confiança e os poderes conferidos ao usufrutuário pelo instituto do usufruto, que, como vimos, não afetam o nucleo essencial da propriedade, facilmente se alcança que a conduta da arguida preenche os elementos típicos da norma incriminatória do art.º 205.º do Código Penal. Com efeito, os bens móveis que alienou foram-lhe entregues por título não translativo da propriedade, na medida que apenas lhe foram entregues para uso e fruição temporária. Não os podia, pois, alienar, desde logo porque não era proprietária. Muito embora o direito de propriedade tenha ficado comprimido, não se extinguiu, nem passou para a esfera da arguida. Temos, assim, que a criativa argumentação desenvolvida no recurso esbarra por completo na própria definição legal do instituto do usufruto e nos poderes que este confere ao usufrutuário. E esbarra, também, na doutrina e na jurisprudência. Aliás, importa referir que nenhuma da doutrina convocada no recurso advoga que o usufrutuário tem o direito de alienar a titulo definitivo os bens que lhe foram entregues temporariamente, pelo que, com todo o respeito, não se compreendem as inúmeras citações doutrinárias que constam da motivação. A terem alguma relevância, seria em sentido contrário ao que é defendido. É certo que a arguida podia onerar o seu direito, e até trespassá-lo. Todavia, a lei refere-se ao seu direito de usufruto e não, como é de elementar evidência, ao direito de propriedade, que, como é entendimento pacifico na jurisprudência e na doutrina, não é dela e se mantém intacto na esfera de outrem. Que assim é resulta desde logo da obrigação de restituir a coisa ao proprietário findo o usufruto, prevista no art.º 1483.º do Código Civil. Como poderia fazê-lo se alienou os bens que recebeu enquanto usufrutária? Como resulta, também de outras obrigações do usufrutuário, como sejam a obrigação de relacionar os bens antes de tomar conta dos mesmos e prestar caução, se esta lhe for exigida (art.º 1468.º do Código Civil) e a obrigação de avisar o proprietário de qualquer facto de terceiro que possa lesar os direitos daquele (art.º 1475.º do Código Civil). In casu, o facto lesivo do direito de propriedade, como é obvio, foi a própria venda dos bens feita pela arguida, diga-se que ilegalmente.

Em suma, os bens alienados pela arguida foram-lhe entregues por título não translativo da propriedade. Essa entrega, para mero uso e fruição, foi temporária, considerando a natureza do instituto do usufruto. Ao alienar onerosamente os bens, vendendo-os, a arguida apropriou-se ilegitimamente dos mesmos. Assim entende Jorge de Figueiredo Dias, entendimento que acompanhamos.

Quanto à alegação de que o Município ... não é legitimo proprietário dos objectos em questão, isto é, dos bens alienados pela arguida, em nada releva para efeitos de preenchimento do tipo. Com efeito, como referimos, a arguida não era nem é proprietária dos mesmos, e isso é que releva. De todo o modo, como assinala o Ministério Público na resposta ao recurso, o mesmo fazendo o Município ..., a propriedade do Município foi dada como provada no acórdão recorrido, não tendo sido impugnada no recurso. De qualquer forma, importa referir que a condição e a obrigação referidas em iii. do ponto 1. dos factos provados diz respeito aos bens imóveis.

Considerando todo o exposto, não vemos em que se mostra violado o disposto nos art.ºs 18.º, n.ºs 1 e 2 [princípios da adequação, da necessidade e da subsidiariedade da intervenção penal], 29.º, n.ºs 1 e 3 (princípio da legalidade, na sua vertente de princípio da tipicidade], 203.º, todos da CRP, ou qualquer outro princípio ou norma constitucional ou de direito ordinário.

Nenhuma censura merece, pois, o acórdão recorrido, improcedendo o recurso.


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Sumário:
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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.


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Sem custas.

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Porto, 5 de Fevereiro de 2025
José António Rodrigues da Cunha
Isabel Namora
Maria Dolores da Silva e Sousa
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[1] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 97.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, loc. cit. pág. 98.
[3] Jorge de Figueiredo Dias, loc. cit. págs. 99 e 100.
[4] Jorge de Figueiredo Dias, loc. cit. pág.102.
[5] loc. cit. pág.103.
[6] loc. cit. pág.103.
[7] Direitos Reais, 2008, págs. 748 e 749.
[8] Luis Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, 2.ª edição, pág. 331.
[9] Para começar, a nua propriedade, mesmo despojada do seu núcleo fundamental de gozo, continua a ser propriedade e o Direito português não admite duas propriedades conflituantes senão no modelo da compropriedade. A propriedade constitui um direito exclusivo (art. 1305.º). Depois, porque mesmo que o proprietário renuncie ao seu direito o usufrutuário não se torna proprietário pleno, ficando a coisa “nullius”, se for móvel, ou propriedade do estado, se for imóvel (art. 1345.º). A elasticidade do usufruto não compreende a sua extensão para propriedade plena em caso de extinção da propriedade. Loc. cit., pág. 771.