DESPEDIMENTO
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
IRREVOGABILIDADE
Sumário

1. A decisão de despedimento configura declaração receptícia que se torna eficaz logo que chega ao poder do destinatário (art.º 224º, nº 1 e 230º, nº 1, do Código Civil).
2. Tal declaração não pode, por isso, ser revogada.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:

I- Relatório
Na presente acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento que AA move contra “XX, Lda.” foi junta aos autos pela entidade empregadora a seguinte missiva dirigida ao trabalhador:



Com a junção (em 24.09.2024) da referida missiva a entidade empregadora informou que notificara o trabalhador da “deserção da decisão final” e do “prosseguimento do processo disciplinar”. Requereu ainda: «a deserção do presente processo, por inutilidade superveniente da lide, prosseguindo-se os ulteriores termos processuais até final.»
O trabalhador pugnou pela improcedência da pretensão da entidade empregadora e pela declaração de ilicitude do despedimento.
Pela Exmª Juiz a quo foi proferida a seguinte decisão:
«Requerimento de 24 de Setembro de 2024:
Uma vez que a Ré comprovou que deu sem efeito a decisão cuja impugnação se pretende com os presentes autos, os mesmos deixaram de ter objecto, tornando-se impossível o seu prosseguimento, pois o processo disciplinar ainda está em curso e virá a ser produzida nova decisão disciplinar.
Face ao exposto, ao abrigo do artigo 277º, alínea e) declaro extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Custas a cargo da Ré, por ter dado causa à impossibilidade.»
*
O autor recorreu desta decisão e formulou as seguintes conclusões:
1 - O presente recurso tem por objecto o Douto Despacho do Tribunal a quo que declarou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide na sequência do requerimento que a empregadora atravessou aos autos, no prazo que dispunha para motivar o despedimento, requerimento que se transcreve: “XX, Lda., R. nos autos à margem referenciados, na sequência da realização da Audiência de Partes, e da sua frustração, vem Mui Respeitosamente, juntar aos autos comunicação endereçada ao A., notificando o mesmo da deserção da decisão final, e o prosseguimento do processo disciplinar. Assim e face ao exposto, requer-se a V. Exa. a deserção do presente processo, por inutilidade superveniente da lide, prosseguindo-se os ulteriores termos processuais até final.
2 - Ao antedito, o Trabalhador dirigiu ao Tribunal o seguinte requerimento: “1.º Vem a Entidade Empregadora requerer a deserção da decisão final e o prosseguimento do processo disciplinar, requerendo a deserção do presente processo, por alegada inutilidade superveniente da lide.
2.º Tal pretensão é totalmente desprovida de fundamento de facto e de direito, devendo a mesma ser considerada totalmente improcedente.
3.º Na verdade, o processo disciplinar é um processo formal que culminou/terminou com a comunicação da decisão final ao trabalhador, que in casu, foi o despedimento.
4.º Despedimento esse que se efectuou, consumou, concretizou com a comunicação feita pela empregadora ao trabalhador, cessando dessa forma o contrato de trabalho.
5.º Houve uma comunicação de vontade da entidade empregadora, feita por escrito (decisão do despedimento junta ao formulário de impugnação) de despedir o trabalhador, feita de forma inequívoca, expressa em palavras (carta), de tal forma clara que não permite outro significado razoável.
6.º Impõe-se que, com os elementos existentes, o homem médio sempre tire a conclusão de que um dos sujeitos da relação jurídico-laboral manifestou, de forma definitiva, a vontade de pôr fim ao contrato de trabalho.
7.º É aliás o que nos diz a teoria da impressão do destinatário consignada no art.º 236º nº 1 do Código Civil.
8.º Na decisão final no processo disciplinar, ponto 33 a entidade empregadora diz, de forma expressa e objectiva: “Perante os factos dados como provados e as considerações aduzidas, propõe-se que seja aplicado ao funcionário, ora arguido, a pena de despedimento sem indemnização ou compensação, nos termos e para os efeitos do artigo 328º nº 1 f) do Código de Trabalho “.
9.º A decisão do despedimento do trabalhador não foi dada sem efeito pela empresa, que manteve o despedimento, tendo reiterado a sua posição em sede de audiência de partes que teve lugar, nos presentes autos, no transacto dia 10 de setembro: “ DE seguida a Mmª Juiz deu a palavra ao ilustre Mandatário da Entidade Empregadora para os efeitos previstos no artigo 98-I nº 1 do Código do Processo de Trabalho, tendo o mesmo declarado que a Empregadora mantém a decisão constante dos autos “.
10.º Não pode nem se encontra consignado legalmente a possibilidade do empregador, dar sem efeito uma decisão do despedimento, para com isso prosseguir com o procedimento disciplinar, e dessa forma corrigir vícios/erros que determinam a nulidade do procedimento disciplinar.
11.º Acresce referir que, ao contrário do que pretende a Ré, não existe qualquer inutilidade superveniente da lide.
12.º A lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.
13.º No caso em apreço, com a presente Acção Impugnação da Regularidade e Licitude do Despedimento, a questão a decidir pelo Tribunal é precisamente a licitude ou ilicitude do despedimento.
14.º Em sede de ação especial de impugnação judicial da licitude e regularidade do despedimento, frustrada a tentativa de conciliação, na audiência de partes, o juiz: procede à notificação imediata do empregador para, no prazo de 15 dias, apresentar articulado para motivar o despedimento, juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas (…) – cfr. art.º 98º-I, nº 4, al. a) CPT.
15.º Se a decisão tiver como fundamento motivo disciplinar, isto é, facto imputável ao trabalhador, cabe ao empregador apresentar o processo disciplinar, na medida em que o despedimento, sob pena de invalidade, deve ser sempre procedido do processo disciplinar.
16.º Se o empregador não apresentar o articulado referido no número anterior, ou não juntar o procedimento disciplinar o Juiz declara a ilicitude do despedimento com a cominação estabelecida no art.º 98.º-J n.º 3, declarando imediatamente a ilicitude do despedimento.
17.º Nos termos do art.º 98º-J, nº 3, do CPT, a não apresentação pelo empregador do articulado motivador ou a não junção do procedimento disciplinar, determina a declaração imediata da ilicitude do despedimento do trabalhador.
18.º No caso, a Entidade empregadora nada fez, pelo que deve ser declarada a ilicitude do despedimento, o que se requer “.
3 - A Mmª Juiz proferiu Douto Despacho declarando extinta por impossibilidade superveniente da lide, porquanto a entidade empregadora deu sem efeito o despedimento, prosseguindo com o processo disciplinar, considerando que os autos deixaram de ter objecto, despacho de que se recorre e que se transcreve:
“Requerimento de 24 de Setembro de 2024: Uma vez que a Ré comprovou que deu sem efeito a decisão cuja impugnação se pretende com os presentes autos, os mesmos deixaram de ter objecto, tornando-se impossível o seu prosseguimento, pois o processo disciplinar ainda está em curso e virá a ser produzida nova decisão disciplinar.
Face ao exposto, ao abrigo do artigo 277º, alínea e) declaro extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Custas a cargo da Ré, por ter dado causa à impossibilidade. Atenta a decisão supra, dou sem efeito a realização da audiência de julgamento agendada para o próximo dia 14 de Janeiro de 2025. Notifique “.
4 – Do transcrito Despacho, com a devida vénia e respeito, não pode o Trabalhador conformar-se, afigurando-se que ao decidir da forma supra, a Mmª Juiz não fundamentou a sua decisão, não fez uma correta interpretação e aplicação dos preceitos legais atinentes, sendo a mesma nula nos termos do art.º 615º nº 1 a. b) do Código do Processo Civil.
5 - O despedimento configura uma declaração de vontade unilateral, recepienda, vinculativa e constitutiva, dirigida ao trabalhador, com o fim de fazer cessar o contrato de trabalho para o futuro – artigo 357º nº 7 do Código do Trabalho e artigo 224º do Código Civil.
6 – Essa declaração de vontade unilateral, expressa ou tácita, terá de ser enunciada em condições de não suscitar dúvida razoável sobre o seu verdadeiro significado; é, assim, necessário que o empregador declarante – por escrito – verbalmente ou até por mera atitude – denote ao trabalhador declaratário, de modo inequívoco, a vontade de extinguir a relação de trabalho (art.º 217º do Código Civil).
7 - Conforme carta da entidade empregadora, acompanhada do relatório final que é dirigida ao trabalhador, a mesma refere expressamente: “
“ …. A gerência da XX, Lda., fundamentando-se no relatório final, de que se remete em anexo, uma cópia, e que se dá por reproduzida, deliberou aplicar a V.ª Exa a sanção prevista no artigo 328º nº 1 al. f), do Código do Trabalho, ou seja, despedimento sem indemnização ou compensação ( sublinhado nosso), tratando-se de uma declaração unilateral, expressa, inequívoca, enunciada em condições de não suscitar dúvidas sobre o seu verdadeiro significado: o de fazer cessar o contrato de trabalho e que se tornou eficaz quando conhecida pelo Trabalhador.
8 - Desse modo, cessou o contrato de trabalho, com a comunicação da entidade empregadora, sendo irrelevante se a empresa decidir depois voltar atrás no processo disciplinar. A conduta da empregadora não tem fundamento legal.
9 - A reversão do despedimento após a sua comunicação é, pois, impossível. Quando muito, poderia a Entidade Empregadora dar sem efeito a decisão do despedimento, anulando-a e reintegrando o trabalhador no seu posto de trabalho, o que não logrou fazer, antes pelo contrário, reiterou a sua posição em sede de audiência de partes, conforme resulta da ata de 10 de setembro de 2024: “ a Mmª Juiz deu a palavra ao ilustre Mandatário da Entidade Empregadora para os efeitos previstos no artigo 98-I nº 1 do Código do Processo de Trabalho, tendo o mesmo declarado que a Empregadora mantém a decisão constante dos autos “.
10 - Mal andou o Tribunal a quo ao determinou a extinção da instância, já que dos autos não se retira qualquer justificação para a impossibilidade superveniente da lide.
11 - Não pode o Tribunal a quo, como fez, considerar que os presentes autos deixaram de ter objeto, pelo facto da Entidade Empregadora ter dado sem efeito a decisão disciplinar e prosseguir o processo disciplinar, concluindo pela inutilidade superveniente da lide, já que a lide torna-se inútil se ocorre um facto ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.
12 – O que não sucedeu no caso sub judice, já que o despedimento consolidou-se na esfera do trabalhador com a comunicação expressa feita pela Empregadora, e por conseguinte a lide permanece atual e relevante, podendo o trabalhador impugnar a decisão e invocar a ilicitude do despedimento.
13 - Acresce ainda que a sentença foi proferida em sede do Despacho de que se recorre sem que tivesse sido dada oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade da extinção da instância.
14 - Não o tendo feito, o Tribunal a quo cometeu uma nulidade, nos termos do artigo 615º do Código de Processo Civil, por omissão de um ato que a lei expressamente determina e que influiu diretamente na decisão da causa, resultando numa decisão surpresa.
15 - Ora, a proibição das “decisões-surpresa”, que resulta do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, constitui uma garantia cuja manifestação predominantemente se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão. Verificando-se uma em concreto, uma situação deste tipo, deve o tribunal criar condições para o exercício do contraditório em fase de uma potencial decisão de indeferimento, em momento anterior à decisão e seja qual for a fase que o processo esteja a atravessar, o que não fez.
16 - A decisão recorrida é violenta, excessiva e desproporcionada, prejudicando, assim, o direito de acesso aos tribunais e à Justiça por banda do Trabalhador/recorrente, pelo que é inconstitucional por violação do citado n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
17 - Viola, assim, por erro de julgamento e de aplicação do direito, o preceituado nos artigos 357º nº 7, 387º do Código do Trabalho, artigos 224º, 217º do Código Civil, artigo 3º nº 3º e do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
18 - Assim, e de harmonia com todo o exposto, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão que ordene o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito dos mesmos.
Nestes termos e nos mais de direito que mui doutamente serão supridos, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e em consequência ser proferido douto Acórdão que revogue a decisão recorrida e ordene o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito dos mesmos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
*
II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso:
- Se a decisão recorrida padece do vício de nulidade;
- Se não ocorre impossibilidade superveniente da lide.
*
III- Apreciação
Invoca o recorrente o vício de nulidade previsto na alínea b) do nº 1 do art.º 615º do CPC.
Da análise da decisão recorrida (acima transcrita) verificamos que a mesma indicou os fundamentos de facto e de Direito, pelo que não padece do vício de nulidade.
Invoca ainda o recorrente o vício de nulidade, por não ter sido assegurado o exercício do contraditório (art.º 3º, nº 3, do CPC).
Verificamos que o requerimento da entidade empregadora que invocou a inutilidade superveniente da lide foi notificado o trabalhador
O trabalhador deduziu oposição ao requerido.
Foi, por isso, assegurado o exercício do contraditório.
Improcede, desta forma, a arguição do vício de nulidade.
*
Vejamos, agora, se ocorre impossibilidade da lide (art.º 277º e) do CPC).
Ora, a entidade empregadora notificou o trabalhador do despedimento. Trata-se de uma declaração receptícia que se torna eficaz logo que chega ao poder do destinatário. Tal declaração não pode ser revogada - arts. 224º, nº1 e 230º, nº1, do Código Civil (vide Acórdão do STJ de 08.01.1997 e Acórdão da Relação do Porto de 09.02.1998 e Acórdão desta Relação de 15.12.2016- www.dgsi.pt).
Importa ainda atender ao preceituado no art.º 357º, nº 7 do CT. Resulta deste preceito legal que a decisão de despedimento «determina a cessação do contrato logo que chega ao poder do trabalhador ou é dele conhecida ou, ainda, quando só por culpa do trabalhador não foi por ele oportunamente recebida».
O que significa que não ocorre, quer impossibilidade, quer inutilidade superveniente da lide.
Procede, desta forma, o recurso de apelação.
*
IV- Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo o processo prosseguir os trâmites legais.
Custas do recurso pela recorrida.
Registe e notifique.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2025
Francisca Mendes
Alda Martins
Maria Celina de Jesus de Nóbrega