INDEFERIMENTO LIMINAR
PETIÇÃO INICIAL
NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EMBARGOS DE TERCEIRO
Sumário

(da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663.º, n.º 7, do CPC)
I – A exigência legal de fundamentação de um despacho de indeferimento liminar da petição inicial (no caso, a petição apresentada nos embargos de terceiro deduzidos por apenso a procedimento cautelar de arresto) basta-se com a menção das razões que justificam o indeferimento; tendo sido feito um resumo circunstanciado das alegações de facto e de direito constantes da petição e indicados os preceitos legais tidos por aplicáveis, justificando por que se considerava inexistir fundamento legal para atender a pretensão da Embargante, não se verifica a causa de nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. b), aplicável ex vi do art.º 613.º, n.º 3, do mesmo Código.
II – A nulidade a que se refere o art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC apenas se verifica quando se constate que os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença não podiam logicamente conduzir à decisão que veio a ser tomada no segmento decisório da sentença ou quando neste se verifica uma obscuridade ou ambiguidade que torna a própria decisão ininteligível, o que não sucede ante a invocação de ambiguidade ou obscuridade decorrente de um mero lapso de escrita que consta da fundamentação.
III – Também não é de considerar nula por omissão de pronúncia [cf. art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC] a decisão de indeferimento liminar da petição de embargos de terceiro, já que apreciou o pedido formulado pela Embargante e a respetiva causa de pedir, concluindo pela falta de fundamento legal dos embargos na situação de facto alegada.
IV – Embora de acordo com o disposto no art.º 342.º do CPC, os embargos de terceiro se ajustem à defesa de qualquer direito, incluindo um direito de crédito, de que seja titular quem não seja parte na causa, desde que incompatível com a realização ou o âmbito de um ato judicialmente ordenado, como o arresto ou a penhora, não basta ao embargante invocar a titularidade do direito de crédito e a existência de penhora ou arresto em benefício de outro credor; é ainda indispensável que, conforme também resulta do disposto no art.º 346.º do CPC, o embargante alegue ser titular de um direito que obsta à realização ou ao âmbito da diligência, sendo que essa incompatibilidade se afere no plano funcional e tendo em atenção os efeitos imediatos do ato judicial em apreço.
V – Não tem cabimento legal que a Apelante pretenda usar os embargos, não para defesa de um seu (alegado) direito de crédito incompatível com a realização ou o âmbito do arresto decretado, mas antes para discutir, de forma incidental, uma questão que não constitui fundamento dos embargos de terceiro, atinente à (in)verificação do primeiro dos requisitos do arresto decretado (a probabilidade da existência do crédito), pondo em causa que a Requerente no procedimento cautelar seja credora das sociedades Requeridas, em particular da sociedade titular das contas bancárias cujos saldos foram arrestados.
VI – Tendo em atenção os factos indiciariamente provados na decisão que decretou o arresto e a forma como foi realizado, sabendo-se que tais contas foram objeto de anteriores arrestos convertidos em penhoras, é acertada a decisão de indeferimento liminar da petição dos embargos de terceiro, já que estes não servem para que a Embargante, alegada titular de um direito de crédito, possa vir discutir com a Requerente do arresto a existência do crédito que esta última se arroga, tido por verificado, de forma perfunctória, no âmbito do procedimento cautelar, tanto mais quando nada indica se o arresto “visado” irá caducar ou ser convertido em penhora e se esta credora estará em condições de vir reclamar o seu crédito nos termos dos artigos 788.º a 794.º do CPC (ou mesmo se terá interesse em fazê-lo), não estando configurado um litígio entre credores que esteja carecido de intervenção judicial, sendo que para isso melhor servirá, oportunamente, se esse for o caso, o concurso de credores, por apenso à ação executiva.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
ÁLYA CONSTRUTORA S.A., sociedade de direito brasileiro, com sede na Rua ..., Centro, CEP ..., Rio de Janeiro, Brasil, interpôs o presente recurso de apelação da decisão que indeferiu liminarmente a Petição inicial apresentada por aquela nos embargos de terceiro que deduziu por apenso aos autos de arresto requeridos pela sociedade GOLD RESERVE, INC contra (1) a República Bolivariana da Venezuela, (2) PDVSA Petróleo, S.A., (3) Petrocedeño, S.A., (4) Petromonagas, S.A., (5) Petropiar, S.A., (6) Commerchamp, S.A., (7) Seguros Horizonte, S.A., e (8) Sismica Bielovenezolana, S.A..
Os autos de arresto tiveram início, com a apresentação de Requerimento inicial, em 23-02-2024, tendo sido proferida Decisão final, em 05-03-2024, na qual se considerou resultar da matéria indiciariamente apurada que: a aí Requerente é detentora de um crédito sobre a aí 1.ª Requerida, crédito esse reconhecido por decisão arbitral transitada em julgado, fundada na violação de diversas disposições do “Acordo entre o Governo do Canadá e o Governo da Venezuela para a Promoção e Proteção de Investimentos; existe entre a 1.ª Requerida e as demais Requeridas uma confusão ou promiscuidade das respetivas esferas jurídicas, sendo a 1.ª a detentora da maioria do capital das restantes nomeadamente pela interposição de outras empresas; existe, assim, fundamento para considerar as 2.ª e restantes Requeridas também responsáveis pelas dívidas da 1.ª; não se mostra possível obter da 1.ª Requerida o cumprimento da obrigação em que já foi condenada e estão pendentes diversas ações judiciais, de idêntica natureza processual, não se conhecendo às Requeridas outros bens que possam responder pela dívida, para além daqueles sobre os quais se peticiona o arresto. Por isso, decidiu-se atender a pretensão da aí Requerente e, assim, proceder ao arresto dos direitos aos saldos presentes ou futuros, incluindo depósitos à ordem, a prazo e outros tipos de depósito e eventuais saldos de carteiras de títulos acionistas e obrigacionistas, que existem ou existiam em todas as contas da titularidade das 2.ª a 8.ª Requeridas junto do Novo Banco, S.A., até ao montante do crédito da Requerente, de USD 1.066.958.648,00 (cujo contravalor, em euros, é de 983.916.126,89 €), tendo sido então determinado que:
“Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, defiro a providência cautelar de arresto, requerida por GOLD RESERVE, INC e, em consequência determino o arresto dos o arresto dos direitos aos saldos presentes ou futuros, incluindo depósitos à ordem, a prazo e outros tipos de depósito e eventuais saldos de carteiras de títulos accionistas e obrigacionistas, que existem ou existiam em todas as contas da titularidade das 2.ª a 8.ª Requeridas junto do Novo Banco, S.A., até ao montante do crédito da Requerente, de USD 1.066.958.648,00 (cujo contravalor, em euros, é de € 983.916.126,89), nomeadamente:
(i) O direito ao saldo que existia nas contas em nome da PDVSA Petróleo, S.A. com o n.º ...908, com um saldo de USD 44.589,04 (e contravalor, em euros, de € 41.374,26); e n.º ...800, com um saldo de € 2.257,57, que estavam abertas, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e que, após essa resolução, permanecem depositados no Novo Banco, agora nas contas segregadas cujos respectivos números se desconhecem;
(ii) O direito ao saldo que existia nas contas em nome da Petrocedeño, S.A. com o n.º ...118, com um saldo de USD 448.747.206,90 (e contravalor, em euros, de € 416.393.436,86); e n.º ...002, com um saldo de EUR 43.471.551,01, que estavam abertas, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e cujos montantes, sendo em Dólares, se encontram depositados na CGD e, sendo em Euros, no IGCP, em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ), à ordem do processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 (cf. Doc. n.º 25);
(iii) O direito ao saldo que existia nas contas em nome da Petromonagas, S.A. com o n.º ...207, com um saldo de USD 121.918,47 (e contravalor, em euros, de € 113.128,39); e n.º ...905, com um saldo de € 628.825,79, que estavam abertas, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e cujos montantes, sendo em Dólares, se encontram depositados na CGD e, sendo em Euros, se encontram depositados no IGCP, em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ), à ordem do processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 (cf. Doc. n.º 26);
(iv) O direito ao saldo que existia nas contas em nome da Petropiar, S.A. com o n.º ...500, com um saldo de USD 154.869.091,81 (e contravalor, em euros, de € 143.703.342,13); e n.º ...403, com um saldo de € 16.952.070,64, que estavam abertas, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e cujos montantes, sendo em Dólares, se encontram depositados na CGD e, sendo em Euros, se encontram depositados no IGCP, em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ), à ordem do processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 (cf. Doc. n.º 27);
(v) O direito ao saldo que existia na conta em nome da Commerchamp S.A. com o n.º ...318, com um saldo de € 26.656.446,81, que estava aberta, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e cujos montantes, sendo em Euros, se encontram depositados no IGCP, em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ), à ordem do processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 (cf. Doc. n.º 28);
(vi) O direito ao saldo que existia na conta em nome da Seguros Horizonte, S.A. com o n.º ...118, com um saldo de € 671.479,91, que estava aberta, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e cujos montantes, sendo em Euros, se encontram depositados no IGCP, em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ), à ordem do processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 (cf. Doc. n.º 29);
(vii) O direito ao saldo que existia nas contas em nome da Sismica Bielovenezolana, S.A. com o n.º ...806, com um saldo de € 2,43; e n.º ...903, com um saldo de USD 2.555.413,86 (e contravalor, em euros, de € 2.371.173,67), que estavam abertas, até à resolução do respectivo contrato de abertura, no Novo Banco e cujos montantes, sendo em Dólares, se encontram depositados na CGD e, sendo em Euros, se encontram depositados no IGCP, em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ), à ordem do processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 13 (cf. Doc. n.º 30).
*
Para o efeito da concretização deste arresto, comunique:
ao Novo Banco, para arresto dos montantes que estejam depositados nesta entidade, nos termos do artigo 780.º, n.º 1, do CPC ex vi artigo 391.º, n.º 2, do CPC; e
ao processo de consignação em depósito n.º 14257/21.0T8SLB, que corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 13, para arresto dos montantes que, (i) na sequência da revogação parcial da consignação, permanecem consignados em depósito ou que, (ii) tendo sido objecto da revogação parcial da consignação, não foram ainda devolvidos ao Novo Banco, declarando-se que esses montantes ficam arrestados à ordem do presente processo para garantia do crédito da Requerente.
Porque os montantes consignados no âmbito do processo n.º 14257/21.0T8SLB, apesar de depositados em contas da titularidade do Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça (IGFEJ) (sediadas no IGCP), estão à ordem da secretaria de processos daquela acção de consignação, comunique o arresto aquele processo.”
O arresto assim decretado foi cumprido mediante comunicação ao Novo Banco (cf. a/r junto aos autos pela AE em 22-03-2024) e à secretaria de processos J13, concretamente ao processo de consignação em depósito 14257/21.0T8LSB, tendo nessa sequência sido emitido pela secretaria J 13 o termo de arresto junto a 27-03-2024.
O Novo Banco informou a AE através de carta datada de 18-03-2024 (que a AE veio juntar aos autos de arresto em 22-03-2024) nos seguintes termos (omitimos as notas de rodapé; sublinhado nosso):
“A este respeito cumpre informar V. Exa. de que os saldos de que a PDVSA Petróleo era titular foram transferidos para as duas Contas-Cliente internas abertas pelo Novo Banco, constando atualmente das mesmas os seguintes valores:

EntidadeMoedaMontantesConta origemConta Cliente
PDVSA PetróleoEUR2.257,57…800… 8595
USD44.589,04…908… 9565

No cumprimento do Ofício sob resposta, informa-se V. Exa. de que o arresto decretado foi registado pelo Novo Banco por referência aos saldos bancários acima identificados em 12 de março de 2024.
No entanto, cumpre também informar V. Exa. de que os saldos bancários objeto de arresto neste processo encontram-se sujeitos a medidas de arresto e/ou penhora anteriormente decretados, nos seguintes termos:

MedidaProcesso / TribunalRequerente / ExequenteValorData em que a medida foi notificada ao Novo Banco / Data do Ofício do AE
Arresto
convertido
em penhora
21297/21.7T8LSBPhillips Petroleum
Company Venezuela
Limited e Conocophillips
Petrozuata B.V.
EUR
1.104.235.786,37
18.12.2019
(arresto)
27.09.2021
(penhora)
Arresto
Convertido em penhora
1716/24.1T8PRTCimontubo — Tubagens e Soldadura, Lda.EUR
61.080.608,46
10.01.2020
(arresto)
17.02.2020
(reforço)
01.03.2024
(conversão
em penhora)
Arresto22906/22.6T8LSB-ABanco San Juan
Internacional, Inc.
USD
148.285.985,33
31.03.2022
(arresto)
08.03.2023
(reforço)
Arresto11579/22.6T8LSBTarant Marine, Inc.EUR
1.487.679,06
05.08.2022
Arresto25168/23.4T8LSBContrarian Em II, LP;
Contrarian Emerging
Markets, LP;
Boston Patriot Summer
ST LLC;
Polonius Holdings, LLC;
Emma 1 Master Fund, LP;
El SP, a Segregated
Account of EMAP SPC
USD
365.286.724,66
06.11.2023


Resultando da decisão proferida no procedimento cautelar identificado, anexa à notificação remetida por V. Exa., que a medida de arresto decretada abrange as não só os fundos da PDVSA Petróleo, S.A. mas também da Petrocedeno, S.A., Petromonagas, S.A., Petropiar, S.A., Commerchamp, S.A., Seguros Horizonte, S.A., e Sismica Bielovenezolana, S.A., e tendo o Tribunal ordenado que o Novo Banco fosse notificado do arresto dos montantes que se encontrem depositados junto desta entidade, mais se informa V. Exa. que, na sequência da revogação parcial da consignação pelo Novo Banco, os fundos em dólares americanos (USD) da Petrocedetio, S.A., da Petropiar, S.A. e da Petromonagas, S.A., se encontram depositados junto do Novo Banco desde o dia 2 de janeiro de 2024.”
Em 15-11-2024, a ora Apelante apresentou “Reclamação de Acto do Agente de Execução”, requerendo que fosse ordenado ao AE que considere a “precedência do crédito da Reclamante reconhecido no procedimento cautelar de arresto com o n.º 1576/24.2T8LSB” sobre o crédito da Requerente, alterando os termos do arresto em conformidade ou, caso assim não se entendesse, que fosse levantada a providência de arresto, por o mesmo ser ilícito, ou ainda caso assim não se entendesse, que o arresto fosse reduzido e levantado no montante correspondente ao crédito da Reclamante reconhecido no referido procedimento cautelar e que não se procedesse à entrega dos fundos compreendidos nos saldos bancários arrestados até que o crédito da Reclamante pudesse ser reclamado e reconhecido e graduado nos termos da lei.
Foi proferido despacho em 27-11-2024, em que se referiu designadamente o seguinte:
“Posto que a ora requerente não é parte no processo, nem a sua intervenção nos presentes autos de procedimento cautelar encontra qualquer justificação ou razão de ser legal, esta iniciativa processual não é de admitir, não havendo lugar à apreciação do aí requerido.
Cumpre acrescentar, de todo o modo, que o procedimento cautelar seguirá os seus trâmites e as consequências do arresto decretado, nomeadamente na fase de execução/reclamação de créditos (na eventualidade de o arresto decretado vir a ser convertido em penhora), serão apreciadas em sede própria que não é, seguramente, a dos presentes autos.
Pelo exposto, rejeito liminarmente as pretensões aí deduzidas.”
Na Petição Inicial de embargos, apresentada em 15-11-2024, a ora Apelante (referindo não ter podido consultar os autos de arresto e desconhecer a decisão aí proferida na sua integralidade) veio requerer a revogação da decisão judicial que determinou o arresto no que se reporta aos depósitos bancários que identifica da titularidade das sociedades PDVSA Petróleo, S.A., Petrocedeño S.A., Petropiar S.A. e Commerchamp S.A., alegando, para tanto e em síntese, que:
- A Embargante é “credora direta” das sociedades PETRÓLEOS DA VENEZUELA S.A. (“PDVSA”) e da Requerida PDVSA PETRÓLEO, conforme reconhecido por Sentença do Tribunal Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional de Paris proferida em 25 de Julho de 2023 e já transitada em julgado, que as condenou solidariamente no pagamento de uma indemnização e juros, ascendendo o valor total do crédito da Embargante a 48.183.202,90 €, a título de capital, sendo acrescido de 2.217.747,43 €, a título de juros calculados à taxa de 6% até à data de 13-06-2024, o que totalizava, à data, o valor de 50.400.950,30 €, a que acrescem juros entretanto vincendos até efetivo e integral pagamento, estando pendente na Relação de Lisboa ação de revisão e confirmação dessa sentença;
- A Embargante intentou procedimento cautelar de arresto, o qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, proc. n.º 15176/24.3T8LSB, na qualidade de “credora direta” das sociedades PDVSA e PDVSA PETRÓLEO, tendo ainda, para efeitos de responsabilização das Requeridas PETROCEDEÑO, PETROPIAR e COMMERCHAMP, recorrido à figura da desconsideração da personalidade coletiva, formando aquelas primeiras com estas duas últimas uma unidade económica, na aceção sustentada pelo Tribunal Supremo de Justicia venezuelano;
- Esse arresto foi decretado por sentença datada de 21-06-2024, relativamente (i) aos saldos bancários da titularidade das Requeridas, no NOVO BANCO, S.A., bem como de todos os títulos de crédito de que sejam titulares, designadamente ações, obrigações ou outros associados às suas contas bancárias, como forma de garantir o pagamento do valor do crédito da Requerente, até ao montante de USD 54.188.411,50, correspondente a 50.400.950,30 € (capital e juros vencidos até à presente data), conforme decretado na Decisão Arbitral; (ii) às quantias depositadas noutras contas bancárias ou de aforro da titularidade das Requeridas, em instituições de crédito sedeadas em Portugal, até aos montantes indicados na alínea a);
- Nesse seguimento, encontram-se arrestados os saldos bancários das PDVSA, PDVSA PETRÓLEO, PETROCEDEÑO, PETROPIAR e COMMERCHAMP, existentes junto do NOVO BANCO, S. A. e CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., conforme auto de arresto, lavrado em 01-07-2024 no referido procedimento cautelar com o processo n.º 15176/24.3T8LSB;
- Os saldos bancários das sociedades PDVSA PETRÓLEO, PETROCEDEÑO, PETROPIAR e COMMERCHAMP arrestados a favor da ora Embargante encontram-se, de igual modo, arrestados ao abrigo deste Procedimento Cautelar de Arresto a favor da sua Requerente;
- A Embargante é titular de direitos incompatíveis com a realização e âmbito da providência cautelar de arresto decretada nos presentes autos na qualidade de “credora direta” da PDVSA e PDVSA PETRÓLEO e, por via da desconsideração da personalidade coletiva à luz do direito venezuelano, credora das citadas sociedades que integram o GRUPO PDVSA, ao passo que a Embargada não é credora da PDVSA PETRÓLEO, PETROCEDEÑO, PETROPIAR e/ou COMMERCHAMP, donde não poderá ver arrestado a seu favor os saldos bancários destas sociedades;
- Nos termos da lei venezuelana, aplicável à responsabilização das sociedades PDVSA PETRÓLEO, PETROCEDEÑO, PETROPIAR e COMMERCHAMP, não existem fundamentos, nem legais nem jurisprudenciais, que permitam responsabilizar essas sociedades por créditos detidos contra a REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, valendo o entendimento jurisprudencial fixado do acórdão n.º 903/2004, proferido pela Câmara Constitucional desse país, em 14 de maio de 2004, no caso de INH contra as sociedades Transporte Saet La Guaira, C.A. e Transporte Saet, S.A., que ficou conhecida como o Precedente Saet, sendo o instituto da desconsideração da personalidade coletiva somente aplicável perante Grupos de Sociedades, entendidos estes como uma unidade económica, onde manifestamente não cabe o conceito de um Estado Soberano, como é a REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA;
- Logo, a Requerente do arresto Gold Reserve Inc não pode participar no concurso de credores com relação a essas sociedades, nem lograr obter a seu favor o arresto e/ou penhora dos saldos bancários das sociedades do GRUPO PDVSA.
Em abono da sua posição, a Embargante juntou o PARECER JURÍDICO, datado de 25 de Outubro de 2024, intitulado “Os direitos do credor que obteve arresto sobre bens do devedor no confronto com outros arrestos promovidos por quem não é credor do devedor (CASO ALYA CONSTRUTORA, S.A., V. PETRÓLEOS DA VENEZUELA, S.A., E PDVSA PETRÓLEO, S.A.)», do Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa LUÍS MENEZES LEITÃO (“Parecer Jurídico”), que juntou como DOC. N.º 11, e o seu Aditamento, datado de 29 de Outubro de 2024 (“Aditamento a Parecer Jurídico”), em que se refere designadamente que nem a doutrina, nem a jurisprudência venezuelana consideram que exista uma unidade económica entre as sociedades do GRUPO PDVSA e a REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, não sendo possível recorrer à doutrina da desconsideração da personalidade jurídica soberana para responsabilizar o GRUPO PDVSA por dívidas da REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA ou de entidades e sociedades públicas venezuelanas ou controladas pelo Estado, uma vez que essas entidades não fazem parte da unidade económica do GRUPO PDVSA, nos termos estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal Superior de Justicia da Venezuela, donde não é legalmente possível aos credores da REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, reclamarem os seus créditos através dos saldos bancários do GRUPO PDVSA.
Foi então proferida a Decisão recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Em consequência, rejeito liminarmente os presentes embargos de terceiro.
Custas pela Embargante.
Registe e notifique.”
Inconformada, veio a Embargante interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (que ora reproduzimos, omitindo as notas de rodapé e algumas citações):
A. Com o presente recurso, a Recorrente visa a anulação da decisão de indeferimento liminar dos embargos de terceiro proferida pelo Juiz a quo (“Sentença Recorrida”) e a sua substituição por decisão que admita liminarmente os Embargos de Terceiro em causa, determinando que eles prossigam os ulteriores termos processuais.
B. Com o devido respeito, constata-se pela análise da Sentença Recorrida que o Tribunal a quo não conheceu de todas as questões que deveria ter apreciado e que, na óptica da Recorrente, influenciariam o sentido da decisão.
C. Decidindo, não obstante, que “estas justificações não podem ser consideradas como fundamento dos embargos de terceiro”.
D. Ora, na sua petição, de forma clara e fundamentada expõe a Recorrente as razões pelas quais o arresto decretado ao abrigo do procedimento cautelar embargado deve ser tido por ilegal, não podendo produzir efeitos.
E. Sem embargo, o Julgador a quo faz tábua rasa dos argumentos da Recorrente, não especificando os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nem se pronunciando sobre questões que deveria apreciar em resultado das referidas alegações.
F. “(…)” (Acórdão do TRL, de 25.01.2024, Processo 4118/19.8T8OER-A.L1-2, Relatora a Meritíssima Juíza Inês Moura).
G. Quanto ao que o tribunal a quo pode considerar não serem as justificações suficientes para os Embargos de Terceiro, desconhece a Recorrente qual a norma de direito aplicada, quais os requisitos e pressupostos dos Embargos de Terceiro que o julgador a quo entendeu não se encontrarem verificados.
H. Tal omissão de pronúncia comportou uma real impossibilidade para a Recorrente compreender o sentido e o alcance dos fundamentos da decisão recorrida, na medida em que resulta manifestamente incompreensível para a Recorrente se o Julgador a quo teve ou não em consideração para a sua decisão toda a factualidade por si alegada e documentada.
I. A Sentença Recorrida padece de uma manifesta falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a mesma, assim como ter a decisão impugnada ficado condicionada por manifesta omissão de pronúncia, por ambiguidade e obscuridade em parte da sua fundamentação, pelo que deverá a Sentença Recorrida ser declarada nula por V. Exas., por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615º, n.º 1, alínea b do CPC) e, de igual modo, por padecer de vício de omissão de pronúncia (artigo 615, n.º 1, alínea d), 1ª parte do CPC), bem como de ambiguidade e obscuridade (artigo 615.º, n.º 1, alínea c), in fine, do CPC).
J. Conclui o Tribunal a quo que «tendo sido arrestadas contas bancárias, como é o caso dos autos, também a ora requerente teria legitimidade para embargar de terceiro. Mas isto só seria possível, naturalmente, se o alvo do arresto – os saldos das contas bancárias – constituísse património da Embargada (o que terá sido um lapso, devendo ler-se “embargante”). O que, obviamente, não é o caso, nem a requerente alega em tal sentido.»
K. Falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito e omissão de pronúncia que a Recorrente procurou ultrapassar, de forma a não prejudicar em absoluto o seu direito de recurso, tendo até que assumir a correcção de erros de redacção que parecem evidentes, como a troca de “Embargante” por “Embargada”, na frase «teria legitimidade para embargar de terceiro (...) naturalmente, se o alvo do arresto - os saldos das contas bancárias – constituísse património da Embargada».
L. Sem embargo, a referida incorrecção deve ser tida como causa de nulidade da Sentença Recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) in fine do CPC, ou seja, quando “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
M. Determina o artigo 342º, n.º 1 do CPC: “(…)”.
N. Ora, o Julgador a quo considerou essencial para a aferição da legitimidade de terceiro embargar deter esta [a Recorrente] a propriedade (“património”) dos valores arrestados (“saldos das contas bancárias”).
O. Com o devido respeito, e que é muito, tal interpretação é manifestamente desadequada e descontextualizada, na medida em que, conforme bem assinala RUI PINTO “perdido na Reforma de 1995-1996 o carácter estritamente possessório dos embargos de terceiro, pode atualmente afirmar-se que uma penhora que ofenda a titularidade do direito de crédito de terceiro pode ser impugnada por embargos de terceiro”.
P. De igual modo, LUÍS MENEZES LEITÃO, no seu douto parecer junto, refere “já a oposição mediante embargos de terceiros, apesar de não ser habitualmente aplicável neste tipo de situações, poderia teoricamente ser suscetível de utilização pela ALYA” [ora Recorrente].
Q. “Efectivamente, embora no seu modelo tradicional os embargos fossem inicialmente uma acção possessória, hoje em dia podem ser utilizados para defesa de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (art.º 342, n.º 1 do CPC), o que manifestamente ocorre se os bens forem arrestados ou penhorados em execução movida por quem não é titular de qualquer crédito sobre o GRUPO PDVSA”.
R. Conforme já decidido por este Tribunal da Relação “os embargos de terceiro (cfr. 342º e ss. do CPC) constituem o meio processual idóneo para a efetivação de qualquer direito incompatível com uma diligência de cariz executório, não tendo de ser, necessariamente, alegada a posse, mas sim um qualquer direito incompatível com a diligência judicial ordenada”.
S. Concluindo-se que, “(…)” [Acórdão da Relação de Lisboa, 11.01.2001, processo nº 0076718, www.dgsi.pt.].
T. O que a Recorrente fez alegando e aportando documentos probatórios relativos à existência de um seu direito de crédito sobre as Requeridas, cujos saldos bancários se encontram arrestados a seu favor e, de igual modo, arrestados a favor da Recorrida GOLD RESERVE, INC. não obstante esta não deter qualquer crédito sobreditas sociedades venezuelanas.
U. Neste contexto, saliente-se que “o conceito de legitimidade processual encontra entre nós previsão no artigo 30º, do qual decorre, para além do mais, que: “(…)”.
V. Assim sendo, considerando a pretensão da Recorrente – levantamento do arresto a favor da Recorrida GOLD RESERVE, INC., sobre os saldos bancários das Requeridas, sobre os quais também tem um arresto a seu favor – com o intuito de evitar a penhora de tais saldos e a participação da Recorrida GOLD RESERVE, INC. no concurso de credores das Requeridas, dúvidas não podem existir de ser a Recorrente parte legítima.
W. Uma vez que somente “ALYA [ora Recorrente] pode arrestar ou penhorar os bens das sociedades do GRUPO PDVSA sendo por isso ilegais os arrestos e penhoras efectuados nesses bens pelos credores da REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA”.
X. Recorde-se que o procedimento cautelar de arresto embargado tem na sua causa de pedir um crédito da Recorrida GOLD RESERVE, INC. contra a REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA que ascende aproximadamente a USD 913.000.000,00.
Y. “Os credores da República Bolivariana da Venezuela (...) não são credores das sociedades do GRUPO PDVSA pelo que não poderiam participar no concurso de credores em relação às sociedades deste grupo”.
Z. É “manifesto que não é possível recorrer à doutrina da desconsideração da personalidade jurídica soberana para responsabilizar o GRUPO PDVSA por dívidas da REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA ou de entidades e sociedades públicas venezuelanas ou controladas pelo Estado, uma vez que essas entidades não fazem parte da unidade económica do GRUPO PDVSA, nos termos estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal Superior de Justicia da Venezuela”.
AA. Donde, “por esse motivo, não é legalmente possível aos credores da REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, reclamarem os seus créditos através dos saldos bancários do GRUPO PDVSA”.
BB. Por conseguinte, e como enunciado no douto parecer em referência, os embargos de terceiro constituem um meio idóneo para a Recorrente fazer valer os seus direitos.
CC. Tendo a Recorrente alegado os factos que fundamentam o seu direito incompatível com o arresto embargado, apresentando prova documental e fundamentação jurídica consistente com as suas alegações, e demonstrado, no seu articulado, os fundamentos jurídicos para a procedência dos Embargos de Terceiros apresentados.
DD. Termos nos quais se considera ter a sentença recorrida incorrido em erros de julgamento, violando, designadamente, os atrás referidos artigos 30.º, 342.º e 345.º, do CPC.
Terminou a Apelante requerendo que seja dado provimento ao presente recurso, sendo:
a) Declarada nula a Sentença recorrida, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [art.º 615.º, n.º 1, al. b, do CPC] e, de igual modo, por padecer de vício de omissão de pronúncia [art.º 615, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC], bem como de ambiguidade e obscuridade [art.º 615.º, n.º 1, al. c), in fine, do CPC];
b) Revogada a decisão recorrida, nos termos e com os fundamentos expostos supra;
c) Declarada a Recorrente parte legítima dos Embargos de Terceiro;
d) Determinado ao Tribunal a quo que receba os Embargos de Terceiro, dê andamento aos ulteriores termos do processo, tendo em vista o conhecimento de mérito da pretensão da Embargante.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se o despacho de indeferimento liminar da petição de embargos é nulo por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, bem como por ambiguidade e obscuridade e padecer de vício de omissão de pronúncia – cf. art.º 615.º, n.º 1, alíneas b), c) in fine, e d), 1.ª parte, do CPC;
2.ª) Se não devia ter sido liminarmente indeferida a petição de embargos, por não ser manifesta a falta de fundamento dos embargos.
Os factos com relevância para o conhecimento do objeto do recurso são os suprarreferidos no relatório.
Da nulidade da decisão recorrida
A decisão recorrida contém um relatório em que é indicada a pretensão da Embargante e, de forma resumida, os fundamentos dessa pretensão, seguindo-se as seguintes considerações de direito:
“Cumpre apreciar, designadamente, para apreciação nos termos previstos pelo artigo 342º do C.P.C..
O objecto dos embargos de terceiros reporta-se à defesa da posse, bem como a defesa de qualquer direito de conteúdo patrimonial. O conceito de direito incompatível apura-se por via do confronto da sua estrutura com a finalidade instrumental da diligência em causa, sendo possível configurar a medida cautelar de arresto de entre os actos judicialmente ordenados de apreensão ou entrega de bens, a que se refere o nº 1 do artigo 342º do C.P.C..
Assim, tendo sido arrestadas contas bancárias, como é o caso dos autos, também a ora requerente teria legitimidade para embargar de terceiro. Mas isto só seria possível, naturalmente, se o alvo do arresto – os saldos das contas bancárias – constituísse património da Embargada (sic, trata-se de lapso de escrita, conforme assinalado pela Apelante). O que, obviamente, não é o caso, nem a requerente alega em tal sentido.
A Embargante justifica os embargos por a decisão que decretou o arresto no âmbito dos autos principais não ser a correcta quanto à desconsideração da pessoa colectiva e que o arresto decretado configura um risco sério, objectivo e real de a Embargante não poder vir a efectivar o seu crédito directo.
Ora, estas justificações não podem ser consideradas como fundamento dos embargos de terceiro: este incidente processual visa, primordialmente e antes de tudo o mais, proteger o património de quem não seja devedor e que, por isso, não tenha qualquer obrigação cujo cumprimento houvesse que acautelar.
A circunstância de a requerente ter já visto decretado um arresto anterior, a seu favor, não só em nada releva como fundamento para embargar de terceiro, como vimos, como só poderá vir a ser ponderada no âmbito do processo de execução, em que os arrestos se venham a converter em penhora (artigos 822º e seguintes do C.P.C.) e, aí, os pagamentos a fazer se ordenem de acordo com a graduação dos créditos que vierem a ser reclamados e reconhecidos, nos termos da lei.
Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, terão os embargos de ser liminarmente indeferidos, atenta a falta de fundamento legal para os mesmos.”
A Apelante veio arguir a nulidade desta decisão, invocando (i) a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que a justificam, desconhecendo qual a norma de direito aplicada, quais os requisitos e pressupostos dos Embargos de Terceiro que o Tribunal a quo entendeu não se encontrarem verificados, sendo incompreensível se teve ou não em consideração toda a factualidade por si alegada e documentada; (ii) a ambiguidade e obscuridade em parte da sua fundamentação, atento o que parece ser um evidente erro de redação na frase “teria legitimidade para embargar de terceiro (...) naturalmente, se o alvo do arresto - os saldos das contas bancárias – constituísse património da Embargada”; (iii) a omissão de pronúncia.
Vejamos se lhe assiste razão.
Nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, aplicável aos despachos, por via do art.º 613.º, n.º 3, do mesmo Código, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Esta causa de nulidade é mais uma decorrência legal do dever de fundamentar as decisões consagrado designadamente no art.º 205.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual “(A)s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, e também no art.º 154.º do CPC, que preceitua:
“1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Tem sido tradicionalmente defendido na jurisprudência que a nulidade a que se refere o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC pressupõe a falta absoluta de fundamentação, não se bastando com a fundamentação escassa ou insuficiente. No entanto, a jurisprudência, incluindo do STJ, e a doutrina mais recentes vêm reconhecendo que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, ao ponto de não possibilitar às partes a compreensão cabal e análise crítica das razões (de facto e de direito) da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade dessa decisão. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se (ambos disponíveis em www.dgsi.pt):
- o acórdão do STJ de 02-03-2011, proferido no processo n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, conforme se alcança do ponto 1. do respetivo sumário: “À falta de fundamentação de facto e de direito deve ser equiparada a fundamentação que exponha as razões, de facto e de direito, para a decisão de modo incompleto, tornando deste modo a decisão incompreensível e não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”;
- o acórdão do STJ de 26-02-2019, proferido no processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2: “I. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal. (…) VII. Uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art.º 20º da Constituição da República”.
Atentando na decisão recorrida, importa sublinhar que se trata de um despacho de indeferimento liminar da petição inicial e não de uma sentença (ou saneador sentença), pelo que não é aplicável, quanto à fundamentação de facto, o disposto no art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, nem a jurisprudência referida pela Apelante, sendo absolutamente pacífico que a exigência legal de fundamentação se realiza com a menção das razões que justificam o indeferimento (neste sentido, a título exemplificativo, o ac. da RE de 07-03-2024, proferido no proc. n.º 1610/23.3T8ENT-A.E1, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, essas razões estão mencionadas na decisão recorrida, percebendo-se bem que o Tribunal a quo teve em consideração as alegações de facto e de direito constantes da petição de embargos, tendo feito um resumo circunstanciado e indicado expressamente os preceitos legais que entendeu serem aplicáveis, justificando por que considerava inexistir fundamento legal para atender a pretensão da Embargante.
Aliás, o teor da alegação de recurso evidencia bem que a Embargante compreendeu os fundamentos da decisão recorrida, pelo que se impõe concluir que não se verifica a invocada causa de nulidade.
Preceitua ainda o art.º 615.º, n.º 1, do CPC, na sua alínea c), que a sentença é nula quando “(O)s fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Como resulta expressamente deste normativo, a nulidade a que se refere apenas se verifica quando se constate que os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença não podiam logicamente conduzir à decisão que veio a ser tomada no segmento decisório da sentença ou quando neste se verifica uma obscuridade ou ambiguidade que torna a própria decisão ininteligível.
Resulta claro da letra da lei que a “decisão” a que se refere este preceito legal não se confunde com os fundamentos da decisão, conforme vem sendo reconhecido, de forma pacífica, pela doutrina e jurisprudência, citando-se, a título exemplificativo, a explicação de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 734-737: “Também a ininteligibilidade da parte decisória da sentença, contemplada na alínea c), quando subsista após a rejeição da arguição de nulidade, pelo juiz ou pelo tribunal de recurso, ou após a falta desta arguição (ver os arts. 615-4 e 617-1), merece a qualificação de nulidade. Com efeito, embora a ininteligibilidade, decorrente de ambiguidade ou obscuridade, tenha o tratamento da anulabilidade, carecendo de arguição da parte, a falta desta ou a sua rejeição tem o efeito de tornar definitivamente inaproveitável a sentença, por falta de decisão compreensível (…) No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória da sentença, só releva quando gera a ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. Sendo assim, se o vício não for corrigido, a sentença não poderá aproveitar-se, sendo nula, nos termos gerais dos arts. 280-1 CC e 295 CC.”
É, assim, evidente a falta de razão da Apelante quando invoca como causa de nulidade da sentença, por ambiguidade ou obscuridade, um lapso de escrita que consta da fundamentação e não da decisão propriamente dita, ou seja, do segmento decisório, o qual não contém qualquer ambiguidade ou obscuridade, antes se mostra perfeitamente inteligível. Aliás, nem esta parte da fundamentação se pode considerar ininteligível, já que se percebe bem o sentido da frase em questão, como a correção avançada pela Apelante denota.
Finalmente, quanto à omissão de pronúncia, é sabido que, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de normativo legal que deve ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
É consabido que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos (mormente alegações de factos e meios de prova) produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões. Neste sentido, a título de exemplo, se pronunciou o STJ nos acórdãos de 10-01-2012, proferido no proc. n.º 515/07.0TBAGD.C1.S1, 30-06-2021, no proc. n.º 78/19.3YRLSB.S1, e 10-12-2020, proferido no proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, como se alcança do respetivo sumário deste último: “A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.” (sumários disponíveis em www.stj.pt). De igual modo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre esclarecem, na obra citada, pág. 737, o conceito de questões empregado na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º em apreço: “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado (ver o n.º 2 da anotação ao art.º 608).” Também na anotação ao art.º 608.º, págs. 712-713, se pronunciam a este respeito, referindo designadamente que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
Ora, a decisão recorrida apreciou o pedido formulado pela Embargante e a respetiva causa de pedir, concluindo pela manifesta improcedência daquele e pela falta de fundamento legal dos embargos na situação de facto alegada, não indicando a Apelante nenhuma verdadeira questão sobre a qual tivesse sido omitida pronúncia, pelo que também não se verifica esta última causa de nulidade.
Pelo exposto, improcedem as conclusões da alegação de recurso atinentes à arguição de nulidades da decisão recorrida.
Do indeferimento liminar da petição de embargos
Estabelece o art.º 345.º do CPC, sob a epígrafe “Fase introdutória dos embargos”, que: “Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.” Conforme resulta do art.º 590.º, n.º 1, do CPC, as outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos são a manifesta improcedência do pedido ou a ocorrência, de forma evidente, de exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
A decisão recorrida indeferiu liminarmente a petição de embargos, por ter perspetivado a pretensão da Apelante como manifestamente improcedente, na medida em que considerou que as alegações de facto e de direito aí feitas não consubstanciam fundamento legal para os embargos.
A Apelante discorda desse entendimento, alegando, em síntese, ser titular de um direito de crédito em relação a duas sociedades, uma das quais a Requerida PDVSA PETRÓLEO, conforme reconhecido por sentença proferida por tribunal arbitral estrangeiro (estando pendente ação de revisão e confirmação), tendo obtido, ante o receio de perda da garantia patrimonial desse crédito, o arresto dos saldos das contas bancárias que foram objeto do arresto no âmbito do procedimento cautelar intentado pela Gold Reserve Inc., a qual não pode ser considerada credora daquela Requerida, mas apenas credora da República Bolivariana da Venezuela, sendo inaplicável a tal caso, face à lei vigente nesse país (com a interpretação propugnada pela jurisprudência do mesmo), a figura da desconsideração da personalidade jurídica.
Vejamos.
Preceitua o art.º 342.º, n.º 1, do CPC, com a epígrafe, “Fundamento dos embargos de terceiro”, que “(S)e a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”
Assim, tal como se afirma no acórdão do STJ de 23-09-2008, proferido no Agravo n.º 2371/08 (disponível em www.stj.pt), embora a propósito do preceito correspondente no anterior CPC, “(A) causa de pedir dos embargos de terceiro é a factualidade integrante do direito invocado, seja a posse, seja a propriedade, seja algum outro direito incompatível com a finalidade da diligência judicial que se pretende impugnar; assim, tem o embargante que articular os factos donde derive o direito ou a situação invocada incompatível com o objectivo do acto judicial em causa.
Nas palavras de Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, 11.ª edição, Almedina, págs. 159-162, “As diligências judiciais suscetíveis de justificar os embargos de terceiro são essencialmente, como já dito, a penhora, o arresto, o arrolamento e a entrega de coisa ao exequente na ação executiva para entrega de coisa certa, incluindo a relativa ao despejo.
A referência ao âmbito da diligência tem a ver, por exemplo, com os casos em que penhora incide sobre a propriedade plena, não obstante o executado só ser titular do respetivo direito de usufruto.
(…) O conceito de direito incompatível apura-se por via da ponderação da finalidade da diligência judicial em causa, por exemplo, a penhora, que visa a venda da coisa penhorada na ação executiva para pagamento de quantia certa. A penhora é um direito real de garantia, instrumental da venda executiva dos bens sobre que incide, pelo que é direito com ela incompatível o da titularidade de terceiro que impeça ou inviabilize aquela venda.
Nesta perspetiva são direitos de terceiro incompatíveis com a penhora, por exemplo, o direito de propriedade plena sobre os bens penhorados e os direitos menores de gozo que se extinguiriam com a venda executiva, nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil.
(…) O primeiro fundamento de embargos de terceiro previsto neste normativo é a ofensa da posse, ou seja, nos termos do artigo 1251º do CC, do poder que se manifesta quando uma pessoa atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
(…) Há posse no que concerne aos direitos reais de gozo e relativamente a alguns direitos reais de garantia, como é o caso do penhor e do direito de retenção, em que os seus titulares são possuidores em nome próprio em relação a esses direitos, e em nome alheio no que concerne ao direito de propriedade sobre as coisas.
(…) Para além do direito de propriedade plena, pode o terceiro defender através de embargos de terceiro, direitos reais menores de gozo, por exemplo o de usufruto indevidamente atingido pelo ato de penhora, como acontece se o executado só era titular da nua propriedade em relação à coisa penhorada a título de propriedade plena.”
Também Marco Carvalho Gonçalves explica que: “Para além da tutela possessória, os embargos de terceiro podem igualmente ser utilizados para permitir a proteção de um direito de um terceiro que seja incompatível com a penhora.
Ora, partindo do fim a que a penhora se destina – qual seja a venda executiva do bem penhorado para que, através do produto da venda, seja satisfeito o crédito exequendo -, um direito de um terceiro será incompatível com a penhora se esse direito for suscetível de impedir a realização da venda executiva ou se não se extinguir com essa venda.” - in “Lições de Processo Civil Executivo”, 2.ª edição, Almedina, págs. 386 e ss. (não incluímos na citação as notas de rodapé). Este autor alude, de seguida, aos direitos reais de gozo registados antes de qualquer arresto, penhora ou garantia (por contraponto aos direitos reais de gozo que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia), aos direitos reais de garantia que incidam sobre os bens penhorados (esclarecendo que não são incompatíveis com a penhora), aos direitos reais de aquisição e aos direitos pessoais de gozo (que, em regra, não podem deduzir embargos de terceiro com fundamento na posse, por serem havidos como meros detentores ou possuidores precários, sem prejuízo dos casos expressamente previstos na lei em que lhes é facultado o recurso aos meios de tutela possessória).
Ainda na doutrina, ensina Lebre de Freitas que: “Para bem compreender o âmbito de previsão do preceito, há que partir do conceito de direito incompatível. Sabido que a penhora se destina a possibilitar a ulterior venda executiva, é com ele incompatível todo o direito de terceiro, ainda que derivado do executado, cuja existência, tido em conta o âmbito com que é feita, impediria a realização desta função, com a transmissão forçada do objeto apreendido (cf. art.º 840-1).
(…) Assim a incompatibilidade entre a penhora e o direito de terceiro, verifica-se no plano funcional, com apelo ao âmbito e aos efeitos da futura venda executiva, ao passo que a incompatibilidade entre ela e a posse de terceiro, sem que deixe de ter o plano funcional como ultima ratio, verifica-se em face dos efeitos imediatos da penhora, só assim se explicando a atribuição da legitimidade para os embargos de terceiro, a qualquer possuidor em nome alheio afetado pela diligência. Mantendo a legitimidade para embargar dos possuidores que já a tinham antes da revisão do Código, a norma proveniente da revisão veio, pois, estender não apenas aos titulares de direitos reais não possuidores, mas também a possuidores em nome alheio a quem a lei civil não a atribuía, a legitimidade para embargar de terceiro.” - in “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6.ª edição, Coimbra Editora, págs. 329-333.
De igual modo, a jurisprudência vem reconhecendo que, de acordo com o disposto no art.º 342.º do CPC, os embargos de terceiro se ajustam à defesa de qualquer direito, incluindo um mero direito de crédito, de que seja titular quem não seja parte na causa, desde que incompatível com a realização ou o âmbito de um ato judicialmente ordenado, como o arresto ou a penhora – neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 24-10-2019, proferido na Revista n.º 1306/17.5T8OER-A.L1.S1 (sumário disponível em www.dgsi.pt).
Logo, não basta ao embargante invocar a titularidade do direito de crédito e a existência de penhora ou arresto em benefício de outro credor; para que os embargos possam proceder é ainda indispensável que o direito invocado pelo embargante seja incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, ou seja, que, conforme também resulta do disposto no art.º 346.º do CPC, o embargante alegue ser titular de um direito que obsta à realização ou ao âmbito da diligência, sendo que essa incompatibilidade se afere no plano funcional e tendo em atenção os efeitos imediatos do ato judicial em apreço. Assim sucede, por exemplo, perante a penhora de um (suposto) direito de crédito do executado, alegando o embargante ser o verdadeiro titular/credor.
Nos presentes autos, importa ter presente a função do arresto, em particular de depósitos bancários, que é distinta da função da penhora. Com efeito, embora ao arresto sejam subsidiariamente aplicáveis as disposições relativas à penhora nos termos previstos no art.º 391.º, n.º 2, do CPC, consistindo, tal como a penhora, numa apreensão judicial de bens e tendo, de certo modo, uma eficácia semelhante à penhora, na medida em que, arrestados os bens do devedor, os atos de disposição desses bens são ineficazes em relação ao credor (cf. art.º 391.º, n.º 2, do CPC e art.º 622.º do CC), o arresto não irá servir (pelo menos não é essa a sua função e propósito imediato) para o pagamento do credor/requerente (com a entrega ao exequente as quantias penhoradas que não garantam crédito reclamado – cf. art.º 780.º, n.º 13, do CPC). Trata-se sim de um meio de conservação da garantia patrimonial do credor, uma garantia de que os bens apreendidos à ordem do Tribunal e por iniciativa de um credor irão manter-se na esfera jurídica do devedor até ao momento em que, no processo executivo, seja realizada a penhora e os demais atos que antecedem o pagamento coercivo do crédito.
Lembramos ainda que, conforme resulta do disposto nos artigos 391.º, n.º 1, do CPC e 619.º a 622.º do CC, são requisitos do arresto:
- A probabilidade da existência do crédito, o que significa que o crédito não tem de ser certo, indiscutível, mas antes que basta existir grandes probabilidades de ele existir (por outras palavras, a qualidade de credor do requerente indiciariamente demonstrada);
- O fundado motivo para recear a perda da garantia patrimonial, requisito que pressupõe a alegação e prova, ainda que indiciária, de um circunstancialismo que faça antever o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito;
- E incidir sobre bens do devedor (cf. art.º 619.º, n.º 1, do CC).
Daí que, faltando este último requisito e incidindo/abrangendo o arresto bens de terceiro, este possa lançar mão dos embargos de terceiro, conforme, aliás, se afirma na decisão recorrida (retificado o lapso de escrita), quando se refere que, por meio de embargos de terceiro, se pode defender, não apenas a posse, mas qualquer direito de conteúdo patrimonial, e que a requerente teria, assim, legitimidade para embargar de terceiro, mas tal só seria possível, naturalmente, se o alvo do arresto – os saldos das contas bancárias – constituísse património seu, o que não é o caso.
Na situação em presença, não se discute que as (únicas) contas bancárias cujo arresto foi efetuado são da titularidade da Requerida/Embargada PDVSA PETRÓLEO. Sucede ainda que tais contas já tinham sido, conforme informação prestada pelo Novo Banco, objeto de anteriores arrestos convertidos em penhoras, o que significa que estão pendentes ações executivas nas quais o AE poderá vir a entregar aos credores exequente/reclamantes as quantias penhoradas.
Mostra-se, assim, indispensável que naquela sede – reclamação de créditos por apenso a ação executiva – os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados venham deduzir reclamação de créditos, nos termos dos artigos 788.º a 794.º do CPC, a qual terá por base um título exequível (passível de ser obtido nos termos previstos no art.º 792.º do CPC).
De salientar que uma decisão cautelar que decretou o arresto não constitui um título exequível para esse efeito (pois não declara ou constitui nenhuma obrigação principal), nem o arresto não convertido em penhora atribui ao arrestante preferência igual à que confere a penhora (neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 15-01-2020, proferido na Revista n.º 940/16.5T8OER-A.L1.S1, sumário disponível em www.stj.pt).
Não tem, pois, qualquer cabimento legal que a Apelante pretenda usar os presentes embargos, não para defesa de um seu direito incompatível com a realização ou o âmbito do arresto, mas antes para discutir o primeiro dos requisitos do arresto decretado, pondo em causa que a Gold Reserve Inc seja credora das sociedades Requeridas (em particular da PDVSA Petróleo, titular das contas bancárias cujos saldos foram arrestados). Na verdade, os embargos de terceiro não podem servir para essa espécie de “defesa por antecipação”, muito menos numa situação como a dos autos, em que, face aos elementos disponíveis, nem se descortina que exista interesse em agir a esse respeito.
Dito de outra maneira, a circunstância de a Apelante poder ser titular do direito de crédito que invoca não basta para que possa colocar em causa o que foi decidido no procedimento cautelar a que os presentes autos estão apensos por meio do incidente de embargos de terceiro. Seria sempre indispensável que o seu alegado direito de crédito obstasse à realização ou ao âmbito da diligência de arresto, o que não sucede. Efetivamente, não se verifica nenhuma incompatibilidade entre o ato de arresto de saldos de contas bancárias que foi realizado a requerimento da Gold Reserve Inc e o direito de crédito que a Apelante invoca, pois podem coexistir, sendo que, na situação hipotética de a Gold Reserve Inc vir a reclamar o seu crédito (o que pode bem nunca vir a acontecer) na devida ação executiva (não sustada quanto aos depósitos bancários em apreço – cf. art.º 794.º do CPC), a sede adequada para a ora Apelante reagir judicialmente será reclamar aí o seu crédito e proceder à impugnação do crédito reclamado por aquela (estando expressamente prevista a possibilidade de os credores impugnarem “os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também qualquer direito real de garantia, incluindo o crédito exequendo, bem como as garantias reais invocadas, quer pelo exequente, quer pelos outros credores” - cf. art.º 789.º do CPC).
Só nessa sede, no concurso com todos os credores reclamantes, se nos afigura ser oportuno e útil a impugnação do crédito que a Gold Reserve Inc. se arroga relativamente à sociedade Requerida titular dos depósitos bancários em apreço, crédito esse que ainda não foi reconhecido - muito menos com força de caso julgado (mormente, em relação à Apelante) -, apenas tendo sido considerado verificado, num juízo perfunctório, enquanto primeiro requisito do decretamento da providência cautelar de arresto, em termos tais que em nada abalam ou contendem com o crédito invocado pela Embargante.
Nesta linha de pensamento, destacamos os seguintes acórdãos proferidos pelo STJ, ainda que a propósito do art.º 351.º do anterior CPC (sumários disponíveis em www.stj.pt):
- de 27-04-2004 na Revista n.º 1037/04 - 1.ª Secção:
“V - O não cumprimento definitivo do contrato-promessa pela alienação da coisa a terceiro (facto imputável ao promitente-alienante) pode tornar o promitente-adquirente credor de uma indemnização, gozando este de um meio coercivo sobre aquele - o direito de retenção, direito real de garantia que não de gozo.
VI - Porque direito real de garantia goza o detentor do direito de ser pago com preferência sobre os demais credores do devedor, pode fazer valer o seu direito de crédito numa fase posterior (art.ºs 864, n.º 1, al. b), do CPC, e 759, do CC) mas não pode deduzir embargos de terceiro com vista a se opor à penhora acto que não ofende uma posse inexistente. Este direito de retenção, a existir (o seu reconhecimento processa-se na fase de convocação de credores e verificação dos créditos, no apenso de reclamação de créditos - art.ºs 864, n.º 1, al. c), 865, n.ºs 1 e 4 e 868, do CPC), não infirma a validade do direito de crédito hipotecário do exequente - apenas autoriza o credor do direito à indemnização a no local e momento próprio reclamar o seu crédito e a vê-lo graduado no lugar que lhe competir.
- de 17-01-2008 na Revista n.º 4239/07 - 7.ª Secção:
“I - Os embargos de terceiro estão previstos para todos os que, não sendo partes na acção, sejam atingidos no seu direito real de posse ou direito incompatível com a finalidade da penhora determinada judicialmente num processo executivo.
II - A invocação pelo embargante, terceiro, da titularidade de um direito de crédito sobre o executado, não afecta o direito do exequente, titular de um direito com preferência de pagamento, como lhe confere a concreta penhora de um imóvel (art.º 822.º do CC).
III - Com efeito, esse direito de crédito não colide com a execução, penhora e venda daquele imóvel nem impede a realização da função da diligência decretada; antes se concilia e coexiste, não obstando a que se proceda à venda do bem.
IV - Logo, os embargos de terceiro não são o meio processual próprio para o embargante fazer valer o seu direito de crédito sobre o executado.”
Portanto, a Apelante poderá, mais tarde, se for caso disso, deduzir a sua reclamação no incidente de verificação e graduação de créditos, impugnando aí os créditos que bem entender. Nessa sede, terá cabimento e utilidade decidir de forma definitiva (e não meramente provisória e perfunctória, como acontece no âmbito de procedimento cautelar), com força de caso julgado relativamente a todos os credores, a questão de saber se à Gold Reserve Inc assiste ou não o direito de crédito fundado na desconsideração da personalidade jurídica da República Bolivariana da Venezuela (mormente quanto à Requerida PDVSA PETRÓLEO), apreciando, com a profundidade que o caso merece, qual a lei aplicável ao caso (tendo em conta, além do mais, que a PDVSA Petróleo é uma empresa de direito venezuelano que atua na indústria do petróleo em todas as fases da sua produção, desde a extração à refinação e armazenamento, sendo o seu capital social integralmente detido pela PDVSA que, por sua vez, é integralmente detida pela 1.ª Requerida; não olvidando que a génese das obrigações em causa está num tratado internacional bilateral entre dois Estados soberanos, o Canadá e a República Bolivariana de Venezuela - Agreement Between the Government of Canada and the Government of the Republic of Venezuela for the Promotion and Protection of Investments).
Apesar de esse ser, sem dúvida, o meio processual adequado para tutela dos interesses invocados pela Apelante, não se enjeita, em absoluto, a possibilidade de instauração de uma ação declarativa de simples apreciação para ver discutida essa questão (verificados os respetivos pressupostos, incluindo o interesse em agir e sem prejuízo do regime da imunidade jurisdicional dos Estados regulado pela Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens, de 17 de janeiro de 2005); naturalmente, se o crédito da Gold Reserve Inc. vier a ser reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação à Embargante, a eventual impugnação que esta venha a deduzir no “competente” incidente de verificação e graduação de créditos ficará limitada (apenas se poderá basear em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 729.º e 730.º, na parte em que forem aplicáveis - cf. art.º 789.º, n.º 5, do CPC).
Não pode, todavia, a Apelante, por certo ciente da sua falta de legitimidade para interpor recurso da decisão que decretou o arresto (cf. art.º 631.º, n.º 2, do CPC), recorrer aos embargos de terceiro, com base em razões (da sua discordância relativamente à mesma) que não configuram fundamento daquele incidente.
Em face do acima exposto, tendo em atenção os factos indiciariamente provados na decisão que decretou o arresto, a forma como foi realizado e as alegações feitas na Petição Inicial de embargos, é inevitável concluir que os embargos de terceiro ao arresto não são o meio processual adequado para a Apelante, na sua qualidade de (alegada) titular de um direito de crédito, vir discutir com outra (suposta) credora a existência do crédito que esta última se arroga, tido por verificado, de forma perfunctória, no âmbito do procedimento cautelar de arresto, tanto mais quando nada indica se o arresto “visado” irá caducar ou ser convertido em penhora e se a credora, no caso a Gold Reserve Inc, estará em condições de vir reclamar o seu crédito (ou mesmo se terá interesse em fazê-lo), não estando configurado um litígio entre credores que esteja carecido de intervenção judicial (para isso melhor servirá, oportunamente, se esse for o caso, o concurso de credores, por apenso à ação executiva).
Em conclusão, não tem cabimento legal discutir a questão suscitada pela Embargante, de forma incidental, em embargos de terceiro por apenso ao procedimento cautelar de arresto. Daí a manifesta improcedência da pretensão da Apelante, não merecendo censura a decisão recorrida, pelo que não pode deixar de ser negado provimento ao recurso.
Vencida a Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar a Apelante no pagamento das custas do recurso.
D.N.

Lisboa, 30-01-2025
Laurinda Gemas
Pedro Martins
Higina Castelo