VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA DE PRISÃO
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Sumário

1. Os bens jurídicos tutelados pela incriminação da violência doméstica são a integridade física e psíquica, a liberdade, autodeterminação sexual e a honra de pessoa que com o arguido mantenha a relação familiar, parental ou de dependência prevista no tipo (atenta a natureza de crime específico impróprio deste ilícito).
2. Este tipo de crime, precisamente por se passar, na generalidade dos casos, no domicílio do casal e na intimidade deste quase nunca reúne testemunhas oculares e apela para a análise crítica das declarações da ofendida.
3. A violência doméstica é um tema social bastante debatido e mediático, com muita assiduidade nos órgãos de comunicação social não podendo hodiernamente dizer-se que é um assunto que exija grandes níveis de escolaridade para a respetiva compreensão.
4. O arguido infligiu maus tratos físicos, maus tratos psicológicos, traduzidos em humilhações pelos insultos e ameaças contra a vida e integridade física e por último na violentação sexual da vítima, com as violações contidas na matéria de facto. O dano causado na vítima não pode deixar de ser profundo, desde as dores às humilhações, ao medo e aos resultados das práticas sexuais não consentidas.
5. Não existem condições normativas para suspender a execução pena de prisão aplicada quando para além da exigência de prevenção geral, o arguido denota possuir crenças legitimantes da diferenciação de papéis de género em contexto marital, atribuindo à mulher um papel submisso e residual no sustento material, as quais poderão estar na base da assunção de comportamentos desadequados e assentes no exercício de poder dominante nas várias dimensões da relação marital, designadamente na esfera sexual, sendo significativas as razões de prevenção especial de integração.
6. Participando das finalidades da pena aplicada a reparação da vítima, na falta de fixação de critério próprio no artigo 82.º-A do CPP, deve levar em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, como expressão da gravidade das consequências do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, numa ponderação conjunta dos critérios da lei civil, nomeadamente dos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, convocados pela natureza compensatória da reparação, e dos critérios da lei penal de fixação da reacção criminal atendíveis por via da culpa e da prevenção, nos termos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
No Proc. n.º 129/23.7PISNT do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 4 - foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
«A) Julgar a acusação do Ministério Público parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:
1. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2, al. a) do Cód. Penal, em concurso aparente três crimes de violação agravada p. e p. pelos arts. 164º, n.º 2 al. a) e 177º, n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
1.1. Ao abrigo do disposto no art. 152º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal, condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida BB, pelo período de 5 (cinco) anos, mediante controlo e monitorização de meios de controlo à distância.
1.2. Condenar o arguido AA na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, a cumprir no prazo máximo de 12 (doze) meses (art. 152.º, n.º 4 do Código Penal).
2. Absolver o arguido do demais que lhe é imputado.
3. Ao abrigo do disposto no art. 82.º-A do CPP, condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 15.000 (quinze mil euros), a título de reparação dos danos não patrimoniais sofridos. (…)»
*
Inconformado, recorreu o arguido, AA, formulando as seguintes conclusões:
1ª) O presente recurso versa sobre matéria de facto e de Direito, com os fundamentos previstos no disposto no art. 410º do CPP, nomeadamente, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº als. a) b) e c) do CPP).
2ª)O recurso incide na impugnação da matéria de facto julgada provada e não provada, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 412º, nº3, 428º e 431º do Código de Processo Penal, por se considerar que foram dados como provados factos que não o deveriam ter sido, concretamente, os mencionados nos pontos 5 a 46 da matéria de facto dada como provada.
3ª) O arguido negou a prática dos factos referidos, pelo que, não podem ser suficientes para considerar os mesmos como provado apenas e só as declarações da ofendida, a qual é parte interessada no processo, ou seja, as declarações da ofendida, ainda que na perspetiva do Tribunal “a quo” tenham sido prestadas de forma credível, o que não se aceita, deverão ser sempre corroboradas com a demais prova para permitirem a prova cabal e segura dos factos, o que não ocorreu por não existir mais prova.
4ª) Não existem quaisquer relatórios médicos nos autos que permitam concluir com toda a certeza que a ofendida tenha sofrido hematomas e/ou feridas provocadas pelo arguido ou por quem quer que seja.
5ª) As provas existentes, que são exclusivamente as declarações para memória futura prestadas pela ofendida reproduzidas em audiência de julgamento e que aqui se dão por reproduzidas (cfr. Ata de 10/09/2024), são insuficientes para poder dar como provados os mencionados factos, pelo que, deverão os factos constantes dos pontos 5 a 46 do douto acórdão recorrido ser julgados como não provados.
6ª)O douto acórdão recorrido, enferma, assim, nomeadamente, do vício da errada interpretação e apreciação das provas, ao julgar incorretamente como provados os factos constantes dos referidos pontos 5 a 46 do elenco dos factos julgados provados, em clara violação dos arts.º 129.º e 134.º n.º 1 b) do CPP, porquanto, sobre os mesmos apenas recaíram as declarações da ofendida e/ou não recaiu qualquer prova, com a consequente absolvição do arguido.
7ª) Mesmo que assim se não entenda, o que não se aceita, relativamente aos factos dados por provados nos pontos 12, 13, 19 e 32 do douto acórdão recorrido, refere-se que a factualidade aí descrita decorreu na presença do filho da ofendida, pelo que, o mesmo deveria ter corroborado a referida factualidade, o que não ocorreu, conforme se poderá verificar das declarações para memória futura prestadas pelo mesmo e reproduzidas no decurso da audiência de julgamento e que aqui se dão por reproduzidas (cfr. Ata de 17/09/2024).
8ª)Por aqui se pode ver a falta de credibilidade da ofendida, pois refere que os factos se terão passado na presença do filho quando o mesmo afirma que nunca ouviu nem viu nada, tirando uma vez que a mãe lhe mostrou uma ferida, não se recordando, contudo, em que parte do corpo, nem sabendo quem a fez (cfr. declarações para memória do filho da ofendida).
9ª) A palavra da vítima não foi corroborada por quaisquer outras provas que permitissem aferir da sua veracidade, segundo as regras da experiência comum.
10ª) Assim, pelo menos, tais pontos da matéria de facto terão que ser forçosamente julgados não provados.
11ª) Acresce ainda que, quanto aos factos dados por provados nos pontos 22 a 26 da matéria de facto dada por provada no douto acórdão recorrido e que respeitam à alegada prática de 3 crimes de violação, sempre se dirá que, o arguido negou que tenha forçado alguma vez a sua esposa a ter relações sexuais com o mesmo e a palavra da ofendida sem qualquer outro meio de prova que o confirme não pode ser suficiente para o condenar, pois isso é abrir totalmente a porta a que se façam cada vez mais julgamentos com condenações por mera convicção do julgador, baseando-se nas regras da sua experiência de vida e na livre apreciação da prova, quando esta é apenas a credíveis porque melhores “atores” do que outros, transformando o processo penal em algo totalmente subjetivo, levando a consequentes condenações de presumíveis inocentes.
12ª) Cada vez mais se verifica, neste tipo de crimes, que a única prova que importa para o Tribunal é a palavra da ofendida, mesmo quando as suas declarações não são espontâneas, sendo “puxadas a ferros” como se verificou neste caso. Assim, devem os referidos pontos da matéria de facto ser julgados não provados, com as legais consequências.
13ª) É certo que, nos termos do disposto no artº 127º do C.P.P., a regra é a de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
14ª)Porém, tal significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que predeterminem ou hierarquizem o valor dos diversos meios de prova (Cf. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I Vol. 1974, págs. 202 e segs.).
15ª) Aliás, “a livre convicção do julgador não pode significar, nem significa, a substituição da certeza objetiva como finalidade da prova, por uma convicção subjetiva, incondicionada, e desligada de regras legais, de regras de lógica baseadas na experiência, que formam o conteúdo de um direito probatório substantivo” (Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Vol. 1º, Lisboa 1986, pág. 204 a 205).
16ª) Refere, ainda, o mencionado catedrático que “A prova, na sua conclusão, é demonstração da realidade dos factos e é um juízo de certeza; à probabilidade corresponde um juízo de opinião, e à possibilidade mais ou menos fundamentada e que por isso consente muitos graus, corresponde um juízo de suspeita. A certeza, a prova plena, a demonstração da realidade dos factos, é exigida, em processo penal, em especial na decisão condenatória, e no que respeita ao facto punível e sua imputação ao agente” (o negrito e o sublinhado são nossos) – Cfr. obra supracitada, pág. 205.
17ª) Deste modo, na valoração da prova, o julgador deve pautar-se por juízos objetivos, devendo lograr afastar qualquer dúvida, uma vez que, a única prova produzida foram as declarações da ofendida.
18ª) E, devendo existir dúvidas, as mesmas só podem ser favoráveis ao arguido, em nome do princípio “in dubio pro reo”, consagrado no artº 32º da CRP, o que não sucedeu no caso sub judice.
19ª)O princípio do “in dubio pro reo” não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração de forma isenta e ponderada, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o Juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável, o que não se verifica neste caso, como já se deixou dito.
20ª) No presente caso, a violação do princípio em causa resulta, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, constata-se que o tribunal decidiu a desfavor do arguido, apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante.
21ª) Em processo penal, deve aceitar-se o risco da absolvição do culpado e nunca o da condenação de um inocente, vigorando sempre a presunção de inocência e, por isso, a necessidade de prova plena em desfavor do arguido, o que não se verificou, como resulta do supra exposto.
22ª) Porém, caso assim se não entenda, o que não se aceita, mas apenas se admite como mera hipótese de raciocínio, caso se considere que o arguido praticou estes crimes a pena de quatro anos e seis meses de prisão aplicada em concreto mostra-se excessiva, devendo situar-se no seu limite mínimo, atendendo a que o arguido é primário e encontra-se social e profissionalmente inserido, não tendo voltado a ver ou estar com a ofendida, residindo em casas separadas.
23ª)Há que valorar, para aferir e determinar a medida da pena, o grau de culpa do agente - devendo o facto ilícito ser valorado em função do seu efeito externo -, e, por outro lado, atender às necessidades de prevenção - cfr. artigo 71º do Código Penal.
24ª) Na determinação da medida da pena há que, num primeiro momento, escolher o fim da pena, depois há que fixar os fatores que influem no seu doseamento, tecendo-se, por fim, os considerandos que fundamentam a pena concreta aplicável. Aliás, "na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos das penas" - cfr. art. 71º, n.º 3.
25ª) Quanto à medida concreta da pena deverá sempre ser dada prevalência às penas não privativas da liberdade, a opção por estas tem, no entanto, de assegurar as exigências de prevenção geral e especial.
26ª) Nos termos dos artigos 40º, n.º 2 e 71º do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena terá sempre como limite inultrapassável a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial positivas.
27ª) Quanto à prevenção geral positiva, sempre que o Tribunal aplica uma pena, tem por fim restaurar a confiança que a comunidade deve ter naquela determinada norma que foi violada. Como muitas vezes se tem dito, citando Anabela Miranda Rodrigues, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (“A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570).
28ª) No que concerne à prevenção especial positiva, visa-se a reintegração do autor do facto ilícito na sociedade, de forma a que não volte a cometer mais crimes.
29ª) A culpa, como vertente pessoal do crime, limita as exigências de prevenção, na medida em que a pena jamais poderá ultrapassar essa culpa sob pena de se desrespeitar o princípio basilar da dignidade humana.
30ª) Em síntese, dentro desse limite máximo inultrapassável que é a medida da culpa, a pena é determinada “no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra 2001, pp. 110 e 111) e em função de exigências de prevenção especial.
31ª) Para além disso, para decidir da pena concreta a aplicar há que ter em consideração os fatores previstos no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, assim atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.
32ª) Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
33ª) Mas teremos ainda que ponderar especialmente o disposto no art. 71.º, nº 2, do Código Penal, designadamente, a intensidade do dolo e a ausência de antecedentes criminais do arguido.
34ª) O Tribunal a quo violou, assim o disposto no artigo 71º do Código Penal, por incorreta e imprecisa aplicação.
35ª)Há que respeitar a livre apreciação da prova e a convicção do Tribunal, sem, contudo, se descurar o facto de assistir ao arguido o direito de exigir que o acórdão que determina a sua condenação - em especial a privação da sua liberdade - seja criteriosamente fundamentado e se sustente em factos decorrentes da prova efetivamente produzida em audiência de julgamento que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo.
36ª) Não poderá o recorrente ser condenado, como foi na pena de 4 anos e seis meses de prisão devendo antes a pena aplicada em concreto ser substancialmente inferior, sendo suspensa na sua execução.
37ª) Dispõe o artº 50º do CP que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
38ª) A opção pela suspensão da pena, “não se trata (...) de uma mera “faculdade” em sentido técnico- jurídico, antes de um poder estritamente vinculado e portanto, nesta acepção, de um poder-dever” (Figueiredo Dias, Das Consequências Jurídicas Do Crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 341).
39ª) Para que se possa decidir pela suspensão, tem que se demonstrar que a ameaça de cumprimento da pena será suficiente para prosseguir os fins visados com as penas (neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, Vol. I, Rei dos Livros, 2ª edição, 1996, p. 547).
40ª) Estão aqui em questão, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção. O que está em causa é determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada. Esta opção deve partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes.
41ª)Ora, há que atentar que o arguido reúne os pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena, sendo nossa convicção que a simples censura e ameaça da pena irá ser suficiente para que o arguido inverta o seu percurso existencial e adquira sentido de responsabilidade e espírito autocrítico em grau suficiente.
42ª) Podendo concluir-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nomeadamente ao nível da prevenção geral, sendo fundadamente de perspetivar que os factos praticados não voltarão a ter repetição.
43ª) Como bem ensina Eduardo Correia, “averiguado o facto e aplicada a pena, o agente tem sempre a clara consciência da censura que mereceu o facto e viverá sob a ameaça, agora concreta, e, portanto, mais viva, da condenação” – Cfr. Eduardo Correia, “Direito Criminal”, II, pág. 397.
44ª) Pelo que, deve decidir-se suspender a execução da pena de prisão que vier a ser aplicada ao arguido permitindo-lhe assim refazer a sua vida, pois já basta a medida de afastamento e a frequência do curso referido no douto acórdão recorrido.
45ª) Para além do que se deixou dito, sempre se dirá também que, o montante de 15.000,00€ arbitrado a título de indemnização à ofendida é manifestamente excessivo e desajustado, face às condições económicas do arguido e as quantias habitualmente arbitradas em caso idênticos, pelo que, deve tal quantia ser consideravelmente reduzida, com as legais consequências.
46ª)Como decorre do que se deixou dito supra, o douto acórdão recorrido encontra-se afetado, nomeadamente, dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova produzida e contradição entre a fundamentação e a decisão, nos termos do disposto no artº 410º nº 2 als. a), b) e c) do CPP, devendo ser revogado e substituído por outro que absolva o arguido da prática do crime que lhe é imputado, ou caso assim se não entenda ser a pena aplicada ao arguido reduzida, situando-se no limite mínimo, suspendendo-se a sua execução, devendo ainda a quantia arbitrada a título de indemnização civil à ofendida ser substancialmente reduzida, designadamente, face às condições económicas do arguido e às quantias habitualmente atribuídas neste tipo de crime.
47ª) O douto acórdão recorrido, violou, designadamente, o disposto nos normativos e princípios supramencionados, não tendo feito a mais correta interpretação e aplicação dos mesmos ao caso concreto, devendo tais normativos legais ter sido interpretados e aplicados no sentido do supra exposto.
*
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
São dois os caminhos para a impugnação da matéria de facto: impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos dos nºs 3 e 4 do artº 412º do C.P.P. ou invocação dos vícios previstos no nº 2 do artº 410º do mesmo código – que são, aliás, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
2.º - Quando um recorrente pretenda sindicar o processo de formação da convicção do tribunal, expressa nos factos dados como provados e/ou não provados, terá que impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto nos termos dos nºs 3 e 4 do artº 412º do C.P.P., com estrita observância das formalidades ali prescritas.
3.º - No recurso apresentado, ainda que se insurja contra os factos 5 a 46 dados como provados, o arguido AA não especifica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e muito menos o faz por referência às pertinentes passagens da prova gravada, relativamente às quais a motivação e as conclusões do recurso são totalmente omissas – artº 412º nº 3 al. b) e nº 4 do C.P.P..
4.º - Na verdade, o recorrente limita-se, de uma forma genérica a remeter para a sua versão dos factos, contrapondo-a à que foi dada pela ofendida que entende não ser suficiente para sustentar os factos dados como provados, mas sem indicar as passagens concretas das suas declarações ou do depoimento da vítima e da testemunha CC que impunham decisão diversa da recorrida.
5.º - Ou seja, embora o arguido pretendesse impugnar amplamente a matéria de facto, não o fez pela forma legalmente prevista o que sempre implicará a rejeição do recurso nessa dimensão.
6.º - Os vícios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do artº 410º do C.P.P., que o arguido expressamente invoca, são intrínsecos à decisão recorrida, devendo resultar do texto dessa decisão, como peça processual autónoma, por si só – isto é, sem recurso a elementos que lhe sejam externos – ou interpretada à luz das regras da experiência comum.
7.º - Relativamente à al. b) do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estão em causa dois vícios distintos: i) a contradição insanável da fundamentação; e ii) a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
8.º - No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.
9.º - Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
10.º - Lida a extensa e bem elaborada fundamentação da matéria de facto não se surpreende na mesma a existência de qualquer premissa antagónica ou inconciliável, nem qualquer antagonismo entre a decisão da matéria de facto e a respectiva fundamentação.
11.º - O erro notório na apreciação da prova (…) verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras de experiência comum.
12.º - Da leitura do texto do acórdão recorrido – designadamente na parte atinente à matéria de facto provada e aos meios de prova determinantes da convicção do tribunal – não resulta que o tribunal tenha considerado provados factos que, manifestamente, de harmonia com as regras da lógica e da experiência comum, estejam incorrectos ou não possam ter acontecido da forma descrita.
13.º - A mera discordância de um recorrente relativamente à apreciação da prova efectuada pelo tribunal a quo, designadamente sob a alegação de insuficiência da prova – pois que é tão-somente isso que emerge da motivação de recurso –, não é igualmente assimilável aos vícios da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou do erro notório na apreciação da prova, que manifestamente não se verificam.
14.º - Ao atacar a deliberação recorrida com base na credibilidade que o Tribunal Coletivo deu, ou não, às declarações que prestou ou das testemunhas ouvidas, nomeadamente a ofendida, o recorrente põe em causa a norma ínsita no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que determina que o Juiz julgue segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
15.º - De acordo com este princípio, o Tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que a opção seja devidamente explicitada e convincente de acordo com aquelas duas vertentes, sendo perfeitamente admissível, que com base no depoimento de uma única testemunha, se dêem como provados determinados factos.
16.º - O Tribunal colectivo foi claro, explícito e elucidativo ao fundamentar as razões pelas quais não atribuiu credibilidade à versão do arguido na parte em que negou a materialidade dos factos pelos quais vinha acusado e considerou credíveis as versões da ofendida BB e da testemunha CC.
17.º - Temos por líquido que da conjugação de todos os meios de prova enunciados na motivação da matéria de facto – v.g. o depoimento da ofendida BB, conjugado com as declarações da testemunha CC e enquadradas pelas declarações prestadas pelo próprio arguido, a conferirem verosimilhança à versão da ofendida - criticamente analisados e ponderados pelo Tribunal a quo, resulta à evidência que foi totalmente acertada a deliberação sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo.
18.º - A violação do princípio in dubio pro reo “pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada quando do texto da decisão recorrida decorrer, de forma evidente, que o Tribunal, na dúvida, decidiu contra o arguido” (Ac. Da Rel. de Coimbra de 7-12-2005 – rel. Esteves Marques (disponível em www.dgsi.pt).
19.º - No caso dos autos, não resulta de forma alguma – e muito menos de forma evidente – que no espírito do julgador tenha subsistido qualquer dúvida sobre os factos considerados provados. Nem tal dúvida é imposta, objectivamente, pelas regras da experiência comum, atenta a coerência lógica dos factos dados como provados e destes com a fundamentação de facto contida no acórdão, pelo que não ocorreu qualquer violação do princípio in dúbio pro reo.
20.º - A decisão proferida sobre a matéria de facto deverá, assim, permanecer inalterada por se encontrar cabalmente fundamentada, ser compatível com as regras da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida, e reflectir a justa valoração dos diversos meios probatórios considerados, não tendo o tribunal extravasado os poderes/deveres que emergem dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
21.º - A pena de 4 anos e 6 meses de prisão concretamente aplicada ao arguido pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2, al. a) do Cód. Penal (em concurso aparente com três crimes de violação agravada p. e p. pelos arts. 164º, n.º 2 al. a) e 177º, n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal) não deixa transparecer qualquer inobservância dos critérios contemplados no artº 71º nºs 1 e 2 do C.P. nem desrespeito pelas finalidades das penas, consagradas no artº 40º nº 1 do mesmo Código, devendo por isso ser mantida.
22.º - As elevadíssimas exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, associadas às relevantes exigências de prevenção especial que o arguido suscita – assentes na não assunção da prática dos factos, em não ter demonstrado, relativamente aos mesmos, ressonância interior e em apresentar características pessoais assentes na falta de autocontrolo, incapacidade em gerir emoções e crenças disfuncionais em relação à relação conjugal e à dimensão social da mulher -, inviabilizam a aplicação ao arguido da pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão, já que tal pena seria incapaz de acautelar as necessidades de punição do crime e de prevenção de reincidência em relações futuras.
23.º - O Acórdão recorrido não violou qualquer norma jurídica ou constitucional, nomeadamente as elencadas pela recorrente.
*
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso interposto, convocando tudo o que foi dito pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
*
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
a) vícios decisórios: Erro notório na apreciação da prova, Insuficiência da decisão da matéria de facto e contradição entre a fundamentação e a decisão, nos termos do disposto no artº 410º nº 2 als. a), b) e c) do CPP.
b) Erro de julgamento.
c) Medida da pena e suspensão da execução da pena.
d) indemnização arbitrada.
*
2.Fundamentação
Conforme enunciamos e de acordo com as conclusões do arguido recorrente, são as seguintes questões a decidir:
a) vícios decisórios: Erro notório na apreciação da prova, Insuficiência da decisão da matéria de facto e contradição entre a fundamentação e a decisão.
b) Erro de julgamento.
c) Medida da pena e suspensão da execução da pena.
d) indemnização arbitrada.
*
Do Acórdão recorrido:
Da decisão recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
«1. O arguido e BB (doravante designada por BB) casaram um com o outro no mês de ... em ....
2. No ano de 2019, altura em que BB veio residir para Portugal, o casal passou a residir em comunhão e cama leito e habitação, numa habitação sita na ..., em ..., cerca de um ano depois passou a residir num quarto sito na ..., em ... e posteriormente, na habitação sita na ..., em ....
3. A partir do mês de … de 2022, juntamente com o casal passou a residir CC, nascido no dia ...-...-2014, filho de BB, e DD, mãe de BB.
4. Desde o mês de … de 2022 que o casal se encontra separado, mas continuou a residir na mesma habitação até ao dia ...-...-2023, data em que o arguido foi detido neste processo para apresentação a primeiro interrogatório de arguido detido.
5. Desde que passaram a residir juntos em Portugal, que a relação entre o arguido e BB foi pautada por conflitos e discussões, e por controlo dos passos dela por parte dele, originados por ciúmes
6. Com efeito, o arguido proibia BB de sair da residência para estar com amigos e familiares dela.
7. Proibia-a de falar com amigos dela, nomeadamente nas redes sociais.
8. Agarrava no telemóvel dela sem autorização e inspecionava o conteúdo do mesmo.
9. Munido da palavra-passe do facebook dela, sem autorização dela, visualizava todo o conteúdo do mesmo, nomeadamente os amigos dela e mensagens que ela ali tinha, e bloqueava amigos dela.
10. De duas em duas semanas, no interior da residência comum, o arguido desferia estaladas na cara de BB e puxou-lhe o cabelo.
11. Como consequência directa e necessária desses comportamentos, BB ficava com hematomas.
12. Também de duas em duas semanas, o arguido dirigia-se a BB e, no interior da residência comum, e na presença do filho menor dela, dizia-lhe:
I . “Puta!”;
ii. - “Bandida!”;
iii. - “Cadela!”;
iv. - “Vai para a cona da tua mãe!”;
v. - “Andas com todos os homens!”;
vi. - “A tua família é toda bandida!”.
13. E igualmente de duas em duas semanas, no interior da residência comum, na presença do filho menor dela, o arguido dirigia-se a BB e, em tom de voz sério e grave, dizia-lhe: i. - “Vou-te matar”;
ii. - “Se não és minha, não és de mais ninguém”;
iii. - “Se arranjares outro homem, mato-o”;
iv. - “Se me deixares, a tua vida em Portugal não vai ficar fácil, vou-te seguir para o resto da vida”;
v. - “Vou-te cortar uma perna e vais ficar de cadeira de rodas”;
vi. - “Vou-te fazer macumba com o teu filho”.
14. Numa ocasião, ocorrida em data não concretamente apurada, mas no início da relação, por motivos não concretamente apurados, o arguido dirigiu-se a BB e cuspiu-lhe para a cara.
15. Em data não concretamente apurada, mas situada quando ainda residiam na primeira habitação, no interior da residência comum, o arguido retirou um pedaço de carne de vaca do frigorífico e desferiu uma pancada no corpo de BB com o osso da carne.
16. Em data não concretamente apurada, no interior da residência comum, o arguido agarrou numa serra e dirigiu-se a BB e disse-lhe que a ia cortar.
17. Acto contínuo, o arguido aproximou-se de BB e encostou a lâmina no braço dela, e desferiu-lhe um golpe.
18. Como consequência directa e necessário desse comportamento do arguido, BB ficou a sangrar do braço.
19. Em data não concretamente apurada, mas situada após o mês de Julho de 2022, na presença do filho menor dela, o arguido agarrou em BB que se encontrava deitada na cama, e puxou-a para fora da cama, agarrando-a pela t-shirt que ela trajava, causando-lhe a queda no chão.
20. Como consequência desse comportamento do arguido, BB bateu com a cabeça no chão e ficou com dores.
21. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2022, antes do Natal, o arguido impediu BB de entrar no quarto do casal, trancando-lhe a porta do quarto, e obrigando-a a dormir no sofá da sala.
22. Em pelo menos três ocasiões, ocorridas antes do natal de 2022, o arguido obrigou BB a manter relações sexuais com ele.
23. Com efeito, nessas ocasiões o arguido agarrou-a com força pelos pulsos, enquanto ela dizia-lhe para parar e movimentava o corpo no sentido de se libertar.
24. Após, o arguido, enquanto a agarrava, introduziu o pénis erecto dentro da vagina de BB, aí o friccionando, fazendo com o seu corpo movimentos de vai e vem.
25. Numa dessas ocasiões o arguido rasgou as cuecas que BB tinha vestidas.
26. Noutra dessas ocasiões, o arguido colocou o braço à volta do pescoço de BB, e apertou-o.
27. Nesse período, em data não concretamente apurada, quando BB entrou na residência comum vinda do trabalho, o arguido, que se encontrava na cozinha, dirigiu se a ela e disse-lhe, em crioulo, que ela andava a traí-lo, que era uma puta e uma bandida.
28. Acto contínuo, o arguido agarrou numa faca, de características não concretamente apuradas, que se encontrava pousada na mesa da cozinha, e encostou-a ao pescoço de BB, ao mesmo tempo que, em tom de voz sério e grave, disse-lhe: “Se me deixares, eu mato-te, pois se não ficas comigo não ficas com mais ninguém”.
29. Outro dia, em data não concretamente apurada, quando BB lhe disse que queria separar-se dele, o arguido disse-lhe que se ia atirar da linha do comboio para matar a cabeça se ela não ficasse com ele, amedrontando-a.
30. No dia ...-...-2023, cerca das 21h15m, o arguido entrou no quarto de BB e iniciou uma discussão com ela.
31. No decurso dessa discussão, o arguido dirigiu-se a BB e disselhe: “Puta. Bandida. Cadela”.
32. Nessa ocasião, BB pediu ao arguido que saísse do quarto dela e que moderasse o tom de voz uma vez que o filho dela se encontrava perto deles, na sala a ouvir a discussão.
33. Irritado, o arguido dirigiu-se a BB, colocou as mãos à volta do pescoço dela e apertou-o.
34. Entretanto, BB conseguiu soltar-se e, nesse momento, o arguido saiu do local, deslocou-se a outra divisão da residência comum, e segurou num barrote e, deslocou-se novamente na direcção de BB.
35. Após, o arguido desferiu várias pancadas com esse barrote na porta do quarto, arrombando-a.
36. Ela então fugiu a correr e ele saiu na direcção dela agarrando o barrote.
37. Pelo menos a partir do mês de Março de 2023 e até ao dia ...-...-2023, com uma periodicidade diária, o arguido deslocava-se ao quarto de BB, e quando ela estava deitada na cama a descansar ou a dormir, atirava-se para cima dela, impedindo-a de descansar e de dormir.
38. BB não conseguia impedir tais comportamentos do arguido uma vez que ele lhe havia retirado a chave do quarto, impedindo-a de trancar o quarto.
39. Com as condutas descritas, o arguido quis e conseguiu ofender BB na sua honra e dignidade, na sua integridade física, e na sua liberdade pessoal e sexual, por forma a que esta se sentisse lesada na sua dignidade enquanto ser humano e sua esposa, o que igualmente conseguiu, bem sabendo que praticando esses actos no interior da residência comum do casal, estava a privá-la de qualquer possibilidade de reacção, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança, e não se coibindo ainda assim de praticar alguns deles na presença do filho dela, ainda menor de idade.
40. O arguido actuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde de BB, sabendo que dessa forma lhe causaria dores e lesões.
41. Sabia o arguido que as expressões dirigidas a BB eram insultuosas e que a ofendiam na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.
42. As expressões ameaçadoras que o arguido dirigiu a BB, considerando todas as circunstâncias que as rodearam, nomeadamente o facto de o arguido se encontrar num estado de extrema exaltação quando as anunciava e de já a ter agredido fisicamente em datas anteriores, foram proferidas de forma a provocar-lhe receio e inquietação, o que logrou conseguir.
43. O arguido actuou com o propósito alcançado de, contra a vontade de BB, forçá-la a manter relações sexuais de cópula vaginal com ele.
44. Para o efeito, o arguido recorreu ao uso da força física com vista a satisfazer os seus institutos libidinosos, atentando contra a liberdade sexual de BB, sua esposa, com quem residia, o que quis.
45. O arguido actuou sempre com intenção de maltratar física e psicologicamente BB, o que de facto veio a conseguir.
46. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
47. Apesar de ser portador de nacionalidade portuguesa, AA possui naturalidade ... e deslocou-se para Portugal em 2011.
48. Aquele detém o oitavo ano, sendo que o abandono escolar se deveu à necessidade de prestar cuidados ao progenitor que enfrentava problemas graves de saúde e, bem ainda, ao imperativo de adquirir rendimentos próprios resultantes do exercício de uma actividade laboral, por forma a dirimir a carência económica do núcleo familiar de origem. O seu trajeto profissional foi iniciado durante a adolescência numa oficina de …, área em que permaneceu até à vinda para Portugal.
49. No período a que reportam as circunstâncias que enformam o atual processo, o arguido mantinha vivência marital com a alegada ofendida (esposa) e o enteado, numa habitação arrendada e titulada por ambos, cujo encargo ascendia a 600 euros por mês. O casal estabeleceu matrimónio mediante procuração, atendendo a que BB residia em .... Todavia, de acordo com a perceção do próprio, a união acolheu o consentimento de BB com um intuito meramente instrumental por forma a assegurar a deslocação para Portugal e obter autorização de residência. No período de vivência conjunta inexistiam constrangimentos económicos relevantes, tendo a subsistência do agregado sido assegurada, quer pelos rendimentos do arguido, o qual exercia em simultâneo a atividade formal de ... e, informalmente, a de ..., quer da alegada ofendida, ... no setor ....
50. No entanto, pese embora BB exclua um cenário de dependência material perante AA, este afirma ter assumido um papel preponderante na subsistência do núcleo familiar. O arguido denota possuir crenças legitimantes da diferenciação de papéis de género em contexto marital, atribuindo à mulher um papel submisso e residual no sustento material, as quais poderão estar na base da assunção de comportamentos desadequados e assentes no exercício de poder dominante nas várias dimensões da relação marital, designadamente na esfera sexual. Conquanto AA assuma a prevalência de sentimentos de ciúme, revela défices de descentração, de autocrítica e de responsabilização individual pela deterioração do ambiente relacional, situando os focos de conflito à luz do distanciamento e fraco investimento afetivo da alegada ofendida e da permeabilidade desta à interferência de terceiros. Por sua vez, BB atribui o clima disfuncional e discordante ao ciúme exacerbado demonstrado pelo arguido, às tentativas deste de isolamento e controlo das suas rotinas, variáveis que suscitaram a rutura conjugal por sua iniciativa, decisão que não foi acatada de forma convergente por AA. Convém mencionar que após separação, o casal manteve vivência conjunta durante alguns meses, pese embora isenta de proximidade e/ou intimidade. No momento presente inexistem contactos entre ambos ou atitudes intimidatórias ou agressivas por parte do arguido. BB exclui qualquer hipótese de reconciliação, perceção que surge divergente da do arguido, assente em dificuldades de desvinculação. Com efeito, apesar da proibição de contactos, o arguido detém conhecimento sobre as circunstâncias de vida da alegada ofendida, informação que lhe foi veiculada por amigos/conhecidos em comum. O mesmo encontra-se inserido num novo relacionamento íntimo, ao qual não atribui relevância e no seio do qual não projeta planos futuros. AA reside com um amigo e o filho deste num quarto individual localizado numa habitação de tipologia T1, sendo a restante divisão ocupada por um outro amigo. No plano laboral, o arguido dedica-se exclusivamente a trabalho precário na área …, obtendo um rendimento variável que corresponde, em média, a um valor mensal de 600 euros. Os seus encargos atuais englobam apenas a colaboração nas despesas variáveis com alimentação e manutenção, sendo que não despende qualquer montante fixo com a renda do quarto, assumida pelos amigos.
51. Atento o parco rendimento de que afirma dispor, o mesmo solicitou o abono do rendimento social de inserção. AA tem dois descendentes com 12 e 15 anos de idade, residentes em ..., que se encontram à guarda da respetiva mãe, detendo expectativa de em breve requerer o reagrupamento familiar em Portugal.
Não se identificam hábitos aditivos abusivos, porquanto consome bebidas alcoólicas com teor moderado.
52. O arguido aponta a cessação da atividade de ... desde janeiro do corrente ano, por via da não renovação da respetiva licença.
53. Aquele possui limitações ao nível da autocensura e responsabilização, denotando dificuldades de descentração e reconhecimento de dano e dos bens jurídicos subjacentes às tipologias criminais em referência.
54. A alegada ofendida sinalizou junto da técnica da DGRS a existência de uma ameaça proferida contra si há cerca de três meses, por um membro da família do arguido, pelo que teme represálias perpetradas por parte de outrem, após desfecho do atual processo judicial.
55. O arguido não tem antecedentes criminais.
**
Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente, que:
- Retirou-lhe os documentos de identificação, guardando-os com ele;
- O arguido e a ofendida viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem 4 anos antes de se casarem em ....
***
Fundamentação da convicção do Tribunal
O Tribunal fundou a sua convicção, no que diz respeito à matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental constante dos autos, aí igualmente analisada, com apelo ainda às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127º do Código de Processo Penal.
Vejamos:
O arguido prestou declarações negando, no essencial, a prática dos factos. Em resumo, admitiu que, efectivamente, não gostava que a ofendida conversasse com outros homens nas redes sociais e que a terá chamado à atenção quando chegava a casa e as refeições não estavam confecionadas, negando tê-la agredido, insultado, ameaçado ou outro.
Em face do posicionamento do arguido face aos factos da acusação, o tribunal teve em consideração o depoimento da ofendida, BB que através de uma narrativa simples e até meio envergonhada, contou os abusos que sofreu do arguido nos precisos moldes que constam dos factos provados.
Assim, relatou com bastante pormenor as situações em que o arguido lhe desferiu bofetadas e a apodava de “puta”, “bandida” e “cadela”, estas últimas na presença da sua mãe (a testemunha DD que recusou prestar declarações). Outrossim, as ameaças e os vários episódios de violência física com instrumentos contundentes e sexual que de igual modo descreveu nos moldes assentes.
Explicou que as discussões ocorriam por força do ciúme exacerbado do arguido que redundando, invariavelmente, em ataques verbais e/ou físicos. Que a ofendida tentou por diversas vezes deixá-lo, conforme episódios que relatou, sem sucesso.
Logrou balizar no tempo o período das agressões por reporte à sua vidna para Portugal, referindo que terão começado e a data da separação do casal, ainda que vivendo na mesma casa, sendo que a data precisa em identificação no facto 30 provado teve o tribunal em atenção o auto de ocorrência a fls. 15 com a intervenção policial na residência de ambos, documentação que foi igualmente atendida.
Este depoimento revelou-se sincero, isento e credível e, como tal, nele assentou, primacialmente, a factualidade dada por assente.
A aconchegar as declarações da ofendida, o menor CC, filho da ofendida e com ela residente, em declarações para memória futura referiu que uma ocasião o arguido trancou-se com a mãe no quarto, sendo que esta gritava de aflição. Quando a mãe saiu verificou que ela se apresentava com lesões no corpo.
Este depoimento mostrou-se sincero e credível, denotando, inclusive, afeição pelo arguido.
Ao nível do elemento subjectivo retira-se na própria natureza dos actos e do respectivo modo de execução à luz das regras da experiência comum.
*
Mais se valorou o CRC do arguido e o relatório social e demais documentação junta aos autos.
*
A factualidade dada por não provada resultou da prova insuficiente para o convencimento deste tribunal, tendo em atenção o relato da ofendida que nesta parte não foi clara ao referir que ele lhe retirava os documentos ou os retinha, antes entendendo-se que iria dificultar-lhe a vida, mormente, quanto à obtenção de documentos com vista à ofendida ficar a residir em Portugal, o que se nos afigura diverso.
No mais, pela inconcludência da prova nesse sentido, mormente, conforme as declarações da ofendida.»
a. Vícios decisórios:
Os vícios da matéria de facto que integram as categorias das als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.ºCPP, não obstante a diversidade de elementos, revertem todas as inconsistências no domínio da prova, ou mais precisamente, no processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova. São anomalias decisórias ao nível da confeção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. São, como tal, vícios internos da decisão, não de julgamento, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no art. 374.º/2CPP, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa (ainda que concisa) dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.
Tal recurso dá ao Tribunal ad quem a possibilidade de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo (art. 410.º/2a) CPP); de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos (art. 410.º/2b)CPP); de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal (art. 410.º/2c)CPP).
Vertendo ao caso concreto, o arguido foi condenado pela da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 152.º, n. º1, alínea b), n. º2, alínea a), do Código Penal.
Os bens jurídicos tutelados por esta norma penal incriminadora são a integridade física e psíquica, a liberdade, auto-determinação sexual e a honra de pessoa que com o arguido mantenha a relação familiar, parental ou de dependência prevista no tipo (atenta a natureza de crime específico impróprio deste ilícito).
O erro notório na apreciação da prova (…) verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras de experiência comum.
Na sequência dos factos tidos como provados e não provados não se detetam insuficiências ou contradições estando ordenados de forma cronológica e lógica com todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo.
A fundamentação da matéria de facto está baseada em meios de prova, designadamente na análise critica das declarações da ofendida. Acresce que em complemento das declarações da ofendida o menor CC, filho da ofendida e com ela residente, em declarações para memória futura referiu que uma ocasião o arguido trancou-se com a mãe no quarto, sendo que esta gritava de aflição. Quando a mãe saiu verificou que ela se apresentava com lesões no corpo.
A contradição insanável da fundamentação; e ii) a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados porque se excluem entre si, ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.
Conforme já referido, percorrendo a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, a mesma encontra-se ordenada lógica e cronologicamente, sem que se detete a alegada contradição entre os factos dados como assentes ou entre estes e os dados como não provados.
Relativamente à insuficiência da fundamentação o Tribunal a quo estriba-se nos meios de prova que analisou e já referidos, sem que se denote qualquer colisão entre os factos assentes e o meios de prova analisados de acordo com as regras da experiencia comum.
Na realidade o recorrente não concretizou em que concretos segmentos do texto da decisão recorrida encontrou os vícios invocados.
Em conclusão e relativamente aos vícios decisórios invocados, nenhum destes se verifica na medida em que a decisão proferida está ancorada em todo um processo lógico e racional de formação da convicção com base nos elementos de prova e sua análise crítica, sem que se possam assacar ao acórdão vícios circunscritos à matéria de facto ou motivação crítica, apreensíveis pela leitura do texto da decisão recorrida.
b. Erro de julgamento:
A inicial linha mestra de valoração, e também mais reveladora, resulta da credibilidade conferida ao meio de prova em causa. O que aquela concreta testemunha ou declarante disse não é per se bastante para lhe conferir credibilidade. De facto, a lei adjetiva não prevê qualquer regra de corroboração necessária e, exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento do julgador depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.
É dizer, para esta surgir essencial é a imediação e o que da mesma resulta através da forma como se sucedem questões e respostas, os tempos e a forma destas, as reações de quem responde, a consistência do dito, as explicações que emergem para discrepâncias, omissões ou certezas, tudo a imprimir no decisor uma convicção que nem sempre assume uma fácil explicação racional. Num segundo momento, cabe ao julgador valorar o resultado da produção desse meio de prova. Aqui, através dum sempre necessariamente correto raciocínio, têm intervenção as deduções, inferências, aplicação das regras da lógica ou dos princípios da experiência, de conhecimentos científicos, das ciências exatas ou sociais, e quais os resultados que essa análise produz, tudo se podendo reduzir à expressão “regras da experiência”.
Importa ainda anotar que a objetividade da verdade material dos factos que aqui importa nunca é plena. É sim a objetivamente alcançável. Na expressão de Figueiredo Dias, “a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável” (in Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993. p. 111) (sobre a questão de verdade material objetivamente pretendida, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, rel. Juiz Desembargador Júlio Pinto, 6 dezembro2021, NUIPC 152/21.6PBBGC.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg onde se faz completa referência à explicitação de Castanheira Neves in Sumários de processo criminal, 1967 – 1968 edição policopiada, 1968). Distinguindo, diz-nos o Juiz Conselheiro Costa Pereira (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 18janeiro2001, proc. 3105/00-5, acessível in www.stj.pt) que “[o] princípio contido no art. 127.°, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador. III — É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão. IV — Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente.
Aqui chegados, cientes da forma como tem que laborar o Tribunal em moldes de apreciação da prova, atendendo às provas que em concreto foram produzidas na audiência realizada no Tribunal a quo, considerando o modo como o mesmo fundamentou a prova em sede decisória, diversa pela via da criação da dúvida sobre a prática dos factos, vejamos o alegado desrespeito pelo princípio in dubio pro reo como pretende o recorrente.
(…) há que relembrar, como já supra se delineou, que a apreciação por este Tribunal sobre a eventual violação do dito princípio se encontra dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, designadamente erro notório na apreciação da prova, i.e., deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o Tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Tal não significa que se pode incluir no erro notório na apreciação da prova a eventual discordância do recorrente quanto ao modo como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si, em audiência, em conformidade com o disposto no art. 127.º do CPP. (sobre a distinção, de forma incisiva diz-nos o Juiz Conselheiro Raul Borges, no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 8julho2020, NUIPC 142/15.8PKSNT.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg, que “[e]nquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.(…) Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. (…) Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”. (igualmente neste sentido, cfr. Recursos Penais, Manuel Simas-Santos e Manuel Leal-Henriques, 9.º ed., p. 81). Uma coisa é o grau de exigência que se coloca no critério de aferição, outra coisa é a inclusão. E não se confundem.
Delimitando e vertendo ao caso:
Como se constata pela leitura da peça recursiva verificamos que o arguido se limita a referir que a prova produzida concatenada com os factos acusatórios de 5 a 46 foram incorretamente julgados pelo tribunal a quo, porquanto o arguido negou os factos e a ofendida é parte interessada na causa, inexistindo meios de prova complementar o depoimento daquela.
Volvendo ao texto do acórdão… Em face do posicionamento do arguido – que negou os factos - face aos factos da acusação, o tribunal teve em consideração o depoimento da ofendida, BB que através de uma narrativa simples e até meio envergonhada, contou os abusos que sofreu do arguido nos precisos moldes que constam dos factos provados.
Assim, relatou com bastante pormenor as situações em que o arguido lhe desferiu bofetadas e a apodava de “puta”, “bandida” e “cadela”, estas últimas na presença da sua mãe (a testemunha DD que recusou prestar declarações). Outrossim, as ameaças e os vários episódios de violência física com instrumentos contundentes e sexual que de igual modo descreveu nos moldes assentes.
Acresce que o Tribunal socorreu-se de um episódio relatado pelo filho da ofendida que vivia com o casal, nos seguintes termos: A aconchegar as declarações da ofendida, o menor CC, filho da ofendida e com ela residente, em declarações para memória futura referiu que uma ocasião o arguido trancou-se com a mãe no quarto, sendo que esta gritava de aflição. Quando a mãe saiu verificou que ela se apresentava com lesões no corpo.
Este depoimento mostrou-se sincero e credível, denotando, inclusive, afeição pelo arguido.
E daí que como escreve Souto Moura (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 15julho2008, processo 08P418-5.ª, acessível in www.dgsi.pt/jstj) “I - Uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se faz da prova e outra é detetarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório. II - Por outro lado também não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite: basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. III - O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizados em 1.ª instância, e da fundamentação feita na decisão por via deles, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado como provado o que se deu por provado – cf. Acs. de 15-02-2005 e de 10-10-2007, Procs. n.ºs 4324/04 - 5.ª e 3742/07 - 3.ª, respectivamente.”
Tais conclusões do Tribunal a quo relativas à matéria de facto estão em consonância com a prova produzida e a sua convicção está devidamente fundamentada, com enquadramento legal no art. 127.º CPP.
De acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, como demonstra e aprecia criticamente a motivação, é razoável e acertado o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto. As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação ou contrariedade às normas de direito probatório, nada se revela errado, no que se incluem as regras da experiência e/ou da lógica que ensinam que está fora de qualquer dúvida razoável concluir que o Arguido foi autor dos factos pelos quais se mostrava acusado, que se deram como provados.
Face ao supra exposto e analisado, imbuído da imediação, explicitou o Tribunal a quo, de forma lógica, ponderada e bastante, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a prova produzida em audiência de julgamento- foram ouvidas as declarações prestadas para memória futura- sendo que da respetiva fundamentação decorre que não ficou com dúvidas sérias, no que respeita à prova efetuada pelo Ministério Público, naquela sede, quanto à versão acusatória e, como tal, tão só se pode concluir nada ter a apontar ao silogismo judiciário percorrido pelo Tribunal a quo ao valorar positivamente o depoimento das testemunhas em confronto com as declarações do Arguido recorrente, nada levando a concluir no sentido da necessidade de uso do princípio in dubio pro reo, uma vez que, como expressivamente afirma o Sr. Juiz Conselheiro Souto Moura (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 14abril2011, 117/08.3PEFUN.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj)“a dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido.”
Acresce que este tipo de crime, precisamente por se passar, na generalidade dos casos, no domicílio do casal e na intimidade deste quase nunca reúne testemunhas oculares e apela para a análise crítica das declarações da ofendida.
Inexiste, pois, fundamento para nesta parte alterar o decidido pela 1.ª instância, também porque não se verifica qualquer desrespeito do comando constitucional do art. 32.º/2CRP.
Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.” – Ac RL de 11.3.2021 proc.º 179/19.8JDLSB.L1-9:
Ora, a decisão sob recurso apresenta na motivação, todo um discurso logico e coerente no exame critico da prova produzida, não espelhando qualquer dúvida razoável e inultrapassável, mediante a qual tivesse que aplicar o princípio da presunção da inocência que atuando favoravelmente em relação ao arguido, levasse o Tribunal a optar pela absolvição.
c. Medida da pena e suspensão da execução da pena.
Entende o arguido que a pena de quatro anos e seis meses de prisão aplicada em concreto mostra-se excessiva, devendo situar-se no seu limite mínimo, atendendo a que o arguido é primário e encontra-se social e profissionalmente inserido, não tendo voltado a ver ou estar com a ofendida, residindo em casas separadas.
Foi aplicada ao arguido uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2, al. a) do Cód. Penal (em concurso aparente com três crimes de violação agravada p. e p. pelos arts. 164º, n.º 2 al. a) e 177º, n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal)
A moldura pena abstracta a atender para o crime de violência doméstica, previsto no art. 152º, n.º 1 al. b) e n.º 2, al. a) do Código Penal, em concurso aparente com o crime de violação agravada p. e p. pelos arts. 164º, n.º 2 al. a) e 177º, n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal ( sendo punível, em abstrato, com a pena aplicável a este último) é de pena de prisão de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses.
O ponto de partida da tarefa a efetuar não pode deixar de se prender com o disposto no art. 40º do Cód. Penal, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Com este preceito fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, a ter lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade.
Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido.
Com este entendimento tem-se visto, aliás, uma consonância com o imperativo constitucional do nº 2 do art. 18º da Constituição da República, de acordo com o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, sendo certo que se não divisa, no texto fundamental, a eleição de um imperativo ético-penal da retribuição ou expiação da culpa, como direito ou interesse protegido constitucionalmente.
Assim, quando o art. 71º do Cód. Penal nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art. 40º.
Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo através de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica:
A partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma “sub- moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (cfr. obra citada, pág. 229).
Será, pois, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico - normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar.
Resta dizer que a “defesa de bens jurídicos”, mencionada no referido art. 40º, deve ser entendida como propósito de prevenção geral positiva ou de integração, com o fim de “estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida e, portanto, como modelo de orientação para os contactos sociais, ou ainda como réplica perante a fração da norma, executada à custa do seu infrator. A defesa de bens jurídico-penais é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o sistema penal globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das penas.
Quanto à prevenção especial, sabe-se como pode ela operar através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa. Esta, tanto quanto sabemos, a orientação quase unânime do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria.
Já o nº 2 do art. 71º do Cód. Penal manda atender, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.
Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.
No caminho da concretização da pena a aplicar tomar-se-ão pois em conta os critérios consignados no citado artigo 71º do Cód. Penal e, assim a culpa do agente, as necessidades de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
No que respeita á culpa – capacidade de o arguido se determinar de acordo com as normas e pese embora a sua baixa escolaridade, estão em causa comportamentos por si assumidos que este tinha obrigação de evitar e que não demandam grande índice de escolaridade. O respeito básico pela integridade física e psicológica de um outro ser humano. Não é desculpável ou compreensível que durante o período de tempo em causa - 2019 a 2023 – o arguido, sem qualquer ato de contrição tenha persistido em bater, insultar e seviciar um ser humano ao tratamento constante dos factos assentes.
Como se refere na decisão em causa o que está bem patente é o seu afastamento de normativos essenciais, as características da personalidade do arguido, consubstanciadas na falta de autocontrolo, incapacidade em gerir emoções e pensamento cristalizado que revela que não reconhece à mulher uma dimensão social igual à sua.
São elevadas as exigências de prevenção geral, tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas. A verdade é que o fenómeno da violência doméstica no nosso País tem sido sinalizado como um problema social a exigir medidas para a sua resolução, que têm vindo a ser adotadas nas sucessivas alterações nesta matéria ao Código Penal, assim como, a adoção de um Plano Nacional contra a Violência Doméstica.
Por outro lado, é um tema social bastante debatido e mediático, com muita assiduidade nos órgãos de comunicação social não podendo hodiernamente dizer-se que é um assunto que exija grandes níveis de escolaridade para a respetiva compreensão.
Na aplicação em concreto e seguindo os ditames do disposto no artº 71º do C.P., ainda assim, o Tribunal a quo considerou o seguinte:
Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 2, do Código, temos, em síntese, que a favor do arguido militam as seguintes circunstâncias:
– o facto de o arguido se encontrar social e profissionalmente enquadrado;
– a baixa escolaridade do arguido;
– a falta de antecedentes criminais.
Por seu turno, em desfavor deste, há que considerar o seguinte:
–o elevado grau de ilicitude dos factos, moldando-se o dolo do arguido no dolo directo, sendo de sobrevalorizar o período em que os factos ocorreram – anos de 2019 a 2023 – sendo as bofetadas, ameaças e insultos perpetrado e dirigidos com reiteração;
– o modo de execução dos factos, alicerçado, sobretudo, na violência física perpetrada, com consequências ao nível da integridade física da ofendida BB, bem como a sujeição a relações sexuais não consentidas;
– as características da personalidade do arguido, consubstanciadas na falta de autocontrolo, incapacidade em gerir emoções e pensamento cristalizado que revela que não reconhece à mulher uma dimensão social igual à sua.
- as consequências daí resultantes, que se afiguram muito graves e intensas, mormente a angústia e o sofrimento causados à vítima, com as consequências psicológicas daí resultantes;
Pelo que foram sopesados todos os fatores que devem determinar a pena em concreto.
E certo que o arguido não tem antecedentes criminais e tem algum grau de inserção.
No entanto, a inserção deve ser equacionada nas necessidades de prevenção especial positiva. Estamos perante uma pessoa que está longe de alcançar a plena reintegração se não souber respeitar os bens jurídico penais que infringiu que podem ter consequências marcantes para toda a vida da vitima.
Ainda assim e sopesando os ditos aspetos positivos o Tribunal aplicou uma pena próxima do limite mínimo.
Assim a pena em concreto mostra-se justa, proporcional e adequada.
Da suspensão da execução da pena:
Entende o recorrente que a pena deve ser suspensa na sua execução.
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art.º 50.º, n.º 1, do C.P.).
Esta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se circunscrevem, de acordo com o artigo 40º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, sendo em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”. E acrescenta: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
Vejamos pois:
A suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».
Reafirma -se que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção, sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”.
Esse prognóstico a efetuar consiste na esperança de que o agente ficará devidamente avisado com a sentença e não cometerá nenhum outro delito, e reporta-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do facto, razão pela qual devem ser tidos em consideração, influenciando-o negativa ou positivamente, designadamente, crimes cometidos posteriormente ao crime (s) objeto do processo e circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham já sido tomadas em consideração em sede de medida da pena.
São elevadas as exigências de prevenção geral, tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas.
Relativamente ás exigências de prevenção especial é necessário que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias do caso, se conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente de um crime, ou seja, que se conclua que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão, acompanhadas ou não da imposição de deveres (cfr. art.º 51.º do C.P.), regras de conduta (cfr. art.º 52.º do C.P.) e/ou regime de prova (cfr. art.º 53.º do C.P.), bastarão para o afastar da prática futura de crimes.
Vertendo ao caso que nos ocupa e como referimos antes o que está bem patente é o afastamento do arguido de normativos essenciais: «as características da personalidade do arguido, consubstanciadas na falta de autocontrolo, incapacidade em gerir emoções e pensamento cristalizado que revela que não reconhece à mulher uma dimensão social igual, tendo-a sujeitado a vários tipos de violência protelados no tempo…» e nessa conformidade não se encontra, ainda, preparado para respeitar os bens jurídico penais que violou, com gravidade e sem qualquer ato de contrição.
E dito isto não existem condições normativas para suspender a execução pena de prisão aplicada.
d) Do montante da indemnização atribuída:
Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser” (art.º 21º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de dezembro), Se a tal não se opuser, o tribunal mais não tem do que atribuir-lhe a indemnização.
Ou seja, não tendo havido oposição da vítima, está o tribunal a quo obrigado, por força do disposto no art.º 21º da Lei n.º 112/2009, de 16 de dezembro, a fixar uma indemnização a pagar pelo arguido à vítima.
Sobre a natureza jurídica desta indemnização, refere Lopes da Mota – STJ de 2/05/2018, Processo 156/16.0PALSB.L1.S1 – IGFEJ, Bases jurídico-documentais, que «Assim sendo, em atenção aos elementos a considerar na definição do seu sentido normativo (), esse sentido só poderá ser o de que, tendo em conta a natureza jurídica da “reparação”, o tribunal deverá condenar (“sempre”) na “reparação pelos prejuízos causados”, como efeito penal da condenação (da aplicação da pena) pela prática de crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal. Isto, sublinhe-se, desde que, verificados os respectivos pressupostos formais – não dedução de pedido de indemnização e não oposição à reparação –, a pessoa ofendida pelo crime tenha sofrido “um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão” que constitua esse crime, ou seja, desde que essa pessoa seja uma “vítima” do crime na acepção da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009.
A caracterização e conteúdo desta “reparação”, de natureza pecuniária, sem se confundir com a indemnização civil, remete, porém, como antes se sublinhou, para conceitos que lhe são próprios, nomeadamente quanto ao “dano” ou “prejuízos”, mas já não quanto à “quantia” a fixar, a qual, como antes se afirmou (supra, 11) não tem que coincidir com o montante da indemnização.
É neste quadro normativo que deve ser apreciada e decidida a questão que constitui o objecto do recurso.
Como anteriormente se demonstrou, não tendo havido pedido deduzido pela lesada, não deve o arguido ser condenado no pagamento em “indemnização” nos estritos termos da lei civil, mas sim no pagamento de uma reparação à vítima do crime, nos termos do artigo 82.º-A do CPP, em conformidade com o disposto no artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009. Participando das finalidades da pena aplicada (supra, 11), esta reparação, na falta de fixação de critério próprio no artigo 82.º-A do CPP, deve levar em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, como expressão da gravidade das consequências do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, numa ponderação conjunta dos critérios da lei civil, nomeadamente dos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, convocados pela natureza compensatória da reparação, e dos critérios da lei penal de fixação da reacção criminal atendíveis por via da culpa e da prevenção, nos termos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.
Recorde-se, a este propósito, que, como acima se referiu, pretendendo “recuperar” a reparação como efeito penal da condenação, “uma medida abandonada com a entrada em vigor do Código Penal de 1982” (artigo 75.º, § 3.º, do Código Penal de 1886), o artigo 82.º-A do CPP não inseriu disposição idêntica à do artigo 34.º § 2.º do Código de Processo Penal de 1929, que mandava que o seu quantitativo fosse determinado “segundo o prudente arbítrio do legislador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor” (supra, 10.4). Não deixa, porém, de, na sua essência, continuar a ser este o critério a seguir, na consideração dos factores mencionados, seguindo-se Germano Marques da Silva, ao afirmar que “a quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos (…), porque não se confunde com a indemnização civil pelos danos, é fixada a critério do julgador” (op. cit. p. 190)»
No entanto se atentarmos no artº 496ºdo C.C há uma certa similitude para os danos não patrimoniais, podendo dizer-se que, no fundamental, o legislador faz apelo à equidade, harmonizada com as circunstâncias do caso.
Na determinação da mencionada compensação deve, por isso, atender-se ao grau de culpabilidade do responsável e à sua situação económica, bem como à do lesado.
E a apreciação da gravidade do dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve ser efetuada seguindo critérios objetivos para evitar que subjetivismos intoleráveis do lesado ou do lesante interfiram e descaracterizem a finalidade que o instituto tem em vista atingir.
Gravidade da Infração:
No caso em análise, estamos perante a prática de um crime doloso, em que o grau de culpa do agente se mostra elevado e em que as suas consequências não se podem deixar de se considerar como muito relevantes.
Com efeito o arguido infligiu maus tratos físicos, maus tratos psicológicos, traduzidos em humilhações pelos insultos e ameaças contra a vida e integridade física e por último na violentação sexual da vítima, com as violações contidas na matéria de facto. O dano causado na vítima não pode deixar de ser profundo, desde as dores às humilhações, ao medo e aos resultados das práticas sexuais não consentidas.
O arguido denota possuir crenças legitimantes da diferenciação de papéis de género em contexto marital, atribuindo à mulher um papel submisso e residual no sustento material, as quais poderão estar na base da assunção de comportamentos desadequados e assentes no exercício de poder dominante nas várias dimensões da relação marital, designadamente na esfera sexual. Conquanto AA assuma a prevalência de sentimentos de ciúme, revela défices de descentração, de autocrítica e de responsabilização individual pela deterioração do ambiente relacional, situando os focos de conflito à luz do distanciamento e fraco investimento afetivo da alegada ofendida e da permeabilidade desta à interferência de terceiros. Por sua vez, BB atribui o clima disfuncional e discordante ao ciúme exacerbado demonstrado pelo arguido, às tentativas deste de isolamento e controlo das suas rotinas, variáveis que suscitaram a rutura conjugal por sua iniciativa, decisão que não foi acatada de forma convergente por AA.
Situação social e financeira do arguido e da ofendida
O arguido detém o oitavo ano, sendo que o abandono escolar se deveu à necessidade de prestar cuidados ao progenitor que enfrentava problemas graves de saúde e, bem ainda, ao imperativo de adquirir rendimentos próprios resultantes do exercício de uma atividade laboral, por forma a dirimir a carência económica do núcleo familiar de origem. O seu trajeto profissional foi iniciado durante a adolescência numa oficina de …, área em que permaneceu até à vinda para Portugal.
No período de vivência conjunta inexistiam constrangimentos económicos relevantes, tendo a subsistência do agregado sido assegurada, quer pelos rendimentos do arguido, o qual exercia em simultâneo a atividade formal de ... e, informalmente, a de …, quer da alegada ofendida, ... no setor ….
Tudo isto a significar que a situação social e financeira de ambos é mediana.
Assim, ponderando estas circunstâncias, para determinação da compensação a título de reparação dos prejuízos causados, em conformidade com os critérios e fatores a ter em conta nos termos anteriormente expostos, considera-se adequada a indeminização arbitrada a favor da vítima, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009 e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal.

3. Decisão:
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça.
*
Lisboa, 6 de fevereiro de 2025
Alexandra Veiga
Sandra Oliveira Pinto
Ana Cristina Cardoso