I- A aplicação remissiva do regime legal no processo executivo permite a recorribilidade de acórdãos da Relação, quando se verifique a situação prevista no art. 629º. nº. 2, al. d), ou seja, a divergência essencial relativa a acórdão da Relação, em casos em que o acesso ao Supremo esteja impedido por motivos diversos dos relacionados com a alçada.
II- A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis.
Acordam em Conferência na 6ª Secção do STJ.
1-Relatório:
AA e BB, instauraram ação executiva, sob a forma de processo comum, contra Imobiliária V..., Unipessoal, Lda., para haver desta a quantia total liquidada de € 214.400,00.
No decurso do processo, em 02/03/2023, foi proferido o seguinte despacho:
«Terminado o leilão em 26-I-22, em 27-I-22 a proponente CC requereu à A.E. a anulação do leilão – requerimento que não foi deferido pela A.E., que suscitou intervenção judicial em 2-II-22; em 3-VII-22 foi determinada à A.E. a prossecução das diligências de venda, por nada obstar a tal.
Em 8-VII-22 a A.E. decidiu aceitar a proposta de CC (189.181,81€); não tendo sido efetuado o depósito do preço, em 20-X-22 a A.E. decidiu (CPC 825º/1) aceitar a proposta de valor imediatamente inferior (187.308,72€).
Em 3-XI-22 a primeira proponente reclamou da decisão supra – alegando omissão de pronúncia (quanto ao requerimento que apresentou em 27-I-22, e referindo outros requerimentos, de 14-II-22 e 21-I-22), e declarando que os prédios penhorados “jamais podiam ser vendidos”.
Importa apreciar – sendo certo que este segundo fundamento deveria ter sido invocado em reclamação da decisão de venda, e que os requerimentos de 31-I-22, 14-II-22 e 21-II-22 foram já apreciados por despacho de 3-VII-22.
Dispõe o nº 1 do artigo 837º do CPC que “À venda em leilão electrónico aplicam-se as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão em tudo o que não estiver especialmente regulado na portaria referida no nº 1.” –
estabelecendo o artigo 25º da portaria 282/13 de 29-VIII que “À falta de pagamento do preço no prazo legal é aplicável o disposto no artigo 825º do CPC, devendo as condições de pagamento ser definidas nas regras do sistema.”.
Face às regras supra, não se vislumbra motivo para revogar a decisão da A.E. – julgando-se improcedente a reclamação.
Sem custas (por não se tratar de incidente tributável).
Notifique».
Inconformada com o teor de tal decisão, a Interveniente Proponente CC apresentou, em 21/03/2023 competente recurso o qual foi julgado totalmente improcedente pela Relação.
Ainda inconformada, interpôs a interveniente recurso de revista, nos termos do artº 629 nº. 2 alínea d), 671 nº 1e 2 e 674 nº 1 alínea a) todos do C.PC., cuja minuta concluiu da seguinte forma:
1 – Nos autos impõe-se ainda as pronúncias oficiosas, perante as ilegalidades manifestas constantes dos autos principais de Execução, nos termos do disposto no artº 734 do C.R.P. Apesar disso,
2 – Continua em aberto nos autos a manifesta ilegalidade da penhora do prédio descrito sobre a descrição nº ..13 da Conservatória do Registo Predial de ..., pela existência de falta de harmonização das áreas nos termos do disposto no artº 28 e 28-A do C.R.P.
3 - A área de tal, na matriz é de 5280 m2 e na descrição registral é de 3850 m2, o que ultrapassa as normas legais, para o caso, pois se trata de um prédio rústico submetido ao cadastro (concelho de ...).
4 – E, reconhecendo a existência de tal desarmonização ilegal, limitou-se o tribunal, a referir que tal discrepância é “facilmente retificável “, sem dizer por quem, pois a lei (artº 28-A do C.R.P) impõe que tal retificação apenas possa ser efetivada pelo proprietário – no caso a executada Imobiliária..., Unipessoal, Lda. – e previamente à penhora, dando assim, o tribunal cobertura à ilegalidade da penhora.
5 – Contrariando claramente a doutrina existente sobre a matéria e deferida pelo I.R.N (Instituto Registo e Notariado) conforme parecer invocado nos autos, e precisamente constante do livro “ As funções do Agente de Execução – Livraria Almedina – 2022 – Pág.. 418 a 423) , que defende a impenhorabilidade dos imóveis que se encontrem em tais condições , como é o caso dos autos, e consequentemente a ilegalidade, caducidade e nulidade das penhoras, efetuadas contra tal entendimento e assim contra a lei.
6 - E assim fazendo, o Acórdão recorrido, produziu decisão em contradição com o entendimento sobre a mesma matéria, constante do Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Junho de 2000 – Proferido no âmbito do Proc. Nº 505/98 do ...º Juízo do Tribunal de ..., acórdão confirmado pelo Tribunal Constitucional em 30 de Maio de 2001 – Proc. 610/00 – 2ª Secção – Acórdão Nº 261/01 do qual se protesta juntar certidão judicial com menção de trânsito em julgado.
7 – Ao defender tal posição, o Acórdão recorrido, dá cobertura à ilegalidade invocada sobre o leilão eletrónico, impugnado nos autos, que, face ao exposto como tal, deve ser declarado. Pelo contrário,
8 – O Acórdão Fundamento, entende que sem a retificação da discrepância feita pelo proprietário do imóvel nos termos legais (artº 28-A C.R.P), não é admissível a penhora, tornando-se o imóvel impenhorável.
9 – Deve assim ser declarada a invocada contradição entre o Acórdão recorrido desta Relação proferido em 23 de Maio de 2024, quanto à decisão sobre a legalidade da penhora sobre a descrição Nº ..13, e o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28 de Junho de 2000, cuja certidão judicial vai ser junta aos autos ( Artº 629 nº 2 alínea d) do C.P.C).
10 – E nessa medida revogado o Acórdão recorrido, e substituído por outro que julgue procedente o recurso, quanto à decisão impugnada, declarando-se ilegal e assim nula a penhora dos autos referente à descrição ..13, e por consequência o leilão eletrónico identificado nos autos, e assim a respetiva venda, sem efeito, tudo com as legais consequências.
11- O aliás douto Acórdão recorrido, mostrando-se em contradição com o invocado Acórdão Fundamento, viola o disposto no artº 734 do C.P.C e os artº 16, 28 e 28-A do C.R. Predial.
O Exmo. Relator proferiu o seguinte despacho:
«A questão que suscito na presente fase processual respeita à admissibilidade do recurso.
Estamos diante de uma execução e perante um despacho interlocutório.
Preceitua o artigo 854.º CPC: Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependentes de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e oposição deduzida contra a execução.
É manifesto que a hipótese vertente não cabe no âmbito da parte final deste artigo.
O primeiro segmento remete-nos para o artigo 629.º, 2 alíneas a) a c) e, se tivesse sido oferecido como acórdão fundamento um acórdão do STJ (segue-se nesta Secção a tese restritiva), a alínea b) do n.º 2 do artigo 671.º.
Ora nem uma nem outra hipótese se verifica.
Não se invoca ofensa das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia, ou do caso julgado. Também não se suscita questão atinente ao valor da causa ou ofensa de jurisprudência uniformizada.
A alínea d) do número 2, como se tem maioritariamente entendido, refere-se a processos em que, por exclusão expressa da lei, nunca pode haver recurso para o STJ, independentemente do valor do processo em concreto, como é o caso dos procedimentos cautelares, dos processos de jurisdição voluntária ou do processo de expropriação (Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª ed., Vol. 3, Almedina, Coimbra, 2022:35).
Por último a recorrente oferece como oposição um acórdão da Relação de Évora e não do Supremo.
Pelo exposto, não admito o recurso».
Deste despacho veio a ora requerente, requerer Conferência, a pugnar pela admissibilidade do recurso, ao abrigo dos artigos 852º, 854º, 671 e 629º., nº 1 e nº. 2 al. d), todos do CPC., invocando a contradição que entende existir entre o acórdão recorrido que permite a penhora de um imóvel com as áreas desarmonizadas e o acórdão fundamento proferido pelo TRE.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
Nos autos estamos na presença de um recurso em sede de processo executivo atinente a uma questão interlocutória.
Conforme dispõe o art. 852º do CPC., aos recursos de apelação e de revista de decisões proferidas no processo executivo são aplicáveis as disposições reguladoras do processo de declaração e o disposto nos artigos seguintes.
E, nos termos do disposto no art. 854º do CPC., sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução.
Alude Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª. ed., pág. 606 «A aplicação remissiva do regime legal permite ainda identificar a recorribilidade de acórdãos da Relação previstos no nº. 2 do art. 671º do CPC., ou quando se verifique alguma das situações previstas no art. 629º. nº. 2, als. a), b), c) e d) (divergência essencial relativa a acórdão da Relação, em casos em que o acesso ao Supremo esteja impedido por motivos diversos dos relacionados com a alçada).
A al. d) do nº. 2 do art. 629º. do CPC. abarca a situação do caso concreto, pois, aqui se convoca a contradição com um outro acórdão da Relação, quando o recurso de revista está vedado por razões não ligadas ao valor do processo ou da sucumbência.
Concede-se, assim, a possibilidade de pronúncia por parte do STJ., sobre divergências das Relações em matérias que nunca poderiam ser apreciadas pelo Supremo, porque o recurso para este tribunal estaria afastado à partida.
Independentemente de estarmos perante recurso de decisão interlocutória de 1.ª instância, em sede de procedimento de venda executiva do bem penhorado, aplica-se sem mais o art. 854º do CPC: irrecorribilidade em revista e aplicação do art. 629º, 2, seja para decisões finais, seja para decisões interlocutórias “velhas”.
Assim, atenta a aplicabilidade do art. 629 nº. 2 do CPC., no seu todo, incumbe aqui aquilatar da existência ou não da suscitada contradição.
Como se escreveu no Ac. do STJ, de 19-12-2023, in http://www.dgsi.pt.«A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias».
A contradição de julgados exige, assim, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais, sendo as soluções em confronto, divergentes e no domínio da mesma legislação.
A exigência de identidade do núcleo essencial das situações de facto é fundamental, pois, inexiste conflito jurisprudencial quando a diversidade de soluções jurídicas alcançadas para a composição dos interesses em litígio, num e no outro caso, assentam em diferenciações relevantes da matéria litigiosa, decorrendo a diversa solução adotada nos dois acórdãos de particularidades da matéria de facto subjacente aos litígios ( cf. neste sentido acórdão do STJ de 02.10.2014, Processo n.º 68/03.0TBVPA.P2.S1-A).
Como referem Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 3º Vol. (3ª edição) pág. 282, “a integração da previsão da norma que é objeto de interpretações ou aplicações divergentes faz-se com factos de certo tipo e não de qualquer tipo (…) não basta uma oposição sobre a interpretação abstrata de normas jurídicas, pois está em causa a solução de casos jurídicos, por definição concretos.”
Com efeito, para se verificar uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, é necessário que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes ou equivalentes, isto é, que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o núcleo factual essencialmente idêntico ou equivalente, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória.
Só há uma verdadeira contradição entre os acórdãos, quando a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta na decisão em confronto.
Vejamos então:
Alega a recorrente que os prédios penhorados jamais podiam ser vendidos, atenta a existência de desarmonização da área registada de 3850 m2 com a área inscrita na matriz rústica de 5280 m2.
No acórdão recorrido escreveu-se o seguinte:
«Em primeiro lugar, urge referenciar que, após compulsarmos o teor das inscrições matriciais e das descrições prediais dos prédios objeto de venda, a existir efetiva discrepância de áreas, esta é apenas referente ao prédio descrito na CRP de ... sob a o nº. ..13, identificado sob o nº. 1 no auto de penhora referenciado no ponto 2 do relatório supra, e não já ao demais imóvel descrito na mesma Conservatória sob o nº. ..66.
Por outro lado, não descortinamos como a aludida discrepância pode inquinar o leilão realizado, conducente à sua anulação.
Ora, desde logo, tal discrepância, a comprovar-se, é facilmente retificável, mediante os mecanismos processuais próprios e, por outro, à ora Recorrente invocante nenhum putativo prejuízo advém, atento o facto de, apesar de ter apresentado a melhor proposta, não a ter consumado, por falta de pagamento do preço.
Por outro lado, os Exequentes Adjudicantes, potencias prejudicados com tal eventual discrepância, nada vieram invocar, antes existindo a perfeita noção dos imóveis em alienação e concretamente objeto de venda, os quais foram devidamente identificados com as corretas inscrições matriciais e descrições prediais.
Donde, improcede, igualmente, o presente fundamento recursório».
Compulsado o acórdão fundamento, constatamos que estamos perante questões jurídicas e factualidade completamente diversas.
Com efeito, naquele acórdão da Relação de Évora, o qual confirmou a decisão recorrida, estava em causa um recurso de despacho da Conservadora do Registo Predial, que indeferiu uma reclamação contra a recusa de converter em definitivo um registo provisório da penhora sobre prédio urbano.
A questão era de saber se obsta à inscrição de um facto sujeito a registo a divergência entre a descrição predial e a certidão matricial relativamente à área coberta. O prédio sofrera sucessivas alterações na área coberta e estas alterações não foram participadas pelo titular inscrito para a averbação na descrição predial. E não ser possível inscrever definitivamente facto que incida sobre prédio cuja área apresenta valores diferentes na descrição predial e na inscrição matricial.
No acórdão fundamento escreveu-se a concluir, que uma divergência entre a matriz e a descrição quanto à área de um prédio urbano, como a daqueles autos, que afeta a própria identificação do prédio, obsta à conversão em definitivo do registo provisório por dúvidas e da penhora sobre o mesmo prédio.
Estava em causa o dever de o Conservador do Registo Predial verificar a identidade de um prédio.
Como se constata, as situações factuais e as subsunções jurídicas são divergentes, não se verificando qualquer contradição entre os acórdãos das Relações.
Sumário:
- A aplicação remissiva do regime legal no processo executivo permite a recorribilidade de acórdãos da Relação, quando se verifique a situação prevista no art. 629º. nº. 2, al. d), ou seja, a divergência essencial relativa a acórdão da Relação, em casos em que o acesso ao Supremo esteja impedido por motivos diversos dos relacionados com a alçada.
- A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis.
Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em Conferência, ainda que por fundamentação diversa, em não admitir o recurso de revista interposto, indeferindo-se a reclamação.
Custas a cargo da reclamante, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie.
Notifique.
Lisboa, 28-1-2025
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora por vencimento)
Ricardo Costa
Luís Correia de Mendonça (vencido nos termos do despacho que proferi e acima transcrito).