I. Qualquer causa ou demanda tem actualmente um único valor, que releva, para feitos processuais, por um lado, e de determinação do valor da taxa de justiça, por outro
II. Tendo sido fixada pelo juiz, num processo especial de revitalização, o valor da acção em 30.000$00, não é admissível recurso para o STJ.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Concluiu a sua minuta da seguinte forma:
«A. Existe manifesto erro na interpretação da decisão singular quanto ao valor da ação e quanto à intenção da Mm. ª Juiz de Primeira Instância, no que respeita ao valor para efeitos de custas, e apenas para esse efeito tributário.
B. O valor da ação, ao contrário do entendimento vertido no despacho objeto de reclamação, não é de 30.000,00€, outrossim de 30.000,01€ (valor este alegado em sede de Requerimento Inicial, não colocado em causa por nenhum dos intervenientes e não alterado por nenhum despacho/sentença judicial) ou, seguindo-se o disposto no artigo 15.º do CIRE, o valor do ativo da Recorrente que ascende, largamente a alçada da Relação, cifrando-se em milhões de euros.
C. O despacho proferido pela primeira instância, supracitado, determinou o valor de 30,000,00€ só e apenas para efeitos de custas – e não para efeitos de valor da ação.
D. E note-se, no Requerimento Inicial, a Recorrente indicou como valor da ação – porque à data era de difícil cálculo o valor exato do ativo da Recorrente – e também de forma a precaver a situação a que os presentes autos chegaram atualmente, indicou o valor de ação de 30.000,01 € (trinta mil e um euros).
E. Esta indicação resulta do facto de o ativo da Recorrente ser da ordem dos milhões de euros e de modo a permitir também que a causa tivesse alçada que permitisse o recurso para todas as instâncias recursivas, nomeadamente o Supremo Tribunal de Justiça.
F. Acresce ainda a este facto, quer para efeitos de apresentação de Requerimento Inicial, quer para efeitos de apresentação do Recurso de Revista, procedeu ao pagamento das respetivas taxas de justiça pelo valor de 30.000,01€.
G. Também, no despacho que homologou o Plano aprovado vemos que, em nenhum momento, foi decidido de forma diversa o valor da ação indicado pela Recorrente em sede do seu Requerimento Inicial.
H. Tal como em toda a tramitação processual, inexiste decisão alguma que altere o valor da ação indicado no Requerimento Inicial, quer despacho, quer algum requerimento por parte de credores e/ou intervenientes e, muito menos, o trecho da sentença referente ao valor para efeitos de custas.
I. Neste sentido já entendeu este STJ na jurisprudência supracitada, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/10/2020, relatado por Raimundo Queirós, no âmbito do processo n.º 298/19.0T8O.AZ.P1.S1, e de 11/07/2019, proc. 3461/15.
J. Estando assim cumprido o requisito exigido pelo artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) e art. 44.º da LOSJ quando se entenda que o mesmo é aplicável por força do artigo 17.º do CIRE.
Sem prescindir,
K. Caso o supra alegado não fosse tido em conta, deveria ser o valor da ação aferido nos termos do artigo 15.º do CIRE, foi indicado como valor da ação, no Requerimento Inicial, a quantia de 30.000,01 Euros, sendo certo que as regras de indicação do valor da causa em sede de processo de insolvência se regem pelo preceituado no artigo 15º do CIRE, isto é, terá o valor do ativo que tiver sido indicado pela Insolvente, o qual será corrigido logo que se verifique ser diverso do valor real.
L. O valor do ativo ascende a milhões de euros e em nenhum momento foi fixado o valor daaçãopor um lado de formadiferente do Requerimento Inicial e,por outro, tendo em conta o ativo nos termos do artigo 15.º do CIRE.
M. Assim, concluída a fase inicial do processo, em que se encontra totalmente determinada a relação de bens do devedor, deve o valor inicialmente atribuído à causa ser alterado, oficiosamente, para o valor real do ativo do devedor.
N. Deveria, então, nos termos da norma supratranscrita, o valor da ação a ter-se em conta ser o do ativo (milhões diga-se) – com exceção para efeitos de custas onde efetivamente se verificou uma expressa decisão no despacho homologatório, mas que não coloca em causa o valor da ação de 30.000,01, aliás conforme foi autuado todo o processo em sede de Primeira Instância e conforme foram pagas as taxas de justiça pela Recorrente.
O. Assim, é certo que o valor da ação para efeitos de determinação da alçada e admissibilidade de recurso (caso assim se entenda como necessário) terá de ser aferido, precisamente, nos termos do artigo 15.º do CIRE, isto é, com referência ao ativo da Recorrente – não se podendo simplesmente assumir o valor determinado para efeitos meramente tributários.
P. Consequentemente, o valor real da presente ação, traduzindo-se no valor do ativo daReclamanteouaconsideraçãodovalorindiciadoinicialmente,sempreconvoca um valor superior a 30.000,01€ e, portanto, sendo um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre nos termos e para efeitos do artigo o 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), quando se considere o mesmo aplicável por força do disposto no artigo 17.º do CIRE – o que, sem mais, inequivocamente importa a admissão do recurso.
Por fim,
Q. Existem também entendimentos (nomeadamente na Jurisprudência) que esta questão da alçada do Tribunal não se aplica no âmbito do CIRE que se rege pelo disposto no artigo 14.º, que é um regime especifico e que afasta a lei geral.
R. É um recurso atípico, que privilegia a uniformização de jurisprudência neste tipo de processos, em detrimento das regras de admissibilidade de recurso – e o artigo 14.º do CIRE não impõe o requisito da alçada, não sendo admissível qualquer interpretação extensiva.
S. Neste sentido a jurisprudência e Doutrina supracitados e que são claras neste sentido, o que levaria também, indubitavelmente, à admissão do recurso apresentado pela Recorrente.
T. Além do mais, entende a Recorrente que o conteúdo do despacho de não admissão do recurso inicial e, por conseguinte a decisão singular, sempre enferma em inconstitucionalidade, por violação do acesso à justiça e do direito à tutela jurisdicional efetiva, prevista no artigo 20.º da CRP; bem ainda o principio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP; também o principio da proporcionalidade, nos termos do art. 17.º e 18.º da CRP, quanto à restrição dos direitos, liberdades e garantias, quando vemos um recurso para o STJ não ser admitido por um mero erro material ou erro de interpretação do valor da causa e, mais grave ainda, da desproporcionalidade de 1 cêntimo quando os interesses dos stakeholders, nomeadamente trabalhadores, que ficam prejudicados sem a homologação do plano, ascendem aos milhões de euros.
U. Não tendo qualquer aplicabilidade os Acórdãos do Tribunal Constitucional citados no despacho singular.
V. Ao decidir como fez é denegado o acesso à justiça por parte da Recorrente, o acesso a obter uma decisão do Supremo Tribunal quando a decisão recorrida se encontra em clara contradição com outras decisões proferidas por Tribunais superiores, nem o acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos de todos os intervenientes.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o douto despacho ser revogado, sendo admitido o recurso apresentado pela aqui Reclamante e ordenada a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça».
Não tem razão a reclamante. Como facilmente se constata, a reclamante limita-se a reproduzir agora a argumentação que anteriormente ofereceu para formular a reclamação originária.
Ora não se vislumbram razões para nos afastarmos da decisão do relator. Apenas achamos que se deve desenvolver um pouco mais a argumentação no que refere ao segundo fundamento da reclamação.
Vejamos em que termos.
Constituem fundamentos da reclamação:
1. O despacho de não admissão de recurso não é conforme com a intenção do legislador, nem com a posição unânime na jurisprudência, não se aplicando ao caso regras gerais dos recursos previstas no CPC, quando estamos perante recursos do CIRE e, portanto, que o requisito da alçada não ser exigido ao recurso aqui apresentado.
2.O valor fixado no primeiro grau foi fixado única e exclusivamente para efeitos de custas de forma a desonerar a aqui Recorrente/Devedora de incorrer em custas num momento em que se encontra numa situação economicamente difícil, pois claro está, se a sentença de primeira instância tivesse por base o valor do ativo da Devedora para efeitos de custas (ativo de milhões de euros) iria onerar desproporcionalmente a devedora colocando em causa a sua recuperação que foi devidamente viabilizada pelo Tribunal de Primeira Instância com a homologação do plano aprovado.
3. O recurso deve ser admitido, sendo inconstitucional não admitir um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que verse sobre ativos e passivos que ascendem os 30 milhões de euros, decisão que incidirá sobre a vida de milhares de trabalhadores na empresa aqui Recorrente, com implicâncias sérias do ponto de vista pessoal e económico de todos os envolvidos – stakeholders (trabalhadores, fornecedores, clientes etc.), credores, financiadores, Autoridade Tributária, Segurança Social etc. etc. – por uma questão de 1 cêntimo fixado em sede de primeira instância única e exclusivamente para efeitos de custas…
Ao não se admitir o recurso violam-se os artigos 13.º, 17.º, 18.º, 20.º e 202.º da Constituição Republicana de 1976.
Vejamos de novo, cada uma de per se, as referidas questões.
1. Quanto ao regime aplicável ao valor da causa nos processos sujeitos ao CIRE, argumentou-se o seguinte:
«O CIRE contém dois artigos sobre o valor da causa: o artigo 15.º, sob a epígrafe valor da acção, preceitua que para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real: por sua vez, sob a epígrafe valor da causa para efeitos de custas, o artigo 301.º estipula que para esses efeitos, o valor da causa no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153.º é o equivalente ao da alçada da Relação, ou ao valor aludido no artigo 15.º, se este for inferior; nos demais casos, o valor é o atribuído ao activo no referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for o caso (artigos aplicáveis ao PER ex artigo 17.º-A CIRE),
Como esclarece Luís Menezes Leitão, na linha da anterior anotação de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda ao artigo 11.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, no referido artigo 15.º o legislador previu um valor provisório da causa, estabelecido sobre o valor do activo do devedor, indicado na petição, sendo alterado se se verificar ser diferente do valor real do activo (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022:75).
De acordo com o acórdão do Tribunal Constitucional 328/2012, de 27.6.2012, o critério subjacente ao citado artigo 15.º «adequa-se à ideia de que o valor do ativo constitui a medida máxima de satisfação dos créditos que se afigura possível no decurso do processo de insolvência e, portanto, que esse é o valor que corresponde à utilidade económica da execução universal na perspetiva dos credores».
O valor provisório estabelecido de acordo com este critério pode ser alterado por iniciativa oficiosa do juiz.
Na verdade, ao contrário do que entende a reclamante, nada veda a que, pese embora existirem no CIRE regras recursivas especiais (cfr. artigo 14.º), sejam aplicáveis aos processos concursais as regras gerais definidas no código de processo civil para os recursos.
Na verdade, o artigo 17.º, 1 do CIRE optou por uma aplicação subsidiária integral do código de processo civil e é jurisprudência firme deste supremo tribunal a ideia de que «o art. 14.º do CIRE – ao restringir a admissibilidade do recurso de revista à hipótese de o acórdão recorrido estar em oposição com outro – não dispensa a verificação das condições gerais de admissibilidade de recurso, entre as quais figura a relação entre o valor da causa (e da sucumbência) e a alçada» (Ac. STJ de 18.9.2014 – Proc. 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1).
Os citados artigos 15.º e 301.º do CIRE devem, por conseguinte, ser articulados com as regras gerais do CPC, designadamente, desde logo, com os artigos 296.º e 306.º: i) a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, sendo que é este valor que se atende para determinar a relação da causa com a alçada do tribunal (artigo 296.º, 1 e 2 CPC); ii) compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo da indicação que impende sobre as partes (artigo 306.º, 1).
Não se sufraga, pois, a opinião da reclamante quanto ao regime aplicável.
2. A teleologia subjacente à fixação do valor da causa no primeiro grau
Entende a reclamante que o valor do processo fixado «no primeiro grau foi fixado única e exclusivamente para efeitos de custas de forma a desonerar a aqui Recorrente/Devedora de incorrer em custas num momento em que se encontra numa situação economicamente difícil, pois claro está, se a sentença de primeira instância tivesse por base o valor do ativo da Devedora para efeitos de custas (ativo de milhões de euros) iria onerar desproporcionalmente a Devedora colocando em causa a sua recuperação que foi devidamente viabilizada pelo Tribunal de Primeira Instância com a homologação do plano aprovado».
Não me parece que se possa assim interpretar o despacho em questão.
Na sentença de 21.12.2023 lê-se o seguinte: «Quanto ao valor da acção, cumpre atentar que, por força do disposto no artigo 301º do CIRE, disposição aplicável por remissão do artigo 17º-A nº 3 do mesmo código, para efeitos de custas, o valor da causa no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153º é o equivalente ao da alçada da Relação, ou ao valor aludido no artigo 15º, se este for inferior; nos demais casos, o valor é o atribuído ao activo no referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for o caso.
Nesta medida, atendendo a que no processo especial de revitalização não existe determinação do valor do activo, manifesto será concluir que o valor da causa para efeitos de custas corresponderá a € 30.000,00».
Como é sabido o valor da causa, fixado pelo juiz ex artigo 306.º CPC, é válido para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal (artigo 296.º, 2).
O artigo 296.º, 3 CPC dispõe ainda que para efeitos de custas judiciais o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no presente diploma, e no Regulamento das Custas Processuais.
À luz do regime de pretérito podia afirmar-se que para cada causa, haverá sempre que ter em conta dois valores: um valor fiscal, dependente da aplicação das regras contidas no Código das Custas; um valor processual determinado pelos critérios dos artigos 297.º e seguintes do Código de Processo Civil (Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. II, 3.ª ed., Lisboa, 2000:85).
Isto sem prejuízo de esses valores coincidirem. Nada o impedia.
Acontece que aquele artigo 296.º, 3 já não corresponde á realidade.
No momento em que o juiz do primeiro grau fixou o valor da causa, a lei já não autonomizava o valor da causa para efeitos de custas (Salvador da Costa, As Custas Processuais, 10.º ed., Almedina, Coimbra, 2024:139).
Regia, ao invés, o artigo 11.º do Regulamento das Custas Processuais, de acordo com o qual «a base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com o acertos constantes da tabela I, e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respectivo».
Ora, as regras a que este artigo se refere, no caso do CIRE, para fixação do valor processual da causa são os citados artigos 15.º e 301.º.
Como nota Salvador da Costa, neste caso o valor da causa para efeitos de custas não tem autonomia e deve ser consumido pela sua vertente/função processual (idem).
Em suma, «qualquer causa ou demanda tem actualmente um único valor, que releva, para feitos processuais, por um lado, e de determinação do valor da taxa de justiça por outro. Regendo para esta última situação o artigo 11.º do Regulamente das Custas Processuais» (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13.ª ed., Almedina, Coimbra, 2024:20).
Acresce que como é sabido, cabe ao primeiro grau fixar o valor da causa no despacho saneador - salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença -, segundo as regras previstas nos artigos 297.º e seguintes, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.
Se a parte interessada não concordar com o valor indicado pela outra parte ou o fixado pelo juiz, deve suscitar o respectivo incidente ou impugnar o despacho judicial, o que não ocorreu.
O desembargador/relator julgou inadmissível o recurso.
A nosso ver bem.
O artigo 629.º, 1 CPC estabelece que só é admissível recurso ordinário quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, o que significa que, para a revista ser admissível, teria a causa de apresentar um valor superior a €30.000,00 que é o valor da alçada da Relação (artigo 44.º, 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
.O primeiro grau fixou em €30.000,00 o valor da causa. A fixação do valor da causa pelo juiz pode ser impugnada pelas partes, nos termos gerais. Tendo o juiz fixado o valor da causa e não tendo havido recurso dessa decisão, a fixação operada torna-se definitiva, por virtude do caso julgado formal (artigo 620.º CPC), que os tribunais superiores têm de acatar.
Como a causa não tem valor superior ao da alçada da Relação, falha o principal requisito de recorribilidade, o que implica a não admissão do recurso.
Entende o recorrente que esta decisão viola os artigos 13.º, 17.º, 18.º, 20.º e 202.º da CRP.
Não tem razão.
O direito de acesso aos tribunais significa antes de mais garantia da via judiciária ou, dito de outro modo, direito à protecção jurídica através dos tribunais, mediante um processo equitativo (artigo20.º, 3).
A plenitude do acesso aos tribunais postula um direito de recurso.
No entanto, é jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos (Pareceres da Comissão Constitucional nºs. 8/78 (5º vol.) e 9/82 (19º vol.) e o Acórdãos TC 72/99 e 431/02.).
Na verdade, na interpretação do disposto no artigo 20º, 1 CRP, o Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que a Constituição não consagra um direito geral de recurso das decisões judiciais, salvo ex artigo 32.º,1 daquelas de natureza criminal condenatória, respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (Acórdãos TC 265/94 e 390/04).
Tem-se também entendido que o estabelecimento de alçadas e a existência de outros filtros limitadores da recorribilidade das decisões judiciais, não ofendem o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Fora do domínio penal, o princípio da efectividade do direito ao recurso, a implicar duplo grau de recurso, não constitui garantia constitucional, tendo esta apenas «o alcance de uma proibição ao legislador de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou de a inviabilizar na prática» (Acórdão TC 310/94) ou de vedar às partes uma completa percepção do conteúdo das sentenças judiciais e a possibilidade de reacção contra determinados vícios da decisão (Acórdão TC 485/00).
Como se lê no Acórdão do TC 77/01 «havendo de reconhecer-se ao legislador uma ampla margem de liberdade no exercício da sua actividade de emissão normativa, também haverá de aceitar que possa o mesmo emitir normação diversa reguladora quanto ao modo ou possibilidade de impugnação de decisões judiciais consoante, nomeadamente, o tipo e objectivo de acções, também elas diversas».
Sendo assim as coisas, nada na constituição torna obrigatório a garantia de acesso a um terceiro grau de recurso, nem nada também impede que aos recursos sejam levantados filtros que funcionem como mecanismos de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas as acções (ou da sua maioria) aos diversos ‘patamares’ de recurso.
Vejamos agora se foi violado o princípio da igualdade consagrado, designadamente, nos artigos 13.º da CRP e no artigos 4.º do CPC.
Este artigo 13.º é imediatamente produtivo de efeitos jurídicos (artigo 18.º CRP), comportando a inconstitucionalidade das leis que introduzam derrogações à geral eficácia das leis aplicáveis a todos os cidadãos ou distinções entre estes não consentidas.
Segundo José Lebre de Freitas ("Introdução ao Processo Civil" - Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, pp. 105-106), o princípio da igualdade de armas impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a diversidade das posições das partes impossibilita, exige, porém, a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticas, sempre que a sua posição perante o processo é equiparável, e um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigualdade objectiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte meios processuais não atribuíveis à outra».
Existe abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao princípio da igualdade.
Afirma-se que «o princípio da igualdade não tem uma dimensão única. Na realidade, ele desdobra-se em duas “vertentes” ou “dimensões”: uma, a que se refere especificamente o n.º 1 do artigo 13.º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio legislativo; outra, a referida especialmente no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade » (Acórdãos 335/94, 232/2003, 569/2008 e 581/2014).
As normas delimitadoras dos recursos não estabelecem de modo injustificado, intolerável, irrazoável ou arbitrário um regime discriminatório para uma das partes da acção, de molde a tornar a posição processual de uma desvantajosa em relação à outra, no tocante ao gozo dos meios adjectivos postos à sua disposição. Todas estas partes são tratadas em absoluta paridade de condições.
No que se refere , por último, ao princípio da proporcionalidade, feito radicar no artigo 18.º, 2 da CRP, seguindo a lição de Jorge Reis Novais (Princípos Estruturantes de Estado de Direito, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022), o princípio da proibição do excesso integra três subprincípios, a saber: o princípio da aptidão –ou da idoneidade) que impõe que haja uma relação de correspondência racional –de meio-fim-entre a medida restritiva e o fim visado pela restrição; o princípio da necessidade (ou da indispensabilidade ou da exigibilidade a que atribui o sentido de se dever escolher o meio menos restritivo ou menos agressivo possível para atingir o fim; o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, respeita à relação de justa medida ou de adequação entre o sacrifício imposto pela restrição e o benefício por ela produzido.
Ora, também neste caso não se pode acompanhar a reclamante.
Não se vê em que vedar o recurso para o Supremo Tribunal, por motivo do valor da alçada, de uma decisão que versa sobre um montante elevado de activos e passivos de uma empresa e que terá repercussões na vida de um número elevado de trabalhadores e na esfera jurídica de fornecedores, clientes, credores, financiadores, etc. pode atentar contra o princípio da proibição do excesso.
Em primeiro lugar, atendendo a que a restrição ao direito de recurso é imposta por razões de serviço, pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais, com o inerente dispêndio de meios, existe uma inequívoca aptidão do meio restritivo a este fim.
Por outro lado, o controlo da proporcionalidade remete para uma relação meio-meio Trata-se agora de saber se existe um meio mais suave ou menos restritivo do mencionado direito.
É reconhecidamente mais complexo o controlo deste aspecto. Para prosseguir o mesmo fim há normalmente meios menos restritivos do que aquele que foi utilizado. Mas daí não se segue que todos os meios escolhidos pelo legislador sejam inconstitucionais, porquanto quase sempre existe uma alternativa menos restritiva do que aquela que foi escolhida.
No desenvolvimento desta ideia, pode dizer-se que, havendo, no caso sujeito, múltiplas alternativas ao valor da alçada da Relação, como, por hipótese, €30.000,00, menos 1 cêntimo, estabelecer qualquer outro valor na prossecução do mesmo fim, seria inconstitucional.
Esta argumentação conduz a resultados inaceitáveis.
Só existirá inconstitucionalidade por violação da indispensabilidade do meio, quando existir um meio alternativo que se mostre comprovadamente menos agressivo das garantias constitucionais, sem perda sensível da efectividade na prossecução do fim.
No caso sujeito, não é possível apresentar uma alternativa credível ao valor da alçada, que se mostre tão ou mais eficaz do que €30.000,00, para alcançar o fim escolhido, e com menos danos na liberdade individual.
Finalmente, a relação entre a medida restritiva concretamente decidida pelo legislador está numa relação de justa medida relativamente ao fim em vista, ou seja, é proporcionada.
A fixação de um valor fixo para a alçada da Relação, dentro do qual não são admitidas recursos para o supremo, não fere qualquer norma constitucional, antes consagra um critério firme e isonómico para o exercício do direito de recurso, resultado e um balanceamento adequado dos direitos e interesses em presença.
Em suma, a reclamação deve ser indeferida».
Quanto ao montante da taxa de justiça leva-se em consideração o penúltimo rectângulo da tabela II a que se refere aquela disposição legal.
Custas pela reclamação pela reclamante com taxa de justiça que fixo em 2,5 UC.
Luís Correia de Mendonça (Relator)
Teresa Albuquerque
Cristina Coelho