I – A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.
II - O DL 323/2001, de 17-12, sem alterar o valor das alçadas, procedeu, à conversão em euros dos valores expressos em escudos, tendo em vista a utilização, em exclusivo, do uso do euro como moeda em território nacional, alterando, em conformidade, a redacção do n.º1 do artigo 24.º da Lei 3/99, de 13.01.
III – Em acção interposta em data anterior à entrada em vigor das alterações de redacção do artigo 24.º, n.º1 da Lei 3/99, introduzidas pelo DL 323/2001, de 17-12, o valor de €14.963,94 atribuído à causa, em sentença proferida em 02-05-2029, com o qual as partes se conformaram e que, por isso, se terá de considerar definitivamente fixado, não pode ser convertido em escudos, para efeitos de admissibilidade do recurso, por efeito de aplicação de uma fórmula, que se consubstancia na utilização de uma operação inversa à determinada pelo citado DL 323/2001.
1. O Novo Banco, SA veio interpor recurso de revista (ao abrigo do artigo 671.º, nº 1, do Código de processo Civil - CPC) do acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Lisboa (em 31-10-2023), que julgando improcedente a apelação por si interposta, confirmou a sentença proferida nos autos (apensos XE e XB)1, nos termos da qual e fundamentalmente foi decidido:
Relativamente ao apenso XE:
- procedência da excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da Autora Herança ilíquida e indivisa por óbito de AA e mulher BB, com abstenção de conhecer do peticionado por aquela e a consequente absolvição dos Réus da instância;
- procedência total da acção, declarando os Autores donos e legítimos proprietários do prédio urbano, descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º …05, da freguesia de ..., com a condenação das Rés J..., Lda. e I..., Lda. a desocupar o identificado prédio, entregando-o livre de pessoas e bens aos referidos AA. e a absterem-se de se opor à sua utilização por aqueles.
Relativamente ao apenso XB:
- improcedência da acção com absolvição dos Réus do pedido.
2. Em contra-alegações os Recorridos (AA, CC e DD), manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, invocam ocorrer uma situação de dupla conformidade decisória.
3. O tribunal recorrido proferiu despacho de admissão do recurso (em 14-08-2024) com fundamento no facto de não ser aplicável a restrição da admissibilidade da revista decorrente da dupla conformidade de julgados por a acção ter entrado antes de 1 de Janeiro de 2008,
4. Proferida decisão singular de não conhecimento do objecto do recurso por inadmissibilidade da revista, vem a Recorrente reclamar para a conferência, requerendo a revogação do despacho proferido. Conclui essencialmente:
“(…) B. Com efeito, a douta Decisão Singular (i) estabelecendo a aplicação imediata do DL 323/2001, de 17.12, por a conversão dos escudos em euros resultar de imposição legal e (ii) considerando o valor fixado à causa, €14.963,94, conclui que não conhece o objecto do recurso, por não se verificar o pressuposto geral de admissibilidade da revista (causa com valor superior à alçada do Tribunal da Relação).
C. Ora, atendendo que, a) a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção; b) o apenso XE remonta a Fevereiro de 2001,
D. A redacção do art.º 24.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aplicável in casu é a da sua primeira versão constante da Lei n.º 3/99 de 13/01, e não da segunda (e ulterior) versão dada pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17/12.
E. Com efeito, por um lado, o Decreto-Lei n.º 323/2001 entrou em vigor apenas no dia 01/01/2002 (cfr. o seu artº 4.º) e, por outro lado, o seu art.º 2.º, intitulado “norma transitória”, esclareceu que, “[a]s alterações constantes do presente diploma não prejudicam os direitos das partes em acções propostas anteriormente à sua entrada em vigor.”.
F. Ora, o art.º 2.º constitui uma disposição de direito transitório material, destinada a regular especialmente o regime de aplicação da lei no tempo.
G. Sendo que, a lei só se aplica aos factos que depois da sua entrada em vigor se operaram; e, mesmo que normativamente permitida, a retroactividade está sujeita aos limites que o n.º 2 do art.º 12.º do C. Civil lhe impõe para a sua real concretização.
H. A lei só não é injustamente retroactiva se respeitar os direitos adquiridos, podendo apenas não respeitar as expectativas.
I. Donde, é, pois, aplicável ao caso sub judice a redacção dada pela Lei n.º 3/99, de 13/01.
J. A consequência de tal asserção é a de que, é em escudos que compete aferir o valor da causa, para efeitos de se avaliar da (in)admissibilidade do recurso.
K. Isto é, “[e]m matéria cível a alçada dos tribunais da Relação é de 3000000$00 e a dos tribunais de 1.ª instância é de 750000$00”; cfr. art.º 24.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na versão da Lei n.º 3/99 de 13/01.
L. E, assim sendo, acolhendo que o valor da causa foi fixado em €14.963,94, a que corresponde o contravalor de 3.000.000$62 (200$482 x €14.963,94), o recurso é, na verdade, admissível, por ser superior à alçada efectivamente vigente à data em que foi instaurada a acção (3000000$00); entendimento cujo acolhimento se reclama.
M. A conversão que o Recorrente, ora Reclamante efectuou serviu apenas para apurar tal valor, em escudos; não para acomodar o Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17/12.
N. Outra interpretação que não esta viola o teor do art.º 2.º do assinalado Decreto-Lei n.º323/2001, por prejudicar o direito recursal do destinatário da norma, em acção proposta anteriormente à entrada em vigor de tal diploma.
O. Ao se sobrepor um argumento formal ao substancial cria-se na ordem jurídica uma situação injustamente ajurídica e coarta-se o legítimo direito da parte à sua defesa e, consequentemente, à concepção da acção judicial como o paradigma de regulação de situações jurídicas litigiosas - o direito de defesa (in casu, recursal) constitui o exercício do direito substantivo e definidor do litígio.”.
6. A decisão objecto de reclamação, que considerou inviabilizada a pretendida revista, tem o seguinte teor:
“(…) 2. Relativamente aos requisitos gerais de admissibilidade do recurso, atento o que dispõe o artigo 629.º, n.º1, do CPC, o recurso de revista só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada da Relação (tribunal de que se recorre, no caso) e se o acórdão recorrido tiver sido desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal da Relação.
No que toca à admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas, há que considerar a lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção, pelo que, no caso, os valores da alçada da 1ª instância (3000000$00) e da Relação (750000$00)2 a ter em conta foram convertidos em euros por imposição legal, nos termos do DL 323/2001, de 17 de Dezembro, pelo que, na nova redacção do artigo 24.º, n.º1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (decorrente do artigo 3.º do anexo do referido diploma legal), o valor da alçada passou a ser de 14.963,94€ do tribunal da Relação e 3.740,98€ dos tribunais de 1.ª instância.
3. A Recorrente, em resposta à notificação das partes ao abrigo do artigo 655.º, n.º1, do CPC, vem reiterar a sua pretensão quanto à admissibilidade da revista sustentada nos seguintes argumentos:
- mostrar-se aplicável aos autos o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99 de 13.01, na sua primeira versão, não lhe sendo aplicável a ulterior versão dada pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17.12;
- ao valor da causa fixado em 14.963,94€, cabe fazer corresponder em contravalor a alçada dos tribunais da Relação aplicável no caso (200$482 x €14.963,94), obtendo-se um valor (3.000.000$62) superior à alçada efectivamente vigente à data em que foi instaurada a acção (3000000$00).
Apelando para o disposto no artigo 2.º do DL 323/2001, de 17.12, nos termos do qual as “alterações constantes do presente diploma não prejudicam os direitos das partes em acções propostas anteriormente à sua entrada em vigor.”, a Recorrente defende, pois, a aplicação nos autos de uma operação de conversão de valores inversa à determinada pelo citado DL 323/2001. Com efeito, este diploma não alterou o valor das alçadas, mas apenas procedeu à conversão em euros dos valores expressos em escudos em legislação da área da justiça, tendo em vista a utilização em exclusivo do uso do euro como moeda em território nacional; nessa medida, abrangeu a conversão em euros dos valores das alçadas que se encontravam fixados em escudos, alterando em conformidade a redacção do n.º1 do artigo 24.º da Lei 3/99, de 13.01.
E se é certo que as acções em causa foram interpostas em data anterior à entrada em vigor das alterações de redacção do artigo 24.º, n.º1 da Lei 3/99, o raciocínio da Recorrente em defesa da admissibilidade da revista em função do valor da acção descura não só que os valores da alçada da 1ª instância (3000000$00) e da Relação (750000$00) a ter, efectivamente, em conta foram convertidos em euros por imposição legal, mas, além do mais, uma realidade incontornável: a fixação definitiva do valor da acção operada na sentença, atribuindo-lhe o valor em 14.963,94€, e relativamente ao qual as partes se conformaram.”
II - Apreciando
1. A Recorrente, reafirmando os fundamentos aduzidos no requerimento apresentado após notificação do artigo 655.º, do CPC, pretende a revogação da decisão singular com proferimento de acórdão que admita o recurso de revista.
Persiste em defender que, no caso, para efeitos de avaliação da admissibilidade do recurso, impõe-se aferir em escudos o valor da causa, por lhe ser aplicável a primeira versão constante da Lei n.º 3/99, de 13-01. Propõe, para o efeito, a fórmula (200$482 x €14.963,94) na determinação, em escudos, do valor a ficcionar à acção, tendo subjacente o valor efectivamente fixado no processo (€14.963,94).
Conclui, por isso, que a correspondência em escudos do valor atribuído à causa é de 3.000.000$62, que se mostra superior à alçada vigente à data em que foi instaurada a acção (3000000$00).
Legitima o seu posicionamento no disposto no artigo 2.º do DL 323/2001, de 17-12, nos termos do qual as “alterações constantes do presente diploma não prejudicam os direitos das partes em acções propostas anteriormente à sua entrada em vigor.”.
Cremos que o entendimento defendido pela Recorrente, traduzido na aplicação, no caso, de uma operação de conversão de valores inversa à determinada pelo citado DL 323/2001, não merece acolhimento, pelo que a decisão singular proferida não pode deixar de ser reiterada.
2. Conforme salientado na referida decisão, o DL 323/2001, de 17-12, sem alterar o valor das alçadas, procedeu, na legislação da área da justiça, à conversão, em euros, dos valores expressos em escudos, tendo em vista a utilização, em exclusivo, do uso do euro como moeda em território nacional; nessa medida, abrangeu os valores das alçadas que se encontravam fixados em escudos, alterando em conformidade a redacção do n.º1 do artigo 24.º da Lei 3/99, de 13.01.
O facto das acções em causa nos autos terem sido interpostas em data anterior à entrada em vigor das alterações de redacção do artigo 24.º, n.º1 da Lei 3/99, não legitima o raciocínio em que a Recorrente faz assentar a defesa da admissibilidade da revista, que se consubstancia na utilização de uma operação inversa à determinada pelo citado DL 323/2001 (o de fazer corresponder o valor da causa fixado na sentença em 14.963,94€ em contravalor em escudos).
Com efeito, por imposição legal, os valores da alçada da 1ª instância (3000000$00) e da Relação (750000$00) a ter em conta no caso foram convertidos em euros e o tribunal de 1.ª instância, na sentença (proferida em 02-05-2019), atribuiu à acção o valor de 14.963,94€, o qual se tem de considerar definitivamente fixado uma vez que as partes quanto a ele se conformaram.
3. Assim sendo, tal como concluído na decisão singular, em face do valor da alçada da Relação (14.963,94€) a atender no caso, atento o valor definitivamente fixado ao processo (em 14.963,94€), uma vez que o mesmo se encontra contido na alçada do Tribunal da Relação, não se verifica a condição prevista no n.º1 do artigo 629.º do CPC, passível de permitir a admissão do recurso: causa com valor superior à alçada do Tribunal da Relação.
III- Decisão
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a reclamação da decisão que não conheceu do objecto do recurso por inadmissibilidade da revista.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 2 Uc´s a taxa de justiça.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2025
Graça Amaral (Relatora)
Ricardo Costa
Rosário Gonçalves
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1. Note-se que o apenso XE respeita a acção, instaurada em 15.02.2001, através da qual os Autores reivindicaram a propriedade do imóvel sustentando o seu direito em aquisição por contrato de compra e venda e por trato sucessivo. Por despacho de 03.11.2014, foi determinada a apensação desta acção à acção que corresponde ao apenso XB, atento o facto de estar em causa, em ambas as acções, o reconhecimento do direito de propriedade sobre os mesmos imóveis.↩︎
2. O artigo 3.º do DL n.º 323/2001, de 17/12 (determinando nos diplomas que menciona a conversão dos valores de escudos em euros), alterou a redacção do n.º1 do artigo 24.º da Lei 3/99 de 13, de Janeiro: “Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 14963,94 e a dos tribunais de 1.ª instância é de (euro) 3740,98.”↩︎