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CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS
EXTRAVIO DE CHEQUE
CONCURSO DE CRIMES
Sumário
1. O arguido que comunicou, por escrito, à entidade bancária que os cheques, por si emitidos, se tinham extraviado, o que sabia não corresponder à verdade, fez constar falsamente um facto juridicamente relevante, destinado a inviabilizar o pagamento dos cheques, num mero documento particular, sendo a sua conduta subsumível à previsão do art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal. 2. A comunicação efetuada traduziu-se num único ato/acesso à plataforma de netbanking e numa única ordem de cancelamento dos cheques emitidos, assente num único motivo (extravio), do que resulta que o arguido atuou ao abrigo de uma única resolução criminosa, a de impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelo banco sacado, e, desse modo, alcançar benefício para as suas representadas, do que resulta a prática de um único crime de falsificação de documento.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO
No Processo nº 175/18.2T9VNF.G1 do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão - Juiz ..., consta da parte decisória da sentença datada de 28.05.2024, o seguinte:
“7.1.- Condenar o arguido AA pela pratica de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros. 7.2.- Condenar o arguido AA pela pratica de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros. 7.3.- Condenar o arguido AA, em cumulo jurídico de penas pela prática dos crimes identificados em 5.1. e 5.2. na pena única de trezentos e trinta dias de multa, à taxa diária de cinco euros (…)”.
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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“I. Por sentença proferida nos presentes autos, veio o Arguido condenado pela prática de dois crimes de falsificação de documento agravados, p. e p. pelo artigo 256.º, nº 1, alínea d) e nº3, do Código Penal, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de trezentos e trinta dias de multa à taxa diária de cinco euros, e julgou procedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos e, em consequência, condenou o Arguido no pagamento da quantia de €4.080,15, à Ofendida “EMP01..., Lda.” e da quantia de €1.263,41 à Ofendida “EMP02..., Lda., ambas as quantias acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos. II. Sentença com a qual o Arguido não se conforma, por erradamente determinada/decidida a prática de dois crimes pelo Arguido, quando este praticou um único crime; III. A que se soma uma errónea qualificação jurídica da conduta criminosa, porquanto, o Arguido veio condenado pela prática de dois crimes de falsificação de documento agravados, por aplicação do disposto no nº 3, do artigo 256.º, quando a conduta perpetrada se impõe subsumida no tipo legal de crime de falsificação de documento simples, este p. e p. pelo artigo 256.º, nº 1, alínea d). IV. Com igual erro na decisão vertida na parte a que alude à prescrição do procedimento criminal, ali decidindo aplicável o prazo de prescrição de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 118.º, nº 1, alínea b), quando, atenta a moldura penal do crime perpetrado – crime de falsificação de documento simples -, o prazo de prescrição é de 5 (cinco) anos, como estatui a alínea c), daquele mesmo nº 1, do artigo 118.º. Assim: A - Da prática de um crime único: V. Veio o Arguido veio condenado, como autor material e na forma consumada da prática de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. d), e 3, do Código Penal, numa pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros – Ponto 7.1, da Decisão -, e numa igual pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros – Ponto 7.2, da Decisão -, e, em cúmulo jurídico das penas, na pena única de trezentos e trinta dias de multa, à taxa diária de cinco euros. VI. Ora, dos factos provados, resulta que, o Arguido, em 12.12.2017, acedeu à plataforma de netbanking do Banco 1..., S.A., designada Serviço ..., inseriu o respectivo nome de acesso e código secreto, e, num único acto/acesso, deu uma ordem de cancelamento dos cheques emitidos e ali identificados, pelo mesmo e único motivo, extravio. VII. Porém, o Tribunal “a quo”, a nosso ver erradamente, decidiu estávamos perante duas situações distintas, quando é um, e o mesmo bem jurídico atingido, praticado da mesma forma, no mesmo acto, no mesmo local, no quadro da mesma solicitação. VIII. Destarte, impõe-se a alteração da decisão, com a sua revogação substituição por outra que julgue que o Arguido praticou um crime único, por se estar perante um único crime de falsificação de documento, com a consequente alteração da pena aplicada no que concerne à sua medida. IX. O que se peticiona a este Tribunal da Relação, sob pena de grave violação do disposto nos artigos 30.º, 70.º e 77.º, do Código Penal. Sem prescindir: B - Da Qualificação da Conduta Criminosa: X. Além disso, mal andou o Tribunal “a quo”, ao julgar que a factualidade provada constitui a prática do crime de falsificação na sua forma agravada, nos termos e por aplicação do nº 3, do artigo 256.º, conjugado com o nº1, alínea d), do mesmo normativo. XI. Desde logo, o ilícito em apreço encontra-se sistematicamente inserido no capítulo dos crimes contra a vida em sociedade, assegurando a protecção da fé pública dos documentos e a genuinidade dos mesmos, e sendo o bem jurídico tutelado, a segurança e confiança no tráfico jurídico-probatório. XII. Pois bem, atentos os elementos do tipo de crime, e as distintas formas de falsificação de documentos, é certo que a actuação terá por objecto um documento, tal como vem definido na alínea a), do artigo 255º, do Código Penal. XIII. Sendo que, para efeitos de direito penal o documento é a própria declaração, enquanto representação de um pensamento humano, independentemente do material em que está corporizada, e desde que idónea a provar um facto juridicamente relevante, aqui se integrando qualquer outro documento, além do documento autêntico ou autenticado, seja escrito, registo em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante. XIV. In casu, resultou provado que, o Arguido, no dia 12 de Dezembro de 2017, deu uma ordem, ao banco sacado, de cancelamento dos cheques identificados na sentença recorrida, na parte 2., Da Fundamentação de Facto, com fundamento em extravio, apesar de saber que os cheques não haviam sido extraviado, porquanto, este os tinha entregue às Ofendidas pagamento das identificadas facturas, respeitantes a fornecimento de bens. XV. Mais resultando provado que, ao actuar do modo descrito, ao informar o banco sacado do extraviado dos referidos cheques, estava a dar instruções à identificada instituição bancária, para revogar as ordens de pagamento que tais cheques compreendiam, que impedia que os valores neles apostos fossem levantados pelas Ofendidas, e que qualquer instituição financeira iria devolver os cheques com base naquela indicação; XVI. E assim quis agir do modo descrito, com o propósito conseguido de enganar o banco sacado e as Ofendidas, de se furtar ao pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelo banco sacado e de ficar com as mercadorias das Ofendidas a título gratuito. XVII. E, como consequência directa e necessária da sua conduta, a Ofendida “EMP01..., Lda.” sofreu prejuízos no valor de €4.080,15 (quatro mil e oitenta euros e quinze cêntimos), e a Ofendida “EMP02..., Lda.”, no valor de €1.263,41 (mil, duzentos e sessenta e três euros e quarenta e um cêntimos), atento o cancelamento dos cheques, com a procedência dos pedidos de indemnização civil deduzidos pelas Ofendidas e a condenação do Arguido no respectivo pagamento às mesmas. XVIII. De igual modo, apurou-se que, nos identificados cheques, foram apostas datas posteriores à da emissão e em que, por escrito ulterior o Arguido requisitou ao banco sacado o seu não pagamento, invocando falsos extravio, subtracção ou desaparecimento, com a intenção de assim obter o seu cancelamento. XIX. Questão que já foi tratada pela jurisprudência e, inclusive, objecto de acórdãos de uniformização de jurisprudência, como seja o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 9/2013, de 24/4, publicado no Diário da República n.º 80/2013, Série I de 2013-04-24, no Processo nº 691/07...., que fixou jurisprudência no sentido de que, nas situações em que o agente dá uma ordem de cancelamento de cheques emitidos com data posterior à data em que os mesmos são entregues, estamos perante a falsificação de um documento particular e não de cheques, determinante da subsunção da conduta criminosa no crime de falsificação de documento simples. XX. Ou seja, em face dos factos julgados provados e da invocada Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 9/2013, de 24/4, a decisão que se impunha nos presentes autos era a de se considerar que a conduta do Arguido não integra os elementos um crime de falsificação de documento agravado, mas um crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 255.º, alínea a), e 256.º, n.ºs 1, alínea d), do Código Penal. XXI. Destarte, estando vedada, no caso concreto dos autos, a aplicação do nº 3, do artigo 256.º, impõe-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que determine a condenação do Arguido, não por dois crimes, mas apenas por um, sendo esse um crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelo artigo 256.º, nº1, alínea d), conjugado com o artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal; XXII. O que se peticiona a V. Exas. C – Do Prazo de Prescrição do Procedimento Criminal: XXIII. Estando perante um crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelo artigo 256.º, nº 1, alínea d), do Código Penal, e sendo este punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa; XXIV. É aplicável o disposto no artigo 118.º, nº 1, alínea c) e não a alínea b), como está vertido na sentença recorrida. XXV. Destarte, o procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiver decorrido o prazo de cinco anos. XXVI. O que impõe a alteração da decisão recorrida, sob pena de violação do disposto nos artigos 118.º, 119.º e 121.º, do Código Penal; XXVII. O que igualmente se peticiona a este superior Tribunal”.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho datado de 03.07.2024, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, na qual se pronunciou no sentido da manutenção da sentença recorrida “nos seus precisos termos”, sem que tenha formulado conclusões.
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Nesta Relação, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
Alega, para o efeito, que: “(…)A Sentença recorrida defende a existência de dois crimes de falsificação previstos no art. 256º nº 1 d) e 3 do C. Penal. Não creio que, no caso concreto, estejamos perante dois crimes de falsificação. A falsificação existente incorpora-se no acto que o arguido praticou em 12-12-2027 ao, através de uma única acção e em execução de uma única resolução, ter comunicado ao seu banco, uma situação que sabia não ser verdadeira e que iria determinar o não pagamento dos cheques que havia emitido. A falsificação aqui incorpora-se na declaração então efectuada e não nas declarações que, posteriormente, viriam a ser colocadas nos cheques, anotando nestes a menção de cheque extraviado. Neste aspecto considero que o recorrente abordou a questão suscitada com acerto ao defender que a sua conduta, ao no dia 12-12-2017, comunicar o extravio de vários cheques, integra apenas a prática de um crime de falsificação e não de vários com base no facto de serem vários os cheques e vários os ofendidos e de terem ocorridos em dias distintos, a devolução dos cheques no Serviço de Compensação do Banco de Portugal. O que é decisivo e preenche o conceito de falsificação é, a meu ver, a declaração única, consubstanciando uma acção e uma resolução que, apesar da pluralidade de efeitos em vários cheques antes emitidos, respeita a uma afirmação individualizada reveladora de uma única intenção. (…) o que é objecto e tida como falsa é a declaração por ele prestada em 12-12-2027, mostrando-se indiferente que tal declaração venha a determinar a aposição, em titulo de crédito, da menção de cheque extraviado, apresentando-se esta menção como uma consequência da declaração inicialmente prestada, essa sim falsa (…). Considero portanto que a Sentença recorrida enquadrou incorrectamente o comportamento do recorrente ao integrá-lo como um crime de falsificação previsto no art. 256º nº 1 d) e 3 do CP quando, em meu entender a sua conduta apenas se integra na figura do crime de falsificação de documento prevista no art. 256º nº 1 al d), sem que ocorra a verificação de qualquer circunstância constante do nº 3 daquele preceito. Abordando, por fim a questão da fixação do prazo de prescrição do procedimento criminal creio que o Tribunal recorrido também não apreciou de forma correcta esta questão sendo que o erro em que incorreu ficou a dever-se ao enquadramento jurídico penal que efectuou. Na verdade, caso estivéssemos perante um crime de falsificação de documento previsto no art. 256º nº 1 d) e 3 do CP, à luz do estipulado no art. 118º nº 1 b) do mesmo diploma o prazo de prescrição seria de dez anos. Contudo, defendendo-se que estamos perante um crime de falsificação enquadrado no art. 256º nº 1 d) do CP, por força do disposto no art. 118º nº 1 c) do CP, tal prazo será de cinco anos o qual, em bom rigor, por força da suspensão da prescrição apontada pelo art. 120º nº 1 b) e pelas limitações ao decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal impostas pela legislação (em 2020, devido a uma pandemia global epidemiológica provocada pela doença Covid -19, foi declarado em Portugal quer o estado de emergência, quer o estado de calamidade, através das Lei nº 1-A/2020 de 19-3, Lei nº 4-A/2020, de 6-4, Lei nº 16/2020, de 29-5, Lei nº 4-B/2021, de 1-2 e Lei nº 13-B/2021 de 5-4, por força das quais, foi determinada a suspensão de vários prazos, incluindo de prescrição, nos períodos de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021) ainda se encontra a decorrer”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal, não tendo o recorrente apresentado resposta.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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As questões suscitadas são analisadas pela ordem de precedência lógica indicada nos art 368º e 369º do C.P.Penal, por remissão do art. 424º, nº 2 do C.P.Penal.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, por ordem de precedência lógica, cumpre apreciar:
a) Enquadramento jurídico-penal;
b) Prescrição do procedimento criminal.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
1. O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
“2.1. – Factos provados com relevância para a decisão: 1.- A sociedade EMP02..., Lda. dedica-se ao comércio e representações de uma grande variedade de produtos, nomeadamente bebidas e miudezas. 2.- O arguido AA era o sócio gerente da sociedade EMP03... Unipessoal, Lda., que se dedicava à exploração de restaurantes, café, snack-bar, prestação de serviços de catering e takeaway, cuja matrícula se encontra cancelada, desde ../../2018. 3.- O arguido AA, na qualidade de gerente da sociedade EMP03... Unipessoal, Lda., contratou com a sociedade ofendida a prestação de serviços no âmbito da atividade da mesma e comprou-lhe vários produtos, nomeadamente garrafas de bebidas alcoólicas, para as quais foram emitidas as seguintes faturas, com datas de emissão e vencimento: 7919/2017 07/09/2017 292,28 8167/2017 15/09/2017 122,18 8807/2017 07/10/2017 268,29 9389/2017 28/10/2017 302,49 592/2017 25/11/2017 278,17 4.º - Em 31/01/2017 o arguido, na qualidade de representante legal da sociedade EMP03..., Unipessoal, Lda. entregou a EMP04..., Lda., os seguintes cheques pré-datados, que preencheu e assinou, para pagamento das faturas descrita em 3.º: ...31/12/2017 414,46 Banco ... ...31/12/2017 570,78 Banco ... ...31/12/2017 278,17 Banco ... 5.º - O arguido em 12/12/2017, de modo a obstar ao pagamento dos mesmos, comunicou, por escrito, ao Banco 1... - entidade bancária sacada, em modelo próprio deste, mediante Serviço ..., que os cheques n.ºs indicados em 4.º, se tinham extraviado, solicitando o seu não pagamento, por documento através de introdução pelo mesmo do seu número de acesso e código secreto. 6.º - Assim, os cheques foram devolvidos na câmara de compensação do Banco de Portugal, 03/01/ e 08/01, de 2018, a menção de "motivo extravio", aposta no verso respetivo. 7.º - O arguido, ao dar instruções ao banco sacado para a revogação da ordem de pagamento contida naqueles cheques, comunicando-lhe que os mesmos haviam sido, extraviados, quis, e alcançou, que esse banco devolvesse esses referidos cheques com a indicação nele aposta. 8.º - O arguido bem sabia que as razões invocadas junto daquele banco eram falsas, como sabia que a sociedade ofendida era a legítima dona e portadora desses cheques, por lhe terem sido entregues por ele. 9.º - O arguido com a sua conduta quis, e conseguiu, impedir o pagamento da quantia titulada nesses cheques pelo banco sacado com intenção de, deste modo, alcançar benefício para si, ao impedir o débito das quantias tituladas nos cheques, na respetiva conta, benefícios que bem sabia não lhe caber. 10.º - O arguido, com a descrita conduta, sabia ainda que afetava a confiança e segurança na veracidade do conteúdo de tais comunicações à entidade bancária, o que aconteceu e colocou em crise a fidedignidade das mesmas, lesando a fé pública do conteúdo da mesma perante o banco respetivo e a pessoa a quem o entregou. 11.º - O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 12º Em 2018, o arguido era gerente de facto das sociedades comerciais EMP03..., UNIPESSOAL, LDA., pessoa coletiva número ...03, com sede na Rua ..., em ..., cuja matricula está cancelada desde ../../2018, e a EMP05..., UNIPESSOAL, LDA., pessoa coletiva número ...77, com sede na Rua ..., em ..., com matrícula cancelada desde ../../2019. 13.º Ambas sociedades comerciais dedicavam-se à exploração de restaurantes, cafés e snack-bares. 14.º No exercício dessa atividade, o arguido que tomava as principais decisões das sociedades, tais como a escolha dos fornecedores, o pagamento das dívidas e salários, a contratação de trabalhadores e a alocação de recursos das sociedades. 15.º Desde pelo menos 2015, o arguido, em nome e no interesse dessas sociedades, comprou produtos de carne e derivados à sociedade EMP01..., LDA., pessoa coletiva número ...42, com sede à Alameda ..., em .... 16.º Para liquidar as dívidas desses fornecimentos, o arguido acordou com o gerente da sociedade credora, BB, nos autos melhor identificado, proceder ao pagamento gradual através de cheques, que lhe entregou em dezembro de 2017, emitidos pelo Banco 1..., SA, em nome da sociedade EMP03..., UNIPESSOAL, LDA., para a conta aberta naquele banco, com o número ...01, já pré-datados, preenchidos e assinados. 17.º Tais cheques perfizeram o valor de € 4.080,15 (quatro mil oitenta euros e quinze cêntimos): a) no valor de € 674,63 (seiscentos e setenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos), datado de 17.12.2017; b) no valor de € 674,63 (seiscentos e setenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos), datado de 31.12.2017; c) no valor de € 1.464,22 (mil quatrocentos e sessenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos), datado de 31.1.2018; e d) no valor de € 1.266,67 (mil duzentos e sessenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos), datado de 31.1.2018. 18.º Os cheques destinavam-se, como o arguido bem sabia, a pagar totalmente ou parcialmente faturas que tinham sido emitidas nos anos de 2015 até 2017, pela EMP01..., LDA, quer em nome da própria EMP03..., UNIPESSOAL, LDA., quer da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. a saber: a) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA., as faturas de 2017, com os números e datas que constam do recibo número ...69, no valor de € 2.176,02 (dois mil cento e setenta e seis euros e dois cêntimos), junto a fls. 5, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; b) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. faturas dos de 2017, com os números e datas que constam do recibo número ...39, no valor de € 2.921,01 (dois mil novecentos e vinte e um euros e um cêntimo), junto a fls. 6, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; c) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. as faturas de 2016, com os números e datas que constam do recibo número ...65, no valor global de € 2.056,35 (dois mil e cinquenta e seis euros e trinta e cinco cêntimos), junto a fls. 7, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; d) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. as faturas de 2017, com os números e datas que constam do recibo número ...77, no valor global de € 2.174,35 (dois mil cento e setenta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos), junto a fls. 8, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; e) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. faturas de 2015, com os números e datas que constam do recibo número ...87, no valor global de € 1.658,75 (mil seiscentos e cinquenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos), junto a fls. 9, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; f) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. faturas de 2017, com os números e datas que constam do recibo número ...20, no valor global de € 2.202,19 (dois mil duzentos e dois euros e dezanove cêntimos), junto a fls. 10, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; g) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. faturas de 2016, com os números e datas que constam do recibo número ...01, no valor global de € 1.140,15 (mil cento de quarenta euros e quinze cêntimos), junto a fls. 11, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; h) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. as faturas de 2016, com os números e datas que constam do recibo número ...02 no valor global de € 1.494,46 (mil quatrocentos e noventa e quatro euros e quarenta e seis cêntimos), junto a fls. 12 cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; i) da EMP05..., UNIPESSOAL, LDA. as faturas de 2016, com os números e datas que constam do recibo número ...04, no valor global de € 2.560,78 (dois mil quinhentos e sessenta euros e setenta e oito cêntimos), junto a fls. 13, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; j) da EMP03..., LDA. as faturas de 2017, com os números e datas que constam da “lista de pendentes”, no valor global de € 1464,22 (mil quatrocentos e sessenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos), junto a fls. 14, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; k) da EMP03..., LDA. as faturas de 2017, com os números e datas que constam do recibo número ...23, no valor global de € 1.349,27 (mil trezentos e quarenta e nove euros e vinte e sete cêntimos), junto a fls. 15, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos 19. No dia 12 de dezembro de 2017, o arguido acedeu à plataforma de netbanking do Banco 1..., SA, designada Serviço ..., inseriu o respetivo nome de acesso e código secreto, desse modo acedendo à conta da EMP03..., UNIPESSOAL, LDA.; seguidamente, deu uma ordem de cancelamento de cada um dos cheques identificados no ponto 17, com os números ...00, ...01, ...54 e ...07, as 9:42 horas, 9:42 horas, 9:43 e 9:46 horas, respetivamente, declarando como motivo para o cancelamento o extravio dos cheques. 20. O arguido sabia que não era verdade que os cheques tinham sido extraviados, mas que pelo contrário, tinham sido preenchidos no interesse e por conta da EMP03..., UNIPESSOAL, LDA., à ordem da EMP01..., LDA., beneficiária e legítima possuidora dos cheques, o que não obstou a que atuasse desse modo, conforme fez, com a intenção de obstar ao pagamento dos cheques pelo banco sacado, conseguindo a sua devolução na operação de compensação, e por essa via, impedindo o débito ou posterior cobrança dos valores à sociedade sacadora, em cujo nome e interesse o arguido agia. 21. O arguido estava ciente de que a sua conduta afetava a confiança e segurança nas transações comerciais e bancárias, e era apta a causar, como efetivamente causou, um engano nas relações jurídicas, fazendo uso de um sistema informática de um banco para através de uma operação dar ordens com motivo falso, agindo com o propósito concretizado de revogar cheques que de outro modo não poderia impedir que o banco sacado pagasse, conforme logrou, obtendo um beneficio que sabia não ser legitimo e que ademais, era causador de um prejuízo patrimonial para o beneficiária EMP01..., LDA. 22. O arguido alcançou um meio apto, rápido e eficaz para consumar no mesmo dia, num intervalo de minutos, os seus desígnios, beneficiando, por isso, de uma situação exógena que facilitou e propiciou a sua atuação. 23. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime. 24. As demandantes sofreram um prejuízo correspondente ao valor dos identificados cheques, os quais, até à presente data, ainda não foram liquidados pelo demandado. 25. Por sentença transitada em julgado no passado dia 24-10-2022, o arguido foi condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 300 dias de multa, à taxa legal de 10 euros”. 2. No que respeita ao “direito”, consta da sentença recorrida o seguinte: “4.1. O arguido vem acusado da prática de dois crimes de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal. (…) Ora, na situação em apreço, atenta a factualidade provada, é nosso entendimento que se encontram preenchidos quer o elemento objetivo quer o elemento subjetivo, na modalidade de obtenção de causar um prejuízo a outra pessoa. Do exposto resulta, portanto, que o arguido, praticou os dois crimes que lhe são imputados, ou seja, dois crimes de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal”. 3. Relativamente à “natureza e medida da pena”, consta da sentença recorrida o seguinte: “O crime de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal, é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. (…)
No presente caso, atento o referido critério, a factualidade provada e a ausência de antecedentes criminais, damos preferência a uma pena de multa (pena não privativa da liberdade), já que esta, além de se mostrar mais adequada, proporcionada e ajustada à infração e suas consequências, é suficiente para promover a recuperação social da arguida e satisfazer as exigências de reprovação e prevenção do crime.
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4.3.- Uma vez escolhida a condenação do arguido numa pena de multa, só falta agora proceder à sua determinação concreta. (…) Assim, no presente caso, considerando a intensidade da culpa da arguida (dolo direto), o grau elevado da ilicitude (valor dos cheques), os motivos injustificados que sustentaram a prática do crime, julgamos adequado e justo condenar o arguido numa pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros, uma vez que não foram apuradas condições socioeconómicas do arguido, por cada um dos crimes que lhe é imputado.
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4.4.- Uma vez determinadas as penas principais para cada um dos crimes, há que proceder, nos termos do disposto no artigo 77.º, do Código Penal, à determinação da pena única, com exceção da pena de substituição, levando em conta os factos e a personalidade do arguido, no seu conjunto. (…) Ou seja, a pena concreta a aplicar ao arguido tem como limite mínimo duzentos dias de multa e como limite máximo a pena de quatrocentos dias de multa.
Pelo exposto, atendendo, no seu conjunto, aos factos, supra analisados, bem como à sua personalidade potenciadora de dividas e desrespeitadora das mais elementares regras contratuais, entendemos adequada a pena única de trezentos e trinta dias de multa, à taxa diária de cinco euros”.
4. Quanto à “prescrição criminal”, consta da sentença recorrida o seguinte: “O crime de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal, é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. Isto significa, por força do disposto no artigo 118.º, al. b), o prazo de prescrição é de 10 anos, dado que o crime pelo qual foi condenando o arguido é punido com pena de prisão cujo limite máximo é igual a 5 anos. Ora, iniciando-se a pratica dos factos, pelo menos, no dia 12.12.2017, é indiscutível que não está esgotado o referido prazo de 10 anos, sem mesmo ter em atenção ao período de suspensão do mesmo – cfr. artigo 120.º, do C.P.. Neste contexto, é indiscutível que o procedimento criminal, ao contrário do expressamente invocado em alegações finais, não está claramente esgotado”.
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Apreciação do Recurso
1. Enquadramento jurídico-penal
O recorrente alega que foi condenado pela prática de dois crimes de falsificação de documento agravados, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) e nº 3 do C.Penal, quando a conduta perpetrada se impõe subsumida no tipo legal de crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal, e à prática de um único crime, com a consequente alteração da medida da pena aplicada (conclusões III e VIII).
Vejamos se lhe assiste razão.
Dispõe o art. 256º, nº a, al. d) e nº 3 do C.Penal que: “1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…) d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; (…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. (…) 3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias”.
O documento (no sentido exposto no art. 255º, al. a) do C.Penal) constitui o objeto da ação, será sobre ele que incidirá a conduta do agente.
No crime de falsificação de documento o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, visando-se proteger a segurança relacionada com os documentos (neste sentido, Helena Moniz in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 680). “O tipo objectivo pode assumir as seguintes modalidades: (1) a fabricação ex novo do documento; (2) a modificação a posteriori de um documento já existente; (3) a integração mo documento de uma assinatura de outra pessoa; (4) a declaração de um facto falso juridicamente relevante; (5) a integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada; (6) e a circulação do documento falso” (Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 673).
A respeito da declaração de um facto falso juridicamente relevante, o mesmo autor classifica a falsificação de “ideológica” (enquanto falsificação do conteúdo de documento verdadeiro) e refere, como exemplo, “o agente, que é sacador de um cheque, induz a instituição bancária a apor no mesmo a declaração do seu extravio, bem sabendo que esse extravio não se tinha verificado (acórdão do STJ, de 14.05.1986, in BMJ, 357, 216)”.
Como afirma Helena Moniz (in Obr. Cit. pág. 676): “Assim, sabendo que documento, para efeitos do crime de falsificação, é a declaração e não o objecto em que esta é incorporada, fácil é compreender que aquilo que constitui a falsificação de documentos é não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento. E, por isso, é possível distinguir a falsificação de um cheque, de uma letra de câmbio ou de outro título de crédito enquanto documento, enquanto declaração, da falsificação destes mesmos objectos, enquanto contrafacção, falsificação de moeda. Enquanto no primeiro caso a falsificação é a falsificação de declaração incorporada naqueles, no segundo caso é a falsificação do documento enquanto objecto material que representa um facto. Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o ato de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material. Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico. Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração do facto falso juridicamente relevante; trata-se, pois, de uma narração de facto falso” (Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos – da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento 1999, 87 ss. e 181 ss.)”.
De acordo com o disposto no art. 256º do C.Penal é elemento subjetivo do tipo de falsificação a intenção do agente causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa um benefício ilegítimo (dolo), que constitui toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) obtida através do ato de falsificação ou do ato de utilização de documento falsificado.
Aquando da prática do crime de falsificação o agente deverá ter conhecimento de que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo ou utilizá-lo com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outrem benefício ilegítimo. Por conseguinte, no crime de falsificação exige-se o dolo específico, ou seja, a intenção de causar prejuízo ou de obter benefício ilegítimo.
Todavia, a consumação do prejuízo patrimonial é indiferente no crime de falsificação.
Trata-se de um crime de perigo, na medida em que, após a falsificação do documento, ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste pois a confiança pública e a fé pública já foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo. Além disso, é também um crime de perigo abstrato, não sendo necessário a produção de qualquer resultado (daí também ser considerado um crime formal ou de mera atividade)[1].
E o nº 3 do mencionado preceito legal agrava a moldura pena do crime de falsificação de documento quando este é autêntico ou com igual força. Cumpre destacar que, para este efeito, não é documento a declaração corporizada em escrito, ou qualquer outro meio técnico, idónea a provocar facto juridicamente relevante, mas o próprio escrito ou outro meio técnico onde aquela declaração foi incorporada.
Transpondo as considerações expostas verificamos que a ação típica, face aos factos provados (os quais não foram colocados em causa pelo recorrente), traduziu-se em o recorrente, no dia 12.12.2017, na qualidade de representante legal e/ou gerente de facto das sociedades comerciais EMP03..., Unipessoal, Lda e EMP05..., Unipessoal, Lda, e de modo a obstar ao pagamento de sete cheques pré-datados (três deles nos montantes de € 414,46, € 570,78 e € 278,17 respetivamente, emitidos à ordem de EMP04..., Lda, e os outros quatro nos montantes de € 674,63, € 674,63, € 1.464,22 e € 1.266,67 respetivamente, emitidos à ordem de EMP01..., Lda) ter comunicado, por escrito, ao Banco 1... que tais cheques se tinham extraviado (solicitando o seu não pagamento, por documento através de introdução pelo mesmo do seu número de acesso e código secreto). Os cheques foram apresentados a pagamento e devolvidos com a menção de “motivo extravio”, aposta no verso respetivo, querendo o recorrente, ao assim atuar, impedir o pagamento dos cheques por si sacados e entregues às sociedades ofendidas (que eram as legítimas donas e portadoras desses cheques, por lhes terem sido entregues por ele) e alcançar para as suas representadas um benefício indevido, sabendo que a razão invocada não correspondia à verdade e que causava um prejuízo às sociedades ofendidas de montante igual ao somatório dos valores apostos nos cheques, e sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.
No que respeita à qualificação jurídica, o tribunal a quo limitou-se a afirmar que: ”(…) atenta a factualidade provada, é nosso entendimento que se encontram preenchidos quer o elemento objetivo quer o elemento subjetivo, na modalidade de obtenção de causar um prejuízo a outra pessoa. Do exposto resulta, portanto, que o arguido, praticou os dois crimes que lhe são imputados, ou seja, dois crimes de falsificação de documento, previsto e punível pelos artigos 256.°, n.º 1, alínea d) e 3, do Código Penal”.
Conforme vimos, o nº 3 do art. 256º do C.Penal prevê a punição da falsificação, além de outros documentos, de cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso.
No caso em apreço, estão em causa sete cheques (três deles emitidos pelo recorrente, na qualidade de representante legal da sociedade EMP03..., Unipessoal, Lda, à ordem de EMP04..., Lda e os outros quatro emitidos pelo recorrente, na qualidade de gerente de facto das sociedades EMP03..., Unipessoal, Lda e EMP05..., Unipessoal, Lda a EMP01..., Lda à ordem de EMP01..., Lda).
No entanto, o documento do qual o recorrente fez constar falsamente um facto juridicamente relevante (destinado a inviabilizar o pagamento dos cheques através das falsas declarações emitidas) é um mero documento particular consubstanciado na declaração de extravio de cheques (em modelo próprio da entidade bancária sacada, mediante Serviço ..., através de introdução do seu número de acesso e código secreto).
Por conseguinte, não se trata da falsificação do cheque em si mesmo mas da declaração em causa, na medida em que a menção de cheque extraviado constitui mera consequência da declaração falsa inicialmente prestada relativa a um facto juridicamente relevante e, por isso, não é subsumível à previsão daquele nº 3.
Este entendimento decorre do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 9/2013, de 24.04 (https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/diario-republica/80-2013-136865) nos termos do qual: “O sacador de um cheque que nele apuser uma data posterior à da emissão, e que em ulterior escrito por si assinado, requisitar ao banco sacado o seu não pagamento, invocando falsos extravio, subtração ou desaparecimento, com a intenção de assim obter o resultado pretendido, preenche com esse escrito o tipo de crime de «falsificação de documento», previsto pela alínea b) (redação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março), hoje alínea d) (redação da Lei 59/2007 de 4 de Setembro), do n.º 1 do art. 256.º do Código Penal”.[2]
Em suma, a provada conduta do recorrente (reportada à falsa comunicação à entidade bancária do extravio dos sete cheques pré-datados) preenche o tipo objetivo e subjetivo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal, pelo que, em virtude da inexistência de um documento qualificado objeto de falsificação (enquanto documento autêntico ou com igual força, in casu, o cheque) este terá de ser absolvido dos dois crimes de falsificação pelos quais foi condenado (p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) e nº 3 do C.Penal).
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O recorrente também alega que a sua conduta se subsume à prática de um único crime por a falsa declaração consubstanciar um único ato, reportado a um único motivo, no quadro da mesma solicitação exterior (conclusões VI, VII e VIII).
Invoca, assim, a existência de uma conduta típica motivada por uma única resolução criminosa e que conduz ao cometimento de um único crime.
Com base na factualidade provada, o tribunal recorrido considerou verificar-se a prática pelo recorrente de dois crimes de falsificação de documento porquanto são duas as sociedades ofendidas.
A este respeito, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se nos seguintes termos: “considero que o recorrente abordou a questão suscitada com acerto ao defender que a sua conduta, ao no dia 12-12-2017, comunicar o extravio de vários cheques, integra apenas a prática de um crime de falsificação e não de vários com base no facto de serem vários os cheques e vários os ofendidos e de terem ocorridos em dias distintos, a devolução dos cheques no Serviço de Compensação do Banco de Portugal. O que é decisivo e preenche o conceito de falsificação é, a meu ver, a declaração única, consubstanciando uma acção e uma resolução que, apesar da pluralidade de efeitos em vários cheques antes emitidos, respeita a uma afirmação individualizada reveladora de uma única intenção”.
Aqui chegados, impõe-se, desde logo, apurar se se mostra provada a existência de uma única resolução criminosa por parte do recorrente.
Nos termos do disposto no art. 30º do C.Penal, sob a epígrafe “concurso de crimes e crime continuado”: “1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”. “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Conforme se diz no Acórdão do TRP de 13.11.2024, Proc. nº 4225/17.1T9MTS.P1: “A jurisprudência tem pacificamente seguido os ensinamentos de EDUARDO CORREIA (Vd. Direito Criminal, Vol. II, p. 197 e ss.), da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (de resoluções de cometimento de crimes -em caso de dolo). O número de juízo de censura determina-se pelo número de decisões de vontade do agente: uma só resolução, um só acto de vontade, é insusceptível de provocar vários juízos de censura sem desrespeito do princípio ne bis in idem”.
Assim sendo, haverá crime único, com pluralidade de atos, caso ocorra unidade de desígnio e intenção criminosa. “A nosso ver, conforme afirmado diversas vezes pela jurisprudência, existe unidade de resolução criminosa quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que as várias acções foram executadas em resultado de uma só deliberação, sem ter o agente de renovar o seu propósito e respectivo processo de motivação” (Acórdão do TRL de 01.06.2021, Proc. nº 9590/11.1TDLSB.L2-5) .
Resulta da matéria de facto assente conjugada com as considerações jurídicas supra expostas que a falsificação não respeita às declarações colocadas nos cheques pela entidade bancária (à menção de cheque extraviado colocada em cada um dos sete cheques) mas sim à comunicação prévia efetuada pelo recorrente, no dia 12.12.2017 (consubstanciada num único ato/acesso à plataforma de netbanking e numa única ordem de cancelamento dos cheques emitidos, assente num único motivo – extravio), e que originou tais declarações, sabendo o recorrente que tal comunicação não era verdadeira e que iria originar o não pagamento dos cheques que havia emitido à ordem das duas sociedades ofendidas.
O exposto é demonstrativo de que o recorrente atuou com um único desígnio criminoso, abrangendo os sete cheques, relacionado com a única intenção de impedir o pagamento dos mesmos, pelo que é de concluir que atuou ao abrigo de uma única resolução criminosa: a de impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelo banco sacado e, desse modo, alcançar um benefício indevido para as suas representadas.
Em conclusão, o recorrente praticou um único crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal e consequentemente deve ser condenado nessa conformidade.
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2. Prescrição do procedimento criminal
O recorrente invoca a extinção do procedimento criminal por efeito da prescrição por terem decorrido cinco anos, desde a prática do crime (conclusões XXV a XXVII).
Como refere Figueiredo Dias[3]: “A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva. É óbvio que o mero decurso do tempo sobre a prática de um facto não constitui motivo para que tudo se passe como se ele não houvesse ocorrido; considera-se, porém, que uma tal circunstância é, sob certas condições, razão bastante para que o direito penal se abstenha de intervir ou de efectivar a sua reacção. Por um lado, a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer. Por outro lado, e com maior importância, as exigências de prevenção especial (…) tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos (…). Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitária, já apaziguadas ou definitivamente frustradas (…). Também do ponto de vista processual (…), o instituto geral da prescrição encontra pleno fundamento (…) na medida em que o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados mais duvidosos a investigação (e a consequente prova) do facto e, em particular, da culpa do agente, elevando a cotas insuportáveis o perigo de erros judiciários”.[4]
Como bem se diz no Acórdão do TRG de 18.06.2024, Proc. nº 1847/10.9TAGMR-B.G1: “num Estado de Direito democrático como o nosso, o quadro constitucional assume-se como uma referência fundamental na aplicação e imposição de sanções penais. Estas são justificadas por necessidades preventivas – gerais, enquanto prevenção positiva no reforço da validade da norma penal e de efetivação da tutela dos bens jurídicos concretamente violados; e especiais, tendo em perspetiva a reintegração social do agente – decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana, pedra angular do sistema de valores ético jurídicos estruturantes de um Estado de Direito”.
O instituto da prescrição compreende a prescrição do procedimento criminal e a prescrição da pena.
Em ambos os casos estamos perante um pressuposto negativo de punibilidade (no primeiro caso, a ocorrência de prescrição impede o prosseguimento do processo e, no segundo caso, a prescrição obsta à execução da pena em que o agente foi condenado, pelo que o trânsito em julgado da decisão constitui a fronteira entre estas duas formas de prescrição).
A questão suscitada pelo recorrente prende-se com a prescrição do procedimento criminal relativamente ao crime de falsificação de documento previsto pelo art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal e punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Em face da moldura penal abstrata aplicável ao ilícito em causa e o disposto no art. 118º, nº 1, al. c) do C.Penal, o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática dos factos tenham decorrido 5 anos.
Por outro lado, nos termos do disposto no art. 119º, nº 1 do C.Penal, tal acontecerá, como regra, “desde o dia em que o facto se consumou”.
Todavia, este prazo está sujeito às causas de suspensão e da interrupção previstas nos arts. 120º e 121º do C.Penal.
Assim, é necessário ter em consideração que, nos termos do mencionado art. 120º do C.Penal: “1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal; b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo; c) Vigorar a declaração de contumácia; ou d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado; f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos. 3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição. 4 - No caso previsto na alínea e) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo. 5 - Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional. 6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão”.
Por seu turno, nos termos do mencionado art. 121º do C.Penal: “1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se: a) Com a constituição de arguido; b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo; c) Com a declaração de contumácia; d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido. 2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição. 3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo”.
No caso vertente, o prazo de prescrição iniciou-se a 12.12.2017 e suspendeu-se:
- de 13.12.2021(Refª ...57) a 11.04.2022 (Refª ...15), durante o período em que vigorou a declaração de contumácia;
- a 28.05.2024 (Refª ...81), data em que o recorrente foi notificado da sentença condenatória.
O referido prazo de prescrição interrompeu-se:
- a 13.12.2021(Refª ...57), com a declaração de contumácia;
- a 11.04.2022 (Refª ...58), com a notificação do despacho de acusação.
Para além do exposto, haverá ainda que considerar o contexto legal resultante da atividade legislativa levada a cabo para conter a Pandemia de COVID 19.
Decorre do disposto no art. 7º, nº 3 da Lei nº 1-A/2020 de 19.03, que: “A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos”. Acrescentando-se no nº 4 do mesmo diploma legal que “o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”.
Também é de considerar o disposto no art. 6º-B, nº 3 e 4 da Lei n.º 4-B/2021, de 01.02 que determinou que são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no nº 1, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
Criaram-se, pois, por via da entrada em vigor de tais leis, resultantes da atividade legislativa da Assembleia da República, novos prazos de suspensão da prescrição colocando-se a questão, debatida jurisprudencialmente, da possibilidade de aplicação destes prazos de suspensão a processos pendentes por factos praticados antes da sua entrada em vigor, em face do disposto no art. 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Partilhamos o entendimento defendido no Acórdão do TRL de 20.02.2024, Proc. nº 4/20.7GDMFR.L1 (subscrito pela Relatora do presente Acórdão enquanto 1ª Adjunta) que considerou que: “(…) Deste modo, porque a consagração destas causas de suspensão da prescrição não decorreu de um qualquer objetivo de politica criminal, mas antes de uma situação de emergência sanitária que originou a quase total paragem da atividade judiciária e a que se impunha responder para salvaguarda de todos, incluindo os arguidos, entendemos que inexiste qualquer violação do princípio da confiança dos cidadãos e da comunidade e das expectativas eventualmente criadas (designadamente nos sujeitos processuais neles se incluindo o arguido), pois que a situação absolutamente excecional que levou à sua consagração legal, era imprevisível à data da prática dos factos, e a resposta dada pela Assembleia da República, através das mencionadas normas visou, precisamente, reagir a tal gravidade e excecionalidade. Por outro lado, a sua vigência não excedeu o período temporal durante o qual se verificou o referido condicionamento da atividade nos tribunais e assim, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não se traduz num qualquer excesso ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 798/2021: “ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade”. Deste modo, concluímos que a aplicação destas causas de suspensão não viola o art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, pois não ultrapassou a necessidade gerada pela situação de crise sanitária que se viveu, nem houve excesso nem desproporção na definição do tempo da suspensão do prazo prescricional, e também inexiste qualquer violação do art. 19º da Constituição da República Portuguesa em particular do seu nº 6, na medida em que estas causas de suspensão da prescrição foram introduzidas no Ordenamento Jurídico através de normas constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República, no exercício da sua normal competência legislativa, e não através de normas emitidas pelo Governo em execução da Declaração de Estado de Emergência constante do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, ou das suas posteriores renovações (cf. neste sentido o já citado Acórdão do Tribunal constitucional nº 500/2021 e a também referida Decisão sumária nº 256/2023 do mesmo Tribunal Constitucional). Em suma, concluímos que a suspensão da prescrição prevista nas referidas leis é aplicável aos processos crime em que estejam em causa alegados factos ilícitos praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes, como é o presente, e que esta interpretação, fundada aliás em jurisprudência do Tribunal Constitucional não é violadora dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, 19.º n.ºs 2 a 8 (em especial o n.º 6), 20.º, n.º 4, e 29.º, da Constituição da República Portuguesa. Deste modo, haverá que aplicar-se a suspensão dos prazos de prescrição desde 9 de março de 2020 até ../../2020 e de ../../2021 e ../../2021 isto é 2 meses e 25 dias e 2 meses e 15 dias”.
Na sequência do exposto e da conjugação das mencionadas disposições legais é de concluir que o mencionado prazo de cinco anos não decorreu.
Porém, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição (cinco anos) acrescido de metade (dois anos e seis meses).
Transpondo as considerações expostas verificamos que a prescrição do procedimento criminal ocorrerá no dia 12.06.2025.
Em face do exposto, concluímos que o procedimento criminal não se mostra prescrito, improcedendo o presente segmento de recurso.
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Dispõe o art. 403º, nº 3 do C.P.PPenal que: “a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”.
Face ao exposto e tendo este Tribunal ad quem concluído que a matéria julgada como provada não consubstancia a prática pelo recorrente de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) e nº 3 do C.Penal, mas apenas a prática de um único crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal, cumpre reapreciar a determinação da pena aplicada ao recorrente, tendo em conta a moldura penal abstrata de 10 a 360 dias de multa (decorrente do disposto no art. 47º, nº 1 do C.Penal).
O recorrente foi condenado pelo tribunal recorrido nas penas de 200 (duzentos) e 200 (duzentos) dias de multa pela prática de cada um dos dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) e nº 3 do C.Penal e foi condenado na pena única de 330 (trezentos e trinta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).
O tribunal recorrido ponderou as seguintes circunstâncias para a fixação das penas: ”(…) a intensidade da culpa da arguida (dolo direto), o grau elevado da ilicitude (valor dos cheques), os motivos injustificados que sustentaram a prática do crime (…)”.
De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa – art. 40º, nº 1 e 2 do C.Penal) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – art. 71º, nº 1 do C.Penal), deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os fatores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido art. 71º do C.Penal, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da ação e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.
Sendo assim, a primeira operação da determinação da pena deve ser a graduação qualitativa da culpa, isto é, do desvalor jurídico da atuação voluntária contrária ao Direito, materializada numa ação violadora da lei penal.
Regressando ao caso concreto, há que atender:
a) à culpa de grau elevado (sob a forma de dolo direto) e à média ilicitude dos factos (sendo de destacar o número de cheques entregues pelo recorrente, na qualidade de representante legal da sociedade EMP03..., Unipessoal, Lda a EMP04..., Lda, e o valor dos mesmos – três cheques pré datados nos valores de € 414,46, € 57,78 e 278,17 respetivamente, num total de € 1.263,41, e o número de cheques entregues pelo recorrente, na qualidade de gerente de facto das sociedades EMP03..., Unipessoal, Lda e EMP05..., Unipessoal, Lda a EMP01..., Lda e o valor dos mesmos – quatro cheques pré datados nos valores de € 674,63, € 674,63, € 1.464,22 e € 1.266,67 respetivamente, num total de € 4.080,15);
b) às relevantes exigências de prevenção geral para este tipo de crime;
c) às elevadas necessidades de prevenção especial atentos os antecedentes criminais que constam do facto provado 25 da sentença recorrida e o facto de o recorrente não ter efetuado a reparação do dano.
Por força da ponderação das variáveis supra expostas e de acordo com os referidos critérios de determinação da pena concreta, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena, ponderadas as circunstâncias previstas no art. 71º do C. Penal, consideramos a pena de 200 dias de multa proporcionada e plenamente suportada pela culpa do recorrente, mantendo-se o quantitativo diário fixado pela 1ª instância.
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, após conferência, em conceder parcial provimento ao recurso interposto por AA e, em consequência:
a) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido AA, pela prática de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) e nº 3 do C.Penal, nas penas de 200 (duzentos) e 200 (duzentos) dias de multa, respetivamente, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) do C.Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a multa global de € 1.000,00 (mil euros).
c) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.
Sem custas.
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Guimarães, 14 de janeiro de 2025
Luísa Oliveira Alvoeiro (Juíza Desembargadora Relatora)
Pedro Cunha Lopes (Juiz Desembargador Adjunto)
Júlio Pinto (Juiz Desembargador Adjunto)
[1]Helena Moniz (in Obr. Cit. pág. 682) afirma, a este propósito que “se considerarmos, por um lado, a actividade e os interesses que este tipo legal visa proteger estamos perante um crime formal; se, por outro lado, considerarmos a actividade do agente – isto é, o ato de falsificar o documento – já estamos perante um crime material”. [2]No mesmo sentido, cfr. o Acórdão do TRC de 20.03.2024, Proc. nº 242/20.2T9PMS.C1. [3] In “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 699 e 700 [4] A este propósito Acórdão do TC nº 73/2024, Proc. nº 174/22: “A prescrição (do procedimento criminal ou da pena) associa ao curso do tempo um efeito impeditivo da ação penal ou da executoriedade de uma pena, desempenhando uma função de estabilização da ordem jurídica decorrente da dilação irrazoável entre o facto e o juízo condenatório (prescritibilidade do procedimento) ou entre o juízo condenatório e a punição (prescritibilidade da pena) (…) como vem fazendo ver a jurisprudência constitucional, “a razão de ser das normas que regulam a prescrição (…) tem na verdade relação direta com as garantias de certeza, segurança e paz social no que concerne à efetivação do poder punitivo do Estado em tempo útil e sem inércia injustificada” (Acórdão do TC n.º 366/2018, sublinhado nosso)”.