CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
TAXA DE ÁLCOOL NO SANGUE
APARELHO MEDIDOR
CERTIFICADO DE VERIFICAÇÃO
CONFISSÃO
Sumário


1. A única forma de se poder assegurar a fiabilidade e exatidão do aparelho medidor de TAS é através das verificações previstas no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 29/2022, de 07/04, efetuadas pelo IPQ, I.P., comprovadas através de pertinente certificado de verificação.
2. Caso tal certificado de verificação se não encontre nos autos, constata-se uma inexistência de prova da TAS.
3. Tal ausência ou omissão não pode ser suprida pela confissão do arguido.
4. Admitir, nestas circunstâncias, a prova do valor da TAS através da confissão constitui erro notório na apreciação da prova.
5. O conhecimento, no tribunal ad quem, de uma nulidade da decisão recorrida, prevista no artigo 379.º do Código de Processo Penal, não implica, necessariamente, a devolução dos autos ao tribunal recorrido, devendo o seu suprimento ter lugar no tribunal de recurso, se tal se mostrar possível, designadamente por não fazer perigar as garantias dos sujeitos processuais, como resulta da primeira parte do n.º 3 da referida norma legal.

Texto Integral


I RELATÓRIO

1
No processo n.º 94/23...., do Juízo Local criminal de Vila Real – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, teve lugar a audiência de julgamento durante a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

a) Condeno AA, pela prática, em 20.02.2023, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, ao quantitativo diário de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a quantia total de € 420,00 (quatrocentos e vinte euros);
b) Condeno AA, pela prática, em 20.02.2023, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses.

2
Não se tendo conformado com o decidido, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos;
II. O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º e 69.º do Código Penal;
III. Considerou-se como factos provados, que no dia 20 de fevereiro de 2023, pelas 03h:32m, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-XD-.., na Rua ..., na cidade ...;
IV. Submetido a exame de pesquisa de álcool pelo método do ar expirado, o arguido apresentou uma taxa de alcoolemia no sangue de 1.94 gr/l, valor este obtido após ser deduzido o valor do erro máximo admissível;
V. E no circunstancialismo dado como provado, o arguido pretendia estacionar o veículo em causa numa garagem, evitando que o mesmo ficasse estacionado num parque de estacionamento pago no dia seguinte, tendo percorrido uma distância total de cerca de 150 (cento e cinquenta) metros;
VI. Consta nos autos do presente processo, a fls. 11, e incorporado no ato processual de participação pelo Comando Distrital ..., com referência citius n.º 3199873, o Certificado de Verificação de um aparelho diferente do que foi descrito como utilizado no auto de notícia. O documento em causa trata-se do Certificado n.º ...65 do aparelho “alcoolímetro” da marca ...;
VII. Pela leitura detalhada do mesmo, pode verificar-se que se trata de um alcoolímetro cujo modelo é “... 7110 ... P”, número “...-...”, modelo número “...6” aprovado pelo despacho ...07, de 6 de Junho, cuja última verificação ocorreu em julho de 2022;
VIII. Pela comparação entre o modelo de aparelho descrito no auto de notícia (com refer ência citius n.º 3199873) , e utilizado para medição da taxa de álcool no sangue ao arguido, e o modelo de aparelho que consta no certificado de verificação remetido aos autos, constata-se que não se trata do mesmo aparelho;
IX. Isto é, o aparelho identificado no auto de notícia e utilizado pelos Agentes da P.S.P., e o aparelho identificado no certificado de verificação remetido, são diferentes;
X. Pelo que, a consideração de tal documento como meio de prova da legalidade e certificação do aparelho utilizado consubstanciaria uma nulidade, de resto, alegado em sede de contestação;
XI. E, nesse mesmo sentido da nulidade, o desfecho teria de ser necessariamente esse mesmo, caso fossem considerados o alcoolímetro e o talão do alcoolímetro como meio de prova e prova para condenar o arguido;
XII. Isto porque, não existe no processo em apreço, qualquer documento que comprove a legalidade, verificação e certificação do aparelho que alegadamente terá sido utilizado;
XIII. Pelo que, não é possível comprovar a legalidade da utilização desse aparelho e consequente legalidade do talão emitido pelo aparelho e que indica a taxa de álcool pelo mesmo apurada, e que serve por base ao cometimento do crime e à consequente condenação do arguido;
XIV. Assim, não foi possível aferir da legalidade da utilização do aparelho descrito no auto de notícia e da consequente legalidade de consideração do talão emitido pelo aparelho e respetiva taxa de álcool;
XV. Pelo que, teria o arguido de ser absolvido nos presentes autos, em virtude da nulidade supra descrita e invocada em sede de contestação, de 34.º a 38.º da mesma, pois, tratar-se-ia de uma violação do princípio da legalidade da prova e do princípio do in dubio pro reo , nos termos dos artigos n.º 125.º do Código de Processo Penal e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, respetivamente;
XVI. A tal nulidade invocada aquando da contestação, nenhum despacho ou outra decisão foi proferida relativamente a essa alegação e, aquando da realização da audiência de discussão e julgamento, em alegações orais finais, a Defensora do arguido alegou, novamente, a nulidade que vem sido referida;
XVII. Na prolação de sentença, a Exma Dra Juiz do tribunal a quo não se pronunciou acerca da nulidade invocada no que concerne à inexistência do certificado de verificação do alcoolímetro utilizado nos autos e à inexistência de qualquer documento que comprove a validade, legalidade e verificação do alcoolímetro;
XVIII. O tribunal não se pronunciou sobre uma questão que devia apreciar, quer por ter sido uma questão alegada em sede de contestação e também de alegações orais finais, quer por ser um documento que teria de se encontrar nos autos do presente processo;
XIX. Por tudo o alegado, foram violadas as normas do artigo n.º 120.º, n.º 2, alínea d), do n.º 340.º e do n.º 379.º, n.º 1, alínea c), todas do Código de Processo Penal;
XX. Tendo sido também violado o princípio da investigação (artigo n.º 340.º do Código de Processo Penal), uma vez que foi alegada uma nulidade e o tribunal a quo não ordenou as diligências essenciais para a descoberta da verdade, que in casu , seria a obtenção do certificado de verificação do alcoolímetro descrito no auto de notícia e que terá emitido o talão onde consta a taxa de álcool apurada;
XXI. Bem como, foi também violado o princípio do in dubio pro reo (artigo n.º 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), já que a sentença condenou o arguido por este conduzir um veículo apresentando uma taxa de álcool superior a 1,2 g/l, baseando-se no resultado apresentado por um alcoolímetro que não foi/é possível determinar se estaria apto a funcionar na altura da detenção;
XXII. O certificado de verificação do alcoolímetro descrito no auto de notícia e que terá emitido o talão onde consta a taxa de álcool apurada teria de constar dos autos para que se pudesse apurar se o alcoolímetro estaria em condições legais e técnicas de operar, sem que restassem quaisquer dúvidas acerca da existência do crime;
XXIII. E para que, no caso meramente hipotético, de com toda a certeza se considerar que teria havido a prática do crime, então o certificado de verificação seria necessário para que não restassem dúvidas acerca da taxa de álcool apurada pelo aparelho;
XXIV. Isto porque, sem ser possível apurar das condições do aparelho, não se poderá considerar com certeza, para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido de facto apresentava tal taxa de álcool, tendo por base um registo calculado por um aparelho cujo correto funcionamento se desconhece;
XXV. Todo e qualquer aparelho tem de possuir um certificado de verificação que ateste o seu correto funcionamento para que a medição efetuada pelo mesmo seja fiável, e no caso em apreço, é descrito no auto de notícia que foi utilizado um alcoolímetro ... modelo ... ... n.º ..., com a aprovação do modelo n.º ...6 e aprovado para fiscalização pelo despacho n.º 9911/2019 da ANSR de 31 de outubro;
XXVI. O alcoolímetro que é descrito e que tem o n.º ... poderá ter tido vários modelos (para além do n. º ...6 ) e em consequência ter sido sujeito a vários despachos de aprovação para fiscalização pela ANSR (com emissão de um despacho para cada modelo );
XXVII. E, portanto, seria imprescindível saber se existe o certificado do aparelho exatamente descrito no auto de notícia pois, apenas pelo talão que indica a taxa de álcool mensurada, não é possível saber qual o modelo do alcoolímetro (e o seu número de aprovação), nem se foi aprovado para fiscalização pela ANSR;
XXVIII. Dados que apenas se conhece através do certificado de verificação, pois, apenas este documento permite saber com exatidão se o alcoolímetro descrito como utlizado, foi o alcoolímetro que imprimiu o talão onde consta a taxa de álcool apurada, através da comparação entre a aprovação do modelo e a aprovação para fiscalização pelo despacho da ANSR;
XXIX. E neste sentido, não existe qualquer documento que ateste que o talão que calculou a taxa de  álcool foi emitido pelo alcoolímetro descrito pelos Agentes da P.S.P. como tendo sido o utilizado nos presentes autos;
XXX. Bem como, não existe qualquer documento que ateste a fiabilidade da medição feita pelo alcoolímetro, cuja utilização está descrita no auto de notícia;
XXXI. Estando a sentença proferida pelo tribunal a quo e que condenou o arguido com base numa taxa de álcool apurada por um alcoolímetro cujo certificado de verificação se desconhece e que não se encontra junto aos autos, ferida de nulidade, impondo-se a absolvição do arguido, com os fundamentos supra alegados;

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O RECORRENTE ABSOLVIDO DO CRIME EM QUE FOI CONDENADO.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!

3
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua procedência, sintetizando a sua posição pelo seguinte modo:

1- Nos presentes autos, o arguido, BB, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e  punido pelos artigos 292.º e 69.º do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7€ (sete euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do  artigo 69.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal.
2-Da leitura da sentença proferida nos autos, resulta que o Tribunal não se pronunciou sobre o alegado pela defesa, nos que diz respeito ao facto de resultar dos autos um Certificado de Verificação de um aparelho diferente do que foi descrito como utilizado no auto de notícia.
3-O documento em causa trata-se do Certificado n.º ...65 do aparelho “alcoolímetro” da marca ...;
4-Pela leitura detalhada do mesmo, pode verificar-se que se trata de um alcoolímetro cujo modelo é “... 7110 ... P”, número “...-...”, modelo número “...6” aprovado pelo despacho ...07, de 6 de Junho, cuja última verificação ocorreu em julho de 2022;
5-Pela comparação entre o modelo de aparelho descrito no auto de notícia, com referência citius n.º 3199873, e utilizado para medição da taxa de álcool no sangue ao arguido e o modelo de aparelho que consta no certificado de verificação remetido aos autos, constata-se que não se trata do mesmo aparelho.
6-Assim, verifica-se a nulidade de sentença prevista no art.º 379º, nº1, al. c) do C.P.P..
7-Em consequência, entende-se que não se pode dar como provado que o arguido conduzia a aludida viatura, no dia e no lugar indicados na sentença, com a taxa de álcool considerada na sentença recorrida.
8-O arguido arguiu a invalidade da prova obtida e consequentemente a existência de prova proibida em processo sumário no início da audiência de julgamento, pelo que o fez em tempo, art. 120º, n º 3, al. d) do CPP.
9- Colocada em causa a força probatória de que se reveste o exame quanlitativo ao ar expirado realizado ao arguido nestes autos, não podemos ter por correto o valor da taxa de alcoolémia (1,94 g/l – depois de deduzida a margem do erro admissível) obtido através da fiscalização realizada e, consequentemente, concluir pela invalidade da ocorrência de um exame que suportou a factualidade fixada na sentença recorrida quanto à taxa de álcool no sangue apurada, pelo que não podem dar-se como provados os factos 1, 2 e 3 da factualidade provada na sentença.
10- E, em consequência, deve ser o arguido do crime, pelo qual foi condenado.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso interposto,
Revogando-se a douta sentença recorrida, nos termos propostos, só assim se fazendo JUSTIÇA!

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a sentença recorrida padece de nulidade, a qual determina a sua devolução à primeira instância, para suprimento, e prolação de nova decisão.

5
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi dito.

6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1
Objeto do recurso:

A
Ocorre nulidade pelo facto de o certificado de verificação do aparelho medidor da TAS junto aos autos respeitar a medidor de marca e modelo diferente do que foi aqui utilizado?

B
A verificar-se a situação proferida na alínea anterior, ocorre nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia?

2
Decisão recorrida (excertos relevantes):

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS PROVADOS
Resultaram como provados os seguintes factos:
1) No dia 20 de Fevereiro de 2023, cerca das 03h32, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-XD-.., na Rua ..., ..., com uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,94 g/l após dedução da margem de erro máxima admissível.
2) O arguido conhecia a natureza e as características da referida viatura e do local onde conduzia, sabendo, também, que tinha uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l e, não obstante, decidiu conduzi-la nessas circunstâncias.
3) Sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Mais se apurou que,
4) O arguido não tem antecedentes criminais.
5) No circunstancialismo referido em 1), o arguido pretendia estacionar o veículo em causa numa garagem, evitando que o mesmo ficasse estacionado num parque de estacionado pago no dia seguinte, tendo percorrido uma distância de cerca de 150 metros.
6) Tem o 12.º ano de escolaridade.
7) Não tem empréstimos/dívidas.
8) Trabalha como vendedor de automóveis e aufere mensalmente, pelo menos, o salário mínimo nacional acrescido de comissões, o que dá uma média mensal de cerca de € 1.000,00.
9) No mês de Maio de 2024 auferiu uma remuneração no valor de € 1.706,11.
10) Vive em casa arrendada e paga uma renda mensal no valor de € 300,00.
11) Mostra-se arrependido.

B) FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem.

C) MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nos presentes autos, o Tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto com base na prova produzida e examinada em audiência de julgamento.
Designadamente, e quanto à factualidade vertida nos pontos 1) a 3) e 5) dos factos provados, o Tribunal atendeu à confissão integral e sem reservas do arguido que vai ao encontro ao teor do auto de notícia de fls. 4-5, do talão de fls. 10 e das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, cujo depoimento se afigurou espontâneo e coerente com a versão carreada pelo arguido.
Por sua vez, no que toca, em especial, à TAS registada e à TAS obtida depois de deduzido o erro máximo admissível, cumpre chamar à colação o estatuído no Código da Estrada na versão introduzida pela Lei n.º 72/2013, de 03/09, designadamente no seu artigo 170.º, n.º 1, alínea b), segundo o qual, no auto de notícia da infracção atinente à detecção do estado de embriaguez deve constar a referência à TAS obtida pelo aparelho de medição mas também à TAS após dedução do erro máximo admissível (EMA). Sem prejuízo de tal disposição ser expressamente aplicável às contra-ordenações, a jurisprudência tem firmado entendimento de que se deve tratar de igual forma as infracções criminais, estendendo-se esta regra aos ilícitos criminais. Assim, e atendendo ao disposto na Portaria n.º 1556/2007, de 10/12, e tendo em conta que resulta do aludido auto de notícia que o modelo ora em causa teve uma primeira verificação em 18.01.2022, importa aplicar uma percentagem de 8%, prevista da tabela anexa à mencionada portaria, obtendo-se deste modo uma TAS de 1,94 g/l após dedução do erro máximo admissível à TAS registada de 2,11 g/l.
Por sua vez, e no que respeita ao alegado pelo arguido em sede de contestação no que respeita ao alcoolímetro, dá-se aqui por reproduzido o doutamente relatado pelo Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão proferido no processo n.º 48/22...., a cujo entendimento aderimos e onde se refere o seguinte:
“Dispõe o artigo 153.º do Código da Estrada com a epígrafe “Fiscalização da condução sob influência de álcool” no seu número 1º “O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito”.
A Lei nº 18/2007 de 17 de maio, aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas. Face ao disposto nos artigos 1º nº 1 e 2º nº 1, a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efetuado em analisador quantitativo e quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é então submetido a novo teste, este a realizar em analisador quantitativo.
Dispõe por sua vez o artigo 14º nº 1 e 2:
1 - Nos testes quantitativos de álcool no ar expirado só podem ser utilizados analisadores que obedeçam às características fixadas em regulamentação e cuja utilização seja aprovada por despacho do presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
2 - A aprovação a que se refere o número anterior é precedida de homologação de modelo, a efectuar pelo Instituto Português da Qualidade, nos termos do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros
A Portaria n.º 1556/2007, de 10 de dezembro, que aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, em vigor à data dos factos 4 , dispõe no seu artigo 1º que “o presente Regulamento aplica-se a alcoolímetros quantitativos ou analisadores quantitativos, adiante designados por alcoolímetros, nos termos da legislação aplicável”, entendendo-se por alcoolímetros “os instrumentos destinados a medir a concentração mássica de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado" (artigo 2º, n.º 1).
Nos termos do artigo 5º, al. a), dessa Portaria, a aprovação de modelo dos alcoolímetros é da competência do Instituto Português da Qualidade, I. P. - IPQ, sendo que, face ao preceituado no seu artigo 6º, n.º 3, “a aprovação de modelo é válida por 10 anos, salvo disposição em contrário no despacho de aprovação de modelo.”
Aquando da prática dos factos em causa nos autos encontrava-se ainda em vigor o D.L. nº 291/90, relativo ao Regime Geral de Controlo Metrológico de Métodos e Instrumentos de Medição 5.
Como bem se refere no acórdão deste Tribunal de Relação de Guimarães de 12 de outubro de 2020, “Este diploma legal regula o controlo metrológico dos instrumentos de medição utilizados em múltiplos domínios da vida em sociedade, incluindo, nos termos do art. 1º, n.º 3, a aprovação de modelo e as diferentes operações de verificação a que são sujeitos os aparelhos (primeira verificação, verificação periódica e verificação extraordinária), dispondo que esse controlo é exercido nos termos desse diploma e dos respetivos diplomas complementares (art. 1º, n.º 1).
Ora, sendo os alcoolímetros aparelhos de mediação de álcool no sangue, utilizados em operações de fiscalização rodoviária (art. 2º, n.º 1, do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros), este último constitui diploma regulamentar do DL n.º 291/90.
Assim, o controlo metrológico dos alcoolímetros quantitativos obedece, também, ao regime geral estabelecido para os vários métodos e instrumentos de medição, nos quais eles se inclui o previsto no DL n.º 291/90, como é, inclusive, expressamente referido no preâmbulo da Portaria n.º 1556/2007”.
Face ao disposto no nº 2 do artigo 2º desse DL “A aprovação de modelo será válida por um período de 10 anos findo o qual carece de renovação.”
A questão que se coloca é a de saber o que sucede, decorridos que estejam, como é o caso em apreço, o referido prazo de 10 anos.
E a resposta é dada pelo próprio diploma ao prever no seu nº 7 ao estipular “os instrumentos de medição em utilização cuja aprovação de modelo não seja renovada ou tenha sido revogada podem permanecer em utilização desde que satisfaçam as operações de verificação aplicáveis”, competindo ao IPQ proceder à aprovação desses modelos de instrumentos de medição.
Conforme bem se salienta no acórdão desta Relação de Guimarães de 27 de janeiro de 2020,“o esgotamento do prazo de validade da aprovação técnica, sem que tenha havido lugar à sua renovação, não determina, por si só, que os alcoolímetros do modelo em causa deixem de poder ser utilizados na fiscalização, podendo sê-lo desde que satisfaçam as operações de verificação a que tenham de ser sujeitos, de acordo com as regras aplicáveis, ou seja, através das mencionadas verificações periódicas e extraordinárias já aludidas, previstas nos arts. 4º e 5º do DL n.º 291/90 e no art. 5º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, que continuarão a garantir a fiabilidade metrológica (neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 5.3.2018, proferido no processo nº 122/17....).
Também a mencionada Portaria no seu artigo 10º preceitua que “Os alcoolímetros cujo modelo tenha sido objecto de autorização de uso, determinada ao abrigo da legislação anterior, poderão permanecer em utilização enquanto estiverem em bom estado de conservação e nos ensaios incorrerem em erros que não excedam os erros máximos admissíveis da verificação periódica”.
Tudo para dizer que não obstante o prazo de validade de determinado modelo de aparelho se mostre esgotado, tal não é obstáculo a que tal aparelho continue a funcionar e a ser utilizado, bastando para tal que satisfaça as operações de verificação a que tenha de ser sujeito, de acordo com as regras aplicáveis que continuarão a garantir a fiabilidade metrológica”.
Também no sentido, a que se adere, face ao disposto no artigo 2º nº 7 do DL 291/90 “o esgotamento do prazo de validade da aprovação técnica, sem que tenha havido lugar à sua renovação, não acarreta, por si só, que os alcoolímetros do modelo em causa deixem de poder ser utilizados, podendo sê-lo desde que satisfaçam as operações de verificação a que tenham de ser sujeitos, de acordo com as regras aplicáveis, ou seja, através das verificações periódicas e extraordinárias previstas nos arts. 4º e 5º do DL n.º 291/90 e no art. 5º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, que continuarão a garantir a fiabilidade metrológica.”, cfr. o acórdão desta Relação de Guimarães de 10 de setembro de 2018.
Por força do disposto no artº 7º da Portaria nº 1556/2007 de 10 de dezembro, a verificação metrológica periódica destes aparelhos é anual e válida até 31 de dezembro do ano seguinte ao da sua realização (artº 7º, nº 2, da Portaria 1556/2007 e artº 4º, nº 5, do D. L. nº 291/90, de 20 de Setembro).
Conforme bem se escreve no recente acórdão da Relação de Coimbra de 23 de novembro de 2022, “de acordo com o comando legal ínsito no artigo 4.º, n.º 5 do citado Decreto-Lei n.º 291/90, de 20 de setembro, a verificação periódica dos alcoolímetros é válida até 31 de dezembro do ano seguinte ao da sua realização [cf. Acórdãos da Relação do Porto de 6 de abril de 2011, 25 de maio de 2011 e 8 de junho de 2011, citados, no Acórdão da mesma Relação de 7 de novembro de 2011 (Relatora Elsa Paixão)].
Ou seja, o que a lei estabelece no art.º 7.º, n.º 3 da Portaria n.º 1556/2007, de 10 de dezembro, é que os alcoolímetros terão que ser sujeitos a verificação periódica uma vez em cada ano, sendo que nos termos do art.º 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 291/90, de 20 de setembro, essa verificação periódica é válida até 31 de dezembro do ano seguinte ao da sua realização.
Salienta-se no Acórdão do Tribunal da Relação Coimbra de 6 de fevereiro de 2019 (processo N.º 72/18.1GTCBR.C1):
«A expressão “anual” tem o significado comum de aquilo que se faz, celebra, acontece ou realiza em cada ano ou num período de cada ano ou ainda todos os anos. Ora, o termo anual usado no artigo 7.º, n.º 2 da Portaria n.º 1556/2007 não constitui Regulamento específico em contrário ao que estatui o art.4.º, n.º 5, do DL n.º 291/90, ou seja, cabe no âmbito desta última norma. E de acordo com o disposto no art.4.º, n.º 5 do referido DL n.º 291/90, a verificação periódica é válida até 31 de dezembro do ano seguinte ao da sua realização, salvo regulamentação específica em contrário.
Ora, da letra da lei não resulta que a verificação periódica tenha de ser feita com intervalos rigorosos de 12 meses entre si, como o arguido acaba por invocar, mas sim que tal verificação tem de ser feita anualmente». (…)
E também não existe qualquer inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32º da CRP, na perspetiva dos direitos de defesa do arguido, porquanto o mesmo não fica prejudicado, pois a garantia de fiabilidade do referido aparelho é atestada pelo Instituto Português de Qualidade, nos termos supramencionados.
Diga-se ainda que o nosso legislador, embora ciente de alguma querela jurisprudencial relativamente a esta matéria, fez constar no artigo 11º da recente Portaria 366/23 de 15 de Novembro que “Os alcoolímetros em uso poderão permanecer em utilização enquanto estiverem em bom estado de conservação e nos ensaios de verificação metrológica incorrerem em erros que não excedam os erros máximos admissíveis.”, continuando a competir ao IPQ, nos termos do artigo 4º deste diploma o controlo metrológico legal dos alcoolímetros que compreende as operações de Aprovação de Modelo, Primeira Verificação, Verificação Periódica e Verificação Extraordinária, o que também inculca o acerto da decisão recorrida.”. Pelo que inexiste qualquer nulidade de prova no que respeita ao alcoolímetro ora utilizado no caso dos autos.
No que se aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal considerou o Certificado de Registo Criminal juntos aos autos 11.06.2024 – ref.ª ...59 [cf. ponto 4) dos factos provados].
Finalmente, quanto às suas condições pessoais, sociais e económicas nos termos que resultaram provados nos pontos 5) a 10) dos factos provados, o Tribunal atendeu às declarações do arguido que se afiguraram verosímeis e que vão ao encontro do teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas (que se afiguraram verosímeis) e do teor do print junto aos autos a 11.06.2024 (ref.ª ...62).

3 O direito.

A
Ocorre nulidade pelo facto de o certificado de verificação do aparelho medidor da TAS junto aos autos respeitar a medidor de marca e modelo diferente do que foi aqui utilizado?

Nos presentes autos, o arguido BB foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º e 69.º do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7€ (sete euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal.

Os factos incriminadores que constituem o objeto do processo foram dados como provados com base na confissão integral e sem reservas efetuada pelo arguido em audiência de julgamento.

Resulta dos autos com total clareza que o Certificado de Verificação do aparelho medidor da TAS apresentado se refere a medidor diferente do que foi descrito como utilizado no auto de notícia.

Na participação consta que foi utilizado para pesquisa da TAS o aparelho de marca ..., modelo ...10..., ...84, aprovado pelo IPQ através do Despacho n.º ...19, de 29 de Julho, aprovação de modelo n.º ...6 (D.R. II Série, n.º 178, de 17 de Setembro), aprovado para fiscalização pelo Despacho n.º 9911/2019, da ANSR de 31 de Outubro, e certificado pelo IPQ em 22/01/2018, dados que são confirmados na notificação efetuada ao arguido e no talão comprovativo da TAS, emitido pelo dito aparelho, documentos que se encontram juntos com a participação.

Todavia, o Certificado de Verificação do medidor junto aos autos com a aludida participação, refere-se a um aparelho de marca ... ..., n.º ... -....
Tratando-se de aparelho de medição utilizado em funções de segurança do Estado, encontra-se sujeito às exigências de aprovação e verificação metrológica previstas pelo Decreto-Lei n.º 29/2022, de 7 de Abril – cfr. artigos 2.º, 3.º e 5.º - sendo a entidade para tal competente o Instituto Português da Qualidade (IPQ, I.P.), enquanto Instituição Nacional de Metrologia.
Tal exigência, além de resultar diretamente da lei, bem se compreende, uma vez que se trata de aparelho de complexa composição técnica interna, cuja absoluta fiabilidade é indispensável, já que os resultados que com ele se fiscalizam apresentam variações ínfimas, mas que podem corresponder ou levar a resultados profundamente diferentes, desde logo a comissão de uma infração, que pode ser meramente contraordenacional ou ter dimensão criminal, e dentro de cada uma delas assumir diferentes e relevantes proporções, designadamente punitivas, em função dos concretos e precisos valores detetados.
E a única forma de se poder assegurar as ditas fiabilidade e exatidão é através das verificações previstas no artigo 5.º do aludido Decreto-Lei n.º 29/2022, de 07/04, efetuadas pelo IPQ, I.P., comprovadas através de pertinente certificado de verificação. Só com a obtenção e junção deste documento podem as autoridades policias estar seguras da exatidão dos valores obtidos, bem como a acusação, para apresentar o infrator a julgamento, e ainda o tribunal, para também estar seguro de que tal valor é exato.

Ora, no caso presente, não consta dos autos tal certificado de verificação. Ou melhor, consta um, mas que se refere a aparelho diferente do que foi usado na operação de fiscalização. E sem esse certificado de verificação não é possível que o tribunal se convença do acerto da medição efetuada.

O recorrente afirma que estamos perante uma nulidade:
X. Pelo que, a consideração de tal documento como meio de prova da legalidade e certificação do aparelho utilizado consubstanciaria uma nulidade, de resto, alegado em sede de contestação;
Ora, na verdade, não há qualquer nulidade, uma vez que, atento o princípio da legalidade, esta invalidade processual só ocorre quando se verifica a violação ou a inobservância das disposições do processo penal e, simultaneamente, for aquela expressamente cominada na lei – cfr. artigo 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Os autos não demonstram qualquer violação ou a inobservância das disposições do processo penal, nem em lado algum do código se prevê que esta dessincronização probatória constitua nulidade.
Também não há aqui qualquer utilização ilegal do aparelho, como diz o recorrente na sua motivação, pois a própria participação dá conta de todas as autorizações legais e administrativas necessárias para a sua utilização, como se vê dos elementos cima transcritos.
Muito menos ocorre qualquer situação de prova proibida, tal como propõe o Ministério Público na resposta ao recurso na primeira instância, uma vez que se não vê como o subsumir esta minudente questão ao gravíssimo quadro traçado pelo artigo 126.º do Código de Processo Penal, que regula as proibições de prova.
Na verdade, a questão é bem mais simples, em nosso entender: o que ocorre é uma inexistência de prova. Efetivamente, o que resulta do acervo instrutório dos autos é que não é possível ter a certeza que a TAS é a que consta do talão apresentado porque não se mostra este acompanha do certificado de verificação do aparelho de medição de onde promana. Dito de outro modo, para que o tribunal pudesse ter a certeza “científica”, digamos assim, de que a TAS alegada na acusação é exata, cumpriria instruir os autos, também, com o já referido certificado de verificação, única forma de o tribunal saber que a única entidade competente para verificar e validar as qualidades e a precisão metrológicas do aparelho, o IPQ, I.P., assegurou o seu funcionamento preciso e calibrado.

Tendo este pressuposto como certo, devemos agora afirmar que em caso algum o tribunal recorrido poderia ter aceite a confissão do arguido para dar como provado um facto para cuja demonstração a lei exige a utilização de um aparelho próprio, devidamente homologado e certificado, pois os autos não contêm todos os elementos necessários para concluir pela satisfação de tais exigências.

A confissão está prevista no artigo 344.º do Código de Processo Penal, mas, atenta a gravidade das suas consequências (n.º 2), resulta do respetivo regime que o tribunal se deve apetrechar das maiores cautelas na sua apreciação, não constituindo a mesma qualquer direito potestativo processual do arguido, não devendo ser aceite acriticamente pelo julgador. A primeira delas é a obrigatória indagação sobre se a confissão é efetuada de forma livre e fora de qualquer coação (n.º 1), e, não obstante essa obrigatória averiguação (sob pena de nulidade, diz a lei), prevê-se ainda a exclusão dos efeitos da confissão, entre outros casos, se o tribunal, em sua convicção, tiver dúvidas sobre a veracidade dos factos confessados (n.º 2, alínea b)) – ora, no caso presente, não há razão alguma para o tribunal estar convencido de que a TAS imputada é exata, por inexistência do certificado de verificação da calibração do aparelho de medição, pelo que também se não pode aceitar a confissão para a provar, nem qualquer outro meio de prova, diga-se. Em relação aos factos que carecem de comprovação científica ou técnica, ou outros de idêntico jaez, em princípio, o tribunal só pode aceitar a confissão se estiver demonstrado nos autos a sua veracidade através daqueles meios – v.g. a substância tóxica, no crime de tráfico de estupefacientes, um exame médico em lesões graves ou na comprovação de doenças, sendo que tais procedimentos probatórios têm de ser levados a cabo por entidades autorizadas para tal e ser inquestionável o método seguido. O mesmo se passa nos presentes autos, pois, não obstante o arguido confessar a TAS imputada, é para nós seguro que não está minimamente ao alcance do seu conhecimento o acerto de tal imputação, sendo certo que as consequências de tal facto são determinantes para a sorte do processo. Por isso, o arguido poderá admitir tal realidade como possível, mas não mais que isso; todavia, se ela estiver cabalmente demonstrada, nos termos acima expostos, já não obsta à plena eficácia da confissão qualquer dúvida do tribunal a esse respeito, por naturalmente inexistente.
Assim, ao o recursarmos o presente recurso, entendemos que o caso é de erro notório na apreciação da prova.

A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi julgado como assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.

Vejamos o que consta do Código de Processo Penal a respeito do primeiro modo:

  Artigo 410.º
Fundamentos do recurso
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada

Para melhor compreender o disposto neste artigo 410.º convém analisar a sua história.
O artigo 410.º do Código de Processo Penal corresponde quase na íntegra à versão original desta norma – a única exceção é o acrescento da alínea b) “(…) ou entre a fundamentação e a decisão”.
E na versão original do Código de Processo Penal, os tribunais superiores conheciam, em regra, de direito – o Supremo Tribunal de Justiça, por natureza, dir-se-ia, e os tribunais da relação por causa do disposto nos artigos 364.º , n.ºs 1 e 2, e 389.º, n.º 2, que fazia depender o recurso da matéria de facto da declaração no inicio da audiência de julgamento de que se não prescindia da documentação em ata das declarações ali prestadas oralmente, o que só era possível perante tribunal singular e/ou em processo sumário, que, como todos sabemos, raramente ocorria, por corresponder a um  julgamento com depoimentos escritos, naturalmente demorado. Ainda na versão original do Código, os recursos apresentados das decisões do tribunal coletivo e de júri eram da competência do Supremo Tribunal de Justiça – cfr. art.º 432.º, alínea c), dessa versão original.
Por isso, o artigo 410.º do Código de Processo Penal constituía, por assim dizer, uma válvula de segurança do sistema, uma salvaguarda extrema, para situações gritantes e absolutamente evidentes, através da qual a lei processual garantia ao tribunal de recurso, que apenas tinha poderes de cognição em relação à matéria de direito, algumas competências excecionais para entrar no campo da matéria de facto, naqueles casos, como se disse, gritantes e incontornavelmente óbvios. Foi por isso que se passou a chamar este mecanismo “revista alargada”, pois, o Supremo Tribunal de Justiça, que, tradicionalmente, apenas conhecia de revista, passou a ter alguns poderes de cognição em sede de matéria de facto; claro que esses poderes também estavam ao alcance da relação quando conhecia apenas de direito, que como se viu, também era a regra, mas neste caso não se tratava de revista alargada porque a recurso para a relação nunca foi designado por recurso de revista – cfr. sobre o tema, o interessantíssimo estudo do Prof. Paulo Merêa Bosquejo Histórico do Recurso de Revista, in BMJ, n.º 7, 1948, pag. 43 e segs.
E, quer na altura, quer agora, precisamente por se tratar de tão grave e evidente imperfeição da decisão, a consequência consistia e consiste, regra quase geral, no reenvio, que obriga a novo julgamento, total ou parcial, com outros juízes (isto mais tarde) – cfr. art.º 426.º, 39.º (original) e 40.º (atual) do Código de Processo Penal, sendo certo que a redação original do primeiro sofreu apenas alterações de pormenor (é certo que o art.º 430.º do Código de Processo Penal prevê a possibilidade de o tribunal da relação, perante a existência de um dos vícios elencados no n.º 2 do art.º 410.º, ordenar, a requerimento, a renovação da prova se tiver razões para crer que isso permitirá evitar o reenvio do processo, mas, como é consabido, esse não é o procedimento habitualmente seguido pelos tribunais superiores). Existe ainda a alternativa de, em face da constatação do vício, decidir da causa, se os elementos do processo o permitirem, como claramente resulta do n.º 1 do artigo 426.º do Código de Processo Penal.
Recorde-se que são invalidades claras do ponto de vista técnico – a matéria de facto que padeça deste vícios está ” (…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada.” – cfr. Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pag. 1356/7. Ainda por isso, o seu conhecimento é oficioso. No caso presente, cumpre também reconhecê-lo, trata-se mais de um mero lapso, provavelmente causado pelo volume de serviço a cargo do julgador, e da quase rotineira constatação de que um equívoco  deste género na instrução do inquérito, em princípio, não acontece, sendo compreensível que ao cabo de tantos julgamentos deste tipo se desconsidere o esmiuçar da compatibilidade entre o certificado de verificação e o aparelho utilizado, sendo certo, contudo, que a questão foi levantada na contestação e no julgamento.
E é preciso ter bem presente que a “(…) indagação, por parte do tribunal ad quem dos vícios a que se refere o art.º 410.º (…)” constituiu “ (…) uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito afinal, já que mais nenhuma prova é necessária ao tribunal respetivo para que possa concluir pela eventual existência ou não dos falados vícios. (…). Já a eventual correção dos vícios aqui elencados, implica sempre uma decisão sobre a matéria de facto a levar a cabo nos termos do art.º 426.º, n.ºs 1 e 2, quer pelo próprio tribunal de recurso com jurisdição em matéria de facto, ou, tal não sendo possível, pelo tribunal reenviado para o efeito.” -  Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, ob. cit., loc. cit.
No que concerne à configuração técnica teórica do vício previsto no n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal que ora nos interessa, passamos a transcrever os brilhantes ensinamentos do Conselheiro Pereira Madeira na obra acima citada, que são sintéticos e absolutamente esclarecedores:
“O erro notório na apreciação da prova é o terceiro dos vícios da matéria de facto aqui em causa. Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem de ser <<notório>>. Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.” – cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 1357/9.
Repare-se que deve ser devidamente interpretado este “resultar do texto da decisão recorrida” - na verdade, não consta, em sentido estrito, do texto da decisão recorrida, nem dele resulta expressamente, que o certificado de verificação que instrui os autos não casa com o aparelho de medição, mas isso não quer dizer que se não possa ter em conta essa realidade processual para a análise da questão por este prisma. Efetivamente, cremos que a expressão legal desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, constante do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, tem sido interpretado num sentido puramente literal, alijando-se, deste modo, qualquer outra consideração de elementos do processo, por mais ínfima que seja. Repare-se que o próprio Insigne Conselheiro que temos vindo a citar defende (ob. cit., loc. cit), e, a nosso ver, bem, que para afirmação do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (…) importa, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa – ora, por aqui se vê que nestes vícios não está só em causa o texto decisão, na medida em que a partir do seu texto se pode e deve atender a outros elementos do processo, sempre com o intuito de averiguar a existência de tais vícios, e não de ultrapassar ou contornar qualquer disposição legal.

Na sequência do que se afirmou, entendemos que o processo contém os elementos necessários para decidir a causa.
Na verdade, e nisso concordamos com a resposta do Ministério Público na primeira instância, o arguido tem, necessariamente, de ser absolvido.
Assim, não estando demonstrada a valia científica da medição da TAS, não pode esta ser dada como provada por via da confissão.
Tal conclusão implica aqueloutra de que tem que ser julgado como não provada a TAS imputada, passando tal facto para o rol dos factos não provados.
Nesta conformidade, como é bom de ver, não há factualidade dada como provada que integre a tipicidade objetiva do crime de que o arguido está acusado, pelo que só a sua absolvição respeita a lei.

B
A verificar-se a situação proferida na alínea anterior, ocorre nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia?

No parecer emitido pelo Ministério Público neste Tribunal da Relação de Guimarães, divergindo parcialmente da posição assumida na primeira instância, entendeu-se que se verifica a nulidade da decisão recorrida, por aplicação do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, propondo-se a devolução dos autos à primeira instância para respetivo suprimento.

É perfeitamente compreensível esta posição, e é verdade que a o problema foi colocado pela defesa nos autos na primeira instância e que a decisão recorrida nada diz a seu respeito.

Independentemente de se reconhecer a vastidão do tema, que aqui não desenvolveremos, atenta a singeleza do que está em causa, em nossos entender isto não é propriamente uma questão no processo, mas antes um segmento argumentativo em relação às provas existentes e ao seu valor, designadamente, legal – o mesmo se passaria, por exemplo, se num determinado julgamento um dos intervenientes afirmasse que um concreto facto só se pode provar por documento autêntico, e tivesse razão, e o tribunal, ignorando essa posição, tivesse dado por provado tal facto com base em documento particular. Estaria em causa um pressuposto de direito probatório, que o tribunal tem o dever conhecer, e cuja desconsideração deve ser vista pelo prisma do erro notório, embora só ou mais facilmente alcançável ao jurista, tal como defende o anotador que temos vindo a seguir.
Este Tribunal da Relação de Guimarães já decidiu, no processo n.º 66/23...., que a desconsideração pelo julgador, na apreciação dos antecedentes criminais do arguido, do disposto na Lei de Identificação Criminal sobre o regime de cancelamento das inscrições, configura erro notório na apreciação da prova. A questão não é unívoca, reconhece-se, mas ali como aqui, reconduz-se a uma errada apreciação das provas com base num erro de direito sobre a sua valia, evidente para um jurista e até para quem não o seja de modo titulado, mas seja versado nas normas pertinentes.

E ainda que se entendesse que se tratava da nulidade invocada, não se seguiria necessariamente, em nosso entender, a devolução à primeira instância, para seu suprimento, uma vez que tal suprimento poderia ser efetuado nesta instância, como resulta da interpretação conjugada dos números 2 e 3 do artigo 379.º do Código de Processo Penal. Na verdade, esta devolução, necessariamente, parece-nos, relacionada com a garantia do duplo grau de jurisdição, não é inevitável, até porque aquela garantia, dizemos nós, não consiste em ter direito a duas decisões, mas sim a ter direito a uma decisão de um tribunal superior. Ora, estando nós absolutamente convictos que o problema colocado só tem e só pode ter esta solução, suscitar de novo a intervenção da primeira instância constituiria mero adiamento da decisão final, atento regime boomerang, perdoe-se-nos o anglicismo, previsto na lei a este respeito, pelo que, a reconhecer a dita nulidade, sempre a supriríamos de acordo e no sentido com o acima dito, tudo culminando, na mesma absolvição do arguido. Assim, a devolução à primeira instância para suprimento de nulidade da decisão recorrida, só deve ter lugar quando tal suprimento não pode ser levado a cabo no tribunal superior.

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Assim sendo, o recurso deve ser julgado procedente, embora com fundamentos diferentes dos invocados.

III DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso apresentado, e, em conformidade:

A) Revogar parcialmente a decisão da matéria de facto, e julgar como não provado que o arguido apresentava uma TAS de pelo menos 1,94 g/l após dedução da margem de erro máxima admissível, que passará a figurar no elenco dos factos não provados;
B) Absolver do arguido AA, pela prática, em 20.02.2023, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual está acusado.

Sem tributação.
Guimarães, 14/01/2025

Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins
Pedro Freitas Pinto
Pedro Cunha Lopes