Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
APREENSÃO DE BENS
INQUÉRITO
INTERVENÇÃO DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
Sumário
I – A medida processual de apreensão regulada no artigo 178.º do Código de Processo Penal cumpre a dupla função de conservar quer os bens apreendidos que servirão como meio de prova do crime, quer os bens apreendidos que, não assumindo embora valência probatória, deverão, no final no processo, porque relacionados com o crime, ser declarados perdidos. II – De acordo com o disposto no artigo 178.º, n.º 7 do Código de Processo Penal, os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida, isto é, quem se sentir lesado no seu direito de propriedade pela apreensão ordenada pode requer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. IIII – A decisão de entrega de um bem apreendido não se confunde com a sindicância do despacho que ordenou o levantamento da sua apreensão e posterior entrega. IV – A competência para apreciar e decidir requerimento em que se questiona a decisão que determinou o levantamento da apreensão e a entrega de bem apreendido cabe ao Juiz de Instrução, enquanto entidade responsável pela resolução dos conflitos entre os interesses da investigação e os direitos individuais por ela afectados.
Texto Integral
Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães
I – Relatório 1. Nos autos de inquérito n.º 2182/23...., cujos actos jurisdicionais correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Instrução Criminal de Guimarães – Juiz ..., foi proferido, em 14-03-2024, despacho pela Mm.ª Juiz de Instrução Criminal a declinar a competência para apreciar o requerimento apresentado pelo denunciante/ofendido AA em 16-02-2024. 2. Inconformado com a decisão, recorreu o denunciante/ofendido AA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«I. O Denunciante/Ofendido, aqui Recorrente, vem interpor o presente recurso por não se conformar, de modo algum, com o Despacho proferido no âmbito dos presentes autos,
II. O qual decide no sentido da incompetência por parte do Juiz de Instrução para decidir das vicissitudes invocadas no requerimento por si apresentado em 16 de Fevereiro de 2024, quer por razões adjetivas, quer por razões substanciais.
III. De acordo com o constante dos presentes autos, foi apresentado, pelo aqui Recorrente, o competente pedido de apreensão do veículo automóvel com a matrícula ..-XE-.., tendo, nessa conformidade, sido proferida decisão ordenando tal apreensão.
IV. Contudo, posteriormente e após consulta dos presentes autos, foi o aqui Recorrente surpreendido com o teor do requerimento apresentado por BB, datado de 14 de Novembro de 2023, solicitando o levantamento da apreensão,
V. E com parecer emitido por parte da Polícia Judiciária, referindo em suma “atendendo ao exposto, não se vislumbrando a necessidade desta viatura ser sujeita a qualquer perícia forense, salvo melhor opinião, tudo indica que não existe qualquer inconveniente em se proceder à entrega da mesma, a qualquer dos intervenientes processuais, tendo em conta a necessidade de minimizar os prejuízos patrimoniais ocasionados pelo ilícito em questão, dado o negócio somente se ter concretizado com base em erro/engano provocado por elemento externo a ambos”
VI. O que, por sua vez, conduziu ao despacho proferido, ordenando o levantamento da apreensão.
VII. Sucede, porém, que o aqui Recorrente, contrariamente ao que se impunha, nunca foi notificado do teor de qualquer peça processual apresentada, e mais do que isso, da decisão proferida de levantamento da apreensão.
VIII. Como tal, em 16 de Fevereiro de 2024, apresentou, este último, requerimento invocando a violação dos seus direitos constitucionalmente previstos, mormente o preceituado no artigo 32.º, n.º5 e 7, da Constituição da Republica Portuguesa (doravante CRP).
IX. Contudo, foi, aqui e agora, o Recorrente notificado do despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução decidindo o seguinte “a decisão da entrega da viatura não foi tomada pelo JIC, mas sim pelo titular da ação penal na fase de inquérito. Além do mais, o acto em causa não se mostra previsto em nenhuma das competências do Juiz de Instrução previstas nos artigos 268.º e 269.º do CPP, pelo que, nada temos a ordenar”,
X. Decisão com a qual não pode, nem deve aceitar, por desprovida de qualquer fundamento, quer legal, quer factual, válido.
XI. Compete, designadamente, ao Juiz de instrução na fase de inquérito praticar, ordenar, autorizar e validar os atos que diretamente se prendam com os direitos e liberdades fundamentais das pessoas, e conhecer da aflição de tais direitos em resultado de invalidades processuais,
XII. Sendo que, a Lei defere também ao Juiz de Instrução a competência para, na fase de inquérito, dirimir os conflitos entre os órgãos encarregados da perseguição criminal e os titulares dos direitos fundamentais lesados ou ameaçados.
XIII. Com efeito, saliente-se: O Juiz de Instrução intervém, na fase processual de inquérito, não para se imiscuir na investigação criminal, mas, isso sim, para cumprir o papel que a Constituição lhe reserva de guardião efetivo dos direitos fundamentais das pessoas – o Juiz das liberdades.
XIV. Assim, sendo atribuído ao Juiz de Instrução, na fase processual de inquérito, a função de controlo da legalidade, e tendo sido requerido pelo aqui Recorrente ao Juiz de Instrução - no requerimento por si apresentado em 16 de Fevereiro de 2024 – que este sindicasse a validade de ato do Ministério Público e as consequências lesivas do mesmo para o seu direito fundamental de propriedade
XV. É este que é a entidade competente para aferir se o ato praticado pelo Ministério Público ou órgãos de polícia criminal, atinge ou não, de modo relevante, a esfera dos seus direitos fundamentais deste último (direito de defesa e direito de propriedade).
XVI. Desse modo, e conforme V/Exas., Venerandos Desembargadores, certamente decidirão, deve ser proferida decisão no sentido de revogar o despacho proferido, e, nessa conformidade, declarar a competência do Juiz de Instrução para decidir o invocado no requerimento datado de 16 de Fevereiro de 2024, apresentado pelo Recorrente, só assim se fazendo inteira Justiça Material!
Termos em que e nos melhores de Direito deverão V/Exas., Venerandos Desembargadores, proferir decisão que nessa conformidade:
a) Revogue o Despacho proferido e, nessa conformidade, declarar a competência do Juiz de Instrução para decidir o invocado no requerimento datado de 16 de Fevereiro de 2024, apresentado pelo Recorrente, com o que farão inteira Justiça.» 3. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1) O recorrente pode requer ao JIC, que, nos termos do disposto no artº 178º, nº 7 do CPP, altere a decisão de apreensão do bem.
2) O JIC pode, pratica, ordena ou autoriza um ato levado a cabo em inquérito, de acordo com as competências que lhe confere os artº 268º e artº 269º, do CPP.
3) Deverá ser proferida decisão no sentido de manter o despacho proferido a 14 de março de 2024 e, nessa conformidade, declarar a incompetência do Juiz de Instrução para decidir o invocado no requerimento datado de 16 de fevereiro de 2024, apresentado pelo Recorrente AA.
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso interposto e em consequência ser mantido a douto despacho recorrido só assim se fará a habitual e sã,
JUSTIÇA!» 4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, afirmando, em conclusão, que o recorrente, porque não possui o estatuto de assistente no processo, não possui legitimidade para recorrer da sobredita decisão judicial tendo em vista o disposto no artigo 401.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal e que reserva o direito ao recurso a quem aquele possuir, e sendo assim, nos termos do artigo 420, n.º 1 do citado código, o seu recurso deverá ser rejeitado. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, respondeu o recorrente defendendo que detém, por um lado, legitimidade para recorrer, e, por outro, manifesto interesse em recorrer. 6. Por decisão sumária, proferida em 08.07.2024, afirmou-se a legitimidade do recorrente para recorrer porque, considerando os fundamentos invocados no recurso, funda a sua legitimidade substantiva na sua qualidade de alegado proprietário quanto a um incidente específico [artigo 178.º do Código de Processo Penal] reportado à apreensão de bens, e não quanto ao cerne do objecto da ação penal, o qual alegadamente se encontra afetado, o que lhe concede o direito de lhe ver reconhecida legitimidade processual para recorrer do despacho em causa, ao abrigo do artigo 401.º, n.º 1, al. d), in fine, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, verificada a omissão da notificação do recurso aos denunciantes/ofendidos BB e mulher CC, nos termos e para os efeitos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 411.º, n.º 6 e 413.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, foi ordenada a devolução dos autos à 1ª instância com vista à reparação de tal irregularidade. 7. Remetidos os autos à 1ª instância foram os denunciantes/ofendidos BB e mulher CC notificados da admissão do recurso nos termos sobreditos. 8. Os denunciantes/ofendidos BB e mulher CC não responderam ao recurso. 9. Remetidos novamente os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, afirmando, em conclusão, que o recurso interposto deverá ser julgado procedente, tendo em atenção o disposto no n.º 7 do artigo 178.º do Código de Processo Penal e a competência legal conferida ao JIC para conhecer do seu pedido em inquérito por em causa estar assunto que cabe plenamente na sua função jurisdicional. 10. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, respondeu o recorrente reiterando a posição assumida na motivação de recurso. 11. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.É do seguinte teor o despacho recorrido(transcrição):
«A decisão de entrega da viatura não foi tomada pelo JIC, mas sim pelo titular da acção penal na fase de inquérito. Além do mais, o acto em causa não se mostra previsto em nenhuma das competências do Juiz de instrução previstas nos art.ºs 268.º e 269.º do CPP, pelo que, nada temos a ordenar.”.
2. Com relevo colhem-se dos autos principais os seguintes elementos: a) O requerimento apresentado pelo denunciante/ofendido AA, em 16-02-2024, dirigido à Mma. Juiz de Instrução Criminal, sobre o qual incidiu o despacho recorrido, tem o seguinte teor (transcrição):
«AA, Denunciante/Ofendido nos autos de processo à margem referenciados e aí melhor identificado, vem expor e requerer a V/Exa. o seguinte:
1. Após a consulta dos presentes autos, foi o Denunciante/Ofendido, aqui Requerente, para muita surpresa sua, confrontado com o requerimento apresentado por BB, datado de 14 de Novembro de 2023,
2. E, nessa sequência, com o Despacho proferido que determinou o levantamento da apreensão ao veículo de matrícula ..-XE-.. e ordenada a sua entrega a este último.
3. E diz-se para muita surpresa sua, na medida em que, pese embora tenha sido o aqui Requerente a dar entrada, precisamente no dia 05 de Setembro de 2023, do pedido de apreensão da viatura automóvel em causa,
4. Resulta dos presentes autos que, para além do mesmo não ter sido notificado do teor do requerimento apresentado por BB, nem tão pouco o foi do despacho que ordenou o levantamento da apreensão,
5. Circunstancialidade com a qual não pode, nem deve concordar pelo que melhor infra se demonstrará:
6. A questão que se coloca é a de saber se o aqui Requerente, tendo sido quem apresentou o pedido de apreensão do veículo, deveria, ou não, tomar conhecimento das decisões que autorizem disposições em relação ao património apreendido.
7. Para que melhor se entenda, e conforme já referido, em 05 de Setembro de 2023, foi apresentado pelo aqui Requerente, o competente pedido de apreensão do veículo automóvel com a matrícula ..-XE-..,
8. Porquanto, em suma, para além do veículo de Marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XE-.. e n.º de chassis ...39 se tratar, inegavelmente, de um instrumento e um produto da atividade criminosa,
9. Existe fundado receio que, a qualquer momento, pode ser dissipado, destruído e transmitido de proprietário, eliminando, assim, a possibilidade deste último reaver o mesmo, ou pelo menos, o seu valor comercial.
10.Em virtude disso, foi proferido, nos presentes autos, o competente despacho ordenando a apreensão de tal veículo,
11.Dele tendo sido notificado o aqui Requerente,
12.E, por sua vez, efetivada tal diligência em 30 de Outubro de 2023 pela Polícia Judiciária.
13.Contudo, o certo é que, em face da apresentação por BB de requerimento a solicitar o levantamento da apreensão,
14.E de parecer emitido por parte da Polícia Judiciária, referindo em suma “atendendo ao exposto, não se vislumbrando a necessidade desta viatura ser sujeita a qualquer perícia forense, salvo melhor opinião, tudo indica que não existe qualquer inconveniente em se proceder à entrega da mesma, a qualquer dos intervenientes processuais, tendo em conta a necessidade de minimizar os prejuízos patrimoniais ocasionados pelo ilícito em questão, dado o negócio somente se ter concretizado com base em erro/engano provocado por elemento externo a ambos”,
15.Foi proferido despacho ordenando o levantamento da apreensão, do qual o aqui Requerente nunca foi notificado, como se impunha.
16.Com efeito, e do que resulta do exposto, tendo sido o aqui Requerente que apresentou o competente requerimento a solicitar a apreensão do veículo manifestou, sem qualquer sombra de dúvida, interesse em agir,
17.Por, para além do demais, recear a prática de atos de dissipação, destruição e transmissão do mesmo.
18.O aqui Requerente que viu os seus bens jurídicos violados com a prática do crime tem um interesse concreto em agir quando está em causa a alienação de património apreendido,
19.Impondo-se, como tal, o dever de ser notificado das decisões das instâncias que possam afetar as suas garantias.
20.E tal assume particular relevância, nesta senda, porquanto, de acordo com o preceituado no artigo 32.º, n.º7 da CRP “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei” (sublinhado nosso),
21.O que, como se verificou do que resulta dos autos, não ocorreu.
22.Porque é que foi o aqui Requerente notificado da decisão que ordenou a apreensão do veículo e não da decisão que ordenou o seu levantamento?
23.Aqui chegados, a conclusão a extrair é só uma: o aqui Requerente tem direito a conhecer o teor deste e de qualquer despacho judicial que determine o levantamento de garantias que possa ter como consequência uma diminuição ou alteração das mesmas no que concerne ao ressarcimento dos seus direitos,
24.Logo, a manifesta ausência da sua notificação quanto ao teor do requerimento apresentado por BB, do parecer exarado pela Polícia Judiciária e, nessa sequência, do Despacho ordenando o levantamento da apreensão ao veículo aqui em causa,
25.É violador do estipulado no artigo 32.º, n.º7 da CRP, atenta a qualidade de ofendido que assume e o direito do mesmo em intervir no processo,
26.Mas, não menos importante, o facto do mesmo ter interesse concreto em agir.
27.E se tal não bastasse, ainda cumpre mencionar que, como bem se sabe, vigora o princípio do contraditório que se traduz na união entre dois vértices, na medida em que representa o direito que tanto a acusação como a defesa têm de oferecerem provas para sustentarem as suas teses processuais
28.E se pronunciarem sobre as alegações ou iniciativas processuais ou os actos tanto de uma como de outra, e a diretriz de que tais contributos deverão integrar a ponderação do tribunal.
29.Ou seja, o princípio do contraditório tem consagração constitucional (art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa) e significa que “nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”.
30.Desta feita, e tendo na devida consideração o já supra aludido, sempre se dirá que a ausência de notificação do aqui Requerente, para além de ser violador do n.º7 do artigo 32.º, da CRP,
31.É igualmente violador do principio do contraditório previsto no artigo 32.º, n.º5 da CRP,
32.Pois, não tendo o mesmo tido conhecimento dos trâmites que levaram à decisão proferida de levantamento da apreensão do veículo automóvel em causa e à própria decisão em si,
33.Foi-lhe coartado o direito de se pronunciar quanto aos mesmos, o que não se pode conceber.
34.Destarte, e perante tudo isto, apenas se pode concluir que o presente processo padece de uma nulidade,
35.Nulidade essa que a acarreta a consequente, notificação ao Denunciante/Ofendido, na pessoa da sua Mandatária, do Despacho que ordenou o levantamento da apreensão,
36.Bem como a repetição de tudo o processado.
37.O que, desde já, se requer.
Sem prescindir, o que não se concebe,
38.Como decidiram os Acórdãos da Douta Relação do Porto, de 24.10.2007, processo n.º 0745105, e da Douta Relação de Lisboa de 29.03.2006, processo n.º 1395/06-3 “a apreensão de objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir de prova” – artigo 178.º, n.º1, do CPP - tem sido entendida como consubstanciando um ato de policia criminal que tem como objetivo o de servir de prova, protegendo a realização do direito criminal, assumindo natureza eminentemente preventiva.
39. A apreensão respeita materialmente aos objetos na situação a que se refere a citada norma legal, que constitui um dos elementos probatórios e é enraizadamente um meio de obtenção de prova, razão pela qual podem integrar-se no seu objetivo quaisquer coisas “que estejam em poder ou que pertençam ao suspeito como coisas em poder ou pertencentes a terceiros” – Acórdão da Douta Relação de Lisboa de 18.05.2006, processo n.º ....
40.A apreensão é geralmente cautelar no sentido de só passar a definitiva – modificação da posse e da disponibilidade – após sentença condenatória transitada em julgado com declaração de perda a favor do estado dos bens apreendidos ou com a entrega dos bens aos legítimos proprietários – no caso dos bens recuperados no âmbito da investigação de crimes contra a propriedade.
41.Assim sendo, tendo tudo isto na devida consideração, e o já salientado pelo aqui Requerente no requerimento por si apresentado em 05 de Setembro de 2023, visando a apreensão do veículo em causa,
42.Resulta dos presentes autos fortemente indiciado que os Denunciados, em comunhão de esforços, e de forma fraudulenta utilizaram o veículo automóvel para burlar o aqui Requerente,
43.Que o referido veículo de Marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XE-.. e n.º de chassis ...39, constitui instrumento e produto relacionado com a prática dos factos ilícitos que se encontram sob escrutínio, nos termos do Artigo 178.º n.º 1 do Código de Processo Penal,
44.Que existe fundado receio do desaparecimento, destruição e/ou dissipação do referido veículo, vantagem da atividade criminosa, nos termos do n.º 5 do aludido Artigo 178.º do Código de Processo Penal.
45.Como tal, não pode o aqui Requerente, de modo algum, se conformar com a decisão que ordenou o levantamento da apreensão do veículo automóvel, por desprovida de qualquer fundamento, quer legal, quer factual válido.
Termos em que e nos melhores de Direito deve V/Exa. declara que o presente processo padece de nulidade, por violação do n.º 5, e 7, do artigo 32.º, da CRP, anulando-se todo o processado e ordenando a notificação, em falta, ao Ofendido, na pessoa da sua Mandatária.»
b) O Ministério Público pronunciou-se sobre este requerimento, em 06-03-2024, nos seguintes termos (transcrição):
“O Ministério Público entendeu deferir o requerido pelo ofendido, BB, a fls. 169 a 170 dos autos e levantar a apreensão do veículo, atentos os fundamentos por este invocados, nomeadamente o facto de o requerente ter o veículo de matrícula ..-XE-.., registado em seu nome, atenta a presunção que deriva do artº 7º, do CRP.
O despacho de 05.12.2023, foi comunicado apenas ao requerente e à PJ, mas entende-se que o despacho não enferme de qualquer irregularidade ou nulidade.”
*
2. Apreciando
Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se cabe no âmbito da competência da Mma. Juiz de Instrução Criminal a apreciação do requerimento apresentado pelo recorrente em 16-02-2024.
Como é sabido, o Ministério Público detém em exclusivo a competência material para dirigir o inquérito que compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação – artigos 262.º, n.º 1 e 263.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No que respeita às apreensões, rege o n.º 1 do artigo 178.º do mesmo diploma legal, segundo o qual, “são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”, sendo que, nos termos do seu n.º 3, as apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária, podendo os órgãos de polícia criminal efectuá-las no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º – nº 4 – estando, neste caso, sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas (n.º 6).
Por conseguinte, é ao Ministério Público que incumbe a decisão sobre a necessidade ou desnecessidade de manter uma apreensão para efeito de prova (finalidade processual probatória) ou como garantia processual penal da perda (finalidade processual substantiva) e, consequentemente, decidir sobre a entrega dos objectos e bens apreendidos.
A medida processual de apreensão regulada no artigo 178.º do CPP cumpre a dupla função de conservar quer os bens apreendidos que servirão como meio de prova do crime, quer os bens apreendidos que, não assumindo embora valência probatória, deverão, no final no processo, porque relacionados com o crime, ser declarados perdidos.
Tal como refere João Conde Correia, “[e]mbora tradicionalmente associada à prova, a apreensão é, pois, apenas uma medida conservatória de certos bens, seja porque eles têm interesse probatório, seja porque eles devem, no final, ser declarados perdidos. O que está em causa é só a imposição de um vínculo de indisponibilidade sobre uma coisa”([1]).
Importa, no entanto, referir que, de acordo com o artigo 178.º, n.º 7 do Código de Processo Penal, os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida, isto é, quem se sentir lesado no seu direito de propriedade pela apreensão ordenada pode requer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida.
Este preceito foi introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, uma vez que “no caso das apreensões autorizadas, ordenadas ou validadas pelo Ministério Público não estava previsto qualquer meio de impugnação por parte de quem se considerasse ilegitimamente lesado” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 98 ed., pág. 390)([2]).
O artigo 17.º do Código de Processo Penal atribui ao juiz de instrução criminal a competência para praticar todos os actos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas ao inquérito.
Assim, na fase de inquérito, o Juiz de Instrução tem competência exclusiva para a prática de determinados actos e para ordenar ou autorizar a prática de outros, nos termos previstos, respectivamente, nos artigos 268.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, intervindo, ainda, noutras situações não especificadas nas alíneas dos citados artigos, como decorre do disposto na al. f) do n.º 1 do artigo 268.º e do artigo 17.º do Código de Processo Penal [v.g., a admissão como assistente (art. 68.º, n.º 4), a declaração da excepcional complexidade do processo (art. 215.º, n.º 5), a concordância com a suspensão provisória do processo (art. 281.º)].
A circunstância, a que se alude no despacho recorrido, de a decisão de entrega da viatura não ter sido tomada pelo JIC mas sim pelo titular da acção penal na fase de inquérito, ou seja, pelo Ministério Público, não obsta a que caiba aquele a apreciação do requerimento apresentado pelo recorrente, pois a decisão de entrega não se confunde com a sindicância do despacho que ordenou o levantamento da apreensão e subsequente entrega.
A respeito da modificação ou revogação da apreensão escreve João Conde Correia:
“(…)A validação da apreensão pela autoridade judiciária não se confunde com a modificação ou revogação judicial da medida (n.º 7). No primeiro caso, uma vez que por inquestionáveis razões de eficácia os OPC têm de fazer apreensões, impõe-se que a autoridade judiciária (maxime o MP enquanto dominus do inquérito) proceda à verificação da utilidade probatória ou confiscatória (…) dos bens apreendidos. A bondade do ato praticado pelo OPC tem de ser confirmada num prazo muito curto, em ordem à sua manutenção ou revogação e consequente substituição. Se não fosse assim, uma apreensão arbitrária poderia prolongar-se indefinidamente, muito mais do que o necessário, prejudicando irremediavelmente o ius utendi, fruendi et abutendi. No segundo caso, a eventual modificação ou revogação da medida é o resultado da intervenção do juiz das liberdades enquanto entidade responsável pela resolução dos conflitos entre os interesses da investigação e os direitos individuais por ela afetados. Num caso temos, pois, um ato oficioso da autoridade judiciária (normalmente o MP), no outro, um ato provocado pelo juiz (artigos 178º/7 e 268º/1/f).”([3]).
A possibilidade de o recorrente, primitivo proprietário do veículo automóvel objecto da apreensão, ver apreciados os fundamentos da decisão de entrega a outro dos ofendidos/denunciantes cinge-se à utilização do incidente processual regulado nos nºs 7 e 8 do artigo 178.º do Código de Processo Penal, do qual o recorrente efectivamente lançou mão.
O Juiz de Instrução intervém aqui como juiz das garantias, como juiz das liberdades, enquanto entidade responsável pela resolução dos conflitos entre os interesses da investigação e os direitos individuais por ela afectados.
Assim, a competência para apreciar e decidir o incidente processual suscitado com o requerimento apresentado pelo recorrente em 16-02-2024 cabe ao juiz de instrução criminal, conforme decorre do regime estabelecido no artigo 178.º, n.º 7 e 8 do Código de Processo Penal.
Procede, portanto, o interposto recurso.
*
III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que proceda à apreciação e decisão do incidente processual suscitado com o requerimento apresentado pelo recorrente em 16-02-2024.
*
Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
*
(O acórdão foi processado em computador pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
*
Guimarães, 14.01.2025
Os Juízes Desembargadores
Fernando Chaves (Relator)
Bráulio Martins (1º Adjunto)
Carlos da Cunha Coutinho (2º Adjunto)
[1] - Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 3ª edição, pág. 637. [2] - Cfr. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, pág. 702. [3] - Ob. cit., págs. 647 e 648.