1 - Se depois da apresentação de contas da sociedade e de aprovado o balanço se verificar que existe lucro distribuível (apurado depois de retirados os montantes destinados a cobrir prejuízos transitados, bem como os necessários à formação das reservas legais e estatutárias e à cobertura das despesas de investigação e desenvolvimento não amortizadas que não estejam cobertas por outros valores do ativo – artigo 33º, nºs 1 e 2 do CSC) metade (50%) desse lucro deve ser distribuído aos sócios, a menos que exista uma cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos do capital social representado na assembleia geral que permita uma distribuição diferente ou a retenção desses resultados na sociedade.
2 - Ao contrário do que sucede com a metade dos lucros de exercício que salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por uma maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral convocada para o efeito tem de ser distribuído aos sócios desde que seja distribuível nos termos previstos no artigo 33.º do Código das Sociedades Comerciais, no que respeita ao lucro do balanço só com a deliberação social de distribuição de tais lucros é que se constitui na esfera jurídica de cada sócio o direito àquele dividendo.
3 - Para fundar a anulabilidade de uma deliberação ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do CSC não basta alegar e provar que o sócio que votou contra a deliberação ficou prejudicado com a mesma (in casu, pela circunstância de não lhe serem distribuídos lucros gerados pela atividade da sociedade). É, também necessário que o sócio que se diz prejudicado pela deliberação, alegue e prove, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC, o intuito dos demais sócios que votaram contra a distribuição dos dividendos de prejudicá-lo.
(Sumário da Relatora)
2. A A. é sócia da R. detendo uma participação social no montante de 12.000 Euros.
3. São igualmente sócios da sociedade, o sócio e gerente (…), titular de uma quota no valor nominal de 24.000 Euros e o sócio e gerente (…), titular de uma quota no valor nominal de 24.000 Euros.
4. No pretérito dia 3.4.2023, tomou lugar na sede social da R, a AG de sócios da R, com a seguinte ordem de trabalhos:
A) 1. Discussão e votação do relatório e contas da atividade social da sociedade do exercício de 2022, e deliberação da proposta de aplicação de resultados; 2. Discussão e deliberação sobre a divisão de lucros obtidos pela empresa referentes aos anos civis de 2010 a 2022; 3. Outros assuntos;
5. No que concerne ao ponto 2.º da ordem de trabalhos, foi rejeitada a distribuição de lucros da sociedade, nos anos de 2010 a 2022, com os votos contra dos sócios (…) e (…), titulares de participações sociais superiores a ¾ do capital social da R., e ambos representados na AG pelo sócio (…).
6. Invocando-se, para o efeito a seguinte menção: “após explicação para o efeito sobre a situação financeira da sociedade”; 7. A A. votou favoravelmente a serem distribuídos os lucros sociais.
8. No ano de 2009 a sociedade Ré registou resultados transitados negativos de € 6557,24.
9. No ano de 2010 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 822,54.
10. No ano de 2011 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 21.333,19.
11. No ano de 2012 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 10.299,90.
12. No ano de 2013 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 10.492,63.
13. No ano de 2014 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 13.284,74.
14. No ano de 2015 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 23.200,76.
15. No ano de 2016 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 30.696,89.
16. No ano de 2017 a sociedade Ré registou resultados transitados negativos de € 2.265,70.
17. No ano de 2018 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 11.285,84.
18. No ano de 2019 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 18.551,06.
19. No ano de 2020 a sociedade Ré registou resultados transitados positivos de € 2.143,56.
20. No ano de 2021 a sociedade Ré registou resultados transitados negativos de € 2.459,15.
21. A sociedade Ré tinha à data de 31/12/2022 no Ativo Corrente, no curto prazo, o valor de € 67.071,82 e de Passivo Corrente, de curto prazo, o valor de € 135.007,38.
22. A sociedade Ré detinha, no dia 3/4/2023, em depósito bancário, o valor de € 6.937,36.»
III. 4.
Apreciação do objeto do recurso
III.4.1.
Impugnação da decisão de facto
Na impugnação da decisão de facto visa-se obter uma reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, ou seja, apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, ou por terem sido indevidamente considerados assentes quando deveriam ter sido julgados não provados ou por terem sido considerados não provados quando deveriam ter sido considerados assentes (artigo 662.º, n.º 1, do CPC).
Neste segmento do seu recurso a apelante defende que deve ser julgado provado que a ré teve resultados transitados positivos no ano de 2022 no valor de € 4.947,05, invocando o teor da ata n.º 13 junta com a contestação e o documento n.º 1 também junto com a contestação.
O documento n.º 1 anexo à contestação consiste na ata n.º 14 relativa à assembleia geral da ré/apelada realizada no dia 3 de abril de 2023. Tal documento não foi impugnado quer quanto à respetiva genuinidade, quer quanto ao conteúdo das declarações nele contidas.
Consta do mesmo o seguinte segmento: «Entrando de imediato no ponto 1 da ordem de trabalhos, a Assembleia Geral, após ter procedido à análise das contas do período de dois mil e vinte e dois, aprovou as contas e a transferência dos resultados líquidos do exercício para resultados transitados, com votos a favor do sócio (…) e do sócio (…) e abstenção da sócia (…)».
Na resposta às alegações de recurso, a apelada confessou que a ré teve um resultado líquido positivo no exercício de 2022 no valor de € 4.947,05 e que na assembleia geral de 3.04.2023 foram aprovadas as contas e a transferência dos resultados líquidos do exercício para resultados transitados, com os votos a favor do sócio (…) e do sócio (…) e a abstenção da sócia (…).
Em face do exposto, decide-se aditar ao elenco dos factos provados a seguinte factualidade:
«A ré teve um resultado líquido positivo no exercício de 2022 no valor de 4.947,05€.»
«Na assembleia geral de 3.04.2023 foram aprovadas as contas e a transferência dos resultados líquidos do exercício para resultados transitados, com os votos a favor do sócio (…) e do sócio (…) e a abstenção da sócia (…).»
II.4.3.
Reapreciação do mérito da decisão
Está em causa no presente recurso uma sentença que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade/anulabilidade de uma deliberação social aprovada na assembleia geral da ré realizada, no dia 3 de abril de 2023, deliberação que rejeitou a proposta de distribuição dos lucros da sociedade ré nos anos civis de 2010 a 2022.
Insurge-se a apelante contra tal decisão, defendendo que ao decidir de tal forma o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 21º e 217º nº 1 do CSC, ou seja, violou o direito da recorrente a quinhoar nos lucros dos exercícios fiscais relativos aos anos de 2010 a 2022 e que a deliberação em causa traduz um abuso de direito, o que constitui fundamento de anulabilidade de acordo com o disposto nos artigos 58º nº 1, al. b) do CSC e 334º do Código Civil.
Vejamos se lhe assiste razão.
Liminarmente se dirá que as deliberações da assembleia geral inválidas podem ser nulas (artigo 56.º do CSC) ou anuláveis (artigo 58.º do CSC).
A invalidade das deliberações pode estar relacionada com vícios de procedimento ou com vícios de conteúdo. No vício de procedimento o que está em causa é como se chegou à deliberação, independentemente do seu conteúdo; no vício de conteúdo aquilo que se sanciona é o que se deliberou, independentemente do modo por que se chegou a essa deliberação.
No caso, o que é invocado é um vício de conteúdo da deliberação em causa, na medida em que a apelante/autora alega que a deliberação em causa é abusiva e viola o seu direito de quinhoar nos lucros da sociedade ré.
Quando o conteúdo da deliberação violar norma legal imperativa, a consequência jurídica será, em regra, a nulidade (de tal deliberação) - artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do CSC); se o conteúdo da deliberação violar norma legal dispositiva ou norma estatutária, em regra a consequência jurídica será a anulabilidade[1].
As alíneas c) e d) do artigo 56.º/1 do CSC elencam deliberações nulas por vício de conteúdo. Assim são nulas: (i) as deliberações de sócios cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios [alínea c) do artigo 56.º/1]; (ii) as deliberações cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios [alínea d), do artigo 56.º/1].
Nos termos do disposto no artigo 58.º do CSC são anuláveis as deliberações que violem disposições da lei quando ao caso não caiba a nulidade [alínea a), do artigo 58.º/1], as deliberações que violem os estatutos da sociedade [alínea a), do artigo 58.º/1], as deliberações abusivas [alínea b), do artigo 58.º/1], as deliberações que não tenham sido precedidas do fornecimento dos elementos mínimos de informação [alínea c), do artigo 58.º/1].
A alínea a) do artigo 58.º/1 do CSC contém uma regra-geral: todas as deliberações que infrinjam preceitos legais ou contratuais são anuláveis. E tal só não acontecerá se a lei, considerando a gravidade da violação, entender que a deliberação não pode deixar de ser nula.
Em síntese, em face do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do CSC, são anuláveis as deliberações cujo conteúdo contrarie disposições de lei quando ao caso não caiba nulidade; há nulidade quando as disposições legais contrariadas são imperativas [artigo 56.º, n.º 1, al. d)]. Em regra, em caso de contrariedade de disposições legais dispositivas – que são aquelas que podem ser derrogadas pelo estatuto social ou quando este ou a lei o permitam, por deliberação dos sócios - a deliberação será anulável.
De acordo com o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC[2], uma deliberação é abusiva-anulável quando, sem violar disposições específicas da lei ou do estatuto da sociedade:
(a) É apropriada para satisfazer o propósito de sócio(s) de conseguir alcançar vantagens especiais para si ou para outrem em prejuízo da sociedade ou de outro(s) sócio(s);
(b) É apropriada para satisfazer o propósito de sócio(s) tão só de prejudicar a sociedade ou outro(s) sócio(s )(deliberações emulativas)[3].
Ambas as espécies de deliberações previstas na referida alínea b) têm como pressuposto subjetivo o “propósito” de um ou mais votantes - no caso das primeiras, o de alcançar vantagens especiais para si ou para outrem; no caso das segundas o de causar prejuízos e como pressuposto objetivo, a aptidão/propriedade da deliberação para satisfazer o “propósito” ali referido.
O “propósito” significa “dolo”, o qual não tem de ser direto ou necessário, bastando o dolo eventual; ou seja, basta ao impugnante provar que um ou mais sócios, ao votarem, previram como possível a vantagem especial para si ou para outrem, ou o prejuízo da sociedade ou de outros sócio, e não confiaram que tal efeito eventual se não verificaria.
No caso das deliberações apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar para si ou para outrem vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios há que se verificar um prejuízo, isto é, um dano resultante da consecução de vantagens especiais; estas consistem nos proveitos patrimoniais que a deliberação em causa concede, possibilita ou admite a sócios e/não sócios, mas não a todos aqueles que se encontrem perante a sociedade em situação semelhante à dos beneficiados, bem como os proveitos que, quando não haja sujeitos em situação semelhante à daqueles, não seriam (ou não deviam ser) concedidos, possibilitados ou admitidos a quem hipoteticamente ocupasse posição equiparável[4].
Por fim, note-se que a lei estabelece uma salvaguarda relativamente ao efeito dos votos abusivos, determinando que apesar de ser abusiva, a deliberação não será anulável se a mesma subsistisse sem os votos abusivos. Ou seja, se a sociedade provar que sem os votos daquele sócio, a deliberação seria igualmente adotada, a deliberação não será anulável, ainda que apropriada para satisfazer o propósito ilícito de um sócio, dela derivando prejuízo para a sociedade e/ou sócios.
No caso sub judice a apelante defende que a deliberação em causa viola normas que consagram o (seu) direito a quinhoar nos lucros da sociedade, concretamente os artigos 21.º, n.º 1, alínea a) e o artigo 217.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais.
Dispõe o artigo 21.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais que todo o sócio tem direito a quinhoar nos lucros.
O direito ao lucro é um direito irrenunciável e inderrogável, o que, porém, não impede que, em determinado exercício, seja tomada, respeitando a maioria necessária, deliberação de não distribuição dos lucros (artigo 217.º para a sociedade comercial por quotas e artigo 294.º para a sociedade comercial anónima).
O direito sobre o lucro (do sócio individualmente considerado) traduz-se, por um lado, no direito de exigir que a sociedade tenha por finalidade o escopo lucrativo e, por outro, no direito de participar na distribuição dos lucros apurados pela sociedade – assim, Paulo de Tarso Domingues, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume III, 2.ª Edição, Almedina, p. 333. Acrescenta este autor[5] que «isto não significa, porém, que o sócio – enquanto titular deste direito (que se pode designar com direito abstrato) ao lucro – possa exigir da sociedade a distribuição da riqueza por ela criada, isto é, que o sócio possa reclamar da sociedade uma qualquer concreta repartição do lucro ou, dito de outro modo, que o sócio seja titular de um direito concreto sobre o lucro. Com efeito, cabe à coletividade dos sócios deliberar se, quando e como se procederá à sua distribuição. (…) Trata-se de um direito que nasce com aquela deliberação e que, portanto, só existe a partir dela».
Com efeito, e ressalvado o regime excecional dos artigos 217.º (para a sociedade por quotas) e 294.º (para a sociedade anónima), relativo aos lucros de exercício, só com a deliberação social de distribuição de lucros se constitui na esfera jurídica de cada sócio o direito ao dividendo.
A apelante defende, justamente, que a deliberação em causa viola o disposto no artigo 217.º do Código das Sociedades Comerciais.
De acordo com o disposto no artigo 217.º, n.º 1 do CSC, salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído pelos sócios metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível[6].
Este preceito legal consagra o direito dos sócios sobre os lucros de exercício da sociedade, atribuindo-lhes, em determinados termos, o direito à repartição de uma parcela (metade) desse lucro.
O artigo 217.º do CSC refere-se, pois, ao lucro de exercício distribuível.
O “lucro de exercício” traduz-se na diferença entre o valor do património líquido da sociedade no final e no início do ano económico em resultado da atividade da sociedade. Trata-se, pois, do excedente patrimonial criado apenas durante esse ano[7]. O que está em causa no preceito legal em causa é a riqueza gerada naquele exercício, não havendo de considerar para este efeito de distribuição ao sócios de metade do lucro de exercício distribuível, os resultados transitados, isto é, a riqueza gerada em anos anteriores sobre a qual os sócios já tiveram – aquando da aprovação dos balanços respetivos – oportunidade de se pronunciarem e deliberarem sobre o destino a dar à mesma[8].
Para aferir o que seja lucro distribuível há que recorrer ao disposto no artigo 33.º do mesmo diploma legal, o qual, sob a epígrafe Lucros e reservas não distribuíveis, dispõe o seguinte:
«1. Não podem ser distribuídos aos sócios os lucros do exercício que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas impostas pela lei ou pelo contrato social.
2. Não podem ser distribuídos aos sócios lucros do exercício enquanto as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento não estiverem completamente amortizadas, exceto se o montante das reservas livres e dos resultados transitados for, pelo menos, igual aos dessas despesas não amortizadas.
3. As reservas cuja existência e cujo montante não figurem expressamente no balanço não podem ser utilizadas para distribuição aos sócios.
4. Devem ser expressamente mencionadas na deliberação quais as reservas distribuídas, no todo ou em parte, quer isoladamente quer conjuntamente com lucros de exercício».
Deste preceito legal (que é imperativo) os lucros de exercício devem em primeiro lugar destinar-se à cobertura dos prejuízos transitados e à formação das reservas legais ou estatutárias, só podendo ser distribuído pelos sócios o valor remanescente. Portanto, só quando não existirem prejuízos transitados e só depois de retirados os montantes destinados à formação das reservas legais e estatutárias, bem como os montantes destinados à cobertura das despesas de investigação e desenvolvimento não amortizadas que não estejam cobertas por outros valores do ativo é que o lucro de exercício poderá ser destinado aos sócios, sendo sobre este valor remanescente que os sócios poderão reclamar a sua distribuição parcial, nos termos do artigo 217.º do CSC.
Resulta do disposto da conjugação dos preceitos legais supra mencionados que, se depois da apresentação de contas da sociedade e de aprovado o balanço se verificar que existe lucro distribuível (apurado depois de retirados os montantes destinados a cobrir prejuízos transitados, bem como os necessários à formação das reservas legais e estatutárias e à cobertura das despesas de investigação e desenvolvimento não amortizadas que não estejam cobertas por outros valores do ativo – artigo 33º, nºs 1 e 2 do CSC) metade (50%) desse lucro deve ser distribuído aos sócios, a menos que exista uma cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos do capital social representado na assembleia geral que permita uma distribuição diferente ou a retenção desses resultados na sociedade. Ou seja, o direito a metade do lucro de exercício distribuível pode ser afastado pelos sócios por uma de duas formas: ou através de uma cláusula do contrato social que estabeleça um regime diverso do artigo 217.º do CSC (pois esta é uma norma supletiva) ou através de uma deliberação aprovada por uma maioria qualificada de ¾ dos votos correspondentes ao capital social.
No caso sub judice à distribuição de dividendos ao sócio que foi objeto da deliberação posta em crise não se aplica, porém, o disposto no artigo 217.º do CSC na medida em que o que foi deliberado foi a rejeição de uma proposta de distribuição de lucros relativos a exercícios anteriores que, por anteriores deliberações, foram retidos pela sociedade sob a forma de resultados transitados e o regime legal previsto no artigo 217.º do CSC não visa os resultados transitados, isto é, a riqueza gerada em anos anteriores sobre a qual os sócios já tiveram – aquando da aprovação dos balanços respetivos – oportunidade de se pronunciarem e deliberarem sobre o destino a dar à mesma.
Mas ainda que estivesse em causa a distribuição dos lucros cujo regime está previsto no artigo 217.º do CSC – o que não se concede –, a deliberação em causa teria sido tomada pela maioria qualificada de ¾ dos votos correspondentes ao capital social prevista naquele preceito legal, pelo que o direito ao lucro previsto naquele normativo legal não teria sido violado pela deliberação posta em crise.
Não se olvida que a lei permite que, em momento diferente do da aprovação das contas de exercício, se distribua o lucro de balanço da sociedade, o qual resulta da diferença entre o património líquido da sociedade, por um lado, e a soma do capital social e das reservas indisponíveis (reservas legais e estatutárias), por outro. Essa distribuição tem, no entanto, que se conter dentro dos limites previstos no artigo 32.º do CSC, ou seja, tem de respeitar o princípio da intangibilidade do capital (que visa que a sociedade possa ter capacidade de fazer face ao cumprimento das suas obrigações para com os credores sociais, nomeadamente da liquidação do seu passivo) e tem de se fundar num balanço especial elaborado para o efeito, o qual não deverá ter mais de três meses relativamente à data da deliberação[9]. Mas, ao contrário do que sucede com a metade dos lucros de exercício que salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por uma maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral convocada para o efeito tem de ser distribuído aos sócios desde que seja distribuível nos termos previstos no artigo 33.º do mesmo diploma legal, no que respeita ao lucro do balanço só com a deliberação social de distribuição de tais lucros é que se constitui na esfera jurídica de cada sócio o direito àquele dividendo e, in casu, a proposta de distribuição daqueles lucros foi validamente rejeitada pela assembleia geral porque aprovada por uma maioria até superior à legalmente exigida. Acresce que não foi alegado e não foi provado que a distribuição de lucros pretendida pela apelante tivesse sido precedida da elaboração e aprovação de um balanço elaborado para aquele desiderato (de distribuição dos dividendos fora do momento de aprovação das contas de cada um dos exercícios compreendidos entre os anos de 2010 e 2022).
Resulta, por conseguinte, do exposto que a deliberação em causa não é anulável com fundamento na violação das normas previstas no artigo 21.º, n.º 1, al. a) e 217.º do CSC.
A apelante também defende que a deliberação em causa «a prejudica claramente, na medida em que deixa de receber quantia considerável a título de lucros», acrescentando que a deliberação no sentido de não distribuir lucros da ré nos períodos em causa tem de revestir caráter pontual, excecional e fundada numa consistente justificação.
Como supra assinalámos para fundar a anulabilidade de uma deliberação ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do CSC não basta alegar e provar que o sócio que votou contra a deliberação ficou prejudicado com a mesma (in casu, pela circunstância de não lhe serem distribuídos lucros gerados pela atividade da sociedade). É, também necessário que o sócio que se diz prejudicado pela deliberação, alegue e prove, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC, o intuito dos demais sócios que votaram contra a distribuição dos dividendos de prejudicá-la, o que, manifestamente a autora/apelante não logrou fazer. Ora, no seu articulado inicial e a propósito disse a autora que «os sócios maioritários, com o seu voto maioritário e sem qualquer razão plausível, entenderam somente prejudicar a autora no seu direito de quinhoar nos lucros da sociedade», juízo de valor que não tem suporte nos factos julgados provados.
Em face do exposto, também não merece censura a sentença recorrida no segmento em que entende existir falta de prova de que a deliberação foi abusiva.
Sumário: (…)
III. Decisão
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
As custas na presente instância são da responsabilidade da apelante sendo que a este título apenas é devido o pagamento de custas de parte porquanto a apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual.
Notifique.
DN.
Évora, 30 de janeiro de 2025
Cristina Dá Mesquita
José Francisco Santos Saruga Martins
Mário Branco Coelho
__________________________________________________
[1] Maria Elisabete Gomes Ramos, Direito das Sociedades, 2023, Reimpressão, Almedina, pág. 282.
[2] O artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC dispõe que são anuláveis as deliberações que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos.
[3] J. M. Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, Almedina, 2.ª Edição, Reimpressão, pág. 713.
[4] J. M. Coutinho de Abreu, ob. cit., pág. 713.
[5] Ob. cit., pág. 334.
[6] Este preceito legal derroga o regime geral da suficiência da deliberação maioritária (artigo 189.º, n.º 2, do CSC), ao impor uma maioria qualificada de ¾ dos votos correspondentes ao capital social.
[7] Paulo de Tarso Domingues, ob. cit., pág. 336.
[8] Paulo de Tarso Domingues, ob. cit., pág. 337.
[9] Paulo de Tarso Domingues, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, 2.ª Edição, Reimpressão, Almedina, pág. 527.