SUSPENSÃO DAS DILIGÊNCIAS PARA DESOCUPAÇÃO E ENTREGA DO IMÓVEL
RESIDÊNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I. Em caso de entrega coactiva de casa que constitua a residência do executado e sua família, verificada uma situação de real dificuldade de realojamento, a lei impõe o cumprimento do disposto no n.º 6 do art.º 861.º do CPCiv., sem que, no entanto, preveja a suspensão da entrega ainda que na data designada não esteja assegurada pelos organismos competentes uma solução alternativa de alojamento.
II. A norma em causa, assim interpretada, não viola o direito constitucionalmente reconhecido a cada indivíduo a uma habitação condigna, por não ser de exigir aos particulares que se substituam ao Estado no cumprimento das obrigações que sobre este impendem em matéria de protecção do direito consagrado no artigo 65.º da CRP.
III. Sem embargo, a existência de uma situação que preencha a previsão do n.º 3 do artigo 863.º do CPCiv, verificada que seja pelo Sr. AE, dará então – e só então – lugar à suspensão das diligências executivas em curso, seguindo o incidente a tramitação prevista nos n.ºs 4 e 5.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 847/09.2TBSTR.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Execução do Entroncamento - Juiz 2


I. Relatório
Nos presentes autos de acção executiva para cobrança de quantia certa que o Condomínio do prédio sito na Praceta (…), lote 5, move a (…), foi penhorado e adjudicado ao Banco (…), SA em Setembro de 2019, pelo valor de €116 900,00, o imóvel correspondente à fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a habitação, correspondente ao primeiro andar direito com arrecadação no sótão, identificada com n.º 11, e um espaço de estacionamento, na cave, sita na Urbanização (…), lote 4-5, da freguesia de Santarém (S. Nicolau), do concelho de Santarém, descrita na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º (…) e inscrita na matriz sob o artigo (…), sendo que atualmente pertence à União de Freguesias da Cidade de Santarém.

Por requerimento apresentado em 24 de Janeiro de 2024 o adjudicatário veio requerer a entrega do imóvel nos termos dos art.ºs 828.º e 861.º do CPC, requerendo ainda autorização para recorrer, se necessário, ao auxílio da força pública, ao abrigo do disposto nos artigos 901.º e 930.º do mesmo diploma legal.

Cumprido o contraditório, o requerido foi objecto do despacho proferido em 26/2/2024 [Ref.ª 95637011], com o seguinte teor:
Proceda-se à entrega do imóvel, nos termos e fundamentos requeridos, atentas as razões invocadas.
Autoriza-se o auxílio da força pública, nos termos e fundamentos requeridos, atentas as razões invocadas, caso seja estritamente necessário, com observância dos limites legalmente previstos, se necessário com arrombamento – arts. 757.º, 764.º, 767.º NCPC.
Com efeito, a Lei n.º 31/2023, de 04/07, entrou em vigor em 05/07/2023, e determinou, de forma expressa, a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, em razão de caducidade, de revogação tácita anterior ou de revogação pela presente lei, tendo revogado expressamente a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, designadamente o art. 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, com a última redação da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, entrando em vigor 30 dias após a publicação (arts. 1.º, 2.º, 4.º e 5.º da Lei n.º 3/2023, de 04/07).
Não obstante, deve privilegiar-se a colaboração que venha a ser demonstrada, designadamente pelos executados.
Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.
“2 - O agente de execução suspende as diligências executórias sempre que o detentor da coisa, que não tenha sido ouvido e convencido na ação declarativa, exibir algum dos seguintes títulos, com data anterior ao início da execução:
a) Título de arrendamento ou de outro gozo legítimo do prédio, emanado do exequente;
b) Título de subarrendamento ou de cessão da posição contratual, emanado do executado, e documento comprovativo de haver sido requerida no prazo de 15 dias a respetiva notificação ao exequente, ou de o exequente ter especialmente autorizado o subarrendamento ou a cessão, ou de o exequente ter conhecido o subarrendatário ou cessionário como tal.
3- Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
4. Nos casos referidos nos n.ºs 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante”.

Previamente, deve o AE diligenciar por alternativa habitacional dos executados, esgotando todas as diligências, autoridades e instituições responsáveis, designadamente Municípios limítrofes.
Oficie aos Municípios da residência dos executados em causa e limítrofes para, em 10 dias, concretizarem as Instituições em causa, e da respetiva disponibilidade.

Sem prejuízo, notifique a Segurança Social, e a Câmara Municipal respetiva, deste despacho e para, em 10 dias, indicarem, designadamente a nível nacional (e não apenas local), habitação social, acolhimento institucional, Lares, Misericórdias, e/ou outras instituições, devendo concretizar(em) as Instituições em causa, e da respetiva disponibilidade, devendo a resposta ser positiva, concretizando-se as Instituições disponíveis.
Com efeito, ao Tribunal, designadamente nos termos da Lei/CPC, logo que reunidas as condições para o efeito, cabe executar e despejar.
À Segurança Social, respetivo Ministério, em articulação com Autarquias, Lares, Misericórdias, e/ou outras Instituições, designadamente de utilidade pública, incumbe, depois do despejo executado pelo Tribunal, assegurar a resposta social e responder ao problema social de quem é despejado, sendo essa a sua responsabilidade, não cabendo ao Tribunal essa atribuição/responsabilidade.
Comunique ao Serviço da Segurança Social que elaborou os relatórios.
Comunique a presente situação para a Linha Nacional de Emergência Social (144).
Notifique e proceda-se em conformidade.
D.N.”.

Por requerimento entrado em juízo em 30/04/2024 o executado veio requerer a suspensão das diligências de entrega do imóvel, alegando estar em causa a casa de morada de família do agregado, composto pelo próprio, a companheira, filhos e netos menores, ali residindo ainda um seu sobrinho que se encontra muito doente, com doença oncológica, estando em risco a sua vida com a realização do despejo, tudo acrescido de problemas de saúde do foro psicológico, nomeadamente depressão, não tendo rendimentos para adquirir ou arrendar imóvel ou um quarto, não existindo familiares ou amigos com disponibilidades para acolher o requerente e a família, não tendo sido igualmente disponibilizada pela segurança social qualquer alternativa.
O assim requerido foi indeferido por despacho proferido em 12/6/2024, no qual se ordenou o cumprimento do anteriormente ordenado no despacho de 26/2 acima transcrito.
Inconformado, apelou o executado e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com a decisão, reproduziu-os a final nas indevidamente denominadas conclusões, que se transcrevem:
“I. O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.
II. Na sequência da comunicação recebida por parte da Senhora Agente de Execução a conceder-lhes o prazo para procederem à entrega do imóvel sito na Praceta (…), Lote 5-1º D, Santarém, o executado veio requerer a suspensão das diligências de entrega do imóvel que é casa de morada de família do executado e família, mais requerendo que seja promovida comunicação à Câmara Municipal de Santarém e entidades assistenciais competentes a fim de providenciarem pelo realojamento dos mesmos.
III. Concretamente, diz o nº 3 do art. 863º CPC: “Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
IV. O imóvel em questão constitui a única casa de morada de família do aqui executado, os quais estão a passar inúmeras dificuldades.
V. Com efeito, o executado vive com a ajuda do RSI.
VI. Acresce que no agregado familiar existe um sobrinho que se encontra muito doente, com doença oncológica, estando em risco a sua vida com a realização do Despejo, encontrando-se este agregado em pânico com esta situação, uma vez que se aperceberam que não têm qualquer alternativa se não saírem de casa, estando a ser muito complicada a obtenção de uma alternativa habitacional no momento.
VII. Tudo acrescido de problemas de saúde do foro psicológico, nomeadamente depressão.
VIII. Nestes trâmites, torna-se necessário atentar à idade e saúde débil do sobrinho que vive consigo, visto que o seu grave estado de saúde poderá agravar-se com a execução do despejo que se pretende realizar, estando em risco a sua própria vida.
IX. Na verdade, o mesmo tem estado sob medicação ainda mais forte tendo em conta as várias crises de ansiedade despoletadas pelo presente processo, crises essas que surgem em períodos de maior nervosismo ou excitação, estando o mesmo em pânico com a hipótese de ser despejado.
X. Ora, a realidade é que os rendimentos do executado são insuficientes para arrendar, neste preciso momento, um imóvel, tendo em conta os valores exorbitantes nos quais se situam as rendas.
XI. Acrescido de tal fator, não têm neste momento qualquer família ou amigos aos quais possam recorrer.
XII. Por outro lado, não obstante a boa vontade da segurança social, facto é que não passa da intenção, não dispondo de qualquer alternativa.
XIII. Tudo isto alegou o executado.
XIV. Sucede que o requerimento de suspensão foi indeferido, sem mais, sendo notificado o executado para entregar o locado, de imediato, autorizando-se desde logo o recurso ao auxilio da força pública da PSP, autorizando o arrombamento de portas e substituição de fechaduras.
XV. A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, salvo devido respeito, não procedeu a uma decisão justa e legal ao proferir o despacho de indeferimento de suspensão da entrega.
XVI. O executado usou uma faculdade que a lei lhe dá de pedir a suspensão da execução e de desocupação do imóvel exatamente porque não dispõe de outra alternativa, e não por um capricho seu, provando os problemas de saúde através da junção de documentos médicos.
XVII. Ora, se a Meritíssima Juiz entendia que não havia elementos suficientes deveria ter notificado o aqui recorrente para apresentar um atestado pormenorizado.
XVIII. Ao invés preferiu proferir despacho de indeferimento da suspensão da entrega do locado.
XIX. O n.º 6 do art.º 861º CPC refere:
6- Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.”
XX. Por sua vez o art.º 863º CPC nos seus números 3 a 5, estipula
“3 — Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda. “4 – Nos casos referidos nos n.ºs 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante.
(…)
5 – No prazo de cinco dias, o juiz de execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos.”
XXI. Ora, são requisitos para a suspensão em questão:
1) Tratar-se da casa de habitação principal do executado;
2) Apresentar-se atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução;
3) Apresentar-se atestado médico que indique fundamentadamente a doença aguda que sofre a pessoa que se encontra no local e a coloque em risco de vida com a realização da diligência.
XXII. Doença aguda significa doença súbita e inesperada, por contraposição a doença crónica (Ver Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, CE, 2013, páginas 1061 e 1148 e seguintes, com anotação de jurisprudência).
“As doenças agudas são aquelas que têm um curso acelerado, terminando com convalescença ou morte em menos de três meses.”
“As doenças agudas distinguem-se dos episódios agudos das doenças crónicas, que são exacerbação de sintomas normalmente menos intensos nessas condições.”
“Uma doença crónica é uma doença que não é resolvida num tempo curto, definido usualmente em três meses. As doenças crónicas são doenças que não põem em risco a vida da pessoa num prazo curto, logo não são emergências médicas.”
XXIII. Estamos perante uma doença aguda, correndo o insolvente risco da própria vida!
XXIV. Assim, entende o recorrente que preenche os requisitos legais para que seja deferida a suspensão da instância e consequentemente da desocupação do imóvel.
XXV. Nessa esteira, a concreta diligência de entrega tem de ser, necessariamente, suspensa até que seja assegurado o realojamento deste agregado familiar que, de outro modo, ficará na rua, visto não ter qualquer outra solução.
XXVI. O que se revela inconstitucional por violar, desde logo, o direito à habitação previsto no art.º 65º CRP.
XXVII. Nestes termos, espera o recorrente que V. Exªs julguem procedente a apelação e seja revogada a decisão recorrida, determinando-se, em consequência o deferimento da suspensão da execução e de desocupação do imóvel.
XXVIII. O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos arts.º 150.º n.º 5 do CIRE, 862.º a 866.º do CPC e 65.º da CRP”.
Conclui pedindo a revogação do despacho recorrido.
Não foram oferecidas contra alegações.
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II. Fundamentação
De facto
Relevam para a decisão os factos relatados em I) e ainda os seguintes:
1. Tendo por referência a data de 11 de Julho de 2022 o agregado do executado era composto pelo próprio, contando então 38 anos de idade, a companheira, com 36 anos de idade, e quatro filhos, com 19, 14, 12 e 2 anos de idade.
2. O agregado ocupava o imóvel vendido, que constituía a sua residência fixa, não tendo rendimentos declarados, mostrando-se cessada a actividade de comércio a retalho em bancas e feiras de têxteis, vestuários, calçado, malas e similares antes desenvolvida.
3. Os rendimentos do agregado provinham de RSI, no valor mensal de € 598,57, e abonos de família relativos ao 1.º escalão, no valor de € 262,23 (cf. relatório/informação elaborado pela SS).
4. Em Março de 2023 o agregado familiar mantinha a mesma composição e continuava a residir no imóvel vendido (cfr. informação / relatório do ISS elaborado nesta data).
5. À data não existiam rendimentos declarados pelo executado, pela sua companheira ou filha maior de idade e a actividade económica de venda continuava cessada.
6. O agregado foi encaminhado para a equipa de serviço de atendimento e acompanhamento social integrado do Município de Santarém, não tendo sido obtida resposta, uma vez que não existem alternativas de acolhimento de famílias em situação de despejo, dado que, apesar da vulnerabilidade, não são consideradas uma emergência social (vide relatório da SS).
7. Consignaram ainda as técnicas responsáveis que “os beneficiários não manifestaram interesse em encontrar outras alternativas habitacionais” (idem).
8. Os municípios de Almeirim, Chamusca, Golegã, Alpiarça, Rio Maior e Cartaxo comunicaram ao Tribunal a inexistência de alternativa habitacional que pudesse ser disponibilizada ao executado e seu agregado, não indicando igualmente instituições que constituíssem uma possibilidade de acolhimento.
9. Da última informação elaborada pela SS consta, para além do mais, o seguinte: “(…) o agregado familiar não se tem mostrado disponível para a intervenção social, descredibilizando, inclusive, a notificação enviada por V. Exa. e, não demonstra intenção de abandonar o imóvel. Em 19 do corrente mês, o senhor (…) foi contatado pela Equipa do Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social, à qual referiu não estar disponível para atendimento presencial, uma vez que se irá ausentar do país (…) tendo esta corroborado a indisponibilidade do senhor (…) na procura de outra solução habitacional e saída do imóvel”.
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De Direito
Dos fundamentos de suspensão da entrega do imóvel
Nos termos do art.º 828.º do CPCiv., o adquirente do bem pode, com base no título de transmissão, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no art.º 861.º, devidamente adaptados. Estando em causa bem imóvel, como é aqui o caso, rege o n.º 3 do preceito: o agente de execução investe o adquirente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, o arrendatário e quaisquer detentores para que reconheçam e respeitem o direito do adquirente.
Tratando-se da casa de habitação principal do executado é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do art.º 863.º por força da remissão operada pelo n.º 6 da disposição legal em epígrafe, e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.
Preceitua ainda o n.º 3 do art.º 863.º, convocado pelo apelante, que tratando-se da casa de habitação do executado, “o agente de execução suspende as diligências executórias quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentalmente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida de pessoa que se encontre no local, por razões de doença aguda”. Nesse caso, o agente de execução, em cumprimento do que dispõe o n.º 4, “lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto conhecimento ao exequente ou ao seu representante”, decidindo depois o juiz, no curto prazo de 5 dias consagrado no n.º 5, e depois de ouvido o adquirente, se mantém a suspensão ou ordena o seu levantamento, determinando a imediata prossecução dos autos.
Confrontando o disposto no n.º 6 do art.º 861.º com o incidente de suspensão regulado no art.º 863.º, n.ºs 3 a 5, resulta de tal confronto, como assinalado no acórdão do TRL de 22-01-2015 (Pº 161/06.5TCSNT.L1-6, acessível em www.dgsi.pt), que estão em causa duas situações distintas:
“(i) aquela prevista nos n.ºs 3 a 5 do art.º 863.º em que “por atestado médico se mostre que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda”. Nesse caso, as diligências executórias são suspensas, durante prazo que o atestado médico indicar necessário.
(ii) aquela em que “se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado”.
Na primeira situação, obviamente, não pode estar em questão a dificuldade ou não de realojamento. O que está em causa é o perigo para a vida de uma pessoa no acto de remoção da mesma da casa onde se encontra. Por conseguinte, haja ou não dificuldade no realojamento, a diligência suspende-se sempre que se mostre que a diligência põe em risco de vida a pessoa.
Na segunda situação, a lei não diz que a diligência se suspende, como no caso previsto no art.º 863.º n.º 3. Neste caso em que se suscitem sérias dificuldades de realojamento, “o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”.
A antecipação refere-se à data em que esteja designada a diligência de execução da entrega do imóvel. Logo, tal comunicação destina-se a garantir que, na data designada, a diligência se executará, porque, entretanto, é suposto que as entidades notificadas tiveram tempo de analisar e providenciar pela solução do problema do alojamento do executado”.

Vista a disciplina do incidente suscitado pelo apelante e que visa a suspensão das diligências executórias, resulta evidente a sua falta de razão quando pretende que estas sejam antecipadamente suspensas e fora do apertado circunstancialismo exigido pela lei, tal como foi devidamente explicitado na decisão recorrida.
Acresce que, tal como o Sr. Juiz deixou igualmente consignado, nenhum dos factos alegados pelo requerente se encontra comprovado nos autos, desconhecendo-se designadamente se o sobrinho agora referido, e que se diz padecer de doença do foro oncológico, reside efectivamente na fracção cuja entrega foi ordenada e porque razão ali reside, uma vez que nunca foi antes mencionado nas sucessivas informações elaboradas pelas técnicas da Segurança Social, mal se compreendendo que, a serem tais factos verdadeiros, tenha sido acolhido pelo apelante que há mais de 5 anos sabe ter sido o imóvel vendido e dever proceder à respectiva entrega.
Em todo o caso, conforme se refere na decisão recorrida, o alegado deverá ser comprovado e/ou verificado pelo AE, em sede de diligência de entrega, não ex ante, e só no caso do Sr. AE verificar a ocorrência de situação compreendida na previsão legal do n.º 3 do art.º 863.º existirá fundamento legal para suspender as diligências executórias da entrega.
Por seu turno, a providência prevista no n.º 6 do art.º 861.º pressupõe que esteja em causa a casa de habitação principal do executado e se prevejam sérias dificuldades no realojamento do executado.
Em anotação ao preceito anotam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2022, págs. 294-295) que “[s]e o imóvel a entregar constituir a casa de habitação principal do executado, pode ocorrer a suspensão das diligências executivas, verificados os requisitos enunciados no n.º 3 do art.º 863.º. Suscitando-se sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução, antecipadamente e em tempo útil, deve comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes (n.º 6). A jurisprudência vem decidindo que a comunicação em causa não determina a suspensão das diligências executivas para entrega do imóvel, entendendo que, na data designada, a diligência se executará, no pressuposto de que as entidades notificadas tiveram oportunidade para analisar a situação e providenciar pela solução do problema do alojamento do executado. Mesmo que tal não tenha ocorrido, a execução da entrega de imóvel não se suspende, uma vez que a lei não o afirma, ao contrário do caso previsto no n.º 3 do art.º 863.º, sendo que o legislador terá ponderado que não seria justo onerar o exequente com a inércia ou a incapacidade dos organismos oficiais, cometendo-lhe uma tutela de facto que legalmente não lhe caberia, com a inerente e injustificada compressão dos seus direitos (…)”.
No caso dos autos, estando embora amplamente demonstradas sérias dificuldades de realojamento do executado e do seu agregado, a verdade é que, conforme se refere no aresto do mesmo TRL de 26/9/2024 (processo 4347/15.3T8SNT-D.L1-2, acessível também em www.dgsi.pt), “Em caso de despejo de indivíduos ou famílias vulneráveis, cabe ao Município, ao ISS, IP e ao IHRU, IP o acompanhamento da situação, cabendo a tais entidades diligenciar pela procura de soluções de realojamento (Artigo 13º da Lei nº 83/2019, de 3.9 e Artigo 4º do Decreto-lei nº 89/2021, de 3.11).
A execução do despejo deve ser precedida da comunicação pelo agente de execução ao Município em causa, ao IHRU, IP e ao ISS, IP da existência de dificuldades do realojamento do executado casos estas tenham sido reconhecidas ou invocadas no processo (…). Essa comunicação do agente de execução deverá ocorrer com uma antecedência de, pelo menos, 10 dias em relação à data designada para a execução do despejo”.
De todo o modo, tal não significa que a execução do despejo deva ser suspensa até que se encontre assegurado o realojamento do executado e seu agregado, porquanto, e como se refere neste último aresto, “Não cabe ao Tribunal assegurar realojamento ao executado, mas apenas comunicar a necessidade do mesmo ao Município, ao ISS, IP e ao IHRU, IP, cabendo a estes diligenciar pelo suprimento de tal necessidade. O Tribunal não supre necessidades de habitação, limitando-se a dirimir litígios, no caso entre privados” (cfr., no mesmo sentido, acórdão do TRL de 26/9/2024, no processo 4347/15.3T8SNT-D.L1-2, acessível no identificado sítio).
Em suma, demonstrada embora no caso dos autos uma situação de real dificuldade de realojamento do executado e sua família, estando em causa a entrega de imóvel afecto à sua residência principal, a lei impõe o cumprimento do disposto no n.º 6 do art.º 861.º, sem que, no entanto, preveja a suspensão da entrega. Já a existência de uma situação que preencha a previsão do n.º 3 do art.º 863.º, verificada que seja pelo Sr. AE, dará então -e só então- lugar à suspensão das diligências executivas em curso, seguindo o incidente a tramitação prevista nos n.ºs 4 e 5.
Resulta do exposto que, não deixando de se lamentar a situação do executado e do seu agregado familiar, bem como a ausência, até ao momento, de uma resposta social, atendendo a que a pretensão formulada não tem acolhimento legal, só podia ser, como foi, indeferida.

Da desconformidade ao disposto no artigo 65.º da CRP
Alega derradeiramente o executado que se impõe a suspensão da diligência “até que seja assegurado o realojamento deste agregado familiar que, de outro modo, ficará na rua, visto não ter qualquer outra solução, o que se revela inconstitucional por violar, desde logo, o direito à habitação previsto no art.º 65º CRP”.
Ainda que sem indicar qual a norma ou interpretação normativa sobre que recai o juízo de desconformidade à lei constitucional, acautelando que o apelante aponta ao n.º 6 do art.º 861.º, quando interpretado no sentido de que não garante a suspensão das diligências de entrega até que seja assegurada pelos organismos competentes uma solução de realojamento, cremos não lhe assistir razão.
A este respeito, e ainda que a propósito da caducidade do direito real de habitação, mas em termos perfeitamente transponíveis para o caso dos autos, pronunciou-se o TC no acórdão 50/2022, de 18 de Janeiro[2], de que se transcrevem as seguintes passagens, por relevantes para a questão que agora se enfrenta:
“O art.º 65.º da Constituição, sob a epígrafe «Habitação e Urbanismo», estabelece o seguinte nos seus n.ºs 1 a 4:
«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.».
O direito à habitação consagrado neste artigo – cujo conteúdo se traduz no «direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, p. 958 e ss.) – assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla natureza ou dimensão, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 101/92, 612/2019 e 393/2020).
Por um lado, tem uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, tem uma dimensão positiva, que correspondente ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e proteção, isto é, a medidas e prestações estaduais tendentes a assegurar «uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar».
(….)
É nesta segunda vertente ou dimensão positiva do direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, que se encontra acentuada no artigo 65.º da Constituição, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4. Nesta vertente, conforme tem salientado o Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 130/92, 131/92, 151/92, 633/95, 32/97, 374/2002, 212/2003, 590/2004 e 168/2010), o direito à habitação é configurado como um direito a prestações, cujo principal destinatário é o Estado, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito (cfr. o n.º 2 do referido artigo 65.º), bem como a adoção de políticas no sentido de estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (cfr. o n.º 3, idem) e ainda, em conjunto com as regiões autónomas e as autarquias locais, a adoção de outras medidas adequadas à prossecução daquele direito (cfr. o n.º 4, ibidem). Significa isto que as pretensões fundadas no direito à habitação não têm como destinatários diretos os particulares nas relações entre si, mas antes o Estado e igualmente as Regiões Autónomas e autarquias locais”.
E acrescentou: “Acresce ainda, por outro lado, e conforme já referido, que o direito à habitação constitucionalmente garantido não se identifica nem se confunde com o direito a ser proprietário (ou titular de um direito real de gozo) sobre o imóvel onde se tenha a habitação. Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposto, enquanto exigência decorrente da proteção do direito à habitação, uma solução no sentido de, nas relações entre particulares, consagrar um regime impeditivo da caducidade do direito real de habitação, quando o mesmo incida sobre uma casa de morada de família e esteja em conflito com uma hipoteca com registo anterior, incidente sobre o mesmo imóvel. Por outro lado, conforme também já mencionado, o “mínimo de garantia” do direito à habitação – enquanto direito de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias” – é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado.
De resto, é certo que tem havido por parte do legislador um reforço da tutela da habitação própria permanente no âmbito dos processos de natureza executiva, designadamente através de iniciativas legislativas tendentes a restringir ou, mesmo, a impedir a possibilidade de penhora daqueles imóveis (cf., por exemplo, a Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, que prevê medidas de proteção da casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal, e, mais recentemente, a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que alterou os n.ºs 3 e 4 do artigo 751.º do Código de Processo Civil no que respeita aos requisitos de penhorabilidade dos referidos imóveis).
(…)
Acresce ainda que, no âmbito do processo executivo, o legislador não desconsiderou em absoluto o direito à habitação. Por um lado, a circunstância de o imóvel constituir habitação própria permanente do executado assume relevo no tocante aos pressupostos de admissibilidade da penhora (cfr. artigo 751.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPC). Por outro lado, estando em causa a casa de habitação do executado, uma vez efetuada a venda executiva, e requerendo o adquirente, na própria execução, a entrega dos bens, poderá ter lugar, em determinadas circunstâncias, a suspensão da entrega do imóvel e, no caso de se suscitarem sérias dificuldades quanto ao realojamento do executado, o agente de execução deverá comunicar antecipadamente tal facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes (cfr. artigos 828.º, 861.º, n.º 6, e 863.º, n.ºs 3 a 5, todos do Código de Processo Civil).
(…)
No entanto, não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restrições aos direitos do proprietário privado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre, repete-se, que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cfr. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001)” (é nosso o destaque a sublinhado).
Tendo presentes tais considerandos, e sendo certo não caber aos privados garantir o direito à habitação dos cidadãos a despejar, não encontra acolhimento a pretensão do apelante de permanecer na fracção há muito vendida até que lhe seja garantida uma solução habitacional.
Improcedentes os fundamentos recursivos, cabe confirmar a decisão apelada, isto sem prejuízo de, no caso de ser verificada situação que preencha a previsão do n.º 3 do art.º 863.º, a diligência em curso dever ser suspensa nos termos previstos no n.º 4, e de, mais uma vez, com antecedência que não deve ser inferior a 20 dias em relação à data que vier a ser agendada para a entrega do imóvel, ser dado cumprimento ao disposto no n.º 6 do art.º 861.º.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelante (art.º 527.º, nºs 1 e 2, do CPCiv.).
Évora, 30 de Janeiro de 2025
Maria Domingas Simões
Tomé de Carvalho
Francisco Saruga Martins
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Sumário: (…)


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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.º Adjunto: Sr. Juiz Desembargador José Manuel Tomé de Carvalho;
2.º Adjunto: Sr. Juiz Desembargador José Francisco Saruga Martins.
[2] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220050.html