DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
REDUÇÃO
INOFICIOSIDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I. Impende sobre os herdeiros legitimários / demandantes na acção declarativa autónoma em que se arrogam o direito de reduzir, por inoficiosidade, as liberalidades feitas pelo falecido pai, o ónus de provarem quais são todos os bens que compõem a herança e o respectivo valor, pressuposto do cálculo da legítima, sem o qual não será possível determinar se esta foi, ou não, violada pelas referidas liberalidades.
II. A procedência do pedido de redução das liberalidades por inoficiosidade depende, assim, da alegação e prova de que os bens, as despesas e as dívidas apurados, constituem a totalidade do acervo hereditário deixado por óbito do falecido.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Apelação n.º 3764/19.4T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro – Juiz 1

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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
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Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: António Fernando Marques da Silva;
2º Adjunto: Susana Ferrão da Costa Cabral.
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I. RELATÓRIO
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A.
(…), (…) e (…) intentaram a presente acção, sob a forma de processo comum, contra (…), todos melhor identificados nos autos, peticionando que:
1. Sejam declaradas nulas as disposições testamentárias a favor desta, constantes do testamento de 2 de Junho de 2016, por força do disposto no artigo 2194.º do Código Civil; em conformidade, a Ré seja condenada a entregar-lhes os bens móveis e imóveis que integram a herança aberta por óbito do testador (…), seu pai, incluindo os imóveis identificados nos artigos 62.º e 66.º da petição inicial; sejam cancelados todos os registos que, entretanto, hajam sido pedidos e/ou feitos a favor da Ré e que tenham por objecto os referidos bens imóveis, incluindo os registos do usufruto; seja a Ré condenada na entrega dos bens móveis identificados no artigo 81.º da mesma peça ou, caso não proceda à entrega de algum dos referidos bens móveis, designadamente por ter procedido à sua alienação, no pagamento do respetivo valor de mercado; e, por último, seja a Ré condenada a entregar-lhes o valor de mercado dos bens imóveis identificados nos artigos 70.º e 75.º do articulado que já alienou;
2. Subsidiariamente relativamente ao pedido deduzido em 1., seja decretada a anulação do testamento outorgado por (…) a favor da Ré, por esta ter explorado a situação de necessidade, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador, de forma a obter deste a concessão de benefícios excessivos ou injustificados, correspondentes à propriedade e ao usufruto da totalidade do seu património mobiliário e imobiliário, com as consequências legais mencionadas supra, o que fazem ao abrigo do disposto no artigo 282.º do Código Civil;
3. Subsidiariamente relativamente aos pedidos indicados em 1 e 2, seja determinada a redução, por inoficiosidade, das liberalidades feitas pelo testador e, em conformidade, a Ré condenada a entregar-lhes os prédios urbanos destinados a habitação identificados nos artigos 62.º e 66.º da p.i., livres e devolutos de pessoas e bens, com o consequente cancelamento dos registos do usufruto a seu favor, mencionados nos artigos 64.º e 68.º da mesma peça, por o respetivo valor exceder a quota disponível.
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B.
A Ré contestou, impugnando a factualidade alegada.
Pediu a condenação dos Autores como litigantes de má-fé e deduzindo pedido reconvencional de condenação dos Autores / Reconvindos:
1. A reconhecer a titularidade do seu direito de propriedade sobre todos os bens móveis que, à data do óbito, pertenciam ao testador (…), deixados, por vocação testamentária ao abrigo da lei britânica, designadamente, dos quadros, esculturas, esboços, livros, quantias monetárias, fundos e investimentos, melhor especificados, nos artigos 64º a 68º da contestação;
2. A promover a entrega efectiva de todos os bens elencados nos artigos 64º a 68º da contestação, sendo que, quanto às quantias monetárias deverão ser pagas por transferência para IBAN a indicar pela Ré / Reconvinte caso se tenham apropriado dos mesmos e quanto aos quadros e peças de arte deverão ser imediatamente entregues a expensas dos mesmos à Ré/Reconvinte, transitada a decisão em julgado;
3. Solidariamente, a procederem ao pagamento à Ré / Reconvinte, de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil, em montante diário nunca inferior a € 600,00 (seiscentos euros), acrescidos de juros moratórios à taxa legal prevista no n.º 4, proferida e transitada em julgado a sentença, por cada dia de não cumprimento;
4. Em alternativa, caso se venha a tornar impossível por dissipação, ocultação, destruição dos bens móveis elencados nos artigos 64º e 68º da contestação, a promover a transferência da nua propriedade dos dois prédios urbanos que pertenciam ao acervo patrimonial do de cujus em Portugal, designadamente:
a. Prédio Urbano, destinado a habitação, sito na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo (…), com o valor patrimonial de € 49.798,54 (quarenta e nove mil e setecentos e noventa e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos) avaliado, pela Autoridade Tributária, em 2018; e,
b. O prédio urbano em regime de propriedade total, destinado a habitação, sito na Rua (…), n.º 13, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão, sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e conselho de Olhão sob o artigo (…), com o valor patrimonial tributário de € 25.041,99 (vinte e cinco mil e quarenta e um euros e noventa e nove cêntimos) avaliado pela Autoridade Tributária em 2018, sem prejuízo dos valores em dívida que ainda se vierem a apurar.
5. Caso faleçam os pedidos supra descritos e se entenda que o presente testamento é regulado pela lei portuguesa, deverão ser localizados todos os bens (móveis e imóveis) que integram o acervo patrimonial do testador à data do seu óbito, devidamente avaliados, com vista ao cálculo da legítima e da quota disponível do testador, reduzindo-se, sendo caso, a liberalidade testamentária em conformidade, para futura partilha de bens.
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C.
Os Autores replicaram, impugnando a factualidade alegada e respondendo à matéria do incidente de litigância de má-fé, pedindo, desta feita, a condenação da Ré como litigante de má-fé e pugnando pela aplicabilidade da lei portuguesa à sucessão em apreço, chamando à colação o Regulamento (EU) n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução de actos autênticos em matéria de sucessões, desse modo afastando a aplicação do artigo 65.º do Código Civil.
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D.
Com dispensa de realização da audiência prévia, foram proferidos despachos:
- sobre a lei aplicável à decisão da causa;
- admitindo o pedido reconvencional formulado pela Ré / Reconvinte; e
- saneador, no qual foram: fixado o valor da causa; identificados o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, apreciados os meios de prova indicados pelas partes.
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E.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedentes, quer os pedidos formulados na p.i., quer o pedido reconvencional, quer ainda os pedidos de condenação por litigância de má-fé e, em consequência, dos mesmos absolveu a Ré, os Reconvindos e ambas as partes, respectivamente, condenando os Autores nas custas do pedido e a Ré nas custas reconvenção.
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F.
Inconformados com o decidido, os Autores interpuseram o presente recurso de apelação.
Concluíram as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem as referências em sublinhado e em negrito da origem):
“(…)
A. O presente recurso de apelação tem por objeto a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, quanto à decisão da matéria de facto, na parte em que deu como provada matéria vertida nos Factos Provados n.ºs 59 e 60, e na parte em que deu como não provados os factos vertidos nos pontos i., iii., iv., xiii e xiv. da alínea x) dos Factos Não Provados e, bem assim, quanto à matéria de direito, na parte em que julgou improcedente o pedido de redução das liberalidades feitas pelo testador (…) a favor da Ré, ora Apelada, por inoficiosidade, por o respetivo valor exceder a quota disponível;
B. A douta decisão da matéria de facto que deu como provada a factualidade vertida nos números 59 e 60 dos Factos Provados deve ser alterada, porquanto, ao contrário do sustentado na sentença recorrida, a respeito da motivação fáctica, a mesma não resultou demonstrada pelo depoimento prestado pela testemunha (…);
C. A testemunha (…) referiu expressamente não se lembrar da alegada conversa e encontro tidos com a Apelada, tendo esclarecido, pelo contrário, que a Apelada lhe mencionou a alegada ocorrência dos factos em causa imediatamente antes da prestação do seu depoimento (cfr. depoimento prestado por …, na sessão de julgamento do dia 30 de maio de 2023 e gravado no sistema Habilus Média Studio, minutos 00:12:03 a 00:19:59);
D. Deve ainda ser alterada a douta decisão da matéria de facto, na parte em que deu como não provados os factos vertidos nos pontos i., iii., iv., xiii e xiv. da alínea x) dos Factos Não Provados, os quais devem ser aditados ao Facto Provado n.º 45, porquanto ficou demonstrado que os seguintes bens móveis se encontravam na casa do testador (…), à data do seu óbito:
a) Três imagens de arte moderna, no valor global de € 9.703,23 (Doc. 18 da PI, fls. 110 e ss.);
b) Travessa quadrada de prata esterlina, no valor de € 80,86 (Doc. 20 da PI, fls. 116);
c) Chapéu prateado, no valor de € 102,42 (Doc. 21 da PI, fls. 118);
d) Caixa de cigarros prateada com quatro pés e tampo de fantasia, no valor de € 215,62;
e) French Kingwood e marfim com ângulo de escrita com topo levantado, no valor de € 1.617,20;
f) Peças de mobília identificadas no relatório pericial elaborado pelo perito nomeado pelo Tribunal, no valor global de € 660,00 (fls. …);
E. Com efeito, em sede de depoimento de parte, que se transcreveu, a R., ora Apelada, confessou expressamente, quando confrontada com a descrição dos bens móveis identificados no artigo 81º da Petição Inicial, e com os documentos que instruem o referido articulado, que, para além dos bens móveis identificados no Facto Provado n.º 45, encontravam-se ainda na casa onde residia (…) os bens móveis identificados nos pontos i., iv., xiii. e xiv. da alínea x) dos Factos Não Provados (cfr. depoimento de parte de …, na sessão de julgamento do dia 27 de março de 2023 e gravado no sistema Habilus Média Studio, minutos 00:38:00 a 00:58:46);
F. Também a testemunha (…), quando confrontada com a mesma descrição dos bens e com os documentos juntos com a Petição Inicial, confirmou que, tendo visitado a casa de (…) cerca de três dias antes da sua morte, ali se encontravam, para além dos identificados no Facto Provado n.º 45, os bens móveis identificados nos pontos i., iii., iv., da alínea x) dos Factos Não Provados (cfr. depoimento da testemunha (...), na sessão de julgamento do dia 30 de Maio de 2023 e gravado no sistema Habilus Média Studio, 00:21:40 a 00:26:16 e minutos 00:27:40 a 00:39:54);
G. Por último, o relatório pericial elaborado pelo perito nomeado pelo Tribunal confirmou a existência de várias peças de mobília na casa do testador (…), no valor global de € 660,00 (cfr. fls. …);
H. Os Apelantes entendem que a decisão do Tribunal de Primeira Instância não resultou da melhor interpretação do direito, na parte em que julgou improcedente o pedido de redução das liberalidades feitas pelo testador (…) a favor da Apelada, por inoficiosidade, não só porque cumpriram integralmente o ónus da prova que sobre si impendia, mas também porque a jurisprudência tem entendido pacificamente que o referido pedido pode ser apreciado e decidido em processo comum;
I. Os Apelantes provaram que, à data do óbito do seu pai, (…), integravam o seu acervo patrimonial a generalidade dos bens por si identificados na Petição Inicial, em concreto, os bens imóveis identificados no Facto Provado n.º 31 e, ainda, os bens móveis identificados no Facto Provado n.º 45, a que acrescerão, sendo julgado procedente o presente recurso, os bens móveis identificados nos pontos i., iii., iv., xiii e xiv. da alínea x) dos Factos Não Provados;
J. Pelo contrário, a Apelada não logrou provar a existência da generalidade dos pretensos bens móveis que invocou existirem no seu articulado, e que se encontram expressamente identificados na alínea z) dos Factos Não Provados, com exceção dos bens identificados no Facto Provado n.º 62;
K. Por outro lado, conforme se realça na douta sentença recorrida, a Apelada não logrou provar que os Apelantes se tenham apropriado de quaisquer quantias monetárias, quadros ou peças de arte, e, bem assim, que tenham dissipado, ocultado e destruído os mesmos (cfr. alíneas a), b), y), aa), bb), cc), dd), ee) dos Factos Não Provados);
L. Conforme sustentou a Meritíssima Juíza da Primeira Instância, a respeito da motivação fáctica, “relativamente à existência de um extenso acervo patrimonial, designadamente, obras de arte pertencentes à coleção privada de ... (pinturas, quadros e esculturas), da autoria do pintor húngaro do sec. XIX, seu antepassado direto, …, a ré não logrou provar que, à data do seu falecimento, aquelas obras ainda fizessem parte daquele acervo ou estivessem registadas em seu nome – factualidade vertida nas alíneas z) a ee) dos factos não provados. De facto, se por um lado, na sequência dos ofícios dirigidos às autoridades inglesas, obteve-se resposta contrária a tal alegação – vide, fls. 798 e 799 dos autos – por outro, a testemunha … disse que, a existirem, os quadros e desenhos teriam de estar na posse de (…), recordando-se de, a certa altura, ter falado com o … nesse sentido e que alguma parte desse acervo – não sabendo identificar qual – teria sido transportada para Portugal” (…) (cfr. fls. 36 da douta sentença recorrida);
M. Por último, nem os Apelantes, nem a Apelada, alegaram a existência de quaisquer dívidas da herança de (…);
N. Atento o exposto, não colhe o entendimento do Tribunal de Primeira Instância, quando refere que, “não obstante as diversas diligências encetadas junto das autoridades inglesas e luxemburguesas não foi possível localizar todos os bens móveis e imóveis que compunham o acervo patrimonial do falecido e, por essa via, não foi possível proceder-se ao cálculo da legítima dos autores, julgando-se impossível a redução do testamento por inoficiosidade” (cfr. fls. 46 da sentença recorrida);
O. Em cumprimento do requerido pela Apelada, as autoridades inglesas e luxemburguesas por si identificadas responderam aos ofícios do Tribunal a quo com a documentação bancária que permitiu dar como provados os factos vertidos nas diversas alíneas do Facto Provado n.º 62;
P. Das regras de repartição do ónus de prova resulta inequívoco caber à Apelada o ónus de provar a pretensa existência dos bens móveis que identificou na Contestação, como fazendo parte do acervo patrimonial do testador (…), à data da sua morte, o que não logrou fazer, não se antevendo um resultado diferente em sede de processo de inventário;
Q. O objeto do litígio em apreciação nos presentes autos, tal como definido no douto despacho saneador, compreende o pedido de redução do testamento outorgado por (…), por inoficiosidade;
R. Não colhe, pois, o entendimento do Tribunal de Primeira Instância quando conclui que, “apenas por via do inventário, no âmbito do qual, todos os bens pertencentes ao acervo hereditário do falecido, dívidas, legados e doações possam ser relacionadas, se poderá proceder à partilha dos bens e, se necessário, reduzir o testamento em causa, por inoficiosidade” (cfr. fls. 46 da douta sentença recorrida);
S. A jurisprudência tem entendido pacificamente que o pedido de redução das liberalidades feitas pelo testador por inoficiosidade pode ser apreciado e decidido em processo comum;
T. Neste sentido, pronunciou-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23/06/2022, processo 6928/20.4ALM-A.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do qual, “no quadro legal vigente, não sendo a redução de legados inoficiosos uma função específica do processo de inventário, mas incidental, e estando expressamente previsto no art. 2178.º do CC o direito de ação de redução de liberalidades inoficiosas, é inaceitável considerar que a redução de inoficiosidades apenas poderá ser peticionada e obtida, em toda e qualquer circunstância, mediante a instauração de processo de inventário. Uma tal afirmação de princípio deve ser rejeitada, antes se impondo, numa interpretação sistemática e teleológica dos artigos 1082.º e 1119.º do CPC e 2174.º, n.º 2, e 2178.º do CC, proceder a uma análise casuística, a qual não pode deixar de apontar no sentido da possibilidade de uma ação declarativa comum ser intentada pelos herdeiros legitimários com o propósito de redução de liberalidades inoficiosas numa situação como a dos autos, em que o réu legatário e único beneficiário do testamento, não é herdeiro legitimário, existindo um litígio apenas entre este último e os autores, únicos herdeiros legitimários litisconsortes, os quais não se mostram desavindos quanto à partilha da herança ou sequer manifestam a pretensão de proceder à mesma, mas apenas pretendem, subsidiariamente (no caso de improceder o pedido principal de declaração de nulidade do legado do usufruto de prédio “ilegal”), a condenação do réu no pagamento em dinheiro da importância da redução da (única) liberalidade inoficiosa, atinente ao usufruto dos (alegadamente) únicos bens da herança” (…);
U. No mesmo sentido, pronunciaram-se, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/01/2016, processo n.º 31/14.3T8VPC.G1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/12/2019, processo n.º 140/10.8TCGMR.G1, o Acórdão da Relação de Évora, de 19/11/2020, processo n.º 867/19.9T9OLH.E1, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 20/04/2017, processo n.º 1346/15.9T8CHV.G1, e o Supremo Tribunal de Justiça, de 24/10/2006, processo n.º 06B2650;
V. Conforme resulta da doutrina citada nos mencionados Acórdãos, mesmo quando o processo de inventário é admissível, “nada impede que, antes do inventário ser requerido, algum herdeiro legitimário proponha uma ação autónoma contra os sujeitos visados pelo pedido de redução por inoficiosidade, optando assim por resolver esta questão no âmbito de uma ação ordinária de natureza prejudicial” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro, in “O Novo Regime dos Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, notas a) a b), págs. 123, ao art. 1118.º do CPC);
W. A redução de legado inoficioso encontra-se expressamente prevista no artigo 2178.º do Código Civil, não sendo, pelo contrário, uma função específica do processo especial de inventário e constituindo um mero incidente do referido processo;
X. A sucessão por morte de (…) é regulada pela lei da sua residência habitual, isto é, pela lei portuguesa, nos termos do preceituado no artigo 20.º, n.º 1 do Código Civil;
Y. Atento o disposto no artigo 2162.º do Código Civil, o cálculo da legítima compreende o valor dos bens existentes no património do testador à data da sua morte, o valor dos bens doados, as despesas sujeitas a colação e, por fim, as dívidas da herança, correspondendo, no caso sub judice, a dois terços da herança, atento o estipulado do n.º 2 do artigo 2159.º do Código Civil;
Z. Da conjugação dos Factos Provados n.ºs 31 a 44, resulta que, à data da sua morte, integravam o património do testador (…), os seguintes imóveis, cujos valores seguidamente indicados reverteram a favor da Apelada:
a) O prédio urbano em regime de propriedade total, destinado a habitação, sito na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo (…), o qual tinha, na data do óbito do testador, um valor de mercado de € 180.000,00, tendo a Apelada registado a seu favor usufruto vitalício sobre o mencionado prédio, cujo valor, em função da idade da Apelada à data do óbito (54 anos), terá em conta a redução da percentagem de 45% sobre o respetivo valor de mercado, por aplicação do disposto na tabela do artigo 13.º, alínea a) do CIMI, correspondendo a € 81.000,00 (oitenta e um mil euros);
b) O prédio urbano em regime de propriedade total, destinado a habitação, sito na Rua (…), n.º 13, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo (…), o qual tinha, na data do óbito do testador, um valor de mercado de € 160.000,00, tendo a Apelada registado a seu favor usufruto vitalício sobre o mencionado prédio, cujo valor, em função da idade da Apelada à data do óbito (54 anos), terá em conta a redução da percentagem de 45% sobre o respetivo valor de mercado, por aplicação do disposto na tabela do artigo 13.º, alínea a) do CIMI, correspondendo a € 72.000,00 (setenta e dois mil euros);
c) A fração autónoma designada pela letra ‘P’, correspondente à garagem n.º 15, destinada a estacionamento coberto, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo matricial (…), a qual tinha, na data do óbito do testador, um valor de mercado de € 7.600,00, e cuja propriedade a Apelada registou a seu favor, e vendeu pelo preço declarado de € 6.000,00 (seis mil euros); e,
d) A fração autónoma designada pela letra ‘O’, correspondente à garagem n.º 14, destinada a estacionamento coberto, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo matricial (…), a qual tinha, na data do óbito do testador, um valor de mercado de € 7.600,00, e cuja propriedade a Apelada registou a seu favor, e vendeu pelo preço declarado de € 6.000,00 (seis mil euros).
AA. Os bens móveis que integravam o património do testador à data da sua morte, correspondentes ao recheio da casa que habitava, sita na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão, estão identificados no Facto Provado n.º 45, tendo o valor global de € 12.743,14 (doze mil, setecentos e quarenta e três euros e catorze cêntimos);
BB. Sendo julgado procedente o presente recurso, quanto à decisão da matéria de facto, acrescerão os identificados na alínea D precedente, pelo que, os bens móveis do testador (…) tinham, à data da sua morte, o valor global de € 25.122,47 (vinte e cinco mil, cento e vinte e dois euros, quarenta e sete cêntimos);
CC. O testador (…) doou em vida à Apelada um veículo automóvel da marca Maserati, que esta registou a seu favor, em 22 de março de 2013, e possuía o valor de mercado de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) (cfr. Factos Provados n.ºs 50 e 51);
DD. Em 18 de setembro de 2018, ou seja, depois da morte de (…), foi transferida para a Apelante, da conta do testador, junto do (…) International (…), o valor de 11.342,00 € (onze mil, trezentos e quarenta e dois euros) (cfr. alínea b) do Facto Provado n.º 62);
EE. Tendo presente o exposto, à data do óbito de (…), compunham o seu acervo patrimonial os bens imóveis e móveis identificados supra, cujo valor global ascende a € 391.664,47 (trezentos e noventa e um mil e seiscentos e sessenta e quatro euros e quarenta e sete cêntimos), correspondente a:
a) Imóveis identificados no Facto Provado 31, alíneas i) e ii) – 180.000€ + 160.000€;
b) Imóveis identificados no Facto Provado 31, alíneas iii) e iv) – 7.600€ + 7.600€;
c) Bens móveis identificados no Facto Provado 45, com as alterações à decisão da matéria de facto – 25.122,47€;
d) Conta bancária identificado no Facto Provado n.º 62, alínea b) – 11.342€.
FF. O valor da legítima, correspondente a 2/3 da herança, é de 261.102,64€ (duzentos e sessenta e um mil cento e dois euros e sessenta e quatro cêntimos).
GG. E o valor da quota disponível, correspondente a 1/3 da herança, é de 130.554,82€ (cento e trinta mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos);
HH. A Apelada recebeu o valor total de 226.464,47€ (duzentos e vinte e seis mil quatrocentos e sessenta e quatro euros e quarenta e sete cêntimos), correspondente a:
a) Usufruto dos bens imóveis identificados no Facto Provado 31, alíneas i) e ii) – 81.000€ + 72.000€;
b) Preço da venda dos bens imóveis identificados no Facto Provado 31, alíneas iii) e iv) – 6.000€ + 6.000€;
c) Bens móveis identificados no Facto Provado 45, com as alterações à decisão da matéria de facto – 25.122,47€;
d) Transferência do valor da conta bancária identificada no Facto Provado n.º 62, alínea b) – 11.342€;
e) Maserati identificado no Facto Provado n.º 50, doado em vida – 25.000€.
II. O valor recebido pela Apelada excede o valor a quota disponível em 95.909,65€ (noventa e cinco mil novecentos e nove euros e sessenta e cinco cêntimos) (226.464,47€ - 130.554,82€);
JJ. Caso se entenda que o valor do usufruto dos bens imóveis deve ser calculado em função da idade da Apelada na data do julgamento (59 anos), o que se admite por mero dever de patrocínio, sem conceder, o mesmo terá em conta a redução da percentagem de 40% sobre o respetivo valor de mercado, correspondendo a 72.000,00€ (setenta e dois mil euros) quanto à verba descrita no ponto i. do Facto Provado n.º 31, e a 64.000,00€ (sessenta e quatro mil euros) quanto à verba descrita no ponto ii. do Facto Provado n.º 31;
KK. Nesse caso, a Apelada terá recebido bens no valor global de 209.464,47€ (duzentos e nove mil quatrocentos e sessenta e quatro euros e quarenta e sete cêntimos), o que excede o valor da quota disponível em 78.909,65€ (setenta e oito mil novecentos e nove euros e sessenta e cinco cêntimos); (…)”
*
G.
A Recorrida respondeu, formulando as seguintes conclusões (transcrição parcial, sem as referências em sublinhado e em negrito da origem):
“(…) incumbia aos APELANTES a prova de que, através daquele testamento, o seu pai dispunha de uma porção de bens cujo valor atingia a legítima que lhes caberia. Porém, nesta sede, os autores não lograram a prova da totalidade dos bens que, à data do óbito do seu pai, compunham o seu acervo patrimonial ou o montante das dívidas da herança, quanto mais que, a porção do acervo deixado à ré constitua uma ofensa à sua legítima, pelo que, para além de não ser possível (tal como se antevia numa fase inicial da audiência) proceder a inventário, consequentemente, não seria possível proceder a qualquer redução, ainda que a tal houvesse lugar.
4. O que não lograram os Apelantes fazer, não estando o Tribunal a quo em posição de tomar posição quanto à quota disponível do Autor da Herança para detemrinanção dos quinhões hereditários!
5. Assim apenas por via de processo de inventário, no âmbito do qual, todos os bens pertencentes ao acervo hereditário do falecido, dívidas, legados e doações possam ser relacionadas, se poderá proceder à partilha dos bens e, se necessário, reduzir o testamento em causa, por inoficiosidade, apenas então sendo possível o reconhecimento do direito de propriedade da ré sobre os bens que, por via da partilha, lhe forem atribuídos.
6. A redução, tal como a revogação, pressupõem a estimação rigorosa dos bens do autor da herança, a determinação exata da sua quota disponível, o apuramento da ofensa das legítimas e todos estes dados só serão suscetíveis de ser captados através dos termos que são próprios do inventário em si mesmo.
7. Com efeito, na Petição Inicial dos Apelantes não constam os elementos que se reportam, respetivamente os artigos 1097.º e 1099.º do CPC.
8. Pelo que, na ausência de indicação de tais elementos, nem a este nível a Petição Inicial seria aproveitável, importando, como tal, a nulidade quanto a esse mesmo pedido.
9. Não podendo os Apelantes, após pretenderem a anulação pura e simples do testamento, como configuraram na ação inicial, peticionar a este mui nobre Tribunal de Recurso, que quantifique os bens e a composição dos quinhões hereditários, quando tal, em exclusivo lhe competia.
10. A condenação da Recorrida nos moldes suscitados pela alteração da Sentença como peticionam os ora pelos Apelantes não é admissível, por incompetência absoluta do Tribunal a quo em razão da matéria, face a que se tratar de matéria de inventário, sendo tal excepção de conhecimento oficioso e invocável a qualquer tempo. (…)”
Pugnou pela manutenção da sentença recorrida.
*
H.
Colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*
I.
Questões a decidir
São as seguintes as questões em apreciação no presente recurso: [1]
1. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
2. Se estão preenchidos os pressupostos legais da redução, por inoficiosidade, das liberalidades feitas pelo falecido pai dos Autores a favor da Ré.
*
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
*

Do recurso da decisão da matéria de facto
*
Vem o presente recurso interposto da matéria de facto provada e não provada da sentença de primeira instância.
Vejamos, por isso, em primeiro lugar, se foram observados os requisitos de impugnação da matéria de facto.
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
*
Os Recorrentes incidiram o seu recurso da matéria de facto sobre os factos provados n.ºs 59 e 60 e as alíneas i., iii., iv., xiii. e xiv. do facto não provado x).
Procederam à transcrição do respectivo conteúdo e discriminaram, relativamente a cada um dos factos, quais os elementos probatórios que, em seu entendimento, determinam decisão distinta da proferida em 1ª instância, fazendo-o, na parte respeitante aos depoimentos / testemunhos ouvidos em julgamento, por transcrição dos que consideravam relevantes para as alterações propugnadas (cfr. pontos II. e III. das alegações de recurso).
Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do número 1 do artigo 640.º do CPC.
*
Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do art.º 5.º, ambos do C.P.C., tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na al.ª c) do n.º 2 do art.º 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1, para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1 , “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto – que a ela conduza – constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico – com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574.º, n.º 2, do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484.º, nº 1 e 463.º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351.º e 393.º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”
*
Tendo presentes estes considerandos, analisemos cada um dos concretos pontos da matéria de facto que o Recorrente pretende ver alterados.
*
- Factos provados números 59 e 60
“59. Enquanto os autores tratavam do empacotamento dos bens móveis do seu falecido pai, a ré saiu de casa para apanhar ar, tendo encontrado na rua a Solicitadora Dr.ª (…), que lhe ia prestar condolências, à qual a ré acabou por narrar os factos supra descritos.”
“60. De imediato, a Solicitadora lhe disse que tal comportamento não poderia ser praticado pelos autores pois o testador havia deixado em testamento, além do mais, “todos os bens móveis, automóveis, ações e contas bancárias de qualquer natureza que possuir à data da sua morte, em qualquer país.”
Sustentam os Recorrentes, relativamente à matéria dos factos provados em apreço, que o tribunal de 1ª instância fundou a sua decisão no testemunho prestado pela solicitadora (…), mas esta, na verdade, não confirmou a veracidade dos referidos factos.
Compulsada a motivação da decisão a matéria de facto, a sentença recorrida refere: “O depoimento prestado pela solicitadora (…) afigurou-se-nos inteiramente credível, sendo valorado para prova da factualidade vertida nos pontos 27.º, 59.º e 60.º dos factos provados.”
Ouvida a gravação do testemunho em apreço, não nos parece que a afirmação contida na motivação da sentença recorrida encontre efectivo suporte no que de relevante pode extrair-se do relato de (…) em julgamento.
Transcrevem-se, a propósito, as seguintes passagens da gravação do seu testemunho, prestado na sessão de julgamento do dia 30 de Maio de 2023 (com sublinhados nossos):
- minutos 11:25 a 15:03:
Mandatário da Ré: Esta é a minha segunda questão: quando é que a Sra. (…) teve conhecimento do testamento? Se a informou com a morte do Sr. (…)? Diz que não se recorda, diz que possivelmente… (…)
Mandatário da Ré: (…) foi ela que conduziu. Se ela sabia o conteúdo ou se a Sr.ª (…), em algum momento, após o falecimento lhe passou o conteúdo?
(…): Acredito que ela não tivesse conhecimento de… que não tivesse conhecimento, isto porque, isto já foi o que ela me disse, portanto já estou a dizer o que ela me disse...
Juiz: Não, não, a questão, a resposta à pergunta é: Quando é que ela teve conhecimento do testamento e se ela, naquela altura, sabia o teor do que é que ia ser feito?
(…): Pronto. Possivelmente sabia, mas não ficou com uma cópia.
Mandatário da Ré: Se após o falecimento do Sr. (…), entrou em contacto com a Sra. (…) e lhe explicou o testamento?
(…): Acho que nos encontrámos, por acaso, onde ela me informou que o (…) tinha falecido. Mas não, acho que nunca veio ter comigo para... Mais uma vez, não me recordo se ela vai ter comigo para ter ajuda ou para tratar do processo.
Juiz: Mas espere lá, o Sr. (…) ficou com uma cópia?
(…): Normalmente fica com uma cópia, sim.
Juiz: Ok. Eu não percebi a resposta. Ela informou que o (…) tinha falecido e encontraram-se casualmente e depois, ela não…?
(…): Aí é que foi aquilo que eu já não me recordava e que ela me disse. Portanto, eu depois calei-me porque foi o, não me recordo todas as situações.
Juiz: Isto é quando? Este encontro casual em que ela lhe informa que o (…) tinha falecido.
(…): Sim, foi pouco tempo depois, dias depois de ele ter falecido.
Juiz: Dias depois. E onde é que foi que se encontraram?
(…): Foi no Pingo Doce, fica perto.
Juiz: E o que é que?
(…): Aqui foi aquilo que ela… que eu já não me lembrava desta conversa, eu não me consigo lembrar de tudo.
Juiz: Agora ela está ali fora e disse-lhe?
(…): E falámos, sim. Ela disse que os filhos que já estavam lá a tirar as coisas de casa e que eu disse que “não, mas atenção, há um testamento”.
Juiz: Mas a senhora não estava lá?
(…): Como?
Juiz: A senhora não estava lá?
(…): Onde?
Juiz: Quando os filhos estavam a tirar as coisas de casa.
(…): Não, claro que não. A (…) informou-me que eles estavam lá.
Juiz: Agora? Informou-a agora?
(…): Mas ela disse que me informou nessa altura.
Juiz: Isso diz que a informou, mas não a informou?
(…): Não me lembro. Mas eu não consigo lembrar de tudo.
Juiz: Claro, mas não está certo que ela estar ali fora a instruí-la. Isso é que não está certo.
(…): Que ela, estávamos a falar.
Juiz: Pois, mas não podem!
Juiz para oficial de diligências: Chame lá a D.ª (…), se fizer favor.
(…): Mas por isso eu também não ia dizer nada, porque eu…
Juiz: Mas não pode ser, não pode ser, que se fale. Isto é inverter as regras todas. Não pode ser.
(…): Natural, mas estamos ali fora. Estamos ali fora a conversar, é natural, não é?
Juiz: Pois não é, não. Isto não é nenhum café. Isto no café já se conversa o que quer. (15:03)”
No seguimento, a Sr.ª Juiz de 1ª instância fez consignar em acta que: “segundo a testemunha, a Ré transmitiu-lhe informações relativas a alegadas conversas sobre os comportamentos dos filhos do falecido no dia subsequente ao seu falecimento quando esta se encontrava no átrio deste tribunal e prestes a prestar depoimento.”
Da transcrição da gravação e da declaração exarada em acta decorre, de forma incontornável, que o testemunho de (…) sobre o alegado encontro com a Ré no dia em que os Autores tratavam do empacotamento dos bens móveis do seu falecido pai e sobre o teor da respectiva conversa, tal como a própria testemunha assumiu, não se fundou na sua memória do sucedido, mas no relato que a Ré lhe fez, em pleno tribunal, instantes antes de entrar na sala de audiências para ser ouvida sobre a factualidade em apreço.
Se eliminarmos o que a Ré lhe disse no dia do julgamento a propósito do encontro e da suposta conversa, apenas resulta do testemunho de (…) com relevância para a matéria dos factos provados 59 e 60 que: “Não me lembro. Mas eu não consigo lembrar de tudo”.
Deste modo, (…) não tem qualquer préstimo probatório para a matéria em apreciação.
Resultando da decisão recorrida que a convicção do tribunal se fundou exclusivamente no seu testemunho e não havendo outra prova destes factos para além das declarações da Ré, pessoal e directamente interessada no desfecho da causa, é insuficiente a prova produzida em julgamento sobre aquele conteúdo, devendo ser alterada a decisão em conformidade, transpondo-se para o rol dos factos não provados os factos provados números 59 e 60.
*
- Alíneas i., iii., iv., xiii. e xiv. do facto não provado x)
x) Entre os bens móveis que integravam o património do testador à data da sua morte, correspondentes ao recheio da casa que habitava, sita na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão, encontravam-se os seguidamente identificados, tendo o valor que se indica:
i. Três imagens de arte moderna, no valor global de € 9.703,23 (fls. 110 e ss.); (…)
iii. Travessa quadrada de prata esterlina, no valor de € 80,86 (fls. 116);
iv. Chapéu prateado, no valor de € 102,42 (fls. 118); (…)
xiii. Caixa de cigarros prateada com quatro pés e tampa de fantasia, no valor de € 215,62;
xiv. French Kingwood e marfim com ângulo de escrita com topo levantado, no valor de € 1.617,20; (….)”.
Sobre a matéria de facto em apreço, é a seguinte a sentença recorrida motiva a sua decisão dando conta de que:
“Também não foi produzida prova suficiente relativa à alegada existência ou valor dos bens móveis descritos na al. x), dos factos provados, no interior da residência de (…), à data do seu falecimento, donde se considera tal matéria como não provada.
Segundo os autores, os bens retirados do interior da residência do seu pai foram colocados numa casa ao lado, à qual, posteriormente, o acesso lhes foi vedado. Segundo a ré, os bens foram removidos. A este propósito, apenas os depoimentos de (…) e (…) revelaram conhecimento direto. Todavia, pelos motivos já enunciados, tais depoimentos não se revelaram suficientemente credíveis para que se possa dar por provada a factualidade em causa. (…)”
Discordando, os Recorrentes transcrevem, em abono desta parte da impugnação:
- o depoimento da Ré, considerando que confessou a presença dos bens em apreço na casa onde residia o testador (…); bem como
- passagens do testemunho de (…) no qual, em seu entendimento, terá confirmado que, na véspera do dia do óbito de (…), os bens móveis identificados nos pontos i., iii., iv., da alínea x) dos factos provados integravam ainda o recheio da sua casa.
Vejamos o que disseram ambas:
a)
- a propósito dos bens das alíneas i., iii. e iv. (três imagens de arte moderna, travessa quadrada e chapéu prateado):
Depoimento de parte (sublinhados nossos)
- minutos 41:28 a 42:08:
“Juiz: (…) tem de dizer só, se estes bens estavam ou não estavam lá em casa.
(…): Estavam os pratos, as cadeiras, a estátua. Estas imagens, três imagens de arte moderna, não sei o que é francamente. Por exemplo, o copo prateado, também não sei o que é que isto quer dizer. A travessa quadrada, também com estrelinha, não sei o que é. Um chapéu prateado, eu tenho ideia de haver um chapeuzinho pequenino em prata, tenho. Tenho ideia disto.”
- minutos 53:59 a 54:46:
Juiz: Agora, o 18, imagens de arte moderna. Como é que é o 18?
Oficial de Justiça: Isto?
Juiz: Não, isto há-de ser o copo prateado, provavelmente. Este, lembra-se de lá ver?
(…): Olha, essa peça não me lembro, mas naturalmente está aí.
Juiz: Pronto, vamos passar nas imagens e vai fechando, está bem?
(…): É que já foi sete anos. Eu não fixo muitas coisas, mas... Este sim, este também estava, sim, estava.
Juiz: Isto é o tal chapéu, a senhora já falou nele.
(…): Sim, sim, este estava, este conheço, que eu lembro-me.
Juiz: Este chapéu é o g)? Já tinha dito que sim.
(…): Sim, sim.”
- minutos 54:55 a 55:47:
“Juiz: Pronto, isto são vários objectos em prata. Também estariam lá, algum destes?
(…): Não consigo ver bem daqui.
Juiz: Então mas venha, pode-se aproximar. (…)
(…): Sim, sim, estas peças estavam lá sim. Esta não me lembro, por acaso, mas de certeza estava
Juiz: Este é o documento, este documento Doutora, qual é? (…) Este é folhas 44. Não…sim, é Folhas 44.
Mandatária dos AA: É o documento 23.
Juiz: Passe lá mais… (…)”
- minutos 57:36 a 58:35:
Juiz: Folhas 54, também? Estava lá ou não?
(…): Olhe, esse aqui. Este quadro estava na casa ao lado, onde eles ficaram.
Juiz: Então é um dos que eles levaram?
(…): As coisas não estão lá desde...
Juiz: Este quadro estava na casa ao lado?
(…): Sim, sim, estava.
Juiz: Que era onde eles ficavam e onde tinham, onde colocaram os tais…
(…): Exatamente.
Juiz: Mais?
(…): Este… este também conheço, também estava.
Juiz: Isto aqui está mal numerado… 53, 54, depois volta 51. Vou fazer… folhas 51 porque é a numeração que aqui está. Este também estava na casa ao lado, é isso?
(…): Sim.”
Testemunho de … (sublinhados nossos)
- minutos 22:34 a 25:36:
“Mandatário da Ré: Reconheceu os pratos e o cavalo.
(…): E isto também.
Mandatário: Estas loiças é folhas 40, Pratas, as pratas reconhece?
(…): Conheço, conheço.
Juiz: Também voltou a vê-las na casa após a ida dos filhos do Sr. (…)?
(…): Desapareceu tudo.
Mandatário da Ré: Desapareceu tudo. Documento 18, que é folhas 41, isto é uma travessa, eu sei que é difícil de descrever.
(…): Não. Por causa de rebordo, Sr. Doutor, eu conheço.
Mandatário da Ré: Conhece? Isto estava na casa?
(…): Conheço bem, sim.
Mandatário da Ré: E após o falecimento do Sr. (…)? (…) Este é o ficheiro 18, documento 18 que é folhas 41 (…) da p.i. (…) O copo então é o 17, já vimos há pouco, que a senhora reconheceu como estando lá antes e que depois da ida dos filhos do Sr. (…) não, o 18 portanto é esta parte, há-de ser o prato travessa e depois o doc. 19 da p.i. parece que é um chapéu de prata. Estava na casa?
(…): Estava.
Mandatário da Ré: E após o falecimento do e dos caixotes?
(…): Também não.
Mandatário da Ré: Muito bem. Folhas 42. Documento 20.
Juiz: Por agora tem estado a reconhecer os objetos todos, não é?
(…): Sim
Mandatário da Ré: Todos, Sr.ª Doutora. Até agora, como estando lá antes e desaparecendo depois. Isto não sei o que é, não lhe consigo dizer. Parece uma medalha mas não... a folhas 43, não reconhece?
(…): Não vi uma coisa assim, de repente.
Mandatário da Ré: Claro que não, é difícil de relembrar. Aqui parece que são loiças, não é?
(…): Sim…não…isso eram cartas ou cristofes ou qualquer coisa assim.
Mandatário da Ré: E conhecia-os lá?
(...): Sim, tinha muita coisa deste género, mas muito mais do que está nas fotografias. Então as prateleiras dos móveis estavam cheias de coisas.
Mandatário da Ré: E após as caixas?
(…): Após as caixas não.
Mandatário da Ré: Pronto. Só não conheceu o documento 43 Senhora Doutora. (…) Não lhe consigo dizer, porque as fotos também não consigo precisar.
Juiz: Portanto, não estava lá nada daquilo que reconheceu - com exceção de folhas 43 - que não reconheceu.
Mandatário da Ré: Que não reconheceu mesmo, sim. (…)”
- minutos 38:52 a 39:54:
“Mandatário dos AA: Portanto, este aqui conhece? Tem assim uma espécie de uns peixes? Está a preto e branco.
(…): Sim. E os outros que passou aí também.
Mandatário dos AA.: Este aqui também conheço que é o segundo,
Mandatário dos AA.: E o terceiro.
(…): Bem demais, adorava esse.
Mandatário dos AA.: O terceiro. Então, diga-me lá. Referindo-nos a estes três, eram quadros grandes?
(…): Eram quadros grandes.
Mandatários dos AA.: Estavam aonde?
(…): Estavam na sala, Sr. Doutor.
Mandatários dos Autores: Estavam na sala, por isso é que a Senhora recorda bem. Grandes de tamanho, mais ou menos? Mais de um metro?
(…): Não. Tamanho normal, o que é que pode ser, 50 por 60.
Mandatários dos Autores: Menores que uma janela?
(…): Sim, menores que uma janela.
Mandatários dos Autores: Então, a senhora a última vez que viu estes quadros foi quando? Referiu-nos aqui, que esteve, mesmo até perto da morte. E que viu o senhor (...) três ou quatro dias antes de falecer, que estava lá em casa.
(…): Lá em casa. (…)”.
b)
- a propósito dos bens das alíneas xiii. e xiv. (caixa de cigarros e French Kingwood e marfim):
Depoimento de parte (sublinhados nossos)
- minutos 44:17 a 44:47
“Juiz: Caixa de cigarros prateada?
(…): É que havia pormenores, que eu não dava importância. Coisas que ele tinha guardado, se calhar, nas gavetas.
Juiz: Caixa de cigarros prateada com quatro pés e tampo de fantasia? French Kingwood e marfim com ângulo de escrita com topo levantado?
(…): Havia coisas variadas em prata, sim.”
a)
No que respeita aos bens das alíneas i., iii. e iv. – três imagens de arte moderna, travessa quadrada e chapéu prateado – constatamos que:
- as três imagens/quadros de arte moderna, encontram-se retratadas nas fotografias juntas no documento 18 da p.i. (com o requerimento de 04.12.2019) e a sua presença na casa até ao falecimento do falecido foi confirmada pela testemunha … (minutos 38:52 a 39:54), o que não foi negado por outros meios de prova, nomeadamente o depoimento da Ré;
- a travessa quadrada consta da fotografia junta como documento 23 da p.i. e a sua existência foi confirmada pela Ré que quando confrontada com o seu teor, respondeu: “Sim, sim, estas peças estavam lá sim. Esta não me lembro, por acaso, mas de certeza estava.”;
- o chapéu prateado, representado na fotografia que é o documento 21 da p.i., também foi confirmado pela Ré que disse: “Um chapéu prateado, eu tenho ideia de haver um chapeuzinho pequenino em prata, tenho. Tenho ideia disto.”;
Razão pela qual se deverá ter como provada a existência, à data da morte de (…), dos objectos das alíneas i., iii. e iv. em apreço, o que já não acontecerá relativamente aos respectivos valores, por inexistir meio de prova relevante dos mesmos.
b)
Quanto aos bens das alíneas xiii. e xiv. (caixa de cigarros e French Kingwood e marfim), o depoimento de parte da Ré não é, contrariamente ao que entendem os Recorrentes, conclusivo.
No que respeita à caixa de cigarros, a Ré limitou-se a responder “havia coisas variadas em prata, sim.”, sem concretizar quais as coisas em prata que havia. Fê-lo desta forma vaga no seguimento de resposta anterior em que, perguntada sobre a “caixa de cigarros prateada”, respondera “é que havia pormenores, que eu não dava importância. Coisas que ele tinha guardado, se calhar, nas gavetas.”.
Quanto ao “French Kingwood” trata-se da designação dada a um estilo de móvel antigo que pode consistir numa mesa, numa escrivaninha, numa meia cómoda, entre outros, consoante o número de gavetas de que disponha, com pernas, frequentemente marchetada, ao gosto francês dos séculos XVIII / XIX. Ora, para além de não constar dos autos imagem reveladora de caraterísticas similares evidentes em peça de mobiliário, as respostas da depoente tampouco lhe fazem referência clara, sendo que pareceu até não conhecer a designação “French Kingwood”, usada sobretudo na Inglaterra, na medida em que quando perguntada se limitou a responder que havia coisas variadas em prata (matéria-prima na qual se não enquadraria o objecto em causa).
Assim, na falta de outros elementos de prova relevantes, afigura-se insuficiente a prova produzida relativamente aos objectos das alíneas xiii. e xiv. (caixa de cigarros e French Kingwood).
*
- Aditamento de verba ao facto provado n.º 45
Sustentam ainda os Recorrentes que o relatório pericial suporta o aditamento de uma verba aos bens móveis que integravam o património do testador à data da sua morte, acolhidos no facto provado n.º 45:
“Peças de mobília identificadas no relatório pericial elaborado pelo perito nomeado pelo Tribunal, no valor global de € 660,00 (fls. …).”
Compulsado o relatório da perícia ordenada na presente acção, de avaliação de bens imóveis e móveis pertencentes à herança (junto no dia 29.11.2021, com a referência Citius 9535475), do mesmo constam algumas peças de mobília na casa do testador (…), no valor global de € 660,00.
Trata-se de matéria de facto que tem cabimento na alegação contida na alínea bb) do artigo 81º da p.i..
Assim, deverá ser aditada ao facto provado 45 uma alínea com o seguinte teor:
“bb) Peças de mobília identificadas no relatório pericial elaborado pelo perito nomeado pelo Tribunal, no valor global de € 660,00.”
*
Matéria de facto provada:
*
Em consequência da apreciação vinda de expor, é a seguinte a matéria de facto provada a considerar: [2]
1. Na sequência do episódio de urgência ocorrido em 17/12/2005, a ré foi observada no Hospital de Faro, apresentando “antecedentes de epilepsia difícil de controlar que sofreu traumatismo crânio-encefálico na sequência de crise convulsiva”.
2. Desde 2006, (…) residia na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão.
3. Nessa altura, a ré morava num apartamento de que era proprietária, na cidade de Faro e vendia roupa a clientes particulares, que havia granjeado, nos anos que antecederam, por ter um espaço comercial (boutique) aberto em Faro.
4. Naquele ano de 2006, a ré conheceu (…), por intermédio de uma pessoa amiga.
5. Nessa ocasião, (…) contou à ré que havia chegado a Portugal nesse mesmo ano, vindo de um processo de divórcio complicado, em que a sua mulher havia alegado que o mesmo sofria de distúrbios mentais incapacitantes.
6. (…) era um homem divertido, falava fluentemente vários idiomas e dominava uma panóplia de temas, tão diversificados como arte, religião, política e economia.
7. Desde que se conheceram, a ré e (…) estabeleceram uma relação profunda, aproximando-se emocional e afetivamente nos meses seguintes.
8. Após alguns meses, (…) convidou a ré, a consigo residir na sua casa sita em Olhão em situação análoga à dos cônjuges, ao que esta assentiu.
9. A ré e (…) assumiram a sua relação perante os seus amigos e terceiros, conhecidos e terceiros.
10. De início, o casal partilhava mesa e leito, sendo que, mensalmente, (…) ordenava transferências das suas contas em Inglaterra para assim terem dinheiro para os seus gastos e refeições.
11. Os autores gostavam e tratavam bem a ré, sua companheira, bem como à sua filha, passando temporadas juntos e partilhando atividades comuns, quer se tratassem dos aniversários do falecido (…), da ré ou épocas festivas.
12. No aniversário da ré, bem como no aniversário do (…), iam frequentemente ao Reino Unido, passando estas temporadas não só com os autores, mas também com a mãe destes e amigos mais próximos da família, sendo a ré reconhecida por todos como parte integrante da família por ser a companheira de (…).
13. (…) convenceu a ré a tirar carta de veículo automóvel e em contrapartida, este tirou carta de embarcações náuticas, conduzindo embarcações de recreio e estando os seus filhos, os autores ao corrente desse facto.
14. A ré e o falecido (…), recebiam postais de feliz natal e próspero ano novo, até ao falecimento deste, muitos dos quais enviados pelos ora autores, bem como pela ex-mulher de (…).
15. (…) escrevia no seu computador portátil, tendo estado em contacto, por meio de e-mails com os autores, seus filhos, até ao momento que antecedeu a sua morte.
16. Por diversas vezes, os autores sugeriram que o (…) outorgasse procurações em seu nome, para o representarem no Reino Unido.
17. O que (…) não aceitava, com receio que o internassem.
18. (…) sofria de esclerose múltipla desde 1995, diabetes (tipo 2) e bipolaridade, necessitando de cuidados de saúde especiais.
19. Do relatório clínico subscrito pelo Dr. H. (…), datado de 29 de março de 2010, resulta que:
“O (…) veio fazer uma revisão a 26 de março de 2010, após um intervalo de quase dois anos. Não se têm vindo a verificar recaídas da esclerose múltipla. O fim do seu divórcio e a definição da sua situação financeira conduziram a uma redução do stress, com uma consequente melhoria do seu bem-estar e humor. Tem tendência a fadiga, mas ainda consegue andar entre 100-400 metros segurança no braço da (…). A dor nas suas mãos e pés ainda é problemática, mas consegue contê-la com 1,5 g de Paracetamol por dia. (…)
A (…) contou-se que o seu humor e a função cognitiva têm vindo a melhorar (está menos esquecido) e que agora consegue fazer mais coisas sozinho do que há dois anos atrás.
Ao realizar um novo exame, fiquei muito contente por verificar que existe alguma melhoria desde a última vez que o vi. Não existem anomalias referentes aos nervos cranianos. Os músculos distais do braço direito e da flexão do joelho desse lado estão mais fortes e o arrastamento da perna direita é menos visível quando anda. A hipertonicidade bilateral está menos acentuada e a coordenação do membro superior está melhor, principalmente à esquerda. (…)
Espero que a sua situação permaneça estável e possa desfrutar da sua nova vida em Portugal.”
20. A esclerose múltipla do falecido (…) afligia-o fisicamente de forma intermitente, pelo que, havia episódios esporádicos, nos quais este piorava, nas pernas e num dos braços, mais concretamente a partir de 2015, das quais recuperava, sendo que a sua dependência tabágica, agravava o seu estado.
21. A partir daquela altura (2014/2015), (…) viu a sua autonomia funcional mais limitada, necessitando de uma cadeira de rodas para se poder deslocar e de ajuda de terceiros para se vestir ou fazer a sua higiene pessoal.
22. Ao lado da ré, (…) fazia fisioterapia e massagens.
23. Os desenhos seguidamente indicados foram enviados para (…), para a sua morada em Portugal, em 12 de março de 2015, conforme as suas instruções: n.º 8893 - NUDE, FEMALE MODEL, 1924; n.º 8858 - AN UNIDENTIFIED YOUNG WOMAN PRAYING, 1935; n.º 4044 - CECIL, MRS. MARGARET G., 1916 e n.º 8843- (…) (1912-1990).
24. No dia 30 de julho de 2009, (…) outorgou no Cartório Notarial de (…) um testamento, onde se pode ler:
“TESTAMENTO
No dia (...) de Julho de dois mil e nove no Notário sito na Rua (…), Lote F, rés do chão esquerdo em Faro, perante mim, o Notário (…), compareceu:
(…), divorciado, nascido em (…), no Reino Unido e Irlanda do Norte, com nacionalidade Britânica, morador na Rua Dr. (…), 15, 8700-458 Olhão, filho de (…) e (…) e com data de nascimento em 25 de Outubro de mil novecentos e quarenta.
Eu confirmei a identidade do testador pela exibição do seu passaporte com o número (…), emitido em 12 de março de 2008 pelo IPS.
ELE DECLAROU O SEGUINTE:
Este é o seu primeiro que faz em Portugal e ele é valido de acordo com a sua lei nacional.
Que deixa a posse/propriedade plena do seu imóvel urbano, para habitação, sito na Rua Dr. (…), n.º 13, na freguesia e concelho de Olhão e descrita na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) da referida freguesia, o seu conteúdo e os imóveis urbanos correspondentes ás garagens n.º 14 e n.º 15 para parqueamento sitas na Av. dos (…), n.º 13 e n.º 15 descritas na Conservatória do registo Predial de Olhão sob o n.º (…), frações “O” e “P” em partes iguais aos seus filhos:
a) (…), solteiro, maior de idade;
b) (…), casado e
c) (…), solteira, maior de idade todos com morada não 38 (…) Street, London SW15 1LX, Inglaterra.
Que ele deixa o seu carro Bentley com a matrícula (…), aos seus filhos acima mencionados em comum e em partes iguais.
Que ele deixa, em comum, a posse/propriedade aos seus filhos do imóvel urbano, para habitação, sito na Rua (…), n.º 15, na freguesia e concelho de Olhão, descrito na Conservatória do registo Predial de Olhão sob o n.º (…) da referida freguesia e que ele deixa o usufruto do imóvel referido no parágrafo anterior a (…), divorciada, com morada na Rua (…), Lote 19, 3º-Esq., em Faro e o usufruto extinguir-se-á com a sua morte.
Que ele deixa todos os seus bens móveis que não estão nos imóveis deixados aos seus filhos, incluindo carros, exceto o Bentley acima mencionado, dinheiro e contas bancárias existentes em Portugal, no momento da sua morte à referida (…).
Que, no caso de que algum dos seus filhos venha a falecer primeiro que ele ou algum deles não queira ou não possa aceitar a posse/propriedade plena ou a posse/plena dos bens referidos, ele deixará os bens aos descendentes do filho que faleceu antes dele. No caso deste filho(a) não deixar descendentes, a sua parte será acrescentada ás partes dos outros filhos. Se nenhum dos seus filhos mencionados sobreviver ao testador, nem deixar descendentes, ele deixa a posse/propriedade plena do referido imóvel urbano à (…).
Que, no caso da referida (…) falecer primeiro que ele ou por qualquer outra causa não quiser ou não pode aceitar, ou no caso de morte simultânea, ele deixa todos os seus bens móveis e imóveis incluindo carros, dinheiro e contas bancárias, existentes em Portugal, no momento da sua morte, aos seus filhos em partes iguais.
Que no caso que algum dos seus filhos falecer primeiro que ele, ele deixa a sua parte aos seus descendentes.
Que no caso que algum dos seus filhos falecer primeiro que ele e não tenha descendentes, ele deixará todos os seus bens aos filhos da sua irmã Sra. (…).
ASSIM FOI CONCEDIDO.
Agiram na capacidade de testemunhas: (…), casada e (…), maior de idade, ambas com morada profissional na Av. Eng. (…), n.º 143/145, Almancil – Loulé, pessoas cuja identidade eu verifiquei por conhecimento pessoal.
Porque o testador não compreende a língua Portuguesa, uma tradutora da sua escolha esteve presente, a Dr.ª (…), solteira, maior de idade, pessoa cuja identidade foi verificada por conhecimento pessoal, que efetuou a tradução verbal deste testamento em Inglês, sob juramento, e transmitiu-me a mim, o Notário, sob juramento, que este é o seu desejo.
O imposto de selo são vinte e cinco euros, Cláusula 15.1 da respetiva Lista. Este testamento foi lido ao testador e o seu conteúdo explicado. Assinaturas.”
25. Mais tarde, (…) dirigiu um pedido à solicitadora Dr.ª (…), nos seguintes termos:
“Cara (…),
Junto envio uma cópia do meu testamento original em português que parece já ter sido devidamente notariado. Será que eu preciso de ir novamente ao mesmo notário para ser revogado ou posso fazer isto aqui em Olhão pelo novo?
Para o novo, eu queria que todas as minhas propriedades residenciais sejam deixadas aos meus filhos, mas quero que a (…) tenha o uso (usufruto) durante a toda a sua vida. Se eu ainda tiver as garagens, elas devem ser vendidas e o produto da venda deve ser para a (…). Qualquer mobiliário ou quaisquer outros bens devem ser para a (…) para ela ter o usufruto durante a vida dela e depois será para os meus filhos.
O Bentley está atualmente registado no nome de um dos meus filhos, portanto não há razão para preocupação, mas vou escrever uma carta aos meus filhos a dizer que gostaria que a (…) continuasse a usá-lo aqui em Portugal durante o tempo que ela quiser. Quaisquer outros carros devem ficar a ser propriedade da (…).
Qualquer dinheiro que exista em quaisquer contas deve ser para a (…) mas se houver qualquer coisa em qualquer caixa de depósito num banco deve ser para os meus filhos.
Todas as provisões relacionadas com alguém que não sobreviva à herança devem permanecer as mesmas.
Espero que isto fique mais ou menos claro, mas se tiveres alguma dúvida por favor telefona-me.
Cumprimentos,
(…)”
26. No dia 2 de junho de 2016, (…) outorgou no Cartório Notarial de (…), sito na Rua (…), lote um, R/C, em Olhão, testamento público, nos termos do qual deixou à ré “todos os bens móveis, automóveis, ações e contas bancárias de qualquer natureza que possuir à data da sua morte, em qualquer país, bem como as frações autónomas designadas pelas letras “O” e “P”, destinadas a garagem, do prédio sito na Av. dos (…), freguesia e concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número … (Olhão), e o usufruto dos prédios urbanos sitos na Rua Dr. (…), freguesia e concelho de Olhão, descritos na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob os números … (Olhão) e … (Olhão)” e deixou aos autores “a nua propriedade dos referidos prédios sitos na referida Rua Dr. (…), em partes iguais aos seus filhos”.
27. (…) dirigiu ainda um outro serviço da Dr.ª (…) para elaboração do contrato-promessa de compra e venda que veio a ser outorgado no dia 30 de outubro de 2017.
28. O falecido (…) havia prometido vender a (…), as frações autónomas pelo preço total de € 15.000,00 (quinze mil euros) nos termos da cláusula segunda, até ao dia 30 de janeiro de 2019 (cláusula terceira).
29. Tendo sido emitido um cheque, datado de 30 de outubro de 2017, em nome do (…), pelo valor de € 3.000,00 (três mil euros).
30. Acordo que a ré, após aconselhamento jurídico, decidiu cumprir, com redução equitativa do preço.
31. À data da sua morte, integravam o património do testador (…) os seguintes imóveis:
i. O prédio urbano em regime de propriedade total, destinado a habitação, sito na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo (…).
ii. O prédio urbano em regime de propriedade total, destinado a habitação, sito na Rua (…), n.º 13, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo (…);
iii. A fração autónoma designada pela letra ‘P’, correspondente à garagem n.º 15, destinada a estacionamento coberto, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo matricial (…); e,
iv. A fração autónoma designada pela letra ‘O’, correspondente à garagem n.º 14, destinada a estacionamento coberto, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 15, em Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Olhão sob o artigo matricial (…).
32. O prédio identificado no ponto i. do artigo precedente tinha, na data do óbito do testador, um valor patrimonial tributário de € 49.798,54 (quarenta e nove mil e setecentos e noventa e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos) e um valor de mercado de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros).
33. A ré registou a seu favor usufruto vitalício sobre o mencionado prédio urbano, sob a Ap. (…);
34. A ré promoveu ainda o registo de aquisição do prédio identificado nos artigos precedentes a favor dos autores, em 14 de agosto de 2019, pela Ap. (…);
35. O prédio identificado no ponto ii. do artigo precedente tinha, na data do óbito do testador, um valor patrimonial tributário de € 25.041,99 (vinte e cinco mil e quarenta e um euros e noventa e nove cêntimos) e um valor de mercado de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros);
36. A ré registou a seu favor usufruto vitalício sobre o mencionado prédio urbano, sob a Ap. (…).
37. E promoveu ainda o registo de aquisição do prédio identificado nos artigos precedentes a favor dos autores, em 14 de agosto de 2019, pela Ap. (…);
38. E registou a propriedade das frações autónomas supra identificadas, a seu favor, através da Ap. (…), de 2019/02/01.
39. A fração identificada no ponto iii., do artigo precedente tinha, na data do óbito do testador, o valor patrimonial tributário de € 5.394,85 (cinco mil, trezentos e noventa e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos).
40. E vendeu a dita fração autónoma a (…), contribuinte fiscal n.º (…), em 6 de março de 2019, pelo preço declarado de € 6.000,00 (seis mil euros).
41. Não obstante, o dito imóvel ter, à data da morte do testador, um valor de mercado de € 7.600,00 (sete mil e seiscentos euros).
42. A fração identificada no ponto iv. do artigo precedente tinha, na data do óbito do testador, o valor patrimonial tributário de € 5.394,85 (cinco mil e trezentos e noventa e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos).
43. Através da mesma escritura, a ré vendeu também a dita fração autónoma a (…), contribuinte fiscal nº (…), a 6 de março de 2019, pelo preço declarado de € 6.000,00 (seis mil euros);
44. Não obstante, o dito imóvel ter, à data da morte do testador, um valor de mercado € 7.600,00 (sete mil e seiscentos euros).
45. Entre os bens móveis que integravam o património do testador à data da sua morte, correspondentes ao recheio da casa que habitava, sita na Rua Dr. (…), n.º 15, em Olhão, encontravam-se os seguidamente identificados, tendo o valor que se indica:
a) Onze pratos de Copeland Spode, no valor global de € 3.557,84 (três mil e quinhentos e cinquenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) – (fls. 103);
b) Duas cadeiras, em madeira maciça talhada, com tapeçaria, uma delas a precisar de arranjo, no valor global de € 350,00,00 (trezentos e cinquenta euros) – (fls. 105);
c) Estátua de um cavalo, no valor de € 431,25 (quatrocentos e trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos) – (fls. 108);
d) Caixa redonda prateada continental com estampado, no valor de € 242,58 (duzentos e quarenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos);
e) Par de escovas de cabelo de marfim e um pano escova com iniciais, no valor global de € 404,30 (quatrocentos e quatro euros e trinta cêntimos);
f) n) Suporte continental de prata do século XIX em três pés e decoração furada, no valor de € 161,72 (cento e sessenta e um euros e setenta e dois cêntimos) – (fls. 122);
g) p) KPBM garrafa de bolso com iniciais inscritas, no valor de € 37,73 (trinta e sete euros e setenta e três cêntimos);
h) s) Pratos prateados da Amanda, no valor global de € 172,50 (cento e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos) – (fls. 122);
i) t) Mesa de escritório larga, no valor de € 269,53 (duzentos e sessenta e nove euros e cinquenta e três cêntimos);
j) z) Seis desenhos, no valor global de € 3.881,28 (três mil, oitocentos e oitenta e um euros e vinte e oito cêntimos) – (fls. 124);
k) aa) Um anel de rubi, no valor global de € 3.234,41 (três mil, duzentos e trinta e quatro euros e quarenta e um cêntimos);
bb) Peças de mobília identificadas no relatório pericial elaborado pelo perito nomeado pelo Tribunal, no valor global de € 660,00;
cc) Três imagens de arte moderna (fls. 110 e seguintes);
dd) Travessa quadrada de prata esterlina (fls. 116);
ee) Chapéu prateado (fls. 118).
46. Alguns dos bens descritos no artigo 81.º da petição inicial podem ter sido vendidos ou oferecidos (a terceiros), por (…) – fls. 227 verso.
47. Quando o testador não tinha as quantias monetárias que o satisfaziam em sua conta, vendia peças do seu espólio.
48. As discussões entre o casal decorriam deste gastar muito dinheiro em compras on line, o que os autores bem sabiam.
49. (…) chegou a contactar os escritórios da advogada (…).
50. (…) doou à ré, em vida, um automóvel da marca (…), modelo (…), com a matrícula (…), de 2004 que esta registou a seu favor, pela apresentação datada de 22 de março de 2013.
51. O veículo em causa possui um valor de mercado de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
52. (…) e a ré foram passar a época pascal de 2017, em Londres, com os autores.
53. Através de email enviado pela filha da ré, (…), à autora (…), em 13 de setembro de 2017, aquela comunicou a esta, o seguinte:
“Olá (…)
Antes de mais, queria agradecer-lhe pela sua resposta. Compreendo perfeitamente o seu ponto de vista e entendo que seja difícil ver o seu pai gastar desenfreadamente. Isto também foi sempre uma luta para a minha mãe… No entanto, ela não pode fazer nada porque o dinheiro é dele.
Foi exasperante vê-lo, em diversas ocasiões, gastar imenso dinheiro, oferecer dinheiro, comprar almoços e jantares, ser enganado por muitas pessoas, gastar dinheiro em mulheres na internet e não pagar os salários à minha mãe e continuar a pedir-lhe dinheiro emprestado. (...)
Antes de mais, gostaria de esclarecer o seguinte: quando a minha mãe foi viver com o seu pai, ela foi trabalhar com ele, ajudando-o com aquilo que era necessário: limpar casas, fazer os trabalhos de restauração nas casas lá em cima e nas casas vizinhas, pintar paredes, portas, restaurar coisas aleatórias… (…)
Dito isto, o que ele pagou foi parte do salário da minha mãe e repito, apenas uma parte. (…)
Quanto ao carro, sim é verdade. O (…) comprou um carro para a minha mãe e o (…) se poderem deslocar, e depois deu-lhe o carro como presente. Um presente que era mais do que merecido dado que ela trabalhava sem parar, sem férias, sem fins-de-semana, sem salários e sem poder ter uma vida própria, sem vida familiar, sem poder ver a sua neta crescer porque ela nunca podia deixar o (…) sozinho. Quero deixar muito claro que não foi o seu pai que me ofereceu o carro, foi a minha mãe que me ofereceu o seu carro, ela poderia ter vendido o carro em vez de mo dar. Mesmo que fosse o (…) a dar-lhe o carro, o carro era dela e ela escolheu dá-lo a mim para me ajudar”.
54. (…) faleceu no dia 5 de dezembro de 2017, com 77 anos de idade, no estado de divorciado, no concelho de Faro, em Portugal.
55. De acordo com o certificado de óbito, (…) faleceu devido a esclerose múltipla terminal e lesão renal aguda, diabetes mellitus tipo 2.
56. (…) enviou uma mensagem escrita de condolências à ré.
57. Na manhã seguinte ao falecimento, os autores deslocaram-se à casa do falecido (…), antes do funeral deste, com o intuito de empacotar e embalar todos os bens pessoais do mesmo, e levá-los para o Reino Unido.
58. A ré encontrava-se em estado de choque.
61. A ex-mulher de (…), (…), mãe dos autores enviou um postal no dia 8 de dezembro de 2017, no qual conforta a ré, pede-lhe para pensar nos bons momentos que viveu com o (…) e pela perturbação que lhe possa ter sido causada pelo facto dos seus filhos recolhido, em pouco tempo, os pertences do seu pai, o que não aconteceria se tivessem mais semanas disponíveis para tal efeito.
62. O autor da herança dispunha ainda de contas bancárias, investimentos financeiros, investimentos em fundos privados, arte em leiloeiras internacionais, designadamente:
a) (…), com sede em 28th St. (…) Square, London SW1Y 4JHReino Unido, dois investimentos, o primeiro sob o identificador (…), referente a AXA (…) FUND e o segundo sob o identificador (…), referente a (…) UK INV SERV, com referência a 22 de novembro de 2011;
b) (…) International (…), S.A. com sede em 4 Rue (…) L-1748 Luxembourg – Grande Duchy of Luxembourg – O falecido (…) era detentor da conta cliente com o nº 0811.101748, da qual, em 18 de setembro de 2018, foram transferidos € 11.342,00 (onze mil e trezentos e quarenta e dois euros) para a ré;
c) (…) Bank, com sede em 1-4 (…), London, Depot Code 190 W1J 6BR, Reino Unido – na qual o testador detinha uma conta bancária titulada em seu nome com o n.º (…), conta que, em 15 de abril de 2015, possuía um saldo de 2.454,29 £ (duas mil e quatrocentas e cinquenta e quatro mil libras e vinte e nove cêntimos), equivalente, à taxa de câmbio de 1.864 EUR, ao valor de € 2.911,73 (dois mil e novecentos e onze euros e setenta e três cêntimos);
d) na Sotheby´s o 17 item 7VQ76 correspondente ao (…), (…), (…), (…), (…), (…). (…), estava em venda por leilão, sendo que, em 19 de janeiro de 2015, foi efetuada uma transferência a crédito para conta bancária de (…), no valor de 25.620 £ (vinte e cinco mil, seiscentas e vinte libras) equivalente, à taxa de câmbio referida já referida, a € 30.395,00 (trinta mil e trezentos e noventa e cinco euros).
63. Os autores (…) e (…) sabiam que o pai tinha conta bancária no banco (…).
64. Da análise dos extratos bancários do banco (…) resulta que todos os meses eram efetuados levantamentos em caixas multibanco, a generalidade dos quais no Pingo Doce, com valores de € 100,00 (cem euros) a € 200,00 (duzentos euros).
65. Através da escritura de habilitação de herdeiros lavrada no dia 19 de julho de 2018 no Cartório Notarial de (…), sito na Rua (…), n.º 14-A, em Faro, o autor (…) declarou o falecimento de seu pai, no estado de divorciado de (…) e que o falecido fizera testamento público, lavrado a 2 de junho de 2016, pelo qual dispôs de vários legados e instituiu os seus filhos herdeiros do remanescente, em partes iguais, declarando ainda que, ao falecido, por vocação legal, lhe sucederam como seus únicos herdeiros legitimários, os seus três filhos: (…), (…) e (…).
66. Até à presente data, não foi outorgada a escritura de partilha dos bens que integram a herança de (…), a qual permanece indivisa, sendo que os autores tiveram conhecimento do testamento em causa cerca de duas semanas depois da sua morte.
67. No dia 21 de maio de 2020, a ré casou civilmente com (…), de 81 anos de idade.
*
***
B. De direito
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Da redução das liberalidades por inoficiosidade
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Vimos que a sentença de 1ª instância julgou totalmente improcedentes os pedidos formulados pelos Autores, bem como os pedidos reconvencionais e os pedidos recíprocos de condenação por litigância de má fé.
O presente recurso incide sobre a parte que julgou improcedente o pedido formulado pelos Autores em último lugar, a título subsidiário, no sentido de que “…deverão ser localizados todos os bens (móveis e imóveis) que integram o acervo patrimonial do testador à data do seu óbito, devidamente avaliados, com vista ao cálculo da legítima e da quota disponível do testador, reduzindo-se, sendo caso, a liberalidade testamentária em conformidade, para futura partilha de bens.”
Defendem os Recorrentes / Autores que o tribunal deve proceder à redução da deixa testamentária realizada por (…) a favor da Ré.
São inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários (cfr. artigo 2168.º do CC).
O testador (…) tem três filhos, aqui Autores, que são os seus únicos herdeiros legitimários (cfr. artigo 2157.º do CC). Estes, são titulares da legítima correspondente a duas terças partes do valor da herança (cfr. artigo 2159.º, n.º 2 ,do CC).
O valor da herança é calculado através da soma dos valores: dos bens existentes no património do testador à data da sua morte; dos bens doados; das despesas sujeitas a colação; e, ainda, das dívidas da herança (cfr. artigo 2162.º do CC).
Se o valor total das liberalidades feitas em vida e em morte pelo de cujus (…) a favor da Autora, exceder um terço do valor total da herança, tais disposições terão de ser reduzidas na parte correspondente por violarem a legítima dos três filhos do falecido, aqui Autores (cfr. artigos 2156.º, 2169.º e 2172.º, todos do CC).
Em sede da apreciação jurídica do pedido subsidiário em apreço, a sentença recorrida considerou que “incumbia aos autores a prova de que, através daquele testamento, o seu pai dispunha de uma porção de bens cujo valor atingia a legítima que lhes caberia. Porém, nesta sede, os autores não lograram a prova da totalidade dos bens que, à data do óbito do seu pai, compunham o seu acervo patrimonial ou o montante das dívidas da herança, quanto mais que, a porção do acervo deixado à ré constitua uma ofensa à sua legítima, pelo que, para além de não ser possível (tal como se antevia numa fase inicial da audiência) proceder a inventário, consequentemente, não seria possível proceder a qualquer redução, ainda que a tal houvesse lugar.” (cfr. 2º parágrafo de fls. 45 da decisão de 1ª instância) (sublinhados nossos).
Daqui resulta que o fundamento da improcedência do pedido subsidiário da acção foi, de acordo com a sentença recorrida, não terem sido provados factos atinentes a um elemento considerado constitutivo do direito dos Autores. A saber: que as doações e a deixa testamentária do falecido excederam a legítima da herança. O que é também dizer: que o valor das liberalidades é superior a uma terça parte do valor total da herança.
Afigura-se-nos certo que, em obediência às regras do ónus da prova previstas pelo artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, impende sobre os herdeiros / demandantes da acção declarativa autónoma em que se arrogam o direito de reduzir, por inoficiosidade, as liberalidades do autor de herança, ao abrigo do disposto nos artigos 2156.º, 2169.º e 2172.º do mesmo diploma legal, o ónus de provarem qual a totalidade dos bens da mesma herança e o respectivo valor, pressuposto fundamental do cálculo da legítima, sem o qual não será possível determinar se esta foi, ou não, excedida pelas liberalidades do de cujus.
Não bastará, em tal contexto, alegar a existência de bens da herança e provar o respectivo valor, na medida em que se não estiverem demonstrados todos os bens que existiam no património do testador à data da sua morte, todos os bens doados, todas as despesas sujeitas a colação e, ainda, todas as dívidas da herança (cfr. artigo 2162.º do CC), não será possível proceder a esta operação.
Deste modo, é mister alegar e provar que a herança é composta, apenas e tão somente, pelos bens existentes e doados, despesas e dívidas que se apuraram. Ou, de outra forma, que aqueles bens despesas e dívidas constituem a totalidade do acervo hereditário deixado por óbito do falecido.
Ora, como bem nota a sentença recorrida, este facto não se encontra no rol dos provados, nem faz parte do presente recurso que vem interposto também da matéria de facto pelos Autores da acção.
Em face do exposto, não merece reparo a fundamentação jurídica da sentença recorrida, relativamente à apreciação do pedido formulado pelos Autores a título subsidiário.
Deverá acrescentar-se apenas, como apontamento final que, nas suas alegações de recurso (cfr. antepenúltimo parágrafo de fls. 26 e conclusão “R.” das alegações), os Recorrentes reproduzem um excerto das considerações da sentença, a partir do qual desenvolvem depois o pomo central da sua argumentação recursiva, em termos tais que, salvo melhor opinião, desviam o enfoque do verdadeiro e correcto fundamento da decisão do pedido subsidiário em análise para uma questão lateral que se prende com a admissibilidade de, em processo comum autónomo, ser decidido pedido de redução por inoficiosidade, das liberalidades feitas pelo testador. Não sendo de negar uma tal prerrogativa, afigura-se que a questão nos parece irrelevante à economia da presente decisão, pois que nos presentes autos de acção declarativa, os Autores exerceram, autonomamente, em juízo, aquela faculdade processual como fundamento do pedido subsidiário em análise, de tal sorte que a respectiva improcedência, em sede de conhecimento do mérito, resultou de não terem ficado demonstrados os pressupostos de facto do direito substantivo arrogado pelos Autores / Recorrentes, à redução por inoficiosidade das liberalidades.
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Fenecem, pelas razões apresentadas, os argumentos esgrimidos pelos Recorrentes contra a fundamentação jurídica da sentença de 1ª instância, sendo de manter o seu sentido.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
A parte decaída no presente recurso foram os Recorrentes que viram mantida a decisão primeira instância. Devem, portanto, ser condenadas no pagamento das custas.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o colectivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente a presente apelação, confirmando a sentença recorrida.
Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
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Évora, 30 de Janeiro de 2025
Relator: Ricardo Miranda Peixoto
1º Adjunto: António Fernando Marques da Silva
2º Adjunto: Susana Ferrão da Costa Cabral

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[1] O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento do Recorrido (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
[2] Reprodução dos factos provados da sentença de 1ª instância com as alterações decorrentes da decisão supra expendida do recurso de impugnação da matéria de facto que consistem:
- na eliminação dos factos provados números 59 e 60;
- no aditamento, ao facto provado número 45, das alíneas cc), dd) e ee), procedentes das alíneas i., iii., e iv. do facto não provado x) e da alínea bb), procedente da alínea bb) do artigo 81º da petição inicial.