COLAÇÃO
DISPENSA
DOAÇÃO ONEROSA
ANIMUS DONANDI
Sumário

I. A operação da colação que consiste na restituição à massa da herança, dos bens ou valores doados pelo ascendente aos descendentes, pode ser dispensada pelo doador no acto da doação, ou posteriormente, se for sua vontade não manter a igualdade na partilha.
II. A dispensa da colação deve resultar de vontade inequívoca, expressa ou tácita, do ascendente, mas presume-se que não estão sujeitas à colação as doações manuais e remuneratórias.
III. A doação manual de quantias em dinheiro, pressupõe um acto de entrega, revelador do animus donandi do tradens ao accipiens e que este, pelo simples facto de as receber e delas tomar posse, por sua vez, revele também a vontade de aceitar a liberalidade.
IV. Incumbe sobre o donatário o ónus de invocar a natureza manual da doação, de modo a poder beneficiar da presunção, prevista pelo n.º 3 do artigo 2113.º do CC, de que não está sujeita à colação.
V. A prova de que o ascendente, ou a cabeça-de-casal a pedido deste, efectuaram transferências de quantias pecuniárias para conta bancária titulada por esta, das quais parte se destinou ao pagamento de obras de beneficiação em imóvel pertencente à herança, não preenche, por si só, o supramencionado conceito de acto de entrega revelador de que se tratou de uma doação manual.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Apelação n.º 3140/20.6T8STB-D.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível de Setúbal – Juiz 2

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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
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Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Manuel Bargado;
2º Adjunto: Maria Adelaide Domingos.
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I. RELATÓRIO
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A.
(…), cabeça-de-casal, requereu inventário por óbito da sua mãe (…), falecida em 19 de Julho de 2005, e de seu pai (…), falecido no dia 31 de Agosto de 2019.
Os inventariados têm duas filhas: (…), cabeça-de-casal e a interessada (…).
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B.
A interessada (…) repudiou a herança da sua mãe (…).
Em virtude do repúdio da herança pela interessada (…) e ao abrigo do direito de representação, previsto nos artigos 2039º, 2042º e 2043º do Código Civil, os seus filhos são também interessados neste processo, pois foram chamados a ocupar a posição da mãe na herança de (…).
A interessada (…) tem três filhos:
- (…);
- (…);
- (…), menor, nascido a 24.10.2006.
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C.
A cabeça-de-casal apresentou relação de bens, onde incluiu o ouro constante das verbas 3 a 9, alegando que está na posse da interessada (…).
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D.
A interessada (…) reclamou da relação de bens, referindo que o ouro constante nas verbas n.º 3 a 9 da relação de bens não se encontrava consigo e que a cabeça-de-casal devia à herança o total de € 64.035,00.
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E.
A cabeça-de-casal apresentou resposta à reclamação à relação de bens, reiterando que o ouro constante nas verbas n.º 3 a 9 da relação de bens se encontrava com a cabeça de casal e negando dever a quantia de € 64.035,00 ao falecido (…).
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F.
Por despacho de 27.01.2023, foram decididas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, nos termos do art.º 1110º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, tendo-se decidido, nomeadamente, que:
- O ouro constante nas verbas 3 a 9 da relação de bens devia ser excluído da mesma, dado que o seu paradeiro é desconhecido;
- Julgar a existência de uma dívida da interessada (…) à herança, apenas no montante de € 25.400,00;
- Aditar ao activo da relação de bens a quantia de € 39.465,00 doada à cabeça-de-casal, com a menção de que o foi em vida do falecido.
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G.
A cabeça-de-casal interpôs recurso do despacho de 27.01.2023, concluindo que:
- Deve ser relacionado um crédito da herança correspondente ao valor do ouro referido das verbas 3 a 9, do qual a interessada (…) é devedora;
- Deve ser mantida na relação de bens, a verba: “Direito a (crédito a haver) € 58.095,00, referente a empréstimos dos inventariados à (…), referente diferentes empréstimos que lhe foram feitos pelo inventariado”;
- Deve ser considerada a existência de uma doação de € 39.465,00 à cabeça-de-casal, a qual não está sujeita à colação, pois existiu uma doação manual, nos termos do n.º 3 do art.º 2113.º do Código Civil.
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H.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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I.
Por acórdão de 7 de Março de 2024, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte quanto ao despacho de 27.01.2023:
“Por todo o exposto, acordamos em:
A) Anular a (inexistente) decisão sobre a matéria de facto e, como consequência necessária, anular parcialmente a decisão recorrida quanto aos segmentos objecto do recurso;
B) Determinar que o tribunal aprecie os factos alegados pelas partes a propósito de cada um dos segmentos da decisão recorrida objecto do recurso;
C) Determinar que o tribunal fundamente a sua convicção relativamente a cada um daqueles factos”.
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J.
Em cumprimento do acórdão referido em I., foi produzida prova e proferida novo decisão, nos termos do art.º 1110 n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil, que julgou parcialmente procedente a reclamação da interessada (…) quanto às questões suscitadas e, em consequência determinou:
A) A exclusão das verbas 3 a 9 da relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal;
B) A inscrição na relação de bens de uma dívida de € 25.400,00 da interessada (…) à herança de (…);
C) O aditamento da quantia de € 37.665,00 doada à cabeça-de-casal, ao activo da relação de bens com a menção de que foi doada à cabeça-de-casal em vida do falecido (…), sujeita a colação.
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K.
Inconformada com o decidido, a cabeça-de-casal (…) interpôs o presente recurso de apelação.
Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem as referências em sublinhado e em negrito da origem):
“(…)
a) Em primeiro lugar, sempre salvaguardando o devido respeito pelo Ilustre Magistrado signatário da Decisão ora sindicada do Tribunal a quo, impugna-se a Decisão da Matéria de Facto e de Direito, pelo que o presente recurso se restringe a três aspetos decisórios da decisão prolatada.
b) Em comum e sobre duas decisões distintas de que recorre:
1ª. “O Ouro constante nas verbas 3 a 9 da relação de bens deve ser excluído da mesma, dado que o seu paradeiro é desconhecido.”
2ª.” A controvérsia surge quanto ao empréstimo de 30.000,00 €, alegadamente efetuado em 2012 à interessada (…). Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, compete à cabeça de casal provar os factos que alega. Ora, junto ao requerimento de inventário, constam dois cheques de 2012, um no montante de 20.000,00 € e outro do montante de 10.000,00 €. “Da análise destes cheques não se extrai que esteja em causa um empréstimo à interessada (…), antes aparentando que o empréstimo foi efetuado ao infantário (…), gerido pela interessada (…)”.
c) Primeiramente, importa ainda questionar e pugnar pela alteração da Decisão da Matéria de facto, ao abrigo do poder-dever consagrado no art.º 662.º do CPC.
d) No que tange à Decisão da Matéria de Facto, expressamente se impugna os seguintes itens, conforme os específicos meios de prova acima indicados, os quais impõem decisão diversa, ou atenta a própria falta de prova, a respetiva justificação para consideração diversa, na linha do que supra se pugnou:
I. Factos incorretamente dados como provados com conclusões erradas:
1.1 A interessada (…) negou que este ouro estivesse na sua posse.
1.2 A testemunha (…) prestou um depoimento de ouvir dizer sobre o ouro. Do seu depoimento não se consegue extrair que, presentemente, o ouro constante nas verbas 3 a 9 esteja na posse da interessada (…).
1.3 Por seu turno, a interessada (…) declarou que guardou algum ouro, mas depois deixou-o na casa do seu pai: não provado.
1.4 Assim, nenhum elemento de prova permite concluir que o ouro constante nas verbas 3 a 9 esteja em poder da interessada. Por outra banda, de acordo com a posição da cabeça de casal nas peças processuais que apresentou, a mesma não sabe onde se encontra o ouro constante nas verbas 3 a 9 da relação de bens. Posto isto, as verbas 3 a 9 da relação de bens não são passiveis de ser partilhadas, dado que não se sabe o seu paradeiro.
1.5 Por conseguinte, o Ouro constante nas verbas 3 a 9 da relação de bens deve ser excluído da mesma, dado que o seu paradeiro é desconhecido.
1.6 A controvérsia surge quanto ao empréstimo de 30.000,00 €, alegadamente efetuado em 2012 à interessada (…). Nos termos do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, compete à cabeça de casal provar os factos que alega. Ora, junto ao requerimento de inventário, constam dois cheques de 2012, um no montante de 20.000,00 € e outro do montante de 10.000,00 €. Da análise destes cheques não se extrai que esteja em causa um empréstimo à interessada (…), antes aparentando que o empréstimo foi efetuado ao infantário (…), gerido pela interessada (…).
e) Tendo por base a alteração da matéria de facto, atrás sugerida, por simples confronto com a produção de prova feita em juízo, bem como prova documental e porque na disponibilidade de ser sindicada, por este Venerando Tribunal da Relação (art.º 662.º do CPC), urge, agora, aplicar o Direito correspondente; O que deve resultar da prova produzida:
1) Pese embora a interessada (…) não tenha relacionado ou concordado com a relacionação do Ouro constante das verbas 3 a 9 e não as tenha apresentado, estas sempre estiveram na sua posse e como tal deve ser relacionado um crédito da herança correspondente ao valor do ouro referido das verbas 3 a 9, sendo a interessada (…), a devedora.
2) Inscrever na relação de bens uma dívida de € 58.095,00 – e não apenas de € 25.400,00 confessada pela própria – da interessada (…) à herança de (…).
f) Indicam-se agora, antes de abaixo se explicitar o respetivo sentido, as normas legais que modestamente se considera terem sido violadas:
i. Regra sobre ónus da prova (art.º 342.º, n.º 1 do CC);
ii. Valoração da prova (artigos 351.º do CC, 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC);
Sendo que:
iii. O Tribunal recorrido deu como provados factos contraditórios com que realmente foi mencionado no decurso da audiência de discussão e julgamento;
iv. Andou mal o Tribunal a quo ao valor da maneira como valorou o depoimento prestado pela interessada em detrimento do depoimento da testemunha arrolada pela cabeça-de-casal
g) Sobre a decisão “C) Aditar ao ativo da relação de bens a quantia de € 37.665,00 doada à cabeça de casal, com a menção de que foi doada à cabeça de casal em vida do falecido (…), sujeita a colação.”
1) Impõe-se conclusão diversa, no sentido de ser considerado ter existido uma doação de € 37.665,00 à cabeça de casal, a qual não está sujeita à colação, pois
2) Existiu uma tradição, e um animus donandi e de acordo com o jurisprudencialmente e legalmente previsto, estamos perante uma doação não sujeita a colação nos termos do n.º 3 do artigo 2113.º do Código Civil. (…)”.
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L.
O Ministério Público respondeu, formulando as seguintes conclusões (transcrição parcial, sem as referências em sublinhado e em negrito da origem):
“(…)
I. Não se conformando com o teor da Sentença de primeira instância que decidiu sobre as questões pendentes suscetíveis de influir na Partilha e determinação dos bens a partilhar, vem a (…), cabeça de Casal e Interessada, interpor o presente recurso, que é de Apelação.
II. A Recorrente insurge-se, em síntese, contra três segmentos da Douta Decisão,
designadamente:
1) Das verbas a relacionar, deveria fazer parte o ouro constante nas verbas 3 a 9 da relação de bens, que está na posse de (…);
2) Das verbas a relacionar, deveria fazer parte o empréstimo de 30.000,00 euros, efetuado em 2012, pelo de cujus à interessada (…), constante da reclamação da relação de bens;
3) Das verbas a relacionar, não deve fazer parte como doação, sujeita a colação, a quantia de 39.465,00 euros, doada em vida pelo de cujus a (…).
III. Não consta do acervo probatório constante dos autos, a prova definitiva sobre as peças concretas que constituem “o ouro”, nem o seu paradeiro a partir do momento do óbito dos inventariados (…) e (…).
IV. Concorda-se na íntegra com o entendimento do Mm. Juiz de que considerou que não poderiam ser relacionadas as peças de ouro, cujo paradeiro não se conhece, cujas características e valor também se desconhece, porque não são passíveis de serem partilhadas.
V. Não incorreu o Tribunal a quo em qualquer erro de valoração da prova ou violação do disposto nos artigos 351.º do CC, 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, contrariamente ao que alegou a Recorrente, sendo certo que o ónus da prova da existência dos bens constante da Relação de bens deveria ter sido feito por parte da Cabeça de Casal quando deu conhecimento dos bens à data do falecimento do inventariado, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, o que não aconteceu.
VI. Relativamente aos dois cheques, datados de 2012, disponibilizados pelo de cujus, um no montante de 20.000,00 euros e outro no montante de 10.000,00 euros, a prova documental junta aos autos demonstra que foram emitidos à ordem do Infantário (…), e não à interessada (…), pelo que se extrai que o valor referido foi disponibilizado à referida pessoa coletiva, instituição essa gerida por (…), na qual a Recorrente (…) também era colaboradora.
VII. Não assiste razão a Recorrente, que alega que a doação que lhe foi feita pelo de cujus, seu pai, no montante de 39.465,00 euros, não está sujeita a Colação “pois existiu uma tradição, e um animus donandi e de acordo com o jurisprudencialmente e legalmente previsto, estamos perante uma doação não sujeita a colação nos termos do nº. 3 do art. 2113.º do Código Civil”.
VIII. É entendimento unânime da jurisprudência que só não estarão sujeitas à colação as doações com expressa menção por parte do doador da sua dispensa. Ora, considerando os movimentos bancários em causa nos autos, inexiste qualquer menção expressa por parte do doador, pelo que se nos afigura que as doações efetuadas à cabeça de casal/ Recorrente não preenchem os pressupostos do artigo 2117.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil para a dispensa da colação.
IX. Relativamente a doações em dinheiro, sublinha-se a interpretação do n.º 3 do artigo 2113.º do Código Civil, no Acórdão da Relação de Guimarães de 28-06-2018, Relator Eugénia Cunha, disponível em www.dgsi.pt: «(…) 5- Não integra doação manual a doação de importância em dinheiro a descendente através de cheque (ordem de pagamento dada a banco), tendo a doação, atualizada por aplicação dos índices de preços do consumidor, nos termos do artigo 551º, do Código Civil, de ser relacionada – cfr. n.º 3 do artigo 2109.º de tal diploma –, para ser levada à colação, para igualação dos quinhões hereditários dos herdeiros
X. Pelo que a doação de 39.465,00 euros à Recorrente afigura-se-nos sujeita a Colação, nos termos conjugados das disposições dos artigos 2104.º, 2105.º, 2108.º e 2110.º, n.º 2, do Código Civil.
Pugnou pela manutenção da sentença recorrida.
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M.
Colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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N.
Questões a decidir
São as seguintes as questões em apreciação no presente recurso: [1]
1. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
2. Se há fundamento jurídico para declarar a herança titular de crédito sobre interessada (…), correspondente:
- ao valor das verbas 3 a 9 da relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal;
- ao valor de € 58.095,00, considerando-se aqui incluído um empréstimo do falecido pai de € 30.000,00 à interessada (…);
3. Se deve ser dispensada a colação de doação em dinheiro feita pelo falecido a favor da cabeça-de-casal (…).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Reprodução integral dos factos provados e não provados como constam da decisão sob recurso (sem negrito da origem):
“ (…)
3.1 Factos provados
1. Na relação de bens apresentada pela cabeça de casal constam as seguintes peças em ouro, nas verbas 3 a 9: duas pulseiras (verba n.º 3), uma escrava (verba n.º 4), um cordão (verba n.º 5), uma medalha minhota (verba n.º 6), peso de ouro (verba n.º 7), um anel (verba n.º 8) e um cordão (verba n.º 9).
2. Na relação de bens apresentada pela cabeça de casal, está inscrita a verba n.º 2 com o seguinte teor: “Direito a (crédito) a haver 58.095,00 €, referente a empréstimos dos inventariados à (…), referente diferentes empréstimos que lhe foram feitos pelo inventariado”.
3. (…) emprestou, por transferência bancária, a quantia de 35.000,00 € à interessada (…) e, desta quantia, a quantia de 9.600,00 € encontra-se paga.
4. (…) ou a cabeça de casal, a pedido de (…), efetuaram transferências bancárias da conta com o IBAN PT50 (…), para a conta da cabeça de casal no montante total de 62.350,00 €, discriminado da seguinte forma: € 3.500,00 € em 21-07-2014; 2.000,00 € em 09-06-2015; 2.300,00 € em 22-06-2015; 10.000,00 € em 08-07-2016; 7.800,00 € em 14-11-2016; 2.750,00 € em 06-12-2016; 34.000,00 € em 23-01-2017.
5. A quantia de 1.685,00 €, retirada da conta bancária IBAN PT50 (…), resultou da utilização de um cheque em 01-08-2017.
6. O dinheiro existente na conta com o IBAN PT50 (…) era de (…).
7. A quantia transferida de 24.685,00 € (parte da quantia total referida em 4 destinou-se ao pagamento de obras de beneficiação no imóvel n.º 18 da verba 42, propriedade dos inventariados.
3.2 Factos não provados
a. O ouro referido nas verbas 3 a 9 da relação de bens está na posse da interessada Ascensão.
b. Para além da quantia referida em 3, em 2012, (…) emprestou à interessada a quantia de € 30.000,00.
c. O falecido (…) emprestou à cabeça de casal o montante total de € 64.035,00, da seguinte forma: € 3.500,00 € em 21-07-2014; 2.000,00 € em 09-06-2015; 2.300,00 € em 22-06-2015; 10.000,00 € em 08-07-2016; 7.800,00 € em 14-11-2016; 2750,00 € em 06-12-2016; 34.000,00 € em 23-01-2017 e 1.685 € em 01-08-2017.
d. O montante de € 37.665,00 resultante das transferências referidas em 4 destinou-se ao pagamento de despesas do falecido (…).
e. A quantia referida em 5 destinou-se à cabeça de casal.”
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Do recurso da decisão da matéria de facto
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Vem o presente recurso interposto da matéria de facto provada e não provada da decisão de primeira instância.
Vejamos, por isso, em primeiro lugar, se foram observados os requisitos de impugnação da matéria de facto.
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
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A Recorrente incidiu o seu recurso da matéria de facto sobre os factos provado 3 e não provado a).
Procedeu à reprodução do respectivo conteúdo e discriminou, relativamente a cada um dos factos, quais os elementos probatórios que, em seu entendimento, determinam decisão distinta da proferida em 1ª instância, fazendo-o, na parte respeitante às declarações da Interessada (…) e aos testemunhos de (…), (…), por transcrição dos que consideravam relevantes para as alterações propugnadas (cfr. pontos 9, 11 e 17 das alegações de recurso).
Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do número 1 do artigo 640º do CPC.
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Nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do art.º 5.º, ambos do C.P.C. , tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na al.ª c) do n.º 2 do art.º 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1, para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1, “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, n.º 1 e 376º, n.º 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484.º, nº 1 e 463.º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351.º e 393.º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”
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Tendo presentes estes considerandos, analisemos cada um dos concretos pontos da matéria de facto que a Recorrente pretende ver alterados.
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- Facto não provado a)
“a. O ouro referido nas verbas 3 a 9 da relação de bens está na posse da interessada (…).”
Considera a Recorrente que da prova produzida em audiência, resulta claro que o ouro está na posse da interessada (…), ou se não está a ela se deve, e que não o restituiu ao acervo hereditário, pelo que deve o respetivo valor ser relacionado como dívida da interessada (…) à herança.
Deixando para já de lado a questão jurídica de saber em que termos deve ser relacionado o valor dos objectos de ouro, centremo-nos na matéria de facto da sentença impugnada que é saber se os objectos estão, ou estavam, na posse da interessada (…).
Sobre a motivação da decisão da matéria do facto não provado “a.”, consta da decisão recorrida que
“…a testemunha (…) referi(u) que assumiu que as verbas n.º 3 a 9 estavam na posse da interessada (…) pela circunstância de alegadamente ter visto uma relação de bens feita pela interessada (…) exibida pela anterior mandatária da interessada (…), Dra. (…), onde constavam as verbas 3 a 9, o que, no seu entender, leva a crer que a interessada (…) tem as verbas 3 a 9 consigo. Mais referiu que o ouro se encontrava na posse da interessada (…), pelo que ouviu dizer à sua mãe. Contudo, o seu depoimento não é suficientemente convincente para demonstrar que a anterior mandatária da interessada (…), Dra. (…), exibiu uma relação de bens onde constavam as verbas 3 a 9 e, por outro lado, quanto ao paradeiro do ouro é um depoimento indireto. Na verdade, (…) não narrou nenhuma circunstância concreta que em que tenha presenciado a interessada (…) com o ouro constante nas verbas 3 a 9, na altura do falecimento de (…). Quanto ao depoimento da testemunha (…), que trabalhou para o infantário explorado pela interessada (…), esta mencionou que sabia que a interessada (…) usava ouro e disse que a interessada entregou algum ouro, que detinha, a (…). O depoimento desta testemunha foi um depoimento genérico quanto ao ouro, que não permite tirar ilações sobre o paradeiro do ouro e o mesmo se diga do depoimento da testemunha (…), que é avó de uma criança que frequentou o infantário explorado pela interessada (…). Por seu turno, a interessada (…) declarou que guardou algum ouro consigo, mas depois acabou por deixar o ouro em casa do seu pai. Assim, a prova produzida não permite concluir que o ouro constante nas verbas 3 a 9 esteja em poder da interessada. Deste modo, o ponto a. não se consolidou.”
Entende a Recorrente que as testemunhas (…), (…) e (…), dizem o contrário, pelo que constituem prova bastante da matéria de facto alegada pela cabeça-de-casal.
i.
Ouvidas as declarações de (…) a propósito do facto em apreço, verifica-se que:
- conhecia apenas três objectos em ouro pertencentes aos pais - um cordão, uma escrava e uma medalha de minhota –, desconhecendo qualquer outro;
- as peças de ouro estavam guardadas numa caixa na qual não mexia; e
- ficou surpresa quando foi informada que faltavam as peças de ouro e pensou: “alguém levou o ouro”.
Deste modo, não admitiu que tenha na sua posse as peças de ouro descritas sob as verbas 3 a 9 da relação de bens.
ii.
Do testemunho de (…) resulta, sem margem para equívocos que as afirmações por si produzidas no sentido de que o avô pediu à tia (…) para guardar a caixa com o ouro que “supostamente” esteve sempre em casa da tia, não resultam do seu conhecimento pessoal de algum desses factos, mas de uma “comunicação” dos mesmos feita à mãe da testemunha, sem que esta esclarecesse quando, onde e por quem. Neste sentido, atente-se que, no seguimento da questão colocada pelo Magistrado do Ministério Público - “Disse que o ouro tinha sido entregue à sua tia. Pode explicar?” -, a testemunha respondeu: “Não é que tinha sido entregue: foi comunicado à minha mãe que o meu avô tinha pedido à minha tia para guardar o ouro (…)” (sublinhados nossos).
Trata-se, assim, nesta parte, de um testemunho de ouvir dizer, à principal interessada e mãe, (…) que, por sua vez, também não viu, tendo sido informada por alguém, em circunstâncias de tempo e lugar desconhecidas.
Assim, compreende-se que o testemunho de (…) não tenha valor probatório relevante da matéria de facto em apreço.
iii.
Quanto ao testemunho de (…), a transcrição revela um testemunho vago e pouco seguro no tocante à matéria de facto alusiva às peças de ouro.
Disse, em termos genéricos, que a Interessada (…) lhe “…contou que os pais tinham ouro” e que este “…depois acabou por não aparecer”.
Para além de se basear no que ouviu contar à Interessada, não foi incisiva a confirmar que a (…) tivesse tido na sua posse o ouro dos pais, utilizando a expressão “acho” nas suas respostas quando perguntada sobre o tema: “acho que a Dª (…) estava a par dessas coisas todas…”; “acho que havia o ouro e acho que a Dª (…) tinha e acabou por entregar”. (sublinhados nossos).
Também não identificou quais as peças em ouro, nem foi capaz de elucidar quando ou onde teria sido entregue o ouro à (…) ou, ainda, por esta ao pai ou à irmã.
iv.
Por fim, a testemunha (…) limitou-se a relatar que a Interessada (…) lhe disse que tinha posto o ouro em casa do pai.
*
Em suma, nem a Interessada (…) admitiu, nem qualquer das testemunhas confirmou, que esta tenha na sua posse peças em ouro dos seus pais. A única coisa que, em termos lacónicos e resultantes do que terá sido aflorado pela Interessada à testemunha (…), de relevante pode extrair-se da prova em apreço, é que a (…) terá posto o ouro em casa do pai, o que não permite, antes pelo contrário, imputar-lhe a posse do mesmo à data da morte do de cujus ou posteriormente.
*
- Facto provado 3
“3. (…) emprestou, por transferência bancária, a quantia de 35.000,00 € à interessada (…) e, desta quantia, a quantia de 9.600,00 € encontra-se paga.”
Entende a Recorrente que o tribunal deveria ter decidido inscrever na relação de bens uma dívida de € 58.095,00, da interessada (…) à herança de (…), e não apenas de € 25.400,00.
Considera que o aludido valor da dívida foi confessado pela própria interessada (…) e invoca também o testemunho de … (ponto 17 das alegações), para além de prova documental consistente em certidão judicial, junta à última relação de bens, 22/06/2022, referência 6584201, da qual consta a verba n.º 2 que é uma compensação pecuniária de natureza global a quantia de € 10.000,00, devida pela Interessada (…) à cabeça-de-casal, conforme sentença judicial proferida no processo n.º 7560/19.0T8STB (pontos 18 e 19 das alegações).
Sobre esta matéria de facto, é a seguinte a motivação a sentença:
No respeitante ao ponto 3, através da análise da tabela junta ao requerimento de inventário, conseguimos compreender que (…), por transferência bancária, emprestou € 35.000,00 à interessada (…) e que, desta quantia, a quantia de € 9.600,00 encontra-se paga. Na verdade, a dívida de € 25.400,00 não é uma questão controvertida, pois a interessada (…) reconheceu que devia 25.400,00 € à herança do falecido (…).
Antes do mais, cumpre referir que, ouvidas as declarações prestadas em juízo pela Interessada (…), das mesmas não resulta admitido que tenha pedido, para si própria, como beneficiária e a título de empréstimo, qualquer outro montante ao seu pai.
Depois, deve ter-se presente que a dívida de € 58.095,00 que a Recorrente pretende inscrever na relação de bens, resulta do somatório do saldo em dívida dos € 35.000,00 já considerados no facto provado 3, com o valor do alegado empréstimo de € 30.000,00, do ano de 2012, que consta do facto não provado b. da sentença recorrida.
Estriba-se para o efeito no testemunho de (…) que, à pergunta sobre quanto é que a tia deve à herança e com base em quê, respondeu: “€ 7.000,00 pedidos emprestados em meados de 2009…e não encontrei justificação que esse pagamento tenha sido feito, € 30.000,00 emprestados para pagamento de divida ao Banco (…) dos quais foram pagos € 3.000,00 e qualquer coisa, € 4.000,00 e € 35.000,00 pedidos em 2017 dos quais foram pagos cerca de € 9.000,00 e qualquer coisa euros… Ora, € 24.000,00 e qualquer coisa do último, 25/26.000 do segundo e 7.000 do primeiro, os valores são 57.000 / 58.000 euros de dívida.”
Para além de se tratar do testemunho do filho da Recorrente (…) com evidente interesse no desfecho da lide, a verdade é que as suas palavras esbarram em documento junto aos autos que, relativamente aos € 30.000,00 do ano de 2012, aponta para que se tenha tratado de empréstimo efectuado ao infantário (…), gerido pela Interessada (…).
Como consta da fundamentação da sentença recorrida relativamente ao facto não provado b., “…junto ao requerimento de inventário, constam dois cheques de 2012, um no montante de 20.000,00 € e outro do montante de 10.000,00 €. Da análise destes cheques não se extrai que esteja em causa um empréstimo à interessada (…), antes aparentando que o empréstimo foi efetuado ao infantário (…), gerido pela interessada (…). Com efeito, o cheque de 20.000,00 € foi passado à ordem do infantário (…) e a interessada (…) menciona que os empréstimos foram realizados ao infantário, que geria.” (sublinhado nosso).
Trata-se, na verdade, de justificação verosímil, na medida em que foi produzida abundante prova de que o infantário tinha dívidas que viriam, anos mais tarde, a ditar a sua declaração de insolvência.
Em tal contexto, resulta claramente insuficiente o testemunho interessado de (…) para, desacompanhado de documentos reveladores de que tal dinheiro se destinou efectivamente à pessoa da sua tia (…), reputar provado o acordo de vontades característico de um empréstimo do avô à filha deste, (…).
Por último, o documento junto à última relação de bens (de 22/06/2022, referência 6584201), da qual consta a verba n.º 2 que é uma compensação pecuniária de natureza global na quantia de € 10.000,00, devida pela Interessada (…) à cabeça-de-casal, conforme sentença judicial proferida no processo n.º 7560/19.0T8STB, não tem qualquer relação com o empréstimo em questão, pelo que todas as ilações do mesmo retiradas pela Recorrente se mostram especulativas quanto à matéria do facto provado número 3.
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Apesar de, numa redacção que não contribui para a boa compreensão dos termos do recurso, referir no ponto 24, parte final, “III Facto incorretamente dado como provado”, alusão da “facto provado”, o que reitera nos pontos 26, parte final, e 27, todos das suas alegações de recurso, constata-se, a partir da sua leitura integral, que a Recorrente não se insurge, desta feita, quanto ao rol dos factos provados e não provados da sentença, mas contra outras partes da fundamentação da decisão recorrida, como a motivação a decisão da matéria de facto e a motivação jurídica.
Assim, não há mais matéria de facto da decisão da 1ª instância impugnada nas alegações de recurso.
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Em face do exposto, não assiste fundamento para alterar, nos termos propugnados pela Recorrente, a decisão da matéria de facto constante da sentença de 1ª instância que, por isso, deverá manter-se incólume.
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Matéria de facto provada:
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Em consequência da apreciação vinda de expor, mantém-se intocada a matéria de facto constante da sentença de 1ª instância, razão pela qual limitar-nos-emos a remeter para a reprodução que da mesma fizemos supra.
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B. De direito
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Das dívidas da Interessada (...) à herança
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i.
Considera a Recorrente que o valor correspondente às peças em ouro descritas nas verbas 3 a 9 da relação de bens deve ser relacionado como um crédito da herança sobre a interessada (...), porque sempre tais peças estiveram na posse desta.
Todavia, a matéria de facto provada não confirma a tese de que as peças de ouro em causa, cujo paradeiro se desconhece, estivessem na posse da Interessada (…) à data do falecimento do pai, nem de que esta tenha entrado na posse das mesmas posteriormente ao óbito.
Não sendo possível imputar à Interessada (…) responsabilidade pelo desconhecimento do seu actual paradeiro, tampouco pode esta ser considerada devedora do correspondente valor à herança.
ii.
Sustenta também a Recorrente que o montante da dívida da Interessada (...) à herança a título de empréstimos de que foi beneficiária, não é o declarado na decisão recorrida – de € 25.400,00 – mas sim de € 58.095,00 conforme consta da relação de bens que inclui saldos em dívida de outros dois empréstimos feitos pelo pai anteriormente a 2017.
Todavia, carece de arrimo na matéria de facto provada que, confirmando o empréstimo da quantia de € 35.000,00 por (…) à interessada (…), bem como o pagamento, por esta, da quantia de € 9.600,00, já não reflecte a ocorrência de qualquer outro empréstimo, a esta interessada, por parte do falecido pai.
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Da sujeição a colação, da doação feita à cabeça-de-casal
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Insurge-se o Recorrente contra a decisão de “aditar ao ativo da relação de bens a quantia de € 37.665,00 doada à cabeça de casal, com a menção de que foi doada à cabeça de casal em vida do falecido (…), sujeita a colação”, entendendo que tal doação não está sujeita à colação, pois existiu uma tradição e um animus donandi (cfr. n.º 3 do artigo 2113.º do Código Civil).
Nos termos previstos pelo artigo 2104.º do Código Civil, designa-se colação, a restituição à massa da herança, para igualação da partilha, dos bens ou valores doados pelo ascendente aos descendentes.
Como refere Domingos Carvalho de Sá, “esta restituição, chamada conferência, faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados, se houver acordo de todos os herdeiros – artigo n.º 2108.º, n.º 1 – Este acordo de que aqui se fala abrange o próprio conferente, pelo que é muito raro verificar-se. A colação é, em princípio, uma simples operação de cálculo.” [2]
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 2113.º do CC, a colação pode ser dispensada pelo doador no acto da doação ou posteriormente. A dispensa da colação pelo doador é emanação da sua vontade de não manter a igualdade na partilha.
Verificando-se a dispensa da colação, a doação será imputada na quota disponível do doador (n.º 1 do art.º 2114º do CC).
Neste caso, como ensina José de Oliveira Ascenção, “…preenche-se com igualdade a legítima, e quando se passa à quota disponível verifica-se que aquele elemento foi excluído já da divisão. Assim, se afasta esta situação dos casos normais, em que a liberalidade é imputada na legítima, de maneira a conseguir-se a igualdade”. [3]
Se, porventura, o valor da doação com dispensa da colação exceder a quota disponível, constituirá uma liberalidade inoficiosa por ofensa da legítima dos herdeiros legitimários, sendo redutível a requerimento destes ou dos seus sucessores, em tanto quanto seja necessário para que a legítima se mantenha íntegra (cfr. artigo 2169.º do CC).
A dispensa da colação deve resultar de “…vontade inequívoca expressa ou tácita, do ascendente, sendo certo que se presume dispensada nas doações manuais e remuneratórias.” [4]
A declaração do doador para evitar a sujeição da doação à colação tanto pode consistir em dispensar o donatário da conferência como em declarar que a doação é feita por conta da quota disponível.
No caso vertente, está provado que (…) ou a cabeça de casal, a pedido de (…), efectuaram transferências bancárias da conta com o IBAN PT50 (…) para a conta da cabeça-de-casal que perfazem o montante de € 62.350,00, nos seguintes parcelares:
- € 3.500,00 € em 21.07.2014;
- 2.000,00 € em 09.06.2015;
- 2.300,00 € em 22.06.2015;
- 10.000,00 € em 08.07.2016;
- 7.800,00 € em 14.11.2016;
- 2.750,00 € em 06.12.2016; e
- 34.000,00 € em 23.01.2017.
Das transferências bancárias em apreço, € 24.685,00 destinaram-se a pagar obras de beneficiação no imóvel n.º 18 da verba 42, propriedade dos inventariados.
A sentença recorrida considerou que, não tendo sido demonstrado outro desiderato subjacente à transferência, por vontade do ainda vivo pai (…), do montante remanescente de € 37.665,00 para a conta bancária da filha (…), cabeça-de-casal, estamos perante uma transmissão intencional, de dinheiro pertencente ao pai para a conta bancária da filha, qualificável como uma doação, nos termos e para os efeitos previstos pelo n.º 1 do artigo 940.º do Código Civil.
Da qualificação como doação, feita na sentença de 1ª instância, do valor sobrante das transferências efectuadas com destino à conta bancária da cabeça-de-casal, nenhuma das partes se insurge.
A questão suscitada no recurso está, apenas, em saber se tratou de uma doação sujeita, ou não, a colação.
Neste particular, da matéria de facto provada não resulta qualquer declaração, por parte do doador, no sentido de que dispensasse a donatária da conferência ou de que a doação fosse feita por conta da quota disponível. Não manifestou, por isso, vontade inequívoca de que pretendesse beneficiar a sua filha (…) na herança.
Não obstante, já vimos que se presumem dispensadas da colação as doações manuais e as doações remuneratórias.
A natureza da presunção legal de dispensa da colação, prevista pelo n.º 3 do art.º 2113.º do CC, vem sendo debatida na doutrina, entendendo, uns que se trata de presunção iuris et de iure, inilidível, [5] outros que é iuris tantum, passível de prova em contrário. [6]
A jurisprudência, por sua vez, vem seguindo a posição de que se trata de uma presunção susceptível de prova em contrário, como decorre dos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22.04.2008, relatado pelo Desembargador Vieira e Cunha no processo n.º 0822226 [7], e de 24.01.2023, relatado pelo Juiz Desembargador João Ramos Lopes no processo n.º 6329/21.7T8VNG.P1 [8], bem como do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.05.2015 , relatado pela Juíza Desembargadora Octávia Viegas no processo n.º 207/11.5TBVFC-B.L1-8. [9]
A doação remuneratória é, de acordo com o critério previsto no artigo 941.º do CC, a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador que não tenham a natureza de dívida exigível. Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, “o que caracteriza as doações remuneratórias é a circunstância de não terem os serviços que se pretende remunerar a natureza de uma dívida exigível.”[10]
Já a doação manual versa sobre coisas móveis e é acompanhada da tradição da coisa doada. Como se refere nos fundamentos do supracitado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.04.2008, “por doação manual entende-se todo o acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso, determinadas quantias em dinheiro, ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse revela a vontade de aceitar a liberalidade – neste sentido, artigos 940.º, n.º 1, 945.º n.º 1 e 947.º, n.º 2, C.Civ. e Ac. R.P. 7/3/96 Col.II/179.”
Ainda de acordo com o aresto vindo de citar, para que o donatário possa valer-se da presunção legal do n.º 3 do artigo 2113.º do CC, impende sobre ele o ónus de invocar o carácter remuneratório ou manual da doação. Sem que o faça, falta o pressuposto da operacionalidade da presunção legal que consiste na especificidade da natureza da doação.
No caso vertente, a donatária e cabeça-de-casal:
- não relacionou a doação em apreço na relação de bens que apresentou aos autos de inventário principais no dia 07.01.2020 (ref. Citius 90527011);
- notificada da reclamação por omissão de bens relacionados, junta pela interessada (…) no dia 22.04.2021 (ref. Citius 5708423), na qual, entre outras coisas, foi alegada a omissão do valor de € 64.035,00, correspondente a empréstimos feitos por transferências bancárias entre Julho de 2015 a Agosto de 2017, pelo falecido pai à cabeça-de-casal (cfr. artigo 3º da reclamação), esta apresentou oposição no dia 26.05.2001 (ref. Citius 5782082) na qual negou a existência do crédito, alegando que € 25.735,00 daquela verba foi utilizado para obras e conservação do património hereditário, sendo que, quanto ao restante, se tratou de movimentos feitos em vida e de acordo com instruções do seu falecido pai (artigos 10º a 12º da resposta à reclamação).
Impende sobre o donatário o ónus de alegar e provar os factos de que depende a natureza manual da doação (cfr. artigo 342.º do CC), de modo a poder beneficiar da presunção de que não está sujeita à colação (cfr. n.º 3 do artigo 2113.º do CC).
Nos articulados apresentados até à prolação da decisão de primeira instância, a cabeça-de-casal não invocou ter-se tratado de uma doação remuneratória ou manual do seu pai.
Assim sendo, não pode vir agora, nas alegações de recurso, pugnar pela característica manual da doação, pois os recursos visam apenas a impugnação das decisões judiciais que conhecem dos termos da lide colocados pelas partes (artigo 676.º, n.º 1, do CPC), estando excluída a possibilidade de se suscitar questões novas, sobre as quais se não debruçou a primeira instância.
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Ainda que assim não fosse, a doação manual pressupõe uma traditio, acto de transferência dos poderes de facto sobre a coisa feita pelo doador ao donatário.
O acto de tradição material da coisa constitui “…uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, que se concretiza pela sua entrega feita pelo possuidor ao adquirente da posse e desdobra-se, por isso, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro e no seu empossamento por parte do segundo.” [11]
Trata-se, na verdade, não da vontade do donatário realizar uma liberalidade (sem a qual não haveria doação) mas, como se disse supra, de um acto material que, em si mesmo, exprime esse animus donandi do tradens através da entrega do dinheiro ao accipiens e que este, pelo recebimento, revela também a vontade que tem de aceitar.
Ora, no caso vertente, não está provado acto de tradição material da soma pecuniária, entre o pai e a cabeça-de-casal, do qual emane o animus donandi daquele.
O que resulta da factualidade provada é que foram feitas transferências bancárias com o consentimento do pai para a conta bancária da cabeça-de-casal, parte significativa das quais se destinou a pagar a realização de obras e de outros investimentos em bens da herança. Nem sequer se encontra provado que tenha sido o pai a materializar essas transferências, pois o facto provado deixa em aberto a possibilidade de terem sido feitas pela própria cabeça-de-casal.
Assim, a matéria de facto apurada na presente demanda não permite afirmar a natureza manual da doação.
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Em face do exposto, não colhem os argumentos esgrimidos pela Recorrente contra a determinação, realizada na sentença recorrida, de que a doação da quantia pecuniária em causa deve ser sujeita à colação.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
A parte decaída no presente recurso foi a Recorrente que viu mantida a decisão primeira instância. Deve, portanto, ser condenada no pagamento das custas.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o colectivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.
Condenar a Recorrente no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
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Évora, 30 de Janeiro de 2025
Relator: Ricardo Miranda Peixoto
1º Adjunto: Manuel Bargado
2º Adjunto: Maria Adelaide Domingos

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[1] O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento do Recorrido (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
[2] In “Do Inventário, Descrever Avaliar e Partir”, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 174.
[3] In “Direito Civil Sucessões”, Coimbra Editora, pág. 493.
[4] Domingos Carvalho de Sá, in Op. Cit., pág. 175.
[5] Neste sentido, v. Rabindranath Capelo de Sousa, in “Lições de Direito das Sucessões”, Volume II, 2ª Edição (reimpressão), 1990, págs. 271 e 272, e Batista Lopes, in “Das Doações”, Almedina, 1970, pág. 2007.
[6] Neste sentido, Jorge Leite, in “Algumas Notas Sobre A Colação”, 1977, pág. 54 e Abílio Neto, in “Direito das Sucessões e Processo de Inventário Anotado”, 2017, Ediforum, pág. 267.
[7] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/927dfb6a4bfce20a8025743b004d897d?OpenDocument
[8] Acórdão do TRP de 24.01.2023, no qual também se apresenta uma síntese elucidativa dos argumentos de cada uma das correntes doutrinais controvertidas, acabando por assumir a sua preferência pelo segundo entendimento, em face da “…pouca valia do argumento literal (da expressão sempre), pois o ‘que conta são as realidades e interesses de cada caso’ (o que significa, assim a aplicação da regra geral de que as presunções são ilidíveis por prova em contrário – 1ª parte do nº 2 do art. 350º do CC) (…)”, bem como com a doutrina dominante “…no âmbito do Código Civil de 1967 (entendia-se então que as doações manuais estavam sujeitas a colação podendo, contudo, ser feita a prova da dispensa), assume ‘natureza de norma interpretativa’, havendo que ‘apurar, em cada caso concreto, se há factos de onde se possa deduzir se foi ou não intenção do doador dispensar a colação, intenção essa que pode ser expressa ou tácita.’ (…)”. Disponível na ligação:
http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/47c8378cfecff60c8025897300429740
[9] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/15a48857af54386980257e770036f9c7?OpenDocument
[10] In “Código Civil Anotado”, volume II, Coimbra Editora, 3ª edição revista e actualizada, 1986, pág. 262.
[11] Segue-se aqui a fundamentação do supracitado acórdão do TRP de 24.01.2023.