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RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
COACÇÃO FÍSICA
Sumário
1-A violência pode ser exercida contra a pessoa do possuidor ou sobre a coisa, designadamente quando esteja ligada à pessoa do esbulhado ou quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral. 2-Actos de soldadura do portão da propriedade e de modificação da fechadura da porta da rua configuram actos de esbulho, actos impeditivos de o proprietário ter acesso e de usufruir o imóvel que lhe pertence.
Os autos consistem em procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, tendo o Requerente peticionado a condenação da Requerida a restituir o imóvel devidamente identificado, livre de pessoas e bens, bem como a indemnizar os danos sofridos pelo período de tempo em que se viu impossibilitado de usufruir do imóvel, pelas despesas a incorrer na eliminação da soldadura, reconstituição do portão e muro construído ilegalmente.
Para tanto, alegou ser o único e legítimo proprietário do prédio destinado a habitação, sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, que a Requerida ocupa ilicitamente, recusando a entrega, apesar de interpelada para proceder à entrega do mesmo livre de pessoas e bens. Tendo celebrado contrato-promessa de compra e venda do referido imóvel, com data de tradição a 16/12/2024, existe a probabilidade séria de perda do seu direito e perigo na demora da intervenção judicial. A Requerida soldou o portão e mudou a fechadura, sem dar conhecimento ao primeiro, vedando o acesso deste, o que constitui esbulho violento. Mais alega o Requerente que a Requerida procedeu a construção de muro na residência, sem autorização do primeiro, de modo a dificultar o acesso ao imóvel.
II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando o presente procedimento cautelar improcedente.
Inconformado, o Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«A - A sentença recorrida, incorreu em erro de julgamento ao não dar como provado este facto, sendo que os concretos meios probatórios constantes dos autos impunham, na nossa opinião, decisão diversa da adotada pela decisão recorrida.
B - Na verdade, do acervo da prova testemunhal, resultou que o portão havia sido soldado e mudada a fechadura, e que esse ato foi um ato voluntário praticado no interior da propriedade de (…), que lhe causou lesão grave e dificilmente reparável.
C - Resulta ter ficado demonstrado o esbulho violento para efeitos do artigo 1261º do Código Civil, considerando que a violência empregue no esbulho poderá incidir, indiscriminadamente, sobre a pessoa do possuidor ou sobre as coisas, uma ação física sobre as coisas, coagindo o esbulhado a tolerar ou suportar uma situação contrária à sua vontade.
D - Da prova documental e testemunhal resulta que o portão foi soldado e modificada a fechadura - facto provado 8., e essa realidade constitui esbulho praticado na propriedade do recorrente onde reside apenas a recorrida.
E - A norma do artigo 1281º nº 2 do CC, ao exigir um requisito de legitimidade substantiva, exige tão-somente que quem tem a posse seja nesse contexto responsabilizado pelo esbulho ainda que atribuído a terceiros, que praticaram atos materiais.
F - O elemento subjetivo fixa preenchido aferida a conexão entre a prática do ato com violência sobre a coisa e o detentor da posse, atos esses que podem até ser praticados por familiares amigos ou proprietários.
G - É clarividente que o muro foi construído na propriedade do requerente e asseveram as testemunhas e certifica a prova documental que a construção do mesmo se desviara para o interior da propriedade, com intuito de prejudicar a venda do imóvel, prometida por contrato a que a requerida teve acesso.
H - Curando-se inelutavelmente de um ato de esbulho que modifica a própria propriedade, dessa forma se preenchendo um dos requisitos do decretamento da providência.
I - A recorrente entende que foi violado o artigo 1793º do CPC e o artigo 4º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio,
J - A sentença recorrida deveria ter entendido que a providência de atribuição da casa de morada de família, está sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC), mas tendo natureza de jurisdição voluntária, pode o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º. L - O artigo 1793º do CC, deve ser interpretado no sentido de que a previsão normativa não pode contemplar, uma união de facto cuja rutura ocorreu há mais de sete anos, pese embora exista relevância da casa de morada de família para além da cessação da união de facto.
M - Este preceito reclama do Tribunal uma base investigatória no que concerne à atribuição da casa de morada de família e a fundamentação para a sua atribuição, o que não se mostra concretizado na sentença recorrida.»
Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) do desacerto da decisão de improcedência do procedimento cautelar.
III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. O Requerente é proprietário do prédio sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, com o artigo matricial n.º (…), conforme Caderneta Predial Urbana e descrição da Conservatória do Registo Predial de Cuba.
2. Requerente e Requerida viveram juntos, partilhando mesa, leito e habitação, naquele imóvel, entre 2005 e data não concretamente apurada, mas cerca do ano de 2017.
3. No ano de 2017 o Requerente saiu da casa sita em 1, ali permanecendo a Requerida, que aí se mantém.
4. O Requerente celebrou um contrato promessa de compra e venda do imóvel com terceiros, os quais pretendem adquirir o mesmo, desde que este esteja livre de ónus, encargos e de pessoas e bens.
5. O Requerente pretende ter a plena propriedade do imóvel para cumprir o contrato-promessa de compra e venda do mesmo, procedendo a transmissão do mesmo, a qual tinha data marcada para dia 16/12/2024;
6. Aquele deu conhecimento da venda à Requerida;
7. Em data não concretamente apurada o Requerente informou a Requerida de que teria de sair do imóvel em determinado prazo, não tendo a mesma saído voluntariamente naquele período;
8. No dia 1 de dezembro de 2024 o Requerente dirigiu-se ao imóvel e encontrou o portão do imóvel soldado e modificada a fechadura da porta da rua, sem disso ter conhecimento.
9. Naquelas mesmas circunstâncias denotou que o muro na propriedade foi modificado.
10. Nessa sequência, o Requerente saltou o muro do imóvel, procedeu à remoção da solda do portão e logrou aceder à residência.
11. Após, regressando ao local, encontrou novamente o portão do imóvel soldado.
12. A Requerida não se encontrava no local.
13. A Requerida não procedeu à entrega do imóvel ao Requerente.
B – As questões do Recurso
i) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O Recorrente invoca que os factos julgados não provados devem ser dados como provados. Está em causa o seguinte:
a. A Requerida soldou o portão do imóvel ou mudou a fechadura do mesmo sem dar conhecimento ao Requerente.
b. A Requerida modificou o muro construído pelo Requerente na propriedade.
Consta da alegação do recurso que tal resulta do acervo da prova testemunhal e documental produzida nos autos. Prova essa que não concretiza, sendo evidente que não cumpre os ónus consagrados no art. 640.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do CPC.
Como se salienta, a respeito de tal normativo, em Acórdão desta Relação[1], «essa disposição impõe a indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com indicação dos depoimentos em que se funda a impugnação, por referência ao assinalado na ata. É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto/quesito a quesito) do que deve ser alterado, em que sentido (resposta positiva, negativa ou restritiva) e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos, embora sem necessidade de transcrição (ou outros meios probatórios) (cfr. Lebre de Freitas et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 53-55).»
Termos em que vai rejeitado o recurso na matéria atinente à reapreciação da decisão relativa à matéria de facto.
ii) Do desacerto da decisão de improcedência do procedimento cautelar
Em primeira linha, o Recorrente considera ter sido demonstrado ter ocorrido esbulho violento para efeitos do disposto no art. 1261.º do CC, já que a violência empregue no esbulho poderá incidir quer sobre a pessoa do possuidor quer sobre as coisas, consubstanciando uma ação física sobre as coisas, coagindo o esbulhado a tolerar ou a suportar uma situação contrária à sua vontade.
Vejamos se assim é.
A restituição provisória da posse consiste no procedimento cautelar especificado cujo regime consta dos arts. 377.º a 379.º do CPC. Trata-se de um meio de defesa da posse previsto no art. 1279.º do CC de que pode socorrer-se o possuidor contra atos de esbulho violento. Os possuidores são merecedores de tutela jurisdicional por se apresentarem publicamente como titulares dos bens atingidos pelo esbulho violento.[2]
Nos termos do disposto no art. 377.º do CPC, no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
“Há esbulho sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar.”[3] O esbulho caracteriza-se pela privação, total ou parcial, do poder do possuidor no exercício dos atos correspondentes ao direito real que se traduzem na retenção, fruição do objeto, da coisa, ou da possibilidade de o continuar a exercer.[4] A privação consiste em o possuidor ser colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse. Por isso, a simples turbação não consubstancia esbulho, por não privar o possuidor de continuar a exercer o seu poder. A turbação é mais do que a simples ameaça, mas embora prejudique o exercício da posse, não conduz à privação da mesma. Para o caso de mera turbação, em que o possuidor foi incomodado, viu a sua posse embaraçada e disputada,[5] assiste ao possuidor o direito de mover o procedimento cautelar comum.[6]
A violência, por sua vez, pode ser exercida contra a pessoa do possuidor ou sobre a coisa, designadamente quando esteja ligada à pessoa do esbulhado ou quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral.
Ora, a coação física é direta quando recai sobre o próprio possuidor, e indireta quando o possuidor fica impossibilitado de fruir da coisa – e, portanto, de exercer a posse sobre ela – por um obstáculo físico criado ou erigido pelo esbulhador.[7] Logo, a necessidade de vencer um obstáculo para o exercício da posse revela ter ocorrido esbulho violento.
“A diferença entre o esbulho e o esbulho violento pode ser feita nas seguintes bases; (i) todo o esbulho pressupõe um desapossamento que se verificou sem autorização do possuidor; (ii) o esbulho (ou mero esbulho) acontece quando esse desapossamento se verificou sem a vontade do possuidor; (iii) o esbulho violento ocorre quando o desapossamento se verificou não só sem a vontade do possuidor, mas também contra a vontade deste sujeito; quer dizer: o esbulho é violento porque a violência aniquilou uma vontade contrária do possuidor.”[8]
Afigura-se que os atos de soldadura do portão da propriedade e de modificação da fechadura da porta da rua configuram atos de esbulho, atos impeditivos de o Recorrente ter acesso e de usufruir o imóvel que lhe pertence.
É certo que consta como não provado, em termos indiciários, que a Requerida soldou o portão do imóvel, mudou a fechadura do mesmo sem dar conhecimento ao Requerente.
Porém, não consta como provado que não foi a Requerida a praticar /diligenciar pela prática de tais atos.
As decisões judiciais, em sede de direito, alicerçam-se nos factos que tenham resultado provados (cfr. art. 607.º/3 do CPC), e não nos factos não provados.
Assente que está que a Requerida reside no imóvel que é propriedade do Requerente, que nele se mantém apesar de ter sido instada a sair, que o portão foi, por duas vezes, soldado, que foi modificada a fechadura da porta da rua, sem disso ter conhecimento o Requerente, os referidos atos de esbulho são de imputar à Requerida: tais atos apenas permitem e consentem que continue, como continua, a residir no imóvel por terem sido cometidos por si ou por sua indicação, pois, de outro modo, ela própria resultaria impedida de utilizar o imóvel como residência, como vem fazendo.
Uma vez que foi demonstrado, em termos de prova indiciária, que o Requerido, em consequência de tais atos, passou a estar impedido de aceder ao imóvel de que é proprietário, resulta afirmado o esbulho violento, legitimando a atuação da disciplina inerente ao procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
Afigura-se não ter cabimento a apreciação e aplicação de legislação atinente à utilização da casa de morada de família e à rutura da união de facto. Tal como advogado pelo Recorrente, estão em causa, nessa matéria, direitos que hão de ser exercidos pelo respetivo titular, se assim o entender e em sede própria, não estando o Tribunal adstrito a, oficiosamente, prover pela salvaguarda dos mesmos.
E, de igual modo, não tem cabimento a apreciação do pedido de indemnização formulado (em sede de requerimento inicial, mas não já reiterado em sede de recurso), já que extravasa o objeto do presente procedimento cautelar especificado, consubstanciando matéria de facto e de direito cujo contraditório não pode ser postergado.
Procedem, nestes termos, as conclusões da alegação do presente recurso.
Sem custas, por não serem devidas.
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, julgando-se procedente o procedimento cautelar, determinando a restituição provisória ao Requerente da posse do prédio destinado a habitação, sito na Rua do Paço, n.º 13, 7940-149, Cuba, ordenando à Requerida que proceda à entrega do mesmo, livre de pessoas e bens.
Observe-se, em 1.ª Instância, o regime inserto no art. 366.º/6 do CPC.
Sem custas.
*
Évora, 30 de janeiro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário João Canelas Brás
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
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[1] Proferido a 04/11/2009 (Mário Serrano).
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2.ª edição, págs. 24 e 25.
[3] Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, pág. 363.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 49.
[5] Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. I, pág. 669
[6] Cfr. Joel Ramos Pereira, in Prontuário de Formulários e Trâmites, vol. II, pág. 590.
[7] MTS, CPC online, Art. 377.º, 4 (b) e (c).
[8] MTS, CPC online, Art. 377.º, 2 (b).