Os lucros distribuídos por uma sociedade devem ser relacionados no âmbito de um inventário para partilha de bens subsequente a divórcio quando os mesmos tiveram origem numa quota que integra o património comum do dissolvido casal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Nos autos de inventário que correm termos no Juízo de Família e Menores de Pombal sob o nº º270/21.0T8PBL, em que são interessados AA e BB, foi proferida decisão, em 26/6/2024, com o seguinte teor:
“Despacho de saneamento do processo (artigo 1110º nº 1 al. a) do CPC)
A interessada AA, notificada da nova relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, na sequência do acordado na audiência prévia que teve lugar em 7/6/2022 e que fixou os bens que compõem a relação de bens, requereu que seja também
relacionado como bem comum do ex-casal, o direito de crédito aos lucros da empresa, cuja quota social se encontra relacionada na verba 3 da relação de bens, isto é, os resultados ou dividendos relativos o exercício da atividade, desde a data da propositura da ação de divórcio, uma vez que tais rendimentos constituem direito de crédito que o ex-casal tem perante a sociedade comercial por quotas, A..., Lda.
Notificado do requerimento apresentado pela interessada AA, veio o cabeça de casal, opor-se, para além do mais, por entender que a participação social já relacionada (verba 3),
encerra em si, todos os direitos (lucros, resultados, dividendos, etc) e também as obrigações perante a sociedade e que enquanto gerente da sociedade, está em condições de afirmar que nenhum dos sócios tem créditos perante a sociedade a título de lucros, nada havendo a relacionar a esse título.
Por despacho proferido em 23/9/2022 por se entender ser a pretensão da requerente manifestamente improcedente, foi indeferida a requerida reclamação.
Tendo a referida decisão sido objeto de recurso, foi pelo Tribunal da Relação ordenado o prosseguimento do incidente, por entender a pretensão da interessada AA como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3.
Em tudo um raciocínio semelhante ao plasmado no artigo 265º, 2 do CPC ao estatuir sobre a livre ampliação do pedido na 1ª instância.
Decidindo.
A questão a decidir consiste em saber se deve ser relacionado como bem comum por referência à verba nº 3 da relação de bens, quota social de que o ex-casal é titular na sociedade A... Lda e de que o interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente - o direito de crédito aos lucros da mesma empresa, isto é, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da atividade desde a data de 27/3/2016, data da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio nos termos do artº 1789º nº 2 do CC.
Entende o cabeça de casal que desde o ano de 2016 (ano a que se reportam os efeitos patrimoniais da dissolução do casamento), nos anos em que a sociedade apresentou nos respetivos exercícios dividendos/lucros a distribuir pelos sócios, os mesmos foram prontamente pagos aos seus sócios, nas proporções das respetivas quotas, entendendo não poder relacionar sobre a sociedade um crédito ao qual não correspondente nenhuma dívida.
Mais entende o cabeça de casal, não serem tais lucros suscetíveis de serem relacionados, atento o momento em que esses bens/dividendos se geraram – em momento posterior aos efeitos patrimoniais do divórcio, conforme a própria reclamante reconhece e que o rendimento gerado pela quota comum, depois dessa data e já no estado de divorciados, não deve ser incluído naquela relação, devendo antes ser objeto de prestação de contas.
Juntas as atas referentes aos anos de 2016 a 2022, das mesmas resulta que:
- no ano de 2016 não houve distribuição dos resultados.
- no ano de 2017 foram distribuídos pelos sócios resultados no montante de €30.000,00 para cada um.
-no ano de 2018 foram distribuídos pelos sócios resultados no montante de €30.000,00 para cada um.
- no ano de 2019 foram distribuídos pelos sócios resultados no montante de €30.000,00 para cada um.
- no ano de 2020 foram distribuídos pelos sócios resultados no montante de €30.000,00 para cada um.
- no ano de 2021 foram distribuídos pelos sócios resultados no montante de €30.000,00 para cada um.
- no ano de 2022 foram distribuídos pelos sócios resultados no montante de €30.000,00 para cada um.
Resultando das atas de aprovação de contas da sociedade e distribuição de resultados a existência de lucros para os sócios, designadamente para o cabeça de casal, entre os anos de 2017 e 2022, importa concluir que deve ser relacionado a distribuição dos resultados de cada exercício correspondente à quota em causa, no montante total de €180.000,00 (€30.000,00 x 6 anos (2017 a 2022).
Considerando que o Tribunal da Relação através de decisão transitada em julgado, já configurou a questão suscitada pela interessada AA, como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3, não pode a questão ser agora apreciada em termos de prestação de contas como o cabeça de casal pretende.
Tudo para concluir, que deve ser incluído na relação de bens o direito de crédito do ex-casal sobre os lucros da empresa, ou melhor, a distribuição dos resultados de cada exercício correspondente à quota em causa, desde 27/3/2016 até à partilha, no montante total de €180.000,00 (€30.000,00 x 6 anos (2017 a 2022).
Pugna a interessada AA pela condenação do cabeça de casal na sanção prevista pelo artº 2096º do CC, por de forma ostensiva e culposa, sonegar bens a relacionar a fim de não os ver partilhados e para deles se apropriar e, bem assim ser condenado como litigante de má-fé, em multa e, indemnização expressivas, sendo, a última, a favor da requerente e, a fixar com os critérios previstos no artº. 543º do CPC.
Vejamos.
Dispõe o artigo 2096.º do CC
1. O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça-de-casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis.
2. O que sonegar bens da herança é considerado mero detentor desses bens.
Como no Acórdão do STJ de 8/10/2019 se refere1 « I - A sonegação de bens prevista no art. 2096.º n.º 1 do CC, exige a verificação de dois requisitos: um, de natureza objetiva, traduzido na ocultação da existência de bens; outro, de natureza subjetiva, correspondente ao dolo na ocultação. II - O ónus da prova dos factos constitutivos da sonegação de bens incumbe à parte que a invoca – art. 342.º, n.º 1, do CC. III - A insuficiência da matéria de facto no preenchimento dos elementos, objetivo e subjetivo, do dolo, impede a verificação da sonegação de bens.
Ora, vista a posição do cabeça de casal, quanto à questão suscitada nos autos, não se afigura que se mostrem preenchidos os pressupostos da sonegação de bens, antes está em causa diferente entendimento jurídico quanto à forma de partilha dos referidos lucros, se devem ser objeto de partilha em sede de inventário ou se devem ser objeto de uma ação de prestação de contas.
Termos em que se indefere a condenação do cabeça de casal na sanção a que alude o artº 2096º do CC.
Dispõe o artigo 542.º do CPC
1-Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
(...)
In casu, vista a matéria de facto e de direito atinente à questão em apreciação, não se vislumbra a existência de má-fé por parte do cabeça de casal, por se entender que estão em causa entendimentos jurídicos diferentes sobre a mesma questão.
Termos em que improcede o incidente de litigância de má-fé.
*
Face a todo o exposto decide-se:
1.Determinar a inclusão na relação de bens do direito de crédito do casal sobre os lucros da empresa, isto é, a distribuição dos resultados de cada exercício correspondente à quota em causa, desde 27/3/2016 (data da separação de facto) até à partilha, no montante total de €180.000,00 (€30.000,00 x 6 anos (2017 a 2022).
2. Julgar improcedente o pedido de condenação do cabeça de casal na sanção a que alude o artº 2096º do CC.
3. Julgar improcedente o incidente de litigância de má-fé
“I) O presente recurso tem por objeto o douto despacho proferido pelo Tribunal “a quo” que determinou a inclusão na Relação de Bens do presente inventário, “o direito de crédito do ex-casal sobre os lucros da empresa, ou melhor, a distribuição de resultados de cada exercício correspondente à quota em causa, desde 27/03/2016 até à partilha, no montante total de €180.000,00 (€30.000,00 x 6 anos (2017 a 2022)”
II) O capital social da sociedade A..., Lda é, na totalidade, de 14.964,00 €, sendo que a participação social em causa nesta inventário e consolidada na relação de bens corresponde a 33,33% desse capital e é titulada pela quota comum ao ex-casal, no valor nominal de 4.998,00 €. Está assim fora do âmbito desta contenda a outra quota, também detida pelo aqui recorrente, no valor de 2.494,00 € da qual a recorrida não comunga.
III) Após a consolidação da relação de bens por acordo que as partes lograram em sede de audiência prévia de 07/06/2022, veio a recorrida aos autos suscitar incidente pelo qual acusou nela a falta do direito de crédito do casal sobre a dita sociedade e respeitantes a lucros/dividendos proporcionais participação social comum, entre os anos de 2017 e 2022.
IV) Essa pretensão foi julgada intempestiva pelo Tribunal “a quo”, cujo despacho foi objeto de recurso para este Tribunal da Relação que, considerando que a pretensão da requerente não configurava uma verdadeira “reclamação à relação de bens”, ordenou o prosseguimento do incidente “salvo se ocorrer outro motivo aqui não tratado”
V) Nesse acórdão, e tendo em vista, unicamente, fundamentar a decisão de desconsiderar o incidente como Reclamação à Relação de Bens” previsto nas normas de tramitação processual do processo de inventário, é feita interpretação à pretensão da interessada nos termos do excerto que supra se transcreve na alínea C) das alegações.
VI) O Tribunal “a quo”, assumindo-se irremediavelmente vinculado ao teor do mencionado acórdão (designadamente ao trecho supra transcrito na alínea C) das alegações) proferiu o despacho de que aqui se recorre, acatando a pretensão da recorrida ao determinar que fosse incluído na relação o direito de crédito do ex-casal sobre os lucros da empresa, atribuindo-lhe o valor de 180.000,00 €.
VII) Mas, ao proferir o despacho em causa, o Tribunal “a quo” incorreu em lapsos flagrantes e primários tanto na interpretação do acórdão a que se entendeu vinculado de mérito (mas que apenas e tão só o vinculou a dar prosseguimento ao incidente suscitado, sem tão puco abordar o mérito da questão) como no cálculo do valor dos créditos que considerou.
VIII) A leitura atenta do mencionado trecho no contexto do que é o objeto do recurso permite deduzir com relativa clarividência que as afirmações lá contidas não constituem decisões, nem sequer entendimentos deste Tribunal.
IX) É de fácil perceção que aquele trecho constitui apenas uma interpretação que esta Relação faz do intuito da lá requerente, de modo a fundamentar a decisão de desconsiderar o seu requerimento uma verdadeira “reclamação à relação de bens” que se pudesse ter por extemporânea. Ou por outras palavras, tal trecho resume-se uma mera descrição daquilo que se subentendeu ser a pretensão subjacente ao requerimento, sem entrar no seu mérito.
X) Nesse acórdão, esta Eelação não decidiu que deve ser relacionado o lucro líquido de cada exercício, afirmou apenas que é isso que se subentende da pretensão da requerida.
XI) Ao contrário do que é dito no despacho recorrido, este Tribunal da Relação também não “configurou a questão suscitada pela interessada AA, como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3”. Ao invés, esta Relação imputa essa configuração à própria interessada através da expressão “Entende-o” por referência a ela, colocado logo no início da frase em questão.
XII) Em resumo, o que resulta desse trecho do acórdão a que o Tribunal “a quo” se sentiu vinculado na prolação do despacho aqui recorrido, constitui apenas e tão só a representação dada pela Relação à pretensão implícita no incidente então suscitado pela lá recorrente, no sentido de desconsidera-la como um verdadeiro incidente de “reclamação à relação de bens” previsto nos artigos 1104º nº 1, al. d) 1105º, nº 1, do Código Civil, e dessa forma decidir-se pela sua tempestividade e ordenar o seu prosseguimento
XIII) Andou igualmente mal, o Tribunal “a quo”, ao atribuir ao direito de créditos a lucros, cuja relacionação determinou, o valor de 180.000,00 €, desconsiderando em absoluto a percentagem do capital da sociedade que a quota comum, relacionada no inventário representa. Esse valor corresponde a resultados proporcionais a 50% do capital, quando a quota em causa nestes autos, única em que a recorrida é meeira, representa apenas 33,33%.
XIV) Também desvalorizou totalmente a tributação a que tais lucros foram sujeitos em sede de IRS, pois resultaram retidos na fonte pela Sociedade A..., L.da e por imposição do artigo 71º, nº 1, do CIRS, 28 % do valor dos resultados que lhe foram distribuídos.
XV) Devidamente proporcionais à quota comum e líquidos (apenas de impostos), os rendimentos distribuídos ao recorrente, por conta dos lucros dos exercícios de 2017 a 2022, resumem-se a 86.400,00 €, menos de metade do valor apurado pelo Tribunal “a quo”.
XVI) Todavia, os créditos em causa, ainda que devidamente proporcionais à quota comum e líquidos de IRS, não são passiveis de relacionação em sede de Inventario. A satisfação (pagamento) de tais créditos traduz-se em rendimentos que configuram frutos civis (ainda que originários de um bem comum) insuscetíveis de integrar a comunhão conjugal, já que nasceram e venceram-se muito após a rutura do vínculo matrimonial,
XVII) Estando efetivamente pagos ao aqui recorrente enquanto titular (sócio) dessa quota, no estado de divorciado, mas continuando a quota que os gera na comunhão, tais rendimentos originam “créditos entre ex-conjuges” cuja avaliação deverá ser alcançada através de prestação de contas (consensual ou judicial).
XVIII) A ação especial de prestação de contas relativamente aos rendimentos e despesas implícitas na administração daquela participação social comum, configura o processo competente e adequado a resolver a questão dos lucros/rendimentos entre os ex-cônjuges, garantindo à recorrida os seus direitos sobre tais rendimentos, por um lado e possibilitando ao recorrente, por outro. a demonstração e prova das despesas e encargos por si suportados na sua administração desde o divórcio.
XIX) O que pode fazer em sede de inventário.
XX) Sobre o despacho recorrido deverá assim recair decisão que o revogue e que declare que os rendimentos gerados pela distribuição de lucros não são bens comuns sujeitos a inventário, porque não gerados na pendência do matrimónio, tratando-se antes de “créditos entre ex- cônjuges” cujos valores deverão ser aferidos através de prestação de contas (consensual ou, eventualmente, judicial).
XXI) Assim não se entendendo, o que apenas por mera cautela se admite, sempre deverá ordenar-se a correção do valor atribuído pelo Tribunal “a quo” aos créditos a lucros, de acordo com a proporção do capital que a quota comum representa e liquido de impostos.
XXII) Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” fez uma interpretação errada do teor do acórdão anterior, proferido por esta Relação e violou (ou pelo menos fez incorreta interpretação ou aplicação) entre outras, das normas contantes dos artigos 1722º, nº 1, al. b), 1724º, al b), e 212º, nº 2, do C. Civil; 8º, 20º e ss e 217º, nº 2, do CSC e 1082º, 1133º e 941º e ss.”.
2.1. Factos provados.
Com interesse para a decisão do presente recurso, importa considerar o processado descrito no relatório antecedente e ainda a seguinte factualidade, que decorre, igualmente, dos autos de inventário em apreço:
- AA e BB, interessados no processo supra identificado, contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 18 de Dezembro de 1993;
- Por sentença proferida em 7 de Fevereiro de 2017, transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre as partes;
- Nessa sequência, a interessada AA instaurou inventário para partilha dos bens comuns, o qual correu termos no Cartório Notarial, sito em ..., a cargo do notário CC, sendo os autos, posteriormente, remetidos ao Juízo de Família e Menores de Pombal, onde se encontram pendentes;
- No inventário em causa, o interessado BB foi nomeado cabeça-de-casal, tendo o mesmo apresentado a respectiva relação de bens onde inclui, como verba nº5, uma quota detida na sociedade A..., Ldª, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o nº...10;
- Posteriormente, em 16/6/2022, o cabeça-de-casal apresentou uma nova relação de bens, incluindo, sob a verba nº3, a referida participação social;
- Através de peça processual apresentada a 5/7/2022, a interessada AA veio requerer que o cabeça-de-casal relacionasse o direito de crédito aos lucros da empresa supra referenciada, ao que o mesmo se opôs, através de requerimento datado de 30/8/2022;
- Em 23/9/2022, foi proferido despacho que indeferiu a pretensão formulada a 5/72022;
- Tendo sido interposto o competente recurso do despacho atrás referido, esta Relação, por Acórdão de 28/2/2023, revogou a decisão recorrida, sendo ordenado o prosseguimento do respectivo incidente.
A questão que o recorrente suscita prende-se com a insusceptibilidade de serem relacionados como bens comuns do casal os lucros distribuídos pela sociedade na qual os interessados detêm a quota supra referida, sendo defendido que tais proventos terão de ser apurados num processo de prestação de contas.
O primeiro aspecto a reter, no caso vertente, é que os bens em apreço não assumem a natureza de um crédito, dado que se traduzem em frutos civis já percepcionados, cuja génese decorre da participação social atrás mencionada.
A este propósito, importa considerar o regime previsto no art. 212º, nºs1 e 2, do Código Civil, norma que apresenta a seguinte redacção:
“1 - Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância.
2 - Os frutos são naturais ou civis; dizem-se naturais os que provêm directamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica.”.
Sabendo-se que as relações entre os cônjuges, em particular as de natureza patrimonial, cessaram por virtude do divórcio (arts. 1688º e 1788º do Código Civil [1]), terá de ser encontrada uma solução para o destino a dar aos bens que, apesar de não integrarem a comunhão conjugal por força da disposição inserida no art. 1724º do Código Civil [2], têm origem num bem comum, no caso, a quota que consta da relação apresentada pelo ora recorrente.
A problemática em análise deve ser resolvida, em nosso entender, de acordo com o quadro legal que rege a compropriedade, atento o disposto no art. 1404º do Código Civil [3].
Nessa disposição normativa estabelece-se que “As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles.”.
No âmbito das regras que o legislador teve em mente, importa levar em consideração o art. 1403º, igualmente do Código Civil, o qual dispõe o seguinte:
“1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultâneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.”.
A par das normas citadas, importa ainda referir o art. 1412º, nº1, do Código Civil, que consagra o direito de os comproprietários exigirem a divisão, sendo que neste caso, a mesma não é exercida através do processo previsto nos arts. 925º a 929º do C.P.C. (divisão de coisa comum), mas através do inventário, por força da disposição inserida no art. 1133º, nº1, do C.P.C. [4].
O conjunto de disposições normativas que acabamos de referir possibilita, desta forma, que os frutos civis em causa sejam relacionados no inventário em epígrafe, com vista a que, no momento oportuno, seja partilhado o acervo do dissolvido casal, quer o que foi adquirido na constância do matrimónio, quer o que resultou de bens que integravam a comunhão.
A nível jurisprudencial, tem sido notado que o património conjugal está – ou pode estar – sujeito a variações, podendo citar-se, a título exemplificativo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 17/11/2022 (Aresto que se encontra disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/8bcdb048e151abd68025890c00356bf1?OpenDocument), cujo sumário incorpora as seguintes conclusões:
“1- Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, sempre que o regime de bens foi um regime de comunhão, há que fazer proceder à divisão do património comum que se criou com o casamento
2- A massa comum conserva uma certa autonomia, pelo que o acervo de bens comuns a partilhar pode aumentar durante o inventário, mais que não seja pela capacidade de frutificação dos bens, assim como pode ocorrer o inverso, mais que não seja pela possibilidade de perecimento dos mesmos pelo decurso do tempo.
3 - Ao efetuar-se a partilha há que ter em conta as alterações que o património comum sofreu ao longo do tempo, por ser impossível partilhar bens que não o compõem ou deixar na comunhão bens que o passaram a compor: neste tipo de inventário, na sequência da dissolução do casamento, em que se não levantam questões relacionadas com a colação ou legítima, haverá que eliminar da relação de bens os inexistentes, sem prejuízo de se poder partilhar o que foi sub-rogado no seu lugar ou do cônjuge prejudicado poder fazer valer o seu direito indemnizatório contra o outro cônjuge, se o entender culpado por tal perda.”.
No Acórdão atrás referido, em abono da tese que é defendida no mesmo, é feita a seguinte referência doutrinária:
“…Enquanto não se procede à partilha, a massa comum conserva uma certa autonomia e pode ficar acrescida com os aumentos provenientes de acessão, as indemnizações de seguro, os bens resultado de sub-rogação real, os frutos e rendimentos e os juros dos capitais vencidos até à sentença da partilha, os lucros líquidos das explorações comerciais, industriais, terrestres ou marítimas ou agrícolas de bens alheios tomados de arrendamento e que anteriormente se estavam fazendo por conta ou em proveito do casal. Tais bens deverão, pois, relacionar-se como comuns do património em partilha” (esclarece João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, II vol, 369-370, apresentando a posição de Cunha Gonçalves).
E, completando o raciocínio que decorre da posição defendida, refere-se ainda o seguinte: “E assim se explica que, no caso de venda de bens comuns, se passe a partilhar não os próprios bens, mas o seu preço: tal valor entrou no património comum na sequência da venda de bens que o compunham, havendo que retirar os bens que saíram do património comum e colocar em seu lugar o respetivo preço obtido pela sua venda.
Tal como o acervo de bens comuns a partilhar pode aumentar durante o inventário, mais que não fosse pela capacidade de frutificação dos bens, também o inverso pode ocorrer e o mesmo pode diminuir, mais que não seja pela possibilidade de perecimento das coisas pelo decurso do tempo.”
Não estando em causa um acto de administração do património conjugal, mas apenas a percepção de frutos originados pelo mesmo, cujo valor está perfeitamente definido, não há lugar à prestação de contas, concluindo-se, desta forma, ser correcta a decisão que determinou o relacionamento dos bens em apreço.
Relativamente à pretensão da apelante no sentido se serem apenas considerados os “lucros, de acordo com a proporção do capital que a quota comum representa e liquido de impostos.”, não existem elementos factuais que os autorizem a chegar a essa conclusão, atento o acervo que resulta do despacho recorrido [5], pelo que o recurso não merece provimento, devendo decidir-se em conformidade.
***
III – DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Coimbra, 28 de Janeiro de 2025
Luís Manuel de Carvalho Ricardo
(relator)
Francisco Costeira da Rocha
(1º adjunto)
Anabela Marques Ferreira
(2ª adjunta)
SUMÁRIO. (…)
[1] Art. 1688º do Código Civil: “As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento, sem prejuízo das disposições deste Código relativas a alimentos; havendo separação judicial de pessoas e bens, é aplicável o disposto no artigo 1795.º-A.”.
Art. 1788º do Código Civil: “O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as excepções consagradas na lei”.
[2] A comunhão deixa de subsistir, não podendo considerar-se que os bens ou direitos constituídos numa fase subsequente ao divórcio se enquadram nesse âmbito, uma vez que citado art. 1722º pressupõe que estejamos perante uma sociedade conjugal não dissolvida.
É o seguinte o teor da norma em apreço: “Fazem parte da comunhão:
a) O produto do trabalho dos cônjuges;
b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei.”.
[3] Refere-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 12/10/2021 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c6f92ca6ae9b7665802587810057dfd4?OpenDocument) que “A prática judiciária demonstra e a doutrina mais recente veicula, que dada a contitularidade de direitos existente na comunhão patrimonial conjugal, não existem razões de princípio para excluir a aplicação do regime de compropriedade e da comunhão, em certos segmentos até lacunosos, permitindo a sua aproximação a determinados aspectos do regime da compropriedade e da comunhão.”.
[4] Art. 1133º, nº1, do C.P.C.: “Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”.
[5] A factualidade vertida na decisão recorrida não foi impugnada.