I – Nos embargos de executado as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, baseadas nas normas de direito probatório substantivo, não se alteram, cabendo ao executado a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, por força do preceituado no art. 342.º do Código Civil.
II – Um extracto bancário, elaborado pelo Banco/exequente, embora sirva, em regra, para demonstrar probatoriamente o modo como a relação contratual se desenvolveu, uma vez que a disponibilização da quantia mutuada gerou para os embargantes obrigações pecuniárias de restituição (do tantundem) e de remuneração dessa disponibilidade, não é, por si só, prova suficiente dos montantes em débito na execução, caso tenha sido impugnado expressamente pelos embargantes/clientes bancários, constituindo, nesse caso, um princípio de prova que deve ser complementada, designadamente, através de prova testemunhal.
III – Verificando-se os pressupostos do procedimento extrajudicial PERSI é obrigatória a integração do cliente bancário nesse regime e a comunicação de extinção de tal procedimento, funcionando essas comunicações como condição de admissibilidade da acção executiva pela instituição bancária que peticiona o pagamento, pelo que a sua falta consubstancia uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância.
IV – As comunicações de integração e extinção do PERSI têm de ser feitas em suporte duradouro constituindo ónus do exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a sua recepção pelos executados, não constituindo a simples junção ao processo das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas, por si só, prova do seu envio e recepção pelos executados.
V – A demonstração do envio das comunicações do PERSI pode ser efectuada através de prova testemunhal, visto ser admissível a prova da remessa e entrega ao destinatário das respetivas cartas através de qualquer meio de prova.
VI – Só é possível o conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, não cabendo ao juiz antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos controvertidos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção, designadamente se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (3.ª Secção),[1]
AA e BB vieram apresentar embargos de executado por apenso à acção executiva que lhes foi movida por Banco 1....
Mais alegam que o contrato de mútuo com hipoteca, título executivo, foi celebrado a 22-06-2005 e que até à data pagaram à exequente/embargada a quantia global de € 28 851,96; e mesmo que sejam devidas as quantias globais indicadas de juros vencidos e de cláusula penal, os executados/embargantes apenas deveriam do empréstimo o montante de € 7290,31, não sendo devedores da quantia de € 32 276,02.
Referem, outrossim, que a embargada foi praticando taxas verdadeiramente arbitrárias, aduzindo que está em dívida o montante exequendo de capital, aplicando uma taxa de juro (contratual) elevadíssima, uma cláusula penal de 4%, quando não existe fundamento legal ou de prática corrente do Banco, e até face à economia nacional e mundial.
Concluem que o real valor do processo é, no máximo, de € 7290,31.
No final da petição de embargos, os embargantes arrolaram 3 testemunhas.
Invoca, também, que a movimentação dos valores cobrados a título de capital ao longo da vida do empréstimo encontra-se melhor explicitada da pp. 1 a 9 do extracto bancário, no qual se demonstra que os cálculos fornecidos pelos embargantes encontram-se incorrectos e que os mesmos deviam, em 08-04-2022, a título de capital, o valor de € 28 002,81.
Por outro lado, a taxa de juro aplicada ao empréstimo não ultrapassou os 2%, tal como se extrai do teor do requerimento executivo, e a cláusula penal aplicada é de 3%, para além de que, aquando da outorga do contrato, os embargantes responsabilizaram-se pelo pagamento das despesas decorrentes dos encargos relacionados com o empréstimo (cf. cl. 7.ª do documento complementar anexo ao contrato de mútuo).
Por fim, os embargantes ainda se obrigaram ao pagamento dos prémios de seguro – v. alínea g) do n.º 1 da cláusula 9.º do documento complementar anexo ao contrato de mútuo.
No final da sua contestação, a embargada arrolou 2 testemunhas.
A embargada veio referir, em 15-04-2024, “que as cartas de integração e extinção do PERSI são emitidas automaticamente datadas com o termo do procedimento em caso de incumprimento por parte dos mutuários e remtidos aos mesmos no dia útil seguinte.”.
“Ao abrigo do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 3, 6.º, 7.º, 547.º e 597.º do Código de Processo Civil, notifique as partes para, em 10 (dez) dias, querendo, se pronunciarem sobre o facto de os autos reunirem todos os elementos indispensáveis para proferir uma decisão de mérito sem necessidade de agendar audiência prévia, sendo temas a decidir: a violação do PERSI; do montante da dívida; da cláusula penal; quanto aos demais valores devidos a título de imposto e demais despesas”.
(…).
(i) Impugnação da matéria de facto: indagar se são de aditar os novos factos provados 2 A, 9 A, 12, 13, 14 e 15, e, concomitantemente, eliminar os factos vertidos nos pontos 9, 11, 12 e 13 da sentença recorrida:
– Facto 2 A: “Os executados pagaram as prestações mensais do crédito contraído, identificado no ponto 2 que antecede, nas datas devidas, em concreto em 22/07/2005, 22/08/2005, 22/09/2005 e 22/10/2005”;
– Facto 9 A: “Os executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas à exequente a partir de 22/08/2020, inclusive, data na qual se encontrava em dívida de capital o montante de 7.290,31€, não tendo os executados pago as prestações subsequentes, implicando o vencimento de toda a dívida”;
– Facto 12: “A comunicação constante das cartas da exequente junta como doc. 1 à contestação, datada de 23/05/2015, da qual consta a integração no PERSI dos executados AA e BB, não foi por estes recebida”;
– Facto 13: “A comunicação constante das cartas da exequente junta como doc. 2 à contestação, datada de 23/08/2015, da qual consta a extinção do PERSI por ter sido atingido o prazo estipulado no art.º 17.º, n.º 1, al. c), não foi recebida pelos executados AA e BB”
– Facto 14: “No âmbito do seguro multirriscos associado ao crédito habitação contraído pelos recorrentes, junto da A..., esta seguradora pagou na sequência de sinistros, a quantia de 2.620,00€, para a conta com o NIB ...56 conforme indicação da exequente, sem que essa quantia fosse abatida aos valores de empréstimo a vencer mensalmente”;
– Facto 15: “No âmbito do seguro multirriscos associado ao crédito habitação contraído pelos recorrentes, junto da A..., esta seguradora pagou na sequência de sinistros, a quantia de 3.000,00€, para a conta com o NIB ...56 conforme indicação da exequente, sem que essa quantia fosse abatida aos valores de empréstimo a vencer mensalmente”.
(ii) Verificar se a sentença recorrida viola os arts. 3.º, alínea h), 14.º, n.º 4, e 17.º, n.ºs 3 e 4, do DL n.º 227/2012, de 25-10, 2.º, n.º 1, e 9.º-A, n.º 4, da Lei n.º 24/96, de 31-07, 224.º, n.º 1, e 344.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
O Tribunal recorrido expendeu o seguinte quanto à factualidade provada e não provada:
“O tribunal considera provados, tendo em conta os documentos (v. art.ºs 362.º a 387.º do Código Civil) e/ou por acordo/confissão/não impugnação (v. art.ºs 46.º e 574.º/2, do CPC), visto ainda o requerimento executivo e título executivo -, os seguintes factos:
1. Em 13 de Fevereiro de 2023, a exequente “Banco 1...” instaurou ação executiva ordinária contra os executados AA e BB, com fundamento em contrato de mútuo com hipoteca de 22 de Junho de 2005 (cf. documentos juntos com o requerimento executivo).
2. Com efeito, em 22 de Junho de 2005, mediante escritura pública celebrada no Cartório notarial ..., os executados AA e BB celebraram com a exequente um contrato de Compra e Venda Mútuo com Hipoteca, nos termos do qual foi mutuado aos executados a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) – v. escritura pública junta como Documento n.º 1 com o requerimento executivo.
3. Por acordo celebrado entre exequente e executados em 30-06-2014, convencionou-se um período de carência de capital compreendido entre 22-05-2014 e 22-05-2015 – v. Doc. 2 junto com o requerimento executivo.
4. Nesse acordo, os dois executados declararam ser residentes na e.
5. Para garantia da obrigação assumida, foi constituída a favor da exequente segunda hipoteca voluntária sobre o prédio misto composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar e parte rústica composta por pinhal e mato, sito em ..., ..., na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...61 urbano e ...75 rústico e descrito na CRP ... sob o n.º ...78 (v. Doc. 3 junto com o requerimento executivo).
6. Esse imóvel foi adquirido pela exequente no âmbito do Processo de Execução n.º 1542/20...., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Execução de Soure - Juiz 1, em que foram intervenientes os aqui executados, sendo o valor da venda devidamente contabilizado no contrato em crise, nos termos do artigo 785.º, do Código Civil – v. Docs. 4 e 5 juntos com o requerimento executivo.
7. Nos termos da acima referida escritura pública referida em 2., ficou convencionado que o pagamento do referido mútuo seria efetuado em 480 meses, através de prestações mensais, sucessivas e constantes, de capital e juros (cf. cláusula 3.ª do documento complementar anexo ao doc. 1).
8. Na cláusula 7.ª do documento complementar anexo ao contrato de mútuo ficou consignado:
(Despesas)
2. Ficam ainda por conta da Parte Devedora todas as despesas por serviços prestados pela Banco 1..., comissões, despesas anuais de gestão e outros encargos inerentes ao presente contrato, os quais se encontram afixados nos balcões da Banco 1....
3. Os documentos relativos às despesas referidas nos números anteriores, elaborados de acordo com a presente escritura, provam o pagamento de prestações futuras, nos termos e para os efeitos do artigo 50.º do Código de Processo Civil.
9. Porém, os executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas à exequente, não tendo pago as prestações que se venceram em 22-08-2020, nem as prestações subsequentes, implicando o vencimento de toda a dívida – cf. artigos 781.º e 817.º do Código Civil.
10. O capital mutuado venceria juros, durante o primeiro trimestre, à taxa anual de 3,4019% (três virgula quatro zero um nove por cento) - cf. cláusula 2.ª do doc. 1.
11. A exequente peticiona, através da execução principal, o pagamento da quantia global de € 32.276,02 (trinta e dois mil, duzentos e setenta e seis e dois cêntimos), discriminados da seguinte forma:
- Capital em Dívida 28.002,81 euros;
- Juros desde 2020-08-22 a 2023-02-10 1.319,18 euros,
Compreendendo:
- Juros de 2020-08-22 a 2020-09-21 à taxa de 1,9960311% 48,13 euros
- Juros de 2020-09-22 a 2020-12-21 à taxa de 1,7844300% 126,31 euros
- Juros de 2020-12-22 a 2021-03-21 à taxa de 1,7427676% 122,01 euros
- Juros de 2021-03-22 a 2021-06-21 à taxa de 1,7224502% 123,26 euros
- Juros de 2021-06-22 a 2022-09-21 à taxa de 1,9960311% 709,55 euros
- Juros de 2022-09-22 a 2023-02-10 à taxa de 1,7315926% 189,92 euros
- Cláusula Penal de 3.0000000% desde 2020/09/22 - 2.032,53 euros;
- Seguros 569,00 euros
- Juros Moratórios sobre Seguros 44,81 euros
- Imposto sobre Seguros 1,79 euro
- Mutuários Conta Despesas 150,25 euros
- Juros Moratórios sobre Mutuários Conta Despesas 14,94 euros
- Imposto sobre Despesas 6,64 euros
- Imposto de Selo 134,07 euros
no TOTAL de 32.276,02 euros – v. ainda Doc. 3 junto com a contestação.
12. Através da carta de 23 de Maio de 2015, dirigida para a morada do contrato: “Rua ..., ... ...”, a exequente comunicou aos executados AA e BB:
Estimado(s) Cliente(s)
No decorrer do acompanhamento permanente efetuado pelo Banco 1..., e dando seguimento ao Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, informamos que em virtude do incumprimento cm as responsabilidades assumidas no âmbito do(s) contrato(s) identificado(s) no verso foi integrado no Processo Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI)
Data de integração no PERSI: 23-05-2015
O PERSI visa promover a negociação entre as instituições de crédito e os clientes bancários de soluções extrajudiciais para as situações de incumprimento. Deste modo, vimos manifestar a nossa total disponibilidade para encontrar, em conjunto consigo, a solução adequada para o incumprimento registado, bem como para outros que se venham a verificar, pelo que se solicita a entrega, no seu Balcão, da seguinte documentação:
- Última declaração de IRS e respetiva Nota de Liquidação
- Últimos 3 recibos de vencimento
- Declaração emitida pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (em caso de desemprego)
- Certidão da Conservatória do Registo Predial ou respetivo código de acesso e Caderneta Predial dos imóveis que garantem o financiamento se aplicável.
Em anexo enviamos informação adicional, em conformidade com o estabelecido pelo Aviso 17/2012 do Banco de Portugal.
Para informações ou esclarecimentos adicionais, estamos à sua disposição no Balcão Banco 1...:
... – ..., através do número ...00
Com os nossos melhores cumprimentos, Banco 1... – v. Doc. 1 junto com a contestação.
13. E por carta de 23 de Agosto de 2015, dirigida para a morada do contrato: “Rua ..., ... ...”, a exequente comunicou aos executados AA e BB:
- a extinção do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), pelo motivo de ter sido atingido o prazo estipulado no art. 17.º, n.º 1, al. c) – v. Doc. 2 junto com a contestação.
14. Os embargantes deduziram embargos em 10-10-2023.
Não se provou que:
a) Os executados apenas devem quanto ao contrato de mútuo com hipoteca antes aludido o montante global de 7.290,31€.
“A convicção do Tribunal, para a determinação da matéria de facto acima referida, assentou na posição assumida pelas partes nos articulados e no conjunto de toda a prova produzida neste apenso e nos autos executivos, analisada conjugada e criticamente, à luz das regras de experiência comum, segundo juízos de normalidade e de acordo com as regras de repartição do ónus da prova aplicáveis ao caso. Foram valorados os documentos juntos pela exequente, muito embora tenham sido impugnados pelos embargantes.
E o documento nº 1, junto pelos embargantes, não demonstra que os executados procederam ao pagamento das prestações como alegam, mas apenas desse elemento se extrai os valores debitados entre junho e novembro de 2005.
No entanto, pese embora tenham sido impugnados pelos embargantes, a verdade é que tais documentos, livremente apreciados pelo tribunal, são suficientemente seguros quanto aos factos em causa.
Tais documentos constituem um meio de prova livremente apreciado pelo julgador, ficando apenas arredada a sua força probatória plena a que alude o artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 28.04.2016, no processo n.º 332/13.8TBSRT.L1-2, e do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 02.06.2002, disponível em www.dgsi.pt).”.
As partes não dissentem que a 22 de Junho de 2005, os executados/embargantes celebraram com a exequente/embargada uma escritura pública, formalizando um Contrato de Mútuo com Hipoteca, nos termos do qual foi emprestada aos executados, pela exequente, a quantia de € 35 000,00 (trinta e cinco mil euros), cujo pagamento seria efectuado em 480 meses, através de prestações mensais, sucessivas e constantes, de capital e juros, tendo depois as partes, em 30 de Junho de 2014, convencionado um período de carência de capital compreendido entre 22-05-2014 e 22-05-2015, tendo os executados, neste último acordo, declarado residir na “Rua ..., ...”.[2]
Mais está provado que para garantia daquela obrigação foi constituída, a favor da exequente, segunda hipoteca voluntária sobre o prédio misto sito em ..., ..., na Rua ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78 e inscrito na matriz sob os artigos ...61 urbano e ...75 rústico, tendo esse imóvel sido adquirido pela exequente no âmbito do Processo de Execução n.º 1542/20...., e o valor da venda devidamente contabilizado no contrato supra referido, nos termos do art. 785.º do Código Civil.
Aquela escritura de mútuo encerra uma confissão de dívida, daquele montante, por parte dos embargantes/mutuários àquela entidade bancária – cf. cláusula 1.ª, n.º 1.
A escritura pública documentando um contrato de mútuo e uma hipoteca como garantia desse mútuo, sendo a quantia mutuada destinada “a ser utilizada em necessidades relacionadas especificamente com o lar” (sic) e concedida por uma instituição de crédito autorizada a conceder crédito, constitui título executivo à luz do art. 703.º, alínea b), do CPC, porque importa a constituição e o reconhecimento de uma obrigação.
In casu, e não estando posta em crise a matéria antes indicada, os motivos do recurso dos embargantes relacionam-se, por um lado, com a matéria de facto que o tribunal deu por provada, designadamente no que tange, em primeiro lugar, aos pagamentos que os executados terão realizado por conta da dívida e ao montante da quantia exequenda que permanece em débito, bem como, por outro lado, à comunicação da integração dos executados no PERSI e à comunicação da extinção do PERSI (pontos n.ºs 9, 11, 12 e 13 da factualidade provada).
Para além disso, os embargantes entendem que o tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 3.º, alínea h), 14.º, n.º 4, e 17.º, n.ºs 3 e 4, do DL n.º 227/2012 de 25-10, 2.º, n.º 1, e 9.º-A, n.º 4, da Lei n.º 24/96 de 31-07, 224.º, n.º 1, e 344.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
Posto isto analisemos as questões do recurso, começando pelo recurso da matéria de facto, não oferecendo dúvidas que os recorrentes cumpriram os ónus dos arts. 639.º e 640.º do CPC.
(i) Impugnação da matéria de facto: indagar se são de aditar os novos factos provados 2 A, 9 A, 12, 13, 14 e 15, eliminando-se os factos vertidos nos n.ºs 9, 11, 12 e 13 da sentença recorrida.
Estatui o art. 662.º do CPC, no seu n.º 1, que “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20-04-2017, Proc. n.º 17/16.3T8EPS.G1, debruçando-se sobre o alcance do n.º 1 do art. 662.º do CPC:
“(…) [Q]uando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto – que a ela conduza – constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663.º, nº 2 do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico – com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.). Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados)”.
Concretizando, nos termos do citado dispositivo legal, a Relação deve alterar a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem uma decisão diferente daquela.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do tribunal de primeira instância que deu como provados certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com base em algum meio de prova impugnado e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2022, 3.ª edição, p. 861, nota 14: “Quanto a segmentos da decisão que sendo imprescindíveis para a decisão) se revelem insuficientes, obscuros ou contraditórios (STJ 12-5-26, 2325/12) a Relação deverá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal se fundou (…). Não sendo o caso, deve anular a decisão recorrida e remeter o processo para a 1ª instância. Solução também prevista para os casos em que se mostre necessária a ampliação da matéria de facto que não possa de imediato ser assegurada. Quando estiver em causa a deficiente fundamentação da matéria de facto, a devolução deve ser guardada para casos em que, além de serem efectivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova”.
Isto dito, detenhamo-nos na análise do caso concreto.
Os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa visando a extinção (parcial ou total) da execução, mediante o reconhecimento da inexistência do direito exequendo ou da falta de algum pressuposto, específico ou geral, da acção executiva.
Tal como tem sido entendido consensualmente pela jurisprudência, nos embargos de executado, as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, baseadas em normas de direito probatório substantivo, não se alteram, cabendo ao executado que deduz embargos a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, por força do preceituado no art. 342.º do Código Civil – cf., entre muitos outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2007, Proc. n.º 07B683; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-04-2016, Proc. n.º 36/14.4TBNLS-A.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26-11-2020, Proc. n.º 4081/12.6TVNF-B.G1; e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-12-2023, Proc. n.º 3189/19.1T8ENT-A.E2.[3]
In casu, regista-se que não obstante os embargantes e a embargada terem arrolado prova documental e testemunhal, o tribunal recorrido optou por exarar despacho saneador-sentença, apenas com base na prova documental inserta no processo, desde já se adiantando que há factualidade que o tribunal considerou provada, que se mostra impugnada pelos executados e carecia, evidentemente, de produção de prova adicional.
Mas atentemos detalhadamente nesses aspectos.
Consideram os recorrentes, desde logo, que está provado, através da conjugação dos documentos juntos aos autos, no processo principal e apenso A – v.g., escritura de mútuo e hipoteca de 22-06-2005, documento complementar anexo a essa escritura e doc. n.º 1 junto à petição inicial dos embargos de executado – que os embargantes pagaram as prestações mensais do crédito contraído, em concreto em 22-07-2005, 22-08-2005, 22-09-2005 e 22-10-2005, e que faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas à exequente a partir de 22-08-2020, inclusive, data na qual se encontrava em dívida de capital o montante de € 7290,31.
Porém, salvo o devido respeito, não se verifica que os embargantes tenham logrado demonstrar, com aquela prova documental, os aludidos pagamentos, posto que o documento que os executados vêm mencionar é uma mera caderneta que foi entregue ao executado/embargante AA, pela exequente, referente à conta n.º 1...91-6, que apenas evidencia o registo dos movimentos bancários realizados entre 14-06-2005 e 13-11-2005, demonstrando que, nas datas aí indicadas – a 22-07-2005, a 22-08-2005, a 22-09-2005 e a 22-10-2005 –, foram cobrados, mensalmente, € 250,37, por conta do empréstimo ...10, e € 135,25 por conta do empréstimo ...91.
Daí não se pode extrair a prova de qualquer pagamento realizado pelos embargantes, porquanto, como se refere na sentença sob recurso, “o documento nº 1, junto pelos embargantes, não demonstra que os executados procederam ao pagamento das prestações como alegam, mas apenas desse elemento se extrai os valores debitados entre junho e novembro de 2005”.
No plano oposto, todavia, o documento n.º 3 junto à contestação de embargos, por parte da exequente/embargada, de que o tribunal a quo se socorreu para dar como provado o facto n.º 11, atinente ao montante da dívida exequenda, foi expressamente impugnado pelos embargantes, no requerimento apresentado em resposta à junção daquele documento por parte da exequente, em 27-02-2024, com a referência citius 8701973 (cf. parágrafo 13), nos seguintes termos:
“Do mesmo modo, se impugna o doc. 3, por se tratar de um documento particular, elaborado pela própria exequente, sem capacidade de poder provar o que a embargada pretende (até por não corresponder à realidade, conforme melhor consta dos embargos de executado deduzidos” (sic) – sublinhado nosso.
Na verdade esse documento, além de não ter qualquer timbre ou cabeçalho identificativo da exequente, apenas tem apostos os dizeres “Extracto Movimentos - Moeda : Eur - Contrato: 131.27.... Subproduto: Ir Titular: ...77-AA”, e é um print de um extracto de movimentos realizados na conta bancária, revelando valores cobrados ao longo da vida do empréstimo. Trata-se, pois, de um simples documento particular, sem qualquer assinatura, seja da exequente/entidade bancária, seja do(s) executado(s)/cliente(s), apenas constando números com datas de movimentos, valores e saldos e dizeres alusivos a estes items.
Destarte, embora esse documento possa servir de princípio de prova para demonstrar que a quantia em débito, aquando da instauração desta execução, ascendia à quantia global de € 32 276,02 (trinta e dois mil, duzentos e setenta e seis euros e dois cêntimos) – correspondendo € 28 002,81 ao capital em dívida, e € 1319,18 aos juros contados desde 22-08-2020 a 10-02-2023, compreendendo: (i) juros de 2020-08-22 a 2020-09-21, à taxa de 1,9960311% – € 48,13; (ii) juros de 2020-09-22 a 2020-12-21, à taxa de 1,7844300% – € 126,31; juros de 2020-12-22 a 2021-03-21, à taxa de 1,7427676% – € 122,01; (iii) juros de 2021-03-22 a 2021-06-21, à taxa de 1,7224502% – € 123,26; (iv) juros de 2021-06-22 a 2022-09-21, à taxa de 1,9960311% – € 709,55; (v) juros de 2022-09-22 a 2023-02-10, à taxa de 1,7315926% – € 189,92; (vi) cláusula penal de 3.0000000%, desde 2020/09/22 – € 2.032,53; (vii) seguros € 569,00; (viii) juros moratórios sobre seguros – € 44,81; (ix) imposto sobre seguros – € 1,79; (x) mutuários conta despesas – € 150,25; (xi) juros moratórios sobre mutuários conta despesas – € 14,94; (xii) imposto sobre despesas – € 6,64; (xiii) imposto de selo – € 134,07 –, o mesmo, tendo sido impugnado, é insuficiente, por si só, para demonstrar que aquela quantia está correctamente apurada, sendo necessária a produção de prova adicional, mormente testemunhal, para demonstrar esse facto crucial.
Em suma, o extracto bancário elaborado pela exequente, embora sirva para demonstrar probatoriamente que a relação contratual se desenvolveu de determinada maneira, uma vez que a disponibilização da quantia mutuada gerou para os embargantes/executados obrigações pecuniárias de restituição (do tantundem) e de remuneração dessa disponibilidade, não é, por si só, prova suficiente dos montantes em débito na execução, atendendo à sua impugnação expressa pelos embargantes, nos termos antes aludidos, constituindo, apenas, um princípio de prova que deve ser complementada, designadamente, através de prova testemunhal.
Por conseguinte, discorda-se do entendimento vertido na sentença da 1.ª instância, no que respeita ao montante da dívida exequenda, quando consigna, na p. 10: “Resultou demonstrado que os executados estão a dever, a título de capital, o valor de € 28.002,81 (vinte e oito mil e dois euros e oitenta e um cêntimos), nos termos do extrato que se junta como doc. 3. /A movimentação dos valores cobrados a título de capital ao longo da vida do empréstimo encontra-se melhor explicitado da página 1 à página 9 do extrato bancário junto pela exequente, não sendo corretos nem estando minimamente demonstrados os valores apontados pelos embargantes, sobretudo, a soma ou o total apresentado de cerca de sete mil euros de dívida” (sic).
Reitera-se, tendo o documento particular que suporta essa conclusão sido impugnado, não podia o tribunal a quo dar como provado esse facto – cf. art. 376.º do Código Civil, a contrario –, desacompanhado de prova complementar, designadamente testemunhal.
Destarte, impõe-se a produção dessa prova, que aliás a embargada arrolou tempestivamente, para (eventualmente) poder dar como provados os correspondentes factos.
O mesmo se diga, outrossim, no que se refere aos factos atinentes à comunicação da integração no PERSI e da falta de comunicação da extinção do PERSI aos executados, porquanto, contrariamente ao referido pelo tribunal a quo, os embargantes puseram em crise essa factualidade nos arts. 6.º, 7.º, 8.º e 9.º da petição inicial dos embargos e impugnaram os documentos apresentados pela embargada, com a sua contestação, no requerimento com a referência citius 8701973, apresentado, em 27-02-2024, em resposta à junção daqueles documentos: “(…) [F]orçoso se apresenta deixar por impugnados os docs. 1 e 2 juntos à contestação da embargada, uma vez que sérias e legítimas dúvidas se suscitam quanto à sua regularidade e fiabilidade, para os fins de prova pretendidos pela exequente” (cf. parágrafo 9, sic) – sublinhado nosso.
É evidente que os documentos em apreço estão impugnados.
Como é sabido, o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), previsto no DL n.º 227/2012, de 25-10, permite que os clientes bancários beneficiem de um conjunto de direitos e de garantias para facilitar a obtenção de um acordo com as instituições de crédito na regularização de situações de incumprimento, evitando o recurso aos tribunais, aplicando-se esse modelo de negociação à generalidade dos contratos de crédito celebrados com consumidores.
No âmbito desse diploma impõe-se chamar a atenção para o regime das comunicações da integração do devedor no PERSI e da sua extinção, que consta, fundamentalmente, dos arts. 3.º, alínea h), 14.º, n.º 4, e 17.º, n.ºs 3 e 4 daquele diploma:
- Art. 3.º, al. h):
“«Suporte duradouro» qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.”.
- Art. 14.º, n.º 4:
“No prazo máximo de cinco dias após a ocorrência dos eventos previstos no presente artigo, a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro.”
- Art. 17.º, n.ºs 3 e 4:
“3. A instituição de crédito informa o cliente bancário, através de comunicação em suporte duradouro, da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a manutenção deste procedimento.
4, A extinção do PERSI só produz efeitos após a comunicação referida no número anterior, salvo quando o fundamento de extinção for o previsto na alínea b) do n.º 1”.
Emerge destes dispositivos legais que a integração no PERSI e a extinção deste procedimento têm de ser comunicadas pela instituição de crédito/recorrida, aos clientes/recorrentes, “através de comunicação em suporte duradouro” – arts. 3.º, alínea h), 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, do DL n.º 227/2012 – sendo certo que, a extinção do indicado procedimento só produz efeitos após a sua comunicação – art. 17.º, n.º 4 – constituindo tais comunicações declarações receptícias, nos termos previstos no art. 224.º do Código Civil
Em face deste regime, tem sido posição unânime na jurisprudência, que o recurso a tal procedimento extrajudicial – com a integração no PERSI e a comunicação de extinção de tal procedimento, persistindo o incumprimento –, funciona como condição de admissibilidade da acção judicial (declarativa ou executiva) pela instituição bancária que peticiona o pagamento.
Conforme se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-02-2023, Proc. n.º 1141/21.6T8LLE-B.E1.S1:
“III. Verificando-se os pressupostos do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), é obrigatória a integração do cliente bancário nesse regime, caso em que a acção/execução judicial destinada a satisfazer o crédito só poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção desse procedimento.
IV. A omissão da informação ou a falta de integração do devedor no PERSI, pela instituição de crédito, constitui violação de normas de carácter imperativo, que configura, também, excepção dilatória atípica ou inominada, conducente à absolvição do executado da instância executiva”.
De igual forma, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-04-2021, Proc. n.º 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1, que a comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, constituem condição de admissibilidade da acção executiva, consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância, de harmonia com o art. 576.º, n.º 2, do CPC.
É inequívoco, reitera-se, que tais comunicações têm de ser feitas em suporte duradouro, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilite a sua reprodução integral e inalterada, e, portanto, reconduzível à noção de documento constante do art. 362.º do CC.
Por outro lado, sendo declarações receptícias, constitui ónus da exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pelos executados.
Acresce que, como se refere no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-04-2021, a simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não constituem, por si só, prova do envio e recepção das mesmas pelos executados, podendo, todavia tal apresentação ser considerada como princípio de prova do envio a ser coadjuvada com recurso a outros meios de prova.
Nesta mesma senda, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-01-2023, Proc. n.º 5517/18.8T8VIS-A.C1: “Exigindo o art. 14.º, n.º 4, do DL n.º 227/12, de 25-10, que as comunicações sejam feitas, no âmbito do PERSI, em suporte duradouro, a demonstração do envio de tais comunicações pode ser efetuada através de prova testemunhal, visto ser admissível a prova da remessa e entrega ao destinatário das respetivas cartas através de qualquer meio de prova”.
Concluindo: recaindo sobre a instituição de crédito, exequente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações legais que para si decorrem dos arts. 12.º e ss. do DL n.º 227/2012, designadamente, provar as comunicações de integração e de extinção de PERSI, que constituem condições objectivas de procedibilidade da execução, a simples junção de cópia das cartas de integração do cliente no PERSI e de extinção de PERSI, desacompanhadas de outros meios de prova, é insuficiente para demonstrar o seu envio – neste mesmo sentido, também, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22-01-2024, Proc. n.º 2085/16.9T8ALM.L1-2.
Aqui chegados, uma vez mais, discorda-se do tribunal a quo, quando menciona na sentença sob recurso, de modo conclusivo, e sem mais provas o seguinte:
“(…) [O]s embargantes nada referem quanto ao eventual motivo que poderia tê-los impedido de rececionar as duas cartas a notificá-los da integração, primeiro, e da extinção do PERSI, a seguir, que a exequente junta como Doc.s 1 e 2, com a sua contestação – v. factos assentes.
Os dois embargantes não colocam em causa que as cartas lhes foram enviadas.
Em resposta de 15-04-2024, a exequente esclarece que “as cartas de integração e extinção do PERSI são emitidas automaticamente datadas com o termo do procedimento em caso de incumprimento por parte dos mutuários e remetidos aos mesmos no dia útil seguinte.”
E provando-se o envio, como ocorre neste caso, temos de presumir a sua receção.
Tal presunção funda-se na regra da experiência no sentido da fiabilidade dos serviços de correios no sentido de que o transporte se efetiva corretamente e a carta chegou em condições ao destinatário – v. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª edição, pp. 298/299, citado no acórdão da Relação de Lisboa de 05-01-2021, Processo n.º 105874/18.0YIPRT.L1-7, www.dgsi.pt.
Por outro lado, não se descortina nenhuma razão/motivo para tais cartas serem as únicas a, hipoteticamente, não terem sido recebidas pelos embargantes quando, da matéria provada resulta que os embargantes indicaram a sua morada, novamente no acordo efetuado com a exequente em 30 de junho de 2014.
Em conclusão, as cartas de integração e de extinção do PERSI foram envidas para a morada fornecida pelos embargantes no acordo ao contrato de mútuo e datado de 30 de junho de 2014, não se vislumbrando nenhum motivo válido para não terem igualmente sido recebidas pelos devedores/executados, aplicando-se aqui o disposto no citado acórdão do TRPorto de 16-12-2015” (sic).
Repete-se, os embargantes impugnaram aqueles factos e aqueles documentos, razão pela qual não se pode presumir o seu recebimento, dado que a sua demonstração probatória, carece de prova complementar, designadamente testemunhal, a cargo da exequente.
A terminar diga-se, outrossim, que o tribunal não se pronunciou, seja positiva, seja negativamente, sobre o teor dos documentos que os embargantes juntaram, como documentos A e B, com o já citado requerimento de 27-02-2024.
É, pois, manifesto que o processo não contém todos os elementos de facto necessários à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, sendo, pois, extemporâneo o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, sem a produção da prova testemunhal que as partes arrolaram tempestivamente.
Nos termos do art. 595.º do CPC, o despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória
Na hipótese prevista na alínea b), o despacho fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença – cf. n.º 3, 2ª parte, do citado art. 595.º.
Como é ostensivo, só é possível o conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, tendo a parte arrolado prova testemunhal.
Nesse caso, não é lícito ao juiz antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos controvertidos que sejam relevantes, segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção.
Neste sentido existe abundante jurisprudência, de que se citam, a título de exemplo:
– Acórdão do STJ, de 09-03-2021, Proc. n.º 8439/06.1TBBRG.G1.S1 – “Uma vez que determinados pontos da matéria de facto, dados como provados em sede de saneador-sentença (e que foram mantidos pela Relação em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto), alegados pela autora na petição inicial, foram objeto de impugnação, inexistindo relativamente aos mesmos (o que não foi sequer invocado pelas instâncias) documentos com força probatória plena, e sendo tais factos relevantes para o conhecimento do mérito da causa, não estavam os autos em condições de ser proferido, como foi, saneador-sentença, razão pela qual, em princípio, se impõe o prosseguimento dos autos com vista à realização da audiência de julgamento”.
– Acórdão do STJ de 18-03-2021, Proc. n.º 12968/16.0T8LSB.L1.S1: “O conhecimento imediato do mérito da causa, na fase intermédia da demanda, qual seja, o saneador, só será de reconhecer quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não tendo em vista apenas e só a adotada pelo juiz da causa, a matéria de facto não deixar dúvidas sobre a sua procedência ou improcedência, sendo que tal ocorrerá quando toda a facticidade se mostre adquirida processualmente, a par de que seja manifestamente indiferente, para qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, a demonstração de quaisquer outros factos impugnados.”
– Acórdão do STJ de 02-06-2021, Proc. n.º 449/18.2T8FAR.E1.S1 – “A aferição da necessidade de produção de prova em sede de audiência final, atentos os factos controvertidos, deverá ser feita em função das soluções de direito que então se afigurem objetivamente plausíveis e não na estrita perspetiva jurídica, subjetiva, do juiz que proferir o saneador-sentença, a não ser que se trate de questão unicamente de direito para a qual a matéria de facto controvertida seja absolutamente indiferente ou irrelevante”.
De resto este entendimento está consolidado, também, na jurisprudência dos Tribunais da Relação – cf., v.g., Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05-04-2022 e de 22-11-2022, Proc. n.º 449/20.2T8LRA.C1 e Proc. n.º4/20.7T8SAT.C1; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 24-05-2021 e de 06-05-2024, Proc. n.º 5900/20.9T8PRT-A.P1 e Proc. n.º 1059/23.8T8PRT.P1; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-10-2024, Proc. n. 4289/20.0T8LRS.L1-2.
Em face de todo o exposto, ter-se-á de revogar o despacho saneador-sentença uma vez que o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação dos embargos de executado e o processo deve prosseguir para a fase da instrução, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões recursivas.
(…)
*
*
Nos termos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, devendo o processo seguir os ulteriores trâmites processuais.
Luís Miguel Caldas
Francisco Costeira da Rocha
Sílvia Pires