I – No inventário para partilha de bens do extinto casal, também devem ser relacionados os bens que um dos cônjuges deliberadamente tenha sonegado do património comum, em seu benefício, uma vez que tal sonegação não se traduz num ato de administração do bem mas sim num enriquecimento ilegítimo do cônjuge que, prevendo o divórcio e a futura partilha, fez reverter o património comum em seu benefício, totalmente à revelia do dever de cooperação a que se vinculou no momento do casamento.
II – As partes têm a obrigação de carrear para os autos a prova dos factos que alegam, não cabendo ao Tribunal substituir-se-lhes nessa tarefa quando lhes possível fazê-lo por si próprias, não se sobrepondo, nesta parte, o princípio do inquisitório ao princípio do dispositivo e da autorresponsabilização das partes.
III – O direito à prova tem tutela constitucional – artº 20º, da Constituição da República Portuguesa -, uma vez que não há acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva sem acesso à prova necessária para esclarecimento dos factos.
IV – Porém, não se trata de direito ilimitado ou com caráter absoluto, havendo que demonstrar que a prova requerida é necessária e adequada à provar os factos alegados.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente AA
Recorrida BB
Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira
Juízes Desembargadores Adjuntos: Luís Miguel Carvalho Ricardo
Cristina Neves
Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
(…).
Nos autos de inventário anexos a ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, em que é Requerente BB, e é Requerido e Cabeça de Casal AA, em requerimento de resposta à reclamação contra a relação de bens, veio o Requerido requerer diligências de prova, nomeadamente:
- Requer se digne o Tribunal determinar a notificação da entidade bancária Banco 1... para informar aos autos quais os sinais e os titulares da conta de destino da transferência de 5000€ feita em 26.11.2021 a partir da conta comum do casal de que se juntou cópia – doc n. º 1 –, também com informação (se possível) acerca da pessoa que procedeu aos movimentos de crédito (depósito) e de débito (transferência), por esse montante e nessa data, e com fornecimento ao Tribunal de cópias de todos os documentos que existam relacionados com tais operações.
- Requer se digne o Tribunal determinar a notificação da entidade bancária Banco 2..., para juntar aos autos um extracto detalhado, dos últimos 5 anos e até ao respectivo encerramento (ou até à data presente, consoante for o caso), da conta que lá detinha CC, mãe da Requerente, viúva, residente que foi em ..., freguesia ..., concelho ..., já falecida.
Relativamente a tal requerimento, decidiu o Tribunal a quo que:
O cabeça de casal requereu ainda a notificação da entidade bancária Banco 1... para informar aos autos quais os sinais e os titulares da conta de destino da transferência de 5000€ feita em 26.11.2021 e ainda a notificação da entidade bancária Banco 2..., para juntar aos autos um extrato detalhado, dos últimos 5 anos e até ao respetivo encerramento (ou até à data presente, consoante for o caso), da conta que lá detinha CC, mãe da Requerente
Ora conforme explanado no despacho datado de 15-10-2023 ( com referência Citius 93866339) « O divórcio que dissolveu o casamento entre requerente e requerido foi decretado no dia 22/12/2022, pelo que à luz do artigo 1789.º, n.º 1, do Código Civil, os efeitos patrimoniais devem ser considerados tendo em conta esta data, de modo que os movimentos anteriores ou posteriores àquela data são irrelevantes para efeitos de partilha, os primeiros porque nessa data o casamento estava em plena vigência e a partilha do casal só acontece com a cessação das relações patrimoniais em virtude da dissolução do casamento por divórcio – artigo 1689.º do Código Civil.
No segundo caso, porque as relações patrimoniais haviam já cessado.»
Assim, face ao exposto, indefere-se o requerido.
O Recorrente AA interpôs recurso dessa decisão, concluindo, nas suas alegações, que:
(…).
A Recorrida BB declarou não se opor ao recurso apresentado.
Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal ad quem às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim:
Questões a decidir:
1) Dos efeitos patrimoniais do divórcio
2) Do dever de carrear prova para os autos
3) Do direito à prova
A – De Facto
Do historial dos presentes autos
a) A Requerente BB e o Requerido AA contraíram casamento católico um com o outro, no dia 15 de dezembro de 1966, sem convenção antenupcial, conforme Assento de Casamento n.º ...0 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil ....
b) A 22 de Novembro de 2022, BB requereu o divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra AA.
c) Requerente e Requerido convolaram o Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge em Divórcio por Mútuo Consentimento.
d) Tendo dito e acordado o seguinte: -
1 – Prescindem reciprocamente de alimentos um do outro, por deles não carecerem.
2 – A utilização da casa de morada de família, - artº. urbano ...45, sita na freguesia ..., fica atribuída ao réu, até realização da partilha.
3 – Inexistem animais de companhia.
4 - Não há filhos menores de idade.
Existem bens comuns do casal a partilhar que, de momento, não conseguem discriminar, relegando essa matéria para partilha.
e) No dia 21 de Dezembro de 2022, nos autos principais, foi proferida sentença homologando os acordos celebrados e declarando-se dissolvido o respetivo casamento, celebrado no dia 15 de dezembro de 1966.
f) Nesta altura, as partes declararam expressamente renunciar ao prazo de recurso, nos termos do artigo 632º, nº1, do Código de Processo Civil.
g) A 22 de Março de 2023, BB requereu o inventário para partilha dos bens do extinto casal.
h) A 14 de Junho de 2023, o Recorrente apresentou relação de bens, tendo indicado, para além do mais:
Verba n. º 1
A quantia de quarenta e cinco mil euros, em numerário, em poder da Requerente BB, que a mesma levou consigo da casa de morada de família, quando deixou de coabitar com o Cabeça de Casal, e posteriormente conservou consigo …..................... €45.000,00.
Verba n. º 2
A quantia de quatro mil euros, em poder da Requerente BB, que a mesma levantou da conta bancária comum do casal, quando deixou de coabitar com o Cabeça de Casal, e posteriormente conservou consigo ……………………………………………. €4.000,00.
Verba n. º 3
A quantia de dez mil euros, em dinheiro, que para a Requerente do presente inventário resultou de partilha amigável que ela e seus irmãos fizeram do acervo em dinheiro que ficou por morte de sua Mãe, CC, na constância do matrimónio do Cabeça de Casal com a Requerente, o qual é um bem comum a partilhar nos presentes autos, atento o regime de bens em que estes foram entre si casados ……………………………….........................…………..……. €10.000,00.
i) A 26 de Junho de 2023, a Recorrida apresentou reclamação, alegando inexistir qualquer quantia a partilhar, por ter sido partilhada, logo após o divórcio, a única quantia que existia, no montante global de € 8.000,00.
j) A 29 de Setembro de 2023, respondeu o Recorrente, pugnando pela manutenção das verbas assinaladas e efetuando o requerimento supratranscrito, para tanto tendo alegado – artº 11º do requerimento de resposta - que:
Quando a mesma Senhora [a falecida mãe da Requerente, de seu nome CC] faleceu, em data que se agora não consegue precisar, ao que recorda o Cabeça-de-Casal havia 36.000,00€ (trinta e seis mil euros) a partilhar numa conta do ..., cuja titular e dona do dinheiro era a falecida CC, mas que podia ser movimentada pelo seu filho DD, irmão germano da Requerente, sendo que o referido valor foi distribuído pela Requerente e pelo mesmo DD como melhor entenderam, ainda que em proporções desiguais, sendo que uma irmã de ambos não recebeu qualquer quantia do referido valor, pelo modo como a respectiva divisão foi entre os mesmo acordada.
k) Foi então proferido do despacho recorrido.
B- De Direito
1) Dos efeitos patrimoniais do divórcio
Decidiu o Tribunal a quo que:
Conforme explanado no despacho datado de 15-10-2023 ( com referência Citius 93866339) «O divórcio que dissolveu o casamento entre requerente e requerido foi decretado no dia 22/12/2022, pelo que à luz do artigo 1789.º, n.º 1, do Código Civil, os efeitos patrimoniais devem ser considerados tendo em conta esta data, de modo que (…). (sublinhado nosso)
Consta-se aqui a existência de um primeiro erro no despacho recorrido, ao considerar que os efeitos patrimoniais do divórcio se produzem na data da dissolução do casamento.
Na verdade, dispõe o artº 1789º, nº 1, do Código Civil, que Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
A este propósito, em anotação ao suprarreferido preceito legal, diz-nos Rute Teixeira Pedro, “Código Civil anotado”, Ana Prata e outros, volume II, Almedina, 2023, págs. 720 e 721:
4. Em desvio à regra geral prevista na primeira parte do art. 1789.º, preveem-se, neste mesmo artigo, três regras especiais para as relações patrimoniais, duas aplicáveis entre os cônjuges, e uma outra em relação a terceiros.
Assim, no que concerne às relações patrimoniais entre os cônjuges, a lei consagra uma regra distinta, prevendo que a eficácia do decretamento do divórcio retroagirá a um momento anterior ao do trânsito em julgado: à data da propositura da ação de divórcio. Tal retroação aplicável apenas às relações de natureza patrimonial entre os cônjuges - p. ex., à partilha do património comum, podendo refletir-se na qualificação de bens a (não) partilhar, ou ao funcionamento do crédito compensatório do art. 1676.º, n.º 2 e 3 - opera automaticamente sem necessidade de formulação de pedido nesse sentido, nem de qualquer apreciação adicional. (sublinhado nosso)
Assim, a data a ter em conta, para o efeito de considerar quais os bens comuns a partilhar, é a data da interposição da ação de divórcio, ou seja, 22 de Novembro de 2022.
Mais decidiu o Tribunal a quo que:
(…) de modo que os movimentos anteriores ou posteriores àquela data são irrelevantes para efeitos de partilha, os primeiros porque nessa data o casamento estava em plena vigência e a partilha do casal só acontece com a cessação das relações patrimoniais em virtude da dissolução do casamento por divórcio – artigo 1689.º do Código Civil. No segundo caso, porque as relações patrimoniais haviam já cessado. (sublinhado nosso)
Consta-se agora a existência de um segundo ponto em que discordamos do despacho recorrido, na parte em que este considera como irrelevante, para efeitos de partilha, qualquer movimento patrimonial ocorrido antes ou depois do dia em que se produziram os efeitos patrimoniais do divórcio.
Não olvidamos a existência de jurisprudência neste sentido[1]; contudo, perfilhamos o entendimento de que devem também ser relacionados os bens que um dos cônjuges deliberadamente tenha sonegado do património comum, em seu benefício.
Tal sonegação não se traduz num ato de administração do bem mas sim num abuso de direito, não sendo de admitir o enriquecimento ilegítimo do cônjuge que, prevendo o divórcio e a futura partilha, fez reverter o património comum em seu benefício, totalmente à revelia do dever de cooperação[2] a que se vinculou no momento do casamento.
Dispõe o artº 1689º, nº 1, que: Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
Ora, um bem sonegado ao património comum, por um dos cônjuges, sem conhecimento do outro, em seu exclusivo interesse, não pode deixar de ser considerado uma dívida do cônjuge a este património, a considerar no momento da partilha.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2023, proferido no processo nº 947/17.5T8CVL-C.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt:
I - Do art. 1689.º do CC extrai-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro, repondo-se, assim, o reequilíbrio patrimonial.
II - Fazem parte do património comum do (ex)casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, não apenas os bens existentes à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos ex-cônjuges.
Ou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2024, proferido no processo nº 431/19.2T8AND.P1, disponível em www.dgsi.pt:
I - Nos termos do artigo 1789º do Código Civil, os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
II - Resultando provado que os ex-cônjuges casaram sob o regime de comunhão de adquiridos, o montante depositado numa conta bancária, proveniente dos rendimentos do trabalho, é um bem comum.
III - Na partilha, devem ser relacionados não só os bens existentes no património colectivo do casal à data da propositura da acção de divórcio (se a momento anterior não deverem retrotrair os seus efeitos), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deve conferir, por lho dever.
IV - Deve ser conferido ao património colectivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património próprio à custa desse património colectivo.
V - Ainda que um dos cônjuges tenha levantado a quantia da conta bancária em momento anterior à propositura da ação de divórcio, tal quantia deverá ser relacionada no inventário como bem comum sob pena de haver um enriquecimento ilícito do ex-cônjuge. (sublinhado nosso)
Como se diz na primeira das suprarreferidas decisões, com o que concordamos inteiramente:
No balanceamento dos interesses em jogo, crê-se que a melhor solução é a seguida pela corrente jurisprudencial segundo a qual os bens a partilhar são não apenas os que existam à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges, ancorada no princípio geral da compensação e no princípio da proibição do enriquecimento sem causa, como se decidiu no citado Ac STJ de 14/7/2022 (desta Secção ).
Implicando a plena comunhão de vida na constância do matrimónio uma osmose entre as diferentes massas patrimoniais, o princípio da equidade nas relações patrimoniais entre os cônjuges impõe a reintegração do equilíbrio patrimonial inicial. Muito embora não haja uma norma legal específica, o princípio geral da compensação deduz-se claramente do art.1689 CC. (sublinhado nosso)
2) Do dever de carrear prova para os autos
De qualquer modo, a questão central do presente recurso não é a de saber que bens devem partilhados, mas antes se os meios de prova requeridos devem ser admitidos ou não pelo Tribunal, tendo o ponto de análise supra tido apenas como objetivo, o de fixar o objeto de tal prova: os montantes existentes no património comum, ainda que anteriormente sonegados por um dos cônjuges em seu benefício.
Requereu o Recorrente: - Requer se digne o Tribunal determinar a notificação da entidade bancária Banco 1... para informar aos autos quais os sinais e os titulares da conta de destino da transferência de 5000€ feita em 26.11.2021 a partir da conta comum do casal de que se juntou cópia – doc n. º 1 –, também com informação (se possível) acerca da pessoa que procedeu aos movimentos de crédito (depósito) e de débito (transferência), por esse montante e nessa data, e com fornecimento ao Tribunal de cópias de todos os documentos que existam relacionados com tais operações. (sublinhado nosso)
Ora, tratando-se de informações relativas a uma conta comum, portanto, de que o Recorrente também é titular, não se vê, nem é alegado, porque não poderá a instituição bancária fornecer a informação diretamente ao interessado, sem que tal pedido passe pela intervenção do Tribunal.
As partes têm a obrigação de carrear para os autos, a prova dos factos que alegam, não cabendo ao Tribunal substituir-se-lhes nessa tarefa, não se sobrepondo, nesta parte, o princípio do inquisitório ao princípio do dispositivo e da autorresponsabilização das partes.
Como nos diz António Santos Abrantes Geraldes, em anotação do artº 411º, “Código Civil anotado”, volume I, Almedina, 2021, pág. 503:
No preceito aflora o princípio do inquisitório em termos idênticos aos que
emergiam do art. 2652, nº 3, do CPC de 1961, o qual, porém, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo
que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de
instrução que sejam de imputar a alguma das partes (…)[3]
Deste modo, tratando-se de informações sobre uma conta bancária de que era titular, cabe ao Recorrente, em primeiro lugar, solicitar à entidade bancária que lhe forneça as informações pretendidas, recorrendo ao auxílio do Tribunal apenas se na hipótese de esta se recusar a fornecê-las.
Assim, nesta parte, cumpre indeferir o requerido, sem prejuízo de poder vir a ser deferido em momento posterior, nomeadamente perante uma eventual recusa da entidade bancária em fornecer as informações pretendidas.
3) Do direito à prova
Mais requereu o Recorrente: - Requer se digne o Tribunal determinar a notificação da entidade bancária Banco 2..., para juntar aos autos um extracto detalhado, dos últimos 5 anos e até ao respectivo encerramento (ou até à data presente, consoante for o caso), da conta que lá detinha CC, mãe da Requerente, viúva, residente que foi em ..., freguesia ..., concelho ..., já falecida.
Para tanto, defendeu o Recorrente - apenas em sede de recurso - que as quantias que alega terem existido no património comum poderão ter tido como destino esta conta bancária, pertencente a um terceiro.
Porém, em sede de resposta à reclamação da relação de bens, apenas havia alegado, no artº 11º do requerimento de resposta, o que supra se transcreveu, de como essa conta podia ser movimentada pelo seu filho de CC, DD, irmão germano da Requerente, tendo o referido valor sido distribuído entre ambos.
Tratando-se de conta bancária de terceiro, está sujeita a sigilo bancário, sendo previsível que a entidade bancária se negue a fornecer tal informação ao Recorrente, podendo efetivamente ter de ser solicitada pelo Tribunal.
Está aqui em causa o direito à prova, constitucionalmente protegido – artº 20º, da Constituição da República Portuguesa -, uma vez que não há acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva sem acesso à prova necessária para esclarecimento dos factos[4].
Como de diz no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Julho de 2010, proferido no processo nº 102/10.5TBSRE.C1, disponível em www.dgsi.pt: 3. O direito à prova pode ser definido como o direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos: o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova; o direito de participação na produção das provas.
Porém, não se trata de direito ilimitado ou com caráter absoluto, havendo que demonstrar que é necessária e adequada à prova dos factos alegados.
In casu, o que o Recorrente alegou – em sede de resposta, momento processual adequado – foi a forma de como o valor existente nessa conta (pertencendo parte dele ao património do extinto casal) foi distribuído entre Requerente e esse seu irmão.
Vejamos da adequação e necessidade da diligência requerida para a prova de tais factos.
No que toca à idoneidade, uma vez que se a prova requerida é apta a detetar movimentos a débito nessa conta e sua eventual transferência a proveito da Recorrida, pode efetivamente revelar-se uma diligência útil.
No que concerne à necessidade da prova, não se vislumbrando por ora - pelo menos sem a inquirição prévia das testemunhas - a existência de outra forma de obter a prova em causa, também parece ser necessária.
Porém, afigura-se absolutamente desproporcionado determinar o apuramento de todos movimentos bancários dessa conta, durante um tão longo período de tempo, quando o que se pretende saber é apenas se a Recorrida dali recebeu quantias pertencentes ao património comum.
Deste modo, será de pedir apenas a informação relativa ao montante existente à data do óbito de CC e do destino que foi dado aos valores aí existentes após o óbito.
IV - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 3ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que determine a notificação da entidade bancária Banco 2... para juntar aos autos informação relativa ao montante existente na conta à data do óbito de CC e do destino que foi dado aos valores aí existentes após o óbito.
Custas por Recorrente e Recorrida em partes iguais – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Coimbra, 28 de Janeiro de 2025
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
Luís Miguel Carvalho Ricardo
Cristina Neves
[1] Ver, nomeadamente, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Maio de 2022, proferido no processo nº 2405/21.4T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:
I – O inventário pós-divórcio destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns.
II – Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. art. 1789º/1 do CC).
III – A composição do património comum é, portanto, aquela que existia na data da proposição da acção e só os bens existentes nesse momento devem ser objecto de partilha.
IV – No que concerne a conta bancária comum, para efeitos da partilha, apenas interessa saber o saldo a essa data (da proposição da acção).
V – Os movimentos em conta bancária comum, tanto os anteriores como os posteriores a essa data (da proposição da acção) são irrelevantes para o inventário, já que não influem na partilha. (sublinhado nosso)
[2] Artºs 1672º e 1674º, do Código Civil.
[3] Também acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 29 de Setembro de 2022, proferido no processo nº 6613/18.7T8STB-C.E1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz: Assim, o juiz apenas deve recorrer ao princípio do inquisitório, quanto a meios de provas, se, de algum modo, a não apresentação desses meios de prova pela parte que deles beneficia não resulte de um comportamento negligente dessa parte.
[4] Como nos diz Nuno Lemos Jorge, “Direito à prova: brevíssimo roteiro jurisprudencial”, in Revista “Julgar” nº 6, 2008, págs. 99 e 100: Que a garantia do direito à prova é outra face da garantia do direito subjetivo é por demais evidente. Sem a possibilidade de provar os factos constitutivos de um direito, a previsão deste não passará de uma boa intenção do legislador.