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CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA NO SETOR PRIVADO
TIPICIDADE
ATO VIOLADOR DOS DEVERES FUNCIONAIS
Sumário
I - Integra o crime de corrupção passiva no setor privado previsto no art.8º nº1 da Lei nº20/2008, a ação dos arguidos ao condicionarem o processo administrativo de admissão dos utentes no lar de idosos, ao pagamento de quantias indevidas, violando essa conduta os deveres funcionais, independentemente, dos utentes reunirem, ou não, os requisitos legais para aquela admissão. II - O figurino típico do delito não depende de proventos efetivos de quem entregou a vantagem ao funcionário corrupto, não exige a prática do ato em causa, e também não depende da entrega da vantagem ao funcionário, bastando a receção da solicitação feita pelo funcionário. III - O tipo legal não exige que o recetor da proposta do funcionário corrupto conheça previamente a natureza ilegal do ato. O funcionário quando solicita a vantagem acena com um ato, como contrapartida, de nada interessando se essa ideia transmitida pelo funcionário quanto ao ato, é, ou não, verdadeira.
Texto Integral
Proc. n.º 25/18.0GAAVR.P1
Acordam, em conferência, os juízes da 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
No Juízo de Competência Genérica de Arouca, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, em processo comum com intervenção de Tribunal Singular proferiu-se decisão a rejeitar a acusação da seguinte forma: “Consequentemente, ao abrigo do artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar, por ser manifestamente infundada, a acusação pública deduzida nos presentes autos contra Santa Casa da Misericórdia ..., e AA – neste sentido cf. acórdão do TRG proferido a 26.04.2021 no âmbito do proc. 1451/17.T9BRG.G1 e proc. 2195/18.8T9BRG.G1 de 20.06.2022 ambos disponíveis em www.dgsi.pt Notifique.”.
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Inconformada, vem o MP interpor recurso dessa decisão com as seguintes conclusões: 1. A Mma. Juíza de Direito a quo rejeitar a acusação, porquanto o referido tipo de ilícito objectivo exige como condição necessária para o cometimento do crime que a vantagem solicitada, aceitada ou prometida ao agente, para além de indevida, tenha como escopo a prática, por parte do trabalhador do sector privado, de um qualquer acto ou omissão que constitua uma violação dos deveres funcionais, sendo que “em nenhum lugar da acusação se diz que que aquela exigência tenha sido efectuada como contrapartida à admissão à residencial para idosos de candidatos que não preenchiam os requisitos previstos para o efeito, isto é, não resulta da acusação pública que esse pagamento tenha sido exigido pelos arguidos para permitir o acesso a essa estrutura de utentes que, em condições normais, não seria admitido, por não reunirem os requisitos previstos no estatuto das IPSS a nas normas protocoladas para esse efeito”;
2. Todavia, no caso concreto, não é a admissão de idosos no Lar que não deveriam ser admitidos por não preencherem requisitos que constituiu a violação dos deveres funcionais dos arguidos, pois tal não só não resultou indiciado no inquérito, como até resultou indicado o contrário e, por isso, aquilo que a Mma. Juíza a quo entende que deveria constar da acusação, não podia sequer constar da mesma;
3. O que está em causa – isso sim – e que constituiu a violação dos deveres funcionais dos arguidos foi a exigência do pagamento de certa quantia a idosos que preenchiam os requisitos para beneficiar do regime social, como admissão no Lar destes mesmos idosos no regime social e, portanto, na componente não privada, implicando que os arguidos tenham recebido tais quantias monetárias que não lhes eram devidas porque não podiam constituir requisito de admissão no Lar e por terem recebido, em simultâneo, comparticipações da Segurança Social;
4. Pelo que da acusação pública constam todos os elementos típicos ilícitos objectivos e subjectivos do crime de corrupção passiva no sector privado, previsto e punido pelos art.s 4.º e 8.º, n.º 1, da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, na redacção da Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril e, deste modo, o despacho ora em crise afronta o princípio da autonomia do Ministério Público constitucionalmente consagrado, tendo violado as referidas disposições legais e, ainda, o disposto nos art.s 203.º e 219.º, n.º 1 e n.º 2, da Constituição da República, e nos art.s 263.º, n.º 1, 283.º, 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º3, alínea d), do Código de Processo Penal;
5. Consequentemente, o despacho judicial de 09/02/2024 deve ser substituído por outro que receba a acusação para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, contra Santa Casa da Misericórdia ..., pela prática do referido crime. Assim se fazendo JUSTIÇA”
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Admitido o recurso, respondeu-lhe o arguido pugnando pela respetiva improcedência pelo seguinte modo:
O argumento do MP de que «mal se perceberia que os arguidos recebessem uma comparticipação» adicional e de que «a exigência do pagamento de certa quantia a idosos que preenchiam os requisitos para beneficiar do regime social … é precisamente o que constitui a violação dos deveres funcionais» (pgs. 4 do recurso) de nada vale, uma vez que nada se fez constar a esse propósito no libelo acusatório. Teria de ser dito nessa sede. O MP vem afinal dar razão ao fundamento da decisão recorrida.
O MP entende a pgs. 6 do recurso que é irrelevante o saber-se se os utentes em causa reuniam ou não as condições de admissão no Lar, porque a partir do momento em que beneficiavam do regime social, também reuniam as condições para integrar um lar, até porque de outro modo a Segurança Social não pagaria as comparticipações. Parece-nos que sem razão e revelando desconhecimento da realidade. Teria de ser dito que sem o pagamento dos donativos os idosos tinham entrada assegurada no lar da Santa Casa arguida e que por isso o donativo era uma vantagem indevida e contrária aos deveres funcionais. Ora isso não consta nem resulta da acusação nem do mero facto de os utentes em causa beneficiarem do regime social, pois que só isso não lhes garantia condições e a entrada no lar da Santa Casa arguida. Nem no da Santa Casa arguida, nem em qualquer outro lar. Basta pensar que há condições específicas de admissão, nomeadamente a sujeição a exame médico para verificação de condições e de exclusões (por ex.perturbações na área da saúde mental, doenças infeto-contagiosas) e uma prévia avaliação psicosocial.
E não faltam utentes em lista de espera, desde logo por não haver vagas, por existirem casos de prioridade (em função dos critérios de admissão), etc. ! Portanto, a omissão deste elemento, de i) a vantagem ser indevida e ii) de ser contrária aos deveres funcionais, sendo essa contrapartida a forma de ultrapassar obstáculos à admissão, é essencial e decisiva para a rejeição da acusação, como justificou a decisão recorrida.
Tudo permite concluir, pois, como na decisão recorrida: A acusação é «absolutamente omissa relativamente a um dos elementos objectivos típicos do crime de corrupção passiva no sector privado».
Por isso, a decisão recorrida não merece censura.
Nestes termos, deve o recurso ser julgado improcedente.
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O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que não acompanha o recurso interposto pelo MP em primeira instância.
Com o devido respeito, suscitam-se dúvidas relativamente ao Recurso apresentado, que se passam a expor, sem prejuízo do mérito de quem recorre, sendo a questão já anteriormente discutida na jurisprudência e, portanto, pertinente.
Ora,
Dispõe o artigo 8.º da Lei 20/2008 de 21-4 que - O trabalhador do sector privado que, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 - Se o ato ou omissão previsto no número anterior for idóneo a causar uma distorção da concorrência ou um prejuízo patrimonial para terceiros, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.
Na verdade, a argumentação apresentada no despacho judicial do qual se recorre é exactamente idêntica à fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-4-2021 a propósito de situação fáctica semelhante.
Vejamos o que nesse acórdão se defende: I O crime de corrupção passiva privada, p. e p. pelo artigo 8.º, n.º 1 do Regime Penal de Corrupção no Comércio Internacional e no Setor Privado, aprovado pela Lei n.º 20/2008, de 21.04, tem os seguintes elementos objetivos: - ser o agente trabalhador do setor privado, no sentido definido pelo conceito abrangente da al. d) do artigo 2º do RPCCISP; - agir por si ou interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação; - solicitar ou aceitar, em benefício próprio ou de terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem, patrimonial ou não, ou a sua promessa; - fazê-lo como contrapartida de ato ou omissão, contrários aos seus deveres funcionais. II. O tipo subjetivo exige o dolo, ainda que genérico, em qualquer das suas modalidades, estando apenas excluída a punição do agente a título de negligência, por tal não prever especialmente a lei. III. O ato contrário aos deveres funcionais do agente tem de ser a concreta contrapartida da vantagem, materializada num outro ato ou omissão, que têm de estar entre si numa relação sinalagmática.
• De acordo com a Decisão-Quadro n.º2003/568/JAI
• « Os países da União Europeia (UE) são obrigados a criminalizar os seguintes atos praticados intencionalmente no exercício de atividades profissionais: • corromper uma pessoa: prometendo, oferecendo ou dando, diretamente ou por interposta pessoa, vantagens indevidas de qualquer natureza a uma pessoa que, a qualquer título, dirija uma entidade do setor privado ou nela trabalhe, em benefício dessa pessoa ou de terceiros, a fim de essa pessoa, em violação dos seus deveres*, praticar ou se abster de praticar determinados atos;
• requerer vantagens indevidas: uma pessoa solicita ou recebe, diretamente ou por interposta pessoa, vantagens indevidas de qualquer natureza, ou aceita a promessa de tais vantagens, em benefício do próprio ou de terceiros, quando, a qualquer título, essa pessoa dirija uma entidade do setor privado ou nela trabalhe, a fim de, em violação dos seus deveres, praticar ou se abster de praticar determinados atos.
Na verdade, entende-se, sem prejuízo de melhor opinião, que faltará na acusação pública a 2ª parte exigida no tipo legal.
O recebimento de vantagem de benefício indevida para o próprio ou terceiro tem que permitir e estar em relação causal com a omissão ou acção violadora dos deveres inerentes ao cargo (esta 2º parte constitui a contrapartida).
No caso concreto, o arguido recebeu donativos para a Santa Casa da Misericórdia ... que não eram devidos, mas não se diz que em virtude do recebimento desse dinheiro o arguido deixou de admitir alguém em detrimento de outra pessoa, ou que praticou qualquer outro acto, ou omissão relevante, decorrente da espectativa ou recebimento dessa vantagem indevida e contrário aos seus deveres.
Alias, parece decorrer na fundamentação do Recurso, que se considerou em sede de descrição dos factos que o recebimento do dinheiro por parte de algumas pessoas, no acto de admissão à Santa Casa da Misericórdia ..., ou depois dele, como donativo, é ele próprio o acto violador dos deveres funcionais, quando, e ao contrário do afirmado, o tipo legal exige que essa vantagem leve a uma contrapartida concreta obtida através de um acto ou omissão por parte do agente do crime decorrente do recebimento dessa vantagem indevida.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou e, após exame preliminar, sem outras vicissitudes, colheram-se os vistos e foram os autos à conferência.
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Delimitação do objeto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Conforme dessas conclusões se colhe, as matérias neste caso relevantes são as seguintes:
- sustenta que a acusação contém o elemento típico do delito de corrupção passiva, reportado à prática de qualquer ato que constitua violação dos deveres funcionais, a que corresponde a solicitação da vantagem.
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A decisão recorrida: “Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, contra Santa Casa da Misericórdia ... imputando-lhe a prática deum crime de corrupção passiva no sector privado, previsto e punido pelos art.s 4.º e 8.º, n.º 1, da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, na redacção da Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril; e imputando ao arguido AA cometeu um crime de corrupção passiva no sector privado, previsto e punido pelo art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, na redacção da Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril.
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Apreciando e decidindo. Dispõe o artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer, acrescentando-se no seu n.º 2, alínea a), que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. De acordo com a alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime. Na nossa perspectiva, é precisamente essa a situação dos autos, porquanto os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público não preenchem, na sua totalidade, os elementos típicos do ilícito criminal imputado aos arguidos. Vejamos. O Ministério Público acusa os arguidos com fundamento nos seguintes factos: 1.A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia ..., também abreviadamente denominada de Santa Casa da Misericórdia ou Misericórdia de ..., contribuinte n.º ..., é uma pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, com estatuto de IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social do Âmbito da Segurança Social) registada na Direcção Geral da Acção Social, com domicílio na Rua ..., ..., Arouca. 2. Entre outros fins, a Misericórdia de ... garante a prestação de serviços, na área dos idosos, através da celebração de acordos de cooperação com o Centro Distrital de Aveiro do Instituto de Segurança Social, I.P., nas valências de Lar de Idosos, Serviço de Apoio Domiciliário e Serviço de Apoio Domiciliário Integrado. 3. A resposta social de Lar de Idosos funciona em dois regimes distintos: 3.1.O regime social ao abrigo do Acordo de Cooperação, sendo o alojamento dos utentes e demais serviços inerentes comparticipados pelo Centro Distrital de Aveiro da Segurança Social; 3.2. O regime privado lucrativo negociado entre a IPSS e o utente, potenciando uma gestão integrada de recursos físicos e humanos. 4. A “ala social” aloja os utentes admitidos ao abrigo do Acordo de Cooperação celebrado com o Centro Distrital de Aveiro e data de 30 de Junho de 1995, 5. Tendo em Janeiro de 2001, sido assinado um Anexo a esse Acordo, para atribuição de uma comparticipação adicional, por cada um dos idosos em situação de dependência 6. A “ala privada lucrativa”, cujo funcionamento data de 1998, aloja os utentes extra Acordo de Cooperação. 7. Para além das referidas repostas sociais, a instituição também desenvolve outras, entre as quais se contam: 7.1. A Unidade de Cuidados Continuados, através da celebração de acordo tripartido de cooperação entre a Administração Regional de Saúde, a Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia ..., para Unidade Média Duração (6 camas) e Unidade Longa Duração (14 camas); 7.2. Suites, em regime de direito de usufruto vitalício (uso e habitação) de suites, localizadas no Lar de Idosos. 8. Compete ao Provedor, entre outras atribuições, as seguintes: 8.1.Superintender, directamente ou por intermédio das pessoas para efeito nomeadas, na administração da Misericórdia, orientando e fiscalizando os respectivos serviços e respostas sociais; 8.2.Convocar e presidir às reuniões da Mesa Administrativa, dirigindo os respectivos trabalhos; 8.3. Exercer a representação da Misericórdia, em juízo e fora dele; 8.4. Assinar e rubricar os termos de abertura e encerramento e rubricar os livros de actas da Mesa Administrativa; 8.5. Preparar a agenda de trabalhos para as reuniões da Mesa Administrativa conjuntamente com o Secretário; 8.6. Despachar os assuntos normais de expediente e outros que careçam de solução urgente, sujeitando estes últimos à confirmação da Mesa Administrativa na primeira reunião seguinte; 8.7. Assinar a correspondência, ordens de pagamento e os recibos comprovativos de arrecadação de receitas; 8.8. Delegar quaisquer dos seus poderes em outros membros das Mesa Administrativa; 8.9. Fazer executar as deliberações da Assembleia Geral e da mesa administrativa e cumprir quaisquer outras obrigações inerentes ao seu cargo, o que as leis vigentes ou o costume antigo lhe imponham. 9. Para a admissão de um utente ao Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia ..., era necessária a prévia inscrição do idoso e, após, a Directora Técnica e a psicóloga da instituição recolhiam a informação social sobre o idoso que incluía a ausência de familiares e retaguarda social e o grau de dependência desse mesmo idoso, seguidamente, o idoso ficava em lista de espera até existir uma vaga e ser admitido pela Mesa Admistrativa da instituição. 10. Desde o início de 2016 e até ao final de 2020, o ora arguido AA foi Provedor da Santa Casa da Misericórdia ... e, enquanto tal, incumbia-lhe o exercício das atribuições supra referidas. 11.Em data não concretamente apurada, mas anterior a 05 de Fevereiro de 2016, AA, por si e enquanto Provedor da Santa Casa da Misericórdia ..., delineou um plano, segundo o qual passaria a solicitar aos idosos candidatos ao Lar de idosos e/ou aos familiares destes mesmo idosos, o pagamento de determinados montantes monetários, entregues sob a forma de donativos a essa mesma instituição, como condição necessária de admissão dos candidatos na componente não privada, e 12. Assim, na execução de tal plano, AA exigiu o pagamento de donativos a favor da Santa Casa da Misericórdia ..., como condição de admissão no Lar de Idosos dos seguintes utentes: BB; CC; DD; e EE; 13.Beneficiando estes utentes do regime social ao abrigo do Acordo de Cooperação, pelo que o seu alojamento e demais serviços inerentes eram comparticipados pelo Centro Distrital de Aveiro da Segurança Social. 14. Para o efeito, o arguido indicava aos utentes e seus familiares que realizassem os pagamentos dos donativos para as seguintes contas bancárias: 14.1. Conta bancária com o IBAN ... do Banco 1..., titulada pela Santa Casa da Misericórdia ... e estando AA autorizado a movimentar o respectivo saldo bancário; 14.2. Conta bancária com o IBAN ..., do Banco 2..., titulada pela Santa Casa da Misericórdia ... e estando AA autorizado a movimentar o respectivo saldo bancário; 14.3. Conta bancária n.º ..., do Banco 2..., titulada pela Santa Casa da Misericórdia ... e estando AA autorizado a movimentar o respectivo saldo bancário. 15. Em 14 de Janeiro de 2016, o ora arguido exigiu o pagamento da quantia de € 30.000,00 a FF, para que a mãe deste, de nome BB, fosse admitida no Lar de Idosos. 16. Na mesma data, FF transferiu a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) para a conta bancária com o IBAN ..., e 17. Na sequência, no dia 25 de Fevereiro de 2016, o ora arguido admitiu BB no Lar de Idosos. 18. Em 15 de Junho de 2016, o ora arguido exigiu o pagamento da quantia de € 25.000,00 a GG, para que a mãe desta, de nome CC, fosse admitida no Lar de Idosos. 19. Na mesma data, GG pagou a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) ao arguido, por transferência bancária para a conta com o IBAN .... 20. Na sequência, no dia 29 de Agosto de 2016, o ora arguido admitiu CC no Lar de Idosos. 21. Em 13 de Dezembro de 2016, o ora arguido exigiu o pagamento da quantia de € 35.000,00 a HH, para que a irmã desta, de nome DD, fosse admitida no Lar de Idosos. 22. Atendendo ao elevado valor, o arguido permitiu que HH pagasse o valor de € 35.000,00 em duas parcelas. 23. Assim, em 13 de Dezembro de 2016, HH entregou ao ora arguido, o cheque n.º ... da conta do Banco 2... n.º ..., com a quantia aposta de € 20.000,00, emitido a favor da Santa Casa da Misericórdia ..., e tal valor foi debitado dessa conta, 24. Tendo no dia 14 de Dezembro de 2016, esse valor de € 20.000,00 (vinte mil euros) sido depositado na conta com o IBAN ..., e 25. Tendo a 13 de Dezembro de 2016, a Santa Casa da Misericórdia ... emitido o respectivo recibo, a favor de HH, com o descritivo donativo concedido sem contrapartida à IPSS, para apoio à terceira idade. 26. Na sequência do acordado, em 03 de Janeiro de 2017, o arguido admitiu DD como utente do Lar de Idosos. 27. No dia 01 de Fevereiro de 2017, HH entregou ao arguido, o cheque n.º ... da conta do Banco 2... n.º ..., com a quantia aposta de € 15.000,00, emitido a favor da Santa Casa da Misericórdia ..., e esse valor foi debitado dessa mesma conta. 28. O valor de € 15.000,00 (quinze mil euros), constante do referido cheque n.º ..., foi depositado no balcão de ... do Banco 2..., na conta com o IBAN .... 29. Tendo a 02 de Fevereiro de 2017, a Santa Casa da Misericórdia ... emitido o respectivo recibo, a favor de HH, com o descritivo donativo concedido sem contrapartida à IPSS, para apoio à terceira idade. 30. Em data não concretamente apurada, mas anterior e próxima ao dia 19 de Janeiro de 2017, o ora arguido exigiu o pagamento da quantia total de € 25.000,00 a II e a JJ, filhos de EE para que esta fosse admitida no Lar. 31. Em 19 de Janeiro de 2017, II e JJ pagaram ao arguido o valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), por transferência bancária para a conta n.º .... 32. No dia 24 de Janeiro de 2017, a Santa Casa da Misericórdia emitiu dois recibos, no valor unitário de €12.500,00, com a descrição “Donativo concedido sem contrapartida à IPSS, para apoio à terceira idade”, tendo sido entregue um a II e o outro a JJ. 33.Na sequência, no dia 19 de Janeiro de 2017, o ora arguido admitiu EE no Lar de Idosos. 34. AA, por si e enquanto Provedor da Santa Casa da Misericórdia ..., tinha consciência que não era critério de selecção e de admissão de utentes no Lar de Idosos, na vertente social e não privada, o pagamento de qualquer quantia monetária. 35. O arguido por si e enquanto Provedor da Santa Casa da Misericórdia ... sabia que BB, CC, DD e EE beneficiavam do regime social ao abrigo do Acordo de Cooperação, pelo que o seu alojamento e demais serviços inerentes eram comparticipados pelo Centro Distrital de Aveiro da Segurança Social. 36. Não obstante, AA, por si e enquanto Provedor da Santa Casa da Misericórdia ..., quis agir da forma supra descrita, pretendo exigir aos familiares dos idosos candidatos ao Lar de idosos, em que se incluíram BB, CC, DD e EE, o pagamento dos referidos montantes monetários, entregues sob a forma de donativos a essa mesma instituição, como condição necessária de admissão dos candidatos na componente não privada, tendo-se apropriado de tais montantes, sem direito aos mesmos, tudo o que logrou concretizar, 37. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
É nesta factualidade que o Ministério Público se sustenta para imputar ao arguido pessoa singular a prática, em co-autoria, a prática de um crime de corrupção passiva no sector privado, previsto e punido pelo artigo 8.º, n.º 1 da Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, responsabilizando a arguida Santa Casa da Misericórdia ... ao abrigo do disposto no artigo 4.º do mesmo diploma legal. A Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, veio estabelecer o regime de responsabilidade penal por crimes de corrupção cometidos no comércio internacional e na actividade privada. “O trabalhador do sector privado que, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias” O referido artigo 4.º esclarece que as pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos na presente lei. O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a lealdade e confiança nas relações laborais estabelecidas no sector privado, valores que são afetados pela violação dos deveres funcionais do agente. - Neste sentido, também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2021, Processo nº 1451/17.7T9BRG.G1, relatora Desembargador Fátima Furtado, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.03.2013, Processo nº 269/10.2TAMTS.P1, relator Desembargador Castela Rio, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e Carlos Almeida, in “Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. 2, coordenação de Paulo Pinto de Albuquerque, UCE, 2011, p. 204. No que tange aos elementos objetivos do crime de corrupção passiva no sector privado, são os seguintes: - Ser o agente trabalhador do setor privado, no sentido definido pelo conceito abrangente da al. d) do artigo 2º do RPCCISP, isto é, «a pessoa que exerce funções, incluindo as de direção ou fiscalização, em regime de contrato individual de trabalho, de prestação de serviços ou a qualquer outro título, mesmo que provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, ao serviço de uma entidade do sector privado». Trata-se de um crime específico; - Agir por si ou interposta pessoa, neste segundo caso com o seu consentimento ou ratificação; - Peticionar ou aceitar, em benefício próprio ou de outrem, sem que lhe seja devida, vantagem, patrimonial ou não, ou a sua promessa; - Solicitação ou aceitação da vantagem indevida como contrapartida para um ato ou omissão contrários aos seus deveres funcionais. A.M. Almeida Costa, apoiando-se nos ensinamentos de G. FILANGIERI («Scienza della Legislazione», Milano, 1784, T. III, Parte IV, pp. 72-73), distingue as modalidades de corrupção «própria» e «imprópria», recorrendo ao critério do caráter lícito ou ilícito dos atos cometidos pelo funcionário (no caso, do trabalhador do sector privado): se lícito, corrupção «imprópria»; se ilícito, corrupção «própria» - In “Sobre o Crime de Corrupção”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pp. 103, 129 e 133. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, UCE, 2008, anotações 12 e 13 ao art. 372º, pp. 881 e 882, «a vantagem é indevida quando não corresponde a uma prestação devida ao funcionário nos termos da lei» e «corresponde a um sinalagma, a uma contraprestação por uma conduta concreta do funcionário [no caso, do sector privado], como resulta expressamente do teor literal da lei “para um qualquer ato ou omissão”». E acrescenta: «A relação de sinalagma pode ser expressa ou tácita, isto é, o funcionário e o subornador podem acordar expressamente na prestação do suborno em troca da prática de um concreto ato ou omissão pelo funcionário ou podem ter comportamentos concludentes cujo significado tácito seja o de o subornador dar o suborno para que o funcionário pratique (ou porque o funcionário praticou) um concreto ato ou omissão e o de o funcionário aceitar o suborno em troca da prática de um concreto ato ou omissão.» Da análise do tipo legal incriminador resulta, como condição necessária para o cometimento do crime, que a vantagem solicitada, aceitada ou prometida ao agente, para além de indevida, tenha como escopo a prática, por parte do trabalhador do sector privado, de um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos deveres funcionais. De acordo com os factos descritos na acusação pública, o arguido AA, actuando em comunhão de esforços e intentos e em nome e no interesse da sociedade arguida, no período compreendido entre Janeiro de 2016 e Fevereiro de 2017 decidiram exigir aquando da outorga dos sucessivos contratos de alojamento e prestação de serviços para a estrutura residencial para pessoas idosas, o pagamento dos montantes apurados como contrapartida necessária e obrigatória à admissão dos utentes, bem sabendo que tal acto não estava dependente dessa contrapartida financeira, atendendo ao estatuto das IPSS e às normas protocoladas para admissão de utentes na estrutura residencial para pessoas idosas. Consta ainda da acusação que as quantias solicitadas foram entregues à instituição arguida pelos familiares dos aludidos utentes, tendo sido integradas pelos arguidos no património da referida instituição. Resulta de acordo com essa factualidade, que a “ilegalidade” cometida pelos arguidos consistiu em condicionar a admissão dos candidatos à sua estrutura residencial para idosos ao pagamento obrigatório dos montantes apurados, cientes que, de acordo com o estatuto das IPSS a das restantes normas protocoladas, a admissão de utentes nessa estrutura não estava dependente da contrapartida financeira em causa. Dúvidas não restam que, ao assim actuarem, o arguido solicitou uma vantagem que lhes não era devida para a prática de um acto compreendido no âmbito das suas funções de administração e de gestão da sociedade arguida. Contudo, em nenhum lugar da acusação se diz que que aquela exigência tenha sido efectuada como contrapartida à admissão à residencial para idosos de candidatos que não preenchiam os requisitos previstos para o efeito, isto é, não resulta da acusação pública que esse pagamento tenha sido exigido pelos arguidos para permitir o acesso a essa estrutura de utentes que, em condições normais, não seria admitidos, por não reunirem os requisitos previstos no estatuto das IPSS a nas normas protocoladas para esse efeito. Nestes termos, contrário daquilo que parece ser a lógica estrutural da acusação pública em análise, o pagamento das quantias reclamadas pelos arguidos previamente à celebração dos contratos de alojamento e prestação de serviços com os respectivos utentes/familiares não pode constituir, para efeitos do preenchimento dos elementos típicos do crime em apreço, simultaneamente, a vantagem patrimonial indevida solicitada e o ato contrário aos deveres funcionais do agente, isto é, o ato contrário aos deveres funcionais do agente teria de ser a concreta contrapartida daquela vantagem, materializada num outro ato ou omissão diverso e autonomizado da referida entrega patrimonial. Ou seja, os factos descritos na acusação pública retratam inequivocamente uma situação em que o arguido exigia indevidamente, uma vantagem para a prática de um acto compreendido no exercício das suas funções de administração e de gestão da sociedade arguida, mas, inversamente, já nada existe nessa peça processual que permita concluir que o acto concretamente praticado nessas condições, consubstanciado na admissão à estrutura residencial para idosos dos candidatos que contribuíram com esse “donativo”, constituísse uma violação dos deveres do cargo ou das funções desempenhadas nas sociedade arguida pelo arguido. E sendo a acusação pública absolutamente omissa relativamente a um dos elementos objectivos típicos do crime de corrupção passiva no sector privado, os factos alegados nessa peça processual são insuficientes para se concluir que os arguidos incorreram na prática do ilícito que lhes está imputado. Por outro lado, muito embora as condutas descritas na acusação pública evidenciem sólidos pontos de contacto com os elementos típicos do crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punido pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal, haverá que ter em consideração, neste domínio, o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2020, publicado no Diário da República n.º 96/2020, Série I, de 2020-05-18 no qual se fixou jurisprudência no sentido de que o conceito de “organismo de utilidade pública”, constante da parte final da actual redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, não abarca as instituições particulares de solidariedade social e, por essa via, não deve ser considerado funcionário, para efeito da lei penal, quem desempenhe ou participe no desempenho da sua actividade, não se preenchendo assim quanto aos arguidos esse elemento objectivo previsto no citado tipo legal. Consequentemente, ao abrigo do artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar, por ser manifestamente infundada, a acusação pública deduzida nos presentes autos contra Santa Casa da Misericórdia ..., e AA – neste sentido cf. acórdão do TRG proferido a 26.04.2021 no âmbito do proc. 1451/17.T9BRG.G1 e proc. 2195/18.8T9BRG.G1 de 20.06.2022 ambos disponíveis em www.dgsi.pt Notifique.
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Relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pela demandante II contra os referidos arguidos/demandados uma vez que os factos que sustentam tal pedido dizem respeito ao crime que era imputado aos referidos arguidos na acusação pública, a qual foi rejeitada, tornou-se impossível a sua apreciação nestes autos, pelo que julgo extinta a instância cível relativamente ao mesmo, por impossibilidade superveniente da lide nos termos do disposto no art.º 277º alínea e) do Código Processo Civil. Valor: o indicado – art.º 297 do CPC Custas a cargo da demandante, se a elas houver lugar. Notifique.”.
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Cumpre apreciar.
Apreciando o objeto do recurso interposto pelo MP, o Tribunal “A Quo”, com o devido respeito, usou de um raciocínio tanto de peculiar, como afastado da lei.
Com efeito, estando em causa saber se o objeto da acusação continha na íntegra os elementos típicos do crime de corrupção passiva no setor privado, previsto e punido pelo art.8º nº1, ex vi arts.1º “in fine” e 2º alíneas e) e d) todos da Lei nº20/2008, quanto ao óbice suscitado pelo Tribunal “A Quo”, cabe referir que, mesmo que os utentes estivessem em condições de ser admitidos no “lar de idosos”, por terem os requisitos legais, o certo é a relatada condição imposta pelo arguido para a admissão dos utentes, fazendo depender do prévio pagamento de quantias avultadas, como condição necessária de admissão dos candidatos na “componente não privada”, condicionou de forma delitual o processo administrativo de admissão dos utentes. Portanto, interferir no processo administrativo de admissão ao lar, condicionando-o a pagamentos ilegais, é o ato em causa na tipicidade do art.8º nº1 da Lei nº20/2008, e que atinge de forma frontal os deveres funcionais dos arguidos, não estando, por isso, em causa a prática de ato lícito, ou ato que não seja contrário aos deveres do cargo do funcionário. Nem sequer estamos domínio da corrupção passiva imprópria.
De pouco interessará a admissão virtual dos candidatos no horizonte (com os requisitos legais preenchidos), porquanto os arguidos usaram o desconhecimento dos ofendidos candidatos (por essa razão não são estes agentes de corrupção ativa cfr.art.9º da Lei nº28/2008), para promover admissões fraudulentas, com “extorsão” de montantes elevados. Aliás, o delito de corrupção passiva consuma-se logo que a solicitação do funcionário chegar ao destinatário (neste sentido, Almeida e Costa “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, Coimbra, 2001, p.662), não dependendo sequer do recebimento da vantagem ou da prática do ato em questão, pelo funcionário.
Na análise da expressão típica do crime de corrupção passiva no setor privado previsto e punido pelo art.8º nº1 do RPCCISP (Lei nº20/2008 de 21 de abril) a solicitação do funcionário da vantagem indevida . “..para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais”, “in casu” decorre da descrita conduta dos arguidos na acusação, que, por si só, constituiu uma flagrante violação dos deveres funcionais, quando, conforme se referiu, inquinaram gravemente o processo administrativo de admissão dos candidatos, interferindo objetivamente nesse concreto processo, condicionando a admissão ao prévio e ilegal pagamento de quantias avultadas, o que é, por si só, o ato que constitui a violação grave dos deveres funcionais. Isto, independentemente, desses candidatos, terem, ou não, à partida as condições necessárias de ingresso ou admissibilidade.
A lei quando define “um qualquer ato que viole os seus deveres funcionais”, não pode, depois, o intérprete reduzir e excluir da classe de atos típicos, certos comportamentos, designadamente referindo que estariam a salvo ou à margem da incriminação os atos de que, não só, não resultem contrapartidas efetivas, como até os que impliquem prejuízos para quem entrega a vantagem, ou pelo menos quando este não retira benefícios do ato. Com efeito, o que contará para a consumação do crime, liga-se diretamente com o bem jurídico e, por isso, com o princípio da legalidade (respeitante à lesão da lealdade e confiança nas relações laborais estabelecidas no sector privado), e para o iter típico, assim como para a lesão do bem jurídico, somente interessará a ideia transmitida a quem recebe a solicitação do funcionário para a entrega da vantagem, este acenando com um ato, como contrapartida (a quem entrega a vantagem), de nada interessando se essa ideia transmitida pelo agente-funcionário é, ou não, verdadeira, se aquele (o destinatário da solicitação) virá, ou não,a colher qualquer concreto e efetivo benefício ou contrapartida real, elementos estes que não integram a tipicidade do delito.
Na tipicidade do delito em questão, o ato relevante, sob a mira da solicitação da vantagem pelo agente, constitui uma realidade projetada, e é sobre essa que objetivamente, deve ser aferida a violação dos deveres funcionais. Dado o perigo destas condutas, o legislador decidiu punir, mesmo antes de qualquer recebimento, ou prática do ato (por isso, quase num plano preparatório aos resultados pretendidos pelo funcionário corrupto), a simples solicitação de vantagem perante outrem como contrapartida de um ato a praticar. Ora, no caso dos autos, a contrapartida para a entrega da vantagem patrimonial, era a admissão no lar como facto objetivo, o que é quanto baste para a verificação típica (não sendo sequer necessária para a verificação típica a prática do facto, no caso, a admissão no lar). E esta realidade constituiu claramente um ato violador dos deveres funcionais, concretamente, a descrita deturpação do processo administrativo para admissão ilegal de candidatos, implicando o pagamento de quantias indevidas. E o figurino típico do delito é só esse, não depende de proventos efetivos de quem entregou a vantagem ao funcionário corrupto, ou sequer exige a prática do ato, como já se referiu. Talvez o que perturbou a exegese do Tribunal “A Quo”, foi entender que a prática do ato teria de constituir um efetivo beneficio a favor de quem paga a vantagem, por ser a tal contrapartida (verificável apenas se o candidato não reunisse os requisitos legais de admissão), mas, como se viu, a tipicidade do referido art.8º nº1 não exige como resultado típico, um beneficio real para quem entrega a vantagem ao arguido, antes e apenas, com a solicitação da vantagem pelo funcionário, este acena com a prática de um ato, no caso a admissão do candidato -, a qual é a programada contrapartida da vantagem patrimonial solicitada. Portanto, como fundamento da vantagem solicitada pelo funcionário, este, programa e anuncia uma ideia de contrapartida respeitante a um ato, que, como se referiu, não só, não tem que ocorrer, como nem tem que ser verdadeira, bastando para a consumação típica, a mera encenação de que irão ser praticados atos em troca da entrega de vantagens pedidas. O ato programado pelo funcionário é objetiva e ostensivamente violador dos seus deveres funcionais, não exigindo o tipo legal, que o recetor da proposta do funcionário corrupto conheça previamente a natureza ilegal do ato (por essa razão, os candidatos da admissão, não são agentes do crime corrupção ativa), porquanto, o dolo a aferir será o do agente da corrupção passiva – o funcionário corrupto. É aí que se quebra a lealdade e confiança nas relações laborais estabelecidas no sector privado. Também, não se questiona que, logrando-se provar os delitos em questão em julgamento a realizar nos presentes autos, o bem jurídico foi lesado de forma exuberante.
Defendeu o Tribunal “A Quo” que: “Contudo, em nenhum lugar da acusação se diz que que aquela exigência tenha sido efectuada como contrapartida à admissão à residencial para idosos de candidatos que não preenchiam os requisitos previstos para o efeito, isto é, não resulta da acusação pública que esse pagamento tenha sido exigido pelos arguidos para permitir o acesso a essa estrutura de utentes que, em condições normais, não seria admitidos, por não reunirem os requisitos previstos no estatuto das IPSS a nas normas protocoladas para esse efeito.”.
Contudo, diversamente, como resulta do que já se expôs, tanto é crime de corrupção passiva a solicitação da entrega as quantias elevadas indevidas para os candidatos sem condições de admissibilidade (sustentando o Tribunal “A Quo” que só nestas existiria crime), como para os candidatos que têm essas condições reunidas à partida. Não se pode fazer a distinção que o Tribunal “A Quo” pretendeu fazer.
Em ambas as situações, e principalmente na segunda situação, para os candidatos que têm as condições legais reunidas (onde o Tribunal de 1ª instância não vê a corrupção passiva), o arguido cria e ficciona um expediente igualmente fraudulento (manifestando um dolo de corrupção passiva bem superior à primeira situação), exigindo um pagamento ilegal, por não constar do processo de candidatura, condicionando os candidatos ao pagamento dessas quantias para prosseguir na candidatura e admissão. E esta interferência no processo administrativo de candidatura, constitui uma conduta exuberante em termos típicos, consubstanciando com larga suficiência a prática do ato que viola os seus deveres funcionais, a promessa de admissão, ou admissão, mas pagando.
Como decorre da acusação, a arguida e o arguido valendo-se da sua posição na instituição, e do domínio dos procedimentos, seja nos casos em que o candidato tinha sucesso à partida na candidatura, ou mesmo que não reunisse os requisitos de admissibilidade, criam o artificio fraudulento no processo respetivo, solicitando as quantias para a concretização da admissão, e este é o ato típico – a admissão fraudulenta, “extorquindo” elevadas quantias.
Portanto, o ato violador dos deveres funcionais – a admissão fraudulenta do candidato -, seria funcionalmente a contrapartida do pagamento dos valores peticionados (embora os termos da fraude não fossem anunciados), não tendo de constituir, por sua vez, um total e real benefício para quem fez a entrega dos valores pedidos, embora fosse esse o pressuposto na fraude criada pelo arguido aos candidatos, segundo reza a acusação.
A conduta descrita na acusação estando no domínio da corrupção passiva própria respeitante ao crime previsto e punido pelos arts.8º nº1, ex vi arts.1º “in fine” e 2º alíneas e) e d) todos da Lei nº20/2008, mostra-se suficiente para a operação de subsunção típica do delito, devendo por isso ser revogada a decisão que rejeitou a acusação.
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso deverá ser integralmente provido.
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão do Tribunal a quo, devendo em sua substituição proferir outra decisão que receba a acusação e ordene o prosseguimento dos autos, com as demais consequências.
Notifique.
Porto, 29 de janeiro de 2025.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
Castela Rio