CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME SEMI-PÚBLICO
CONVOLAÇÃO
CRIME DE INJÚRIA
QUEIXA
ASSISTENTE
JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADA
ALCANCE
Sumário

I – A exigência superveniente de queixa e/ou de acusação particular quanto aos crimes de natureza semi-pública ou particular, por convolação do crime de violência doméstica, constitui uma desconformidade com os princípios da tutela jurisdicional efetiva e do processo penal justo, leal e equitativo, previstos no art.20.º, nº1, 4 e 5, da C.R.P.
II – Nesta hipótese de convolação da natureza dos crimes, a extinção do procedimento criminal por falta de condição de procedibilidade e/ou de prosseguibilidade conduz a uma verdadeira decisão surpresa e desleal entre sujeitos processuais, a qual afronta o direito à informação e participação ativa da vítima (art.67º-A, nº4, do CPP e art.s 8º e 11º da Lei n.º 130/2015, de 04/09).
III – No AUJ (STJ) n.º9/2024, de 9 de julho, a questão resolvida consistiu apenas em saber se, na falta da acusação particular em sentido formal, a adesão ou acompanhamento da acusação pública por parte do assistente podia ser equiparada a esta como condição de prosseguibilidade do procedimento criminal pelo crime de natureza particular.
IV – Diferente é saber se a falta de adesão ou acompanhamento da acusação pública por parte do assistente impede o avanço do processo para condenação do arguido pelo minus de injúria, hipótese em que não é aplicável a jurisprudência fixada pelo cit. AUJ (STJ) n.º9/2024.

(Da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo: 37/23.1GFPNF.P1




Relator
João Pedro Pereira Cardoso

Adjuntos
1. Raúl Cordeiro (voto vencido)
2. Maria dos Prazeres Silva







Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo nº37/23.1GFPNF, do Juízo Local Criminal de ... - Juiz 2, foi em 06 de setembro de 2024 proferida sentença, e na mesma data depositada, na qual – ao que aqui interessa - se decidiu julgar improcedente a acusação e, em consequência absolver o arguido AA da prática:
a) de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, alíneas b) e nº 2, alínea a) 4 e 5 do Código Penal; e
b) de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.

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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso a assistente, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
CONCLUSÕES
A) O recurso abrange matéria de facto e de direito, visando a apreciação da existência do vício decisório de erro notório, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c) do C.P.P., e a impugnação da decisão da matéria de facto no sentido da prova da factualidade constante das alíneas b), c), d), e), f) e g), julgada não provada, pugnando-se pela modificação da decisão do douto tribunal a quo, em conformidade com os art.º 412.º, n.º 2 a 4, e 431.º, alínea b), do C.P.P.,
B) e consequentemente, seja proferida decisão julgando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual o Arguido vem acusado, com a sua condenação na pena que se mostrar justa e adequada.
C) Normas jurídicas violadas: os art.º s 124.º e 127.º do Código de Processo Penal e 152.º, n.º 1, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a) do Código Penal.
D) O arguido confessou a integralidade dos factos que lhe são imputados.
E) Vício de Erro notório – Arguido confessou a integralidade dos factos que lhe são imputados, porém o tribunal a quo procedeu à sua absolvição.
F) No caso concreto, analisada a douta sentença recorrida e a fundamentação através da qual o tribunal a quo dá a conhecer a forma como procedeu à conjugação das provas produzidas em audiência, designadamente as declarações do arguido, da ofendida e a prova testemunhal elencadas na motivação da matéria de facto, e as razões em que se fundamentou para dar como provados e não provados os factos da forma como o fez, afigura-se-nos evidenciar-se erro notório na apreciação da prova e decisão de facto, nomeadamente no que se refere à factualidade seguinte:
• Ao dar como provado que o arguido e a assistente viveram 19 anos juntos na freguesia ...,
• que quando se separam o arguido permaneceu na casa que era a morada de família e
• que a vítima se mudou para outra freguesia, ... (a mais de 5 Km de distância);
• Que o arguido já tinha sido condenado, em 2023, por crime de natureza idêntica,
• Perpetrado contra a mesma vítima, tendo sido condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, sujeito a regime de prova, com proibição de contactos com a vítima, bem como na pena acessória de proibição de aproximação da residência da ofendida e do seu local de trabalho;
• Conjugadas com a confissão efetuada pelo o arguido da integralidade dos factos que lhe são imputados!
• Tinha, o tribunal a quo, pelo menos que considerar os pontos b), c), d) e e) dos factos dados não provados como provados, uma vez que o arguido tinha plena consciência que os seus actos eram contrários à lei, até porque já tinha sido condenado, em 2022, por crime de igual natureza, perpetrado contra a mesma vítima.
G) Porém, no caso em apreço, para além de o arguido ter confessado a prática dos factos, tínhamos as declarações para memória futura prestadas pela vítima e por um dos filhos menores de ambos, a saber, a BB.
H) Analisadas as declarações para memória futura da testemunha BB, cuja transcrição se encontra disponível junto dos autos, por e-mail remetido por técnico especializado a 12 de Agosto de 2024, verificamos que a testemunha refere que o arguido sempre que queria falar com a vítima telefonava para o telemóvel do filho CC, e que as conversas eram ouvidas pelos filhos de ambos (BB, DD, CC EE e EE).
I) Pelo que o arguido bem sabia que ao dizer o que dizia à vítima, pelo telefone, o estava a fazer à frente dos filhos, pelo que o ponto f) dos factos dados como não provados teria que ter sido dado como provado.
J) Assim sendo, ao decidir pela não prova dos factos constantes das alíneas b) a f), o tribunal a quo deu como não provados factos que não podiam deixar de ter acontecido, fazendo-o de uma forma ilógica.

Erro de julgamento
K) O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao incluir na matéria de facto dada como não provada os factos constantes das referidas alíneas b) a g) consubstanciadores de maus tratos físicos e psíquicos na pessoa da ofendida/assistente, e os factos atinentes à intenção do arguido.
L) Com relevância para a decisão a proferir sobre tais pontos da matéria de facto, impondo que sejam dados como provados, importará considerar as declarações do Arguido, que confessou todos os factos que lhe são imputados, e dos depoimentos das testemunhas, em conjugação com as declarações da Assistente.
M) Quanto ao elemento subjectivo do tipo impunha-se ao Tribunal de julgamento que, servindo-se, como se impõe, dos factos dados como provados por prova direta, isto é, partindo por via dela de um conjunto de factos conhecidos (factos plurais, com uma conexão lógica entre si), e recorrendo a juízos de normalidade, assentes nas regras da experiência comum, chegasse à conclusão de que se encontravam provados aqueles factos, os quais, por via de prova direta seriam dificilmente demonstráveis. Mas que, no caso em apreço até o foram, porque o arguido confessou a prática dos factos.
N) Ressalte-se que, como se disse, o arguido confessou a prática dos factos.
O) Confessou que se deslocava mais de 5 km para ir a um café próximo de casa da vítima.
P) Confessou que foi ter com ela e que lhe proferiu as seguintes expressões “sua filha da puta, não tens vergonha, andas metida com o FF de ..., és uma puta que aí andas, andas a dar o pito a todo.”
Q) Confessou que disse à vítima que “eu não posso imaginar tu estares com outro homem”.
R) Confessou que telefonou à vítima, através do telemóvel do filho CC, para lhe pedir desculpa pelo que tinha feito. (Se pede desculpa, tem consciência que agiu com dolo).
S) Confessou que perguntou aos filhos menores com quem é que mãe namorava, tendo mostrado fotografias de homens.
T) Confessou que encarava a vítima e todos que com ela estivessem.
U) Impunha-se que, em face da factualidade que se indica supra como devendo ser considerada provada se considere igualmente provada a factualidade constante das referidas alíneas, numa apreciação conforme às regras da experiência.
V) E ao dar como provada tal factualidade, encontra-se também preenchido o tipo de crime de violência doméstica pelo qual o arguido vinha acusado.

Enquadramento jurídico-penal
W) - O art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece os critérios de qualificação como crime de violência doméstica.
X) O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental.
Y) Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.
Z) No presente caso, ficaram inequivocamente demonstrados comportamentos (insultos, humilhações, ameaças e outros constrangimentos da autonomia e liberdade da pessoa da vítima) suscetíveis de integrarem o tipo de crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado.
AA) Factos esses, confessados, na integralidade, pelo arguido. E aliados ao facto de o arguido já ter sido condenado por igual crime, contra a mesma vítima.
BB) No presente caso, o comportamento do arguido/recorrido insere-se numa posição de domínio sobre a assistente, demonstrativo de um claro sentimento de posse, quando o mesmo afirmou que “não te posso ver com outro homem”, traduzindo reiteradas violações da sua integridade emocional e psicológica, num contexto de clara imparidade, já que, apesar de se encontrar proibido de contactar a vítima, não se coibe de fazer mais de 5 km para frequentar o café que fica ao lado da casa da vítima e dirigir-se a ela com a claro objectivo de perturbar a sua paz e equíbrio emocional.
CC) Assumindo particular danosidade social e denotando o especial desvalor de ação pressuposto pelo crime de violência doméstica, justifica a sua autonomização face aos outros tipos de ilícito (designadamente, injúria, ameaça e ofensa à integridade física) com os quais se encontra numa relação de concurso aparente.
DD) Desta feita, por se verificarem preenchidos os elementos essenciais para ser aplicado o crime de violência doméstica, deve o arguido ser condenado pela prática do mesmo, em pena a determinar por este tribunal.

Da Reparação Dos Ofendidos Em Casos Especiais –
EE) Ao ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, incorre o arguido na obrigação de pagar à vítima, GG, quantia a arbitrar pelo Tribunal, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, nos termos do disposto no artigo 82-A do CPP,
FF) a que deve acrescer juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da sentença até efetivo e integral pagamento, que se requer que seja arbitrada em quantia nunca inferior a 3000,00€, considerando a reincidência do arguido.

Do Crime de Violação de Imposições, Proibições e Interdições –
GG) O artigo 152º do C.P. prevê, nos seus nº 1 e 2, a aplicação de pena principal de prisão cuja medida pode fixar-se entre 1 e 5 anos, se uma mais grave não lhe couber.
HH) Por sua vez, o nº 4 do artigo 152º CP, prevê a aplicação ao arguido de penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
II) Por seu turno o nº 5, do artigo 152º do CP, prevê que a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
JJ) Resulta do facto 4) dado como provado que “o Arguido AA, por sentença proferida a 05.05.2022 e transitada em julgado a 29.09.2022, no âmbito do processo n.º ..., foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da vítima GG, na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de três anos, suspensão esta subordinada às seguintes condições: - regime de prova, a acompanhar pela DGRS, nomeadamente na modalidade de manutenção do acompanhamento psiquiátrico de que o Arguido vem beneficiando (salientando-se que o Arguido expressamente nisso consentiu) e frequência do programa para agressores de violência doméstica; - proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, nesse período (Ofendida GG), devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos; - bem como na pena acessória de proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho, pelo período de três anos.
KK) Interpretando a letra da lei, bem como a pena aplicada ao arguido, no âmbito do processo n.º ..., verificamos que o mesmo foi condenado: - na pena principal de prisão de 3 anos, suspensa pelo mesmo período (transitada em julgado a 29-09-2022); - na pena acessória de acompanhamento psiquiátrico; proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, nesse período e proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho.
LL) Constatamos que o arguido confessou que falou ao telemóvel com a ofendida, foi ter com ela a dois cafés, sendo que um deles fica ao lado da casa da ofendida, e falou com ela, apelidando-a de “puta”, “filha da puta”, “dás o pito a todos”, entre outras expressões.
MM) Da sentença que se recorre, resulta que da factualidade provada que o Arguido se aproximou da Assistente, após o trânsito em julgado da sentença e no período de 3 anos de vigência das penas acessórias.
NN) No entanto, não resulta provado que o tenha feito na residência da Assistente ou no local de trabalho da mesma, outrossim apenas em estabelecimentos de café e na via pública (sem qualquer menção em relação a qualquer um dos referidos locais residencial ou laboral).
OO) Somos do entendimento que o a proibição de contactos a que o arguido de encontrava sujeito corresponde, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 152º CP, a uma pena acessória e não numa condição da aplicação da pena principal, como fundamento do tribunal a quo.
PP) Prescreve o artigo 353.º do Código Penal que, quem violar proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
QQ) Ao arguido foi questionado se sabia que não podia contactar e falar com a vítima, tendo o mesmo dito que sim, e ainda assim não se coibiu de o fazer.
RR) Nestes termos, querendo actuar do modo descrito, como o fez, sabendo que tal comportamento lhe era vedado, com perfeito conhecimento da proibição a que estava sujeito, actuou com dolo directo (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal).
SS) Destarte, pelo preenchimento dos elementos quer objectivos, quer subjectivos do tipo, conclui-se que o Arguido cometeu um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal, devendo ser condenado por este tribunal pela prática do mesmo.
Em resumo, deve a sentença proferida pelo tribunal a quo ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, no pagamento de indemnização a arbitrar por este tribunal e ser condenado pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições.

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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo:
- concordar com a decisão de absolvição do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal, já que a proibição de contactos imposta no âmbito do processo n.º 211/21. 5FPNF, foi-o enquanto mera condição da suspensão da execução da pena, e não “a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade”, pelo que a situação verificada nestes autos não preenche o tipo legal do crime em causa; e .
- discordar da decisão de absolvição do crime de violência doméstica, parte em que, dando-se como provados os factos elencados em b) a e) dos factos não provados, deverá o arguido ser condenado pela prática do mesmo, bem como a pagar à vítima quantia a arbitrar pelo Tribunal, a título de compensação pelos danos não patrimoniais (cfr. artigo 82º-A do Código de Processo Penal e artigo 21º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado de tal decisão e até efetivo e integral pagamento.
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Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Posto isto,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são as seguintes:
1. Da impugnação restrita da matéria de facto: erro notório na apreciação da prova
2. Da impugnação ampla da matéria de facto
3. Do preenchimento do tipo de crime de violência doméstica: degradação em crime de injurias e (i)legitimidade do Ministério Público
4. Do preenchimento do tipo de crime de violação de proibições
5. Do arbitramento da indemnização civil
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Com relevo para a resolução da questão objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):

1. Matéria de facto provada:
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos, excluindo-se os que têm carácter conclusivo ou jurídico:
1) O Arguido viveu durante 19 anos com a Ofendida GG, como se de marido e mulher se tratassem, primeiro numa casa arrendada e posteriormente em habitação própria, sita no Caminho ..., ..., ..., neste município ....
2) Deixaram de viver um com outro em Novembro de 2018, passando a Ofendida a residir na Rua ..., ... ..., ..., e ficando o Arguido a residir na referida habitação, sita no Caminho ..., ..., ..., ....
3) Desta união nasceram cinco filhos, HH, EE, CC, BB e DD, a ../../1999, ../../2002, ../../2007, ../../2010 e ../../2016, respectivamente.
4) O Arguido AA, por sentença proferida a 05.05.2022 e transitada em julgado a 29.09.2022, no âmbito do processo n.º ..., foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da vítima GG, na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de três anos, suspensão esta subordinada às seguintes condições: - regime de prova, a acompanhar pela DGRS, nomeadamente na modalidade de manutenção do acompanhamento psiquiátrico de que o Arguido vem beneficiando (salientando-se que o Arguido expressamente nisso consentiu) e frequência do programa para agressores de violência doméstica; - proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, nesse período (Ofendida GG), devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos; bem como na pena acessória de proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho, pelo período de três anos.
5) No dia 05.02.2023, pela 01h00, no interior do estabelecimento comercial “Café A...”, em ..., ..., o Arguido dirigiu-se à Assistente e proferiu a seguinte expressão “o que estás aqui a fazer? Os meninos?”, ao que esta respondeu que estes estavam em casa, altura em que o Arguido, dirigindo-se à mesma, proferiu a seguinte expressão “anda lá que tu vais ver, vais ter sorte” e saiu daquele estabelecimento.
6) No dia 11.02.2023, pelas 00h30, no interior do estabelecimento comercial “Café A...”, em ..., ..., o Arguido dirigiu-se à Assistente e proferiu a seguinte expressão “queres dançar?”, tendo a mesma respondido “vais começar?”.
7) Ato contínuo, o Arguido dirigiu-se à Assistente e proferiu as seguintes expressões “sua filha da puta, não tens vergonha, andas metida com o FF de ..., és uma puta que aí andas, andas a dar o pito a todos”.
8) No dia 12.02.2023, pelas 13h00, o Arguido contactou, por via telefónica, o filho CC, pediu para falar com a vítima, e após dirigiu-se à Assistente, pediu-lhe desculpa e proferiu a seguinte expressão “eu não posso imaginar tu estares com outro homem”.
9) Em data não concretamente apurada ocorrida entre abril de 2023 e 08.08.2023, o Arguido perguntou à menor BB como se chamava e onde vivia o namorado da vítima, confrontando-os (leia-se, confrontando-a) com fotografias de homens que tinha no telemóvel para que estes identificassem o namorado da Assistente.
10) No dia 08.08.2023, pelas 22h00, quando a Assistente se encontrava no estabelecimento comercial “Café B...”, o Arguido passou por esse local a conduzir o respetivo veículo automóvel.
11) Por temer ser abordada pelo Arguido, a Assistente abandonou o estabelecimento comercial referido em 10) e, quando se encontrava na via pública a conversar com amigos, o Arguido parou o seu veículo automóvel junto aos mesmos e aí permaneceu a olhar fixamente para a vítima, o que levou a mesma a abandonar aquele local.
12) O Arguido sabia que as expressões por si dirigidas à Assistente eram profundamente ultrajantes e lesivas da sua honra e da consideração pessoal que lhe é devida, mas não obstante essa cognição, agiu com o propósito, conseguido, de a ofender na sua honra e consideração.

Condições pessoais
13) O Arguido e a Assistente, inicialmente, enquanto viveram juntos tinham a economia do casal assente no exercício profissional de ambos, ele como motorista, ela como empregada doméstica. Segundo o próprio, a relação decorreu de forma harmoniosa até passar para motorista de longo curso, o que o fez estar ausente de casa por longos períodos e chegar a casa stressado, tornando-se em seu entender menos tolerante e menos paciente para a companheira e para os filhos. No entender da Assistente, a relação degradou-se desde há dez anos atrás, altura em que o Arguido passou a revelar grande instabilidade emocional, situações de infidelidade e dificuldade em manter os próprios vínculos laborais. Nesse seguimento, foi internado no Hospital ... em psiquiatria e posteriormente, foi transferido para o de ..., onde mantém até hoje o acompanhamento psiquiátrico. O Arguido apresenta segundo informação clínica, “quadro clínico de personalidade evitante com traços de personalidade depressiva e passivo agressiva agravado por uma perturbação de ansiedade generalizada, uma perturbação de pânico com agorafobia e uma distimia.” Na mesma informação consta que “este quadro se tem mostrado incapacitante e pouco permeável às múltiplas alterações farmacológicas realizadas ao longo do tempo”.
14) O Arguido vive na casa que era do casal, uma moradia que contruíram em terreno que lhe foi doado pelos pais, habitação que apresenta adequadas condições de habitabilidade. Suporta o crédito à habitação no valor mensal de 137€, e uma média mensal de 60€ de eletricidade e 5€ de água. Como rendimento conta apenas com a pensão de invalidez no valor de 215€, montante insuficiente para sobreviver, pelo que, é ajudado por familiares, progenitora e irmãos que vivem próximos da sua residência. Devido aos problemas do foro psíquico de que padece, o Arguido passa muito tempo em casa, isolado, por vezes com dificuldade em sair da cama, sendo os contactos restritos aos familiares (mãe e irmãos) que o vão acompanhando.
15) O Arguido declarou, para efeitos de declaração de IRS do ano de 2023, rendimentos na ordem dos € 5.325,66.
16) O Arguido foi condenado, por sentença proferida a 05.05.2022 e transitada em julgado a 29.09.2022,, pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da Assistente GG, na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de três anos, suspensão esta subordinada às seguintes condições: - regime de prova, a acompanhar pela DGRS, nomeadamente na modalidade de manutenção do acompanhamento psiquiátrico de que o Arguido vem beneficiando (salientando-se que o Arguido expressamente nisso consentiu) e frequência do programa para agressores de violência doméstica; - proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, nesse período (Ofendida GG), devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos; bem como na pena acessória de proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho, pelo período de três anos.
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2. Matéria de facto não provada
Com relevância para a boa decisão da causa, resultou não provado que:
a) O Arguido tenha perguntado ao menor DD como se chamava e onde vivia o namorado da Assistente, confrontando-o com fotografias de homens que tinha no telemóvel para que este identificasse o namorado da vítima.
b) O Arguido sabia que os anúncios acima referidos eram idóneos e apropriados a afetar a sua liberdade de determinação e a provocar-lhe medo e inquietação e deixá-la perturbada no seu sentimento de segurança, com receio de que pudesse levar a cabo o mal anunciado, o que igualmente quis e conseguiu.
c) Mais sabia que, ao atuar da forma supra descrita deixava a Assistente perturbada no seu sentimento de segurança e condicionava as suas rotinas por esta se sentir permanentemente vigiada, o que igualmente quis e conseguiu.
d) Sabia ademais que os seus atos, acima descritos afetavam a dignidade pessoal da Assistente, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e eram adequados a criar nela angústia e sentimentos de insegurança e dependência em relação a si, aterrorizando-a e humilhando-a, o que igualmente quis e conseguiu.
e) Fê-lo sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência psíquica, bem sabendo que a mesma era sua ex-companheira e que da forma descrita atingia psicologicamente a mesma e lhe infligia maus-tratos psíquicos, o que lhe foi indiferente por ser querida tal conduta.
f) Sabia outrossim que atuava na presença dos filhos menores, bem como que essas circunstâncias lhe agravavam a responsabilidade criminal.
g) Sabia, ainda, o Arguido que ao aproximar-se e contactar a vítima da forma supra descrita, apesar de se encontrar proibido de o fazer por ter sido condenado na pena acessória supra referida, atuando no intuito, concretizado, de desrespeitar a proibição imposta por sentença, violando-a.
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Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal no que à factualidade dada como provada concerne, baseou-se nos elementos documentais constantes nos autos e as declarações para memória futura transcritas a fls. 304 e ss., devidamente concatenados com a prova produzida em juízo, tudo analisado à luz das regras da experiência, juízos de normalidade e princípio da imediação.
A factualidade vertida em 1) a 4) resulta assente em face do teor das certidões de fls. 41 e ss., das próprias declarações do Arguido e das declarações para memória futura prestadas pela Assistente, transcritas a fls. 310 verso e ss., bem, ainda, como do teor do relatório social de fls. 322 e ss..
Quanto ao mais, temos que o Arguido prestou declarações em juízo, tendo admitido, genericamente, a factualidade constante da acusação quanto ao vertido em 5) a 8) e 18), admitindo o constante de 9) como possível, embora se não recorde.
Quanto aos factos constantes de 10) e 11), o Arguido admite que foi buscar os filhos, viu a Assistente e olhou para ela.
Ora, conjugando as declarações (em parte confessórias) do Arguido com as declarações para memória futura prestadas pela Assistente e, ainda, pela menor BB, salientando que ambas prestaram declarações de forma espontânea e credível, temos que resulta provada a factualidade constante da acusação supra dada como provada.
Na verdade, o Arguido admite ter encabeçado os episódios dos dias 5, 11 e 12 de fevereiro de 2023 e, quanto ao de dia 08.08.2023, o que acaba por assumir coincide, parcialmente, com o que a Assistente declarou em sede de declarações para memória futura, sendo estas, apenas, mais completas e permitindo a prova dos factos preditos nos moldes supra constantes.
Por fim e quanto ao episódio dado como provado dos factos provados em 9), a menor BB confirmou tal factualidade nas declarações por si prestadas, nada tendo referido quanto ao seu irmão DD.
Este menor DD, por sua banda, não prestou declarações quando foi ouvido em sede de declarações para memória futura (ao abrigo da faculdade a que alude o art. 134º do CPP, por ser filho do Arguido) e o que a Assistente declarou nesta sede é apenas um relato indirecto do que ouviu à sua filha BB, confirmado parcialmente, nos moldes preditos.
Em face do exposto, resulta não provada a factualidade vertida em a) por o menor DD não ter tal confirmado, nem ter sido produzida qualquer prova directa sobre tal facto.
O facto constante de 12) foi, afinal, admitido pelo Arguido, tanto mais que acabou por pedir desculpas à Assistente na sua sequência. Ainda que assim não fosse, sempre resultaria das regras da experiência a sua prova em face da confissão da factualidade vertida em 7).
O dado como provado em 13) e 14) resulta do teor do já referido relatório social junto aos autos, o constante de 15) da declaração de IRS de fls. 287 e ss. e, por fim, os antecedentes criminais do CRC de fls. 284 e ss..
A factualidade constante de b) a e) resulta não provada pois que, lançando mãos das regras da experiência e juízos de normalidade se considera que nenhuma da factualidade naturalística que tenha resultado assente em juízo permite a sua demonstração. Concretizando, dir-se-á que se tratam de imputações ao Arguido que não logram merecer demonstração directa de per se (pois que não foi produzida qualquer prova de onde tal se possa assacar) ou com base noutros factos demonstrados que permitam qualquer demonstração indirecta.
O vertido em f) não foi provado por qualquer meio e, quanto ao constante de g), pese embora o Arguido tenha afirmado em juízo conhecer as proibições, as mesmas não decorrem de pena acessória (mas principal) que lhe tenha sido judicialmente aplicada, donde decorre a sua não prova.
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Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.

Da impugnação restrita da matéria de facto: erro notório na apreciação da prova (art. 410°, nº2, do Código Processo Penal).
A recorrente assistente veio invocar a existência de vício de erro notório na apreciação da prova do artigo 410.º, n.º 2 alínea c) do Código de Processo Penal.
Do erro notório na apreciação da prova
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O vício existe quando se dão por provados ou não provados factos que, face à prova produzida, conjugada com as regras de experiência comum e a lógica corrente, do homem médio, impunham notoriamente decisão diversa.
Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Tal vício, como os demais elencados no artigo 410.º, n.º 2 não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, princípio ínsito no citado normativo.
O que releva, neste aspeto, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pela recorrente sobre os factos.
Ora, do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do mencionado erro notório na apreciação da prova, porquanto não se deteta ostensivamente que o Tribunal tenha violado as regras da experiência comum ou feito uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, ilógica, arbitrária ou contraditória, o que afasta a existência de qualquer vício de raciocínio nessa apreciação, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão.
Na perspetiva da lógica interna da decisão e perante o respetivo texto, os factos dados como provados e não provados e que a sustentaram têm perfeito suporte na prova elencada na motivação da decisão de facto e na valoração que dela foi feita, pese embora a recorrente assistente não se reveja nela.

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Não ocorrendo vício que inquine a matéria de facto nos termos do art.410º, nº2, do Código Processo Penal, a factualidade assente é insuscetível de modificação pela via da impugnação restrita.
Por conseguinte, improcede nesta parte o recurso.
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Da impugnação ampla da matéria de facto (art. 412°, nº3)
Nos termos do art. 428º, nº 1, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o art. 412º, nº 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.
O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).
Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida.
Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado.
Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 (AFJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2012.
Assim, quanto ao cumprimento do ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), com o AFJ (STJ) nº 3/2012, foi fixada a seguinte jurisprudência:
- Se a ata contiver a referência ao início e termo das declarações, basta a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal); – Ou, alternativamente, se a ata não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).
Na situação dos autos, a recorrente impugna a decisão que considerou não provados os seguintes factos:
b) O Arguido sabia que os anúncios acima referidos eram idóneos e apropriados a afetar a sua liberdade de determinação e a provocar-lhe medo e inquietação e deixá-la perturbada no seu sentimento de segurança, com receio de que pudesse levar a cabo o mal anunciado, o que igualmente quis e conseguiu (ponto 13 da pronúncia/acusação).
c) Mais sabia que, ao atuar da forma supra descrita deixava a Assistente perturbada no seu sentimento de segurança e condicionava as suas rotinas por esta se sentir permanentemente vigiada, o que igualmente quis e conseguiu (ponto 14 da pronúncia/acusação).
d) Sabia ademais que os seus atos, acima descritos afetavam a dignidade pessoal da Assistente, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e eram adequados a criar nela angústia e sentimentos de insegurança e dependência em relação a si, aterrorizando-a e humilhando-a, o que igualmente quis e conseguiu (ponto 15 da pronúncia/acusação).
e) Fê-lo sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência psíquica, bem sabendo que a mesma era sua ex-companheira e que da forma descrita atingia psicologicamente a mesma e lhe infligia maus-tratos psíquicos, o que lhe foi indiferente por ser querida tal conduta (ponto 16 da pronúncia/acusação).
f) Sabia outrossim que atuava na presença dos filhos menores, bem como que essas circunstâncias lhe agravavam a responsabilidade criminal (ponto 17 da pronúncia/acusação).
g) Sabia, ainda, o Arguido que ao aproximar-se e contactar a vítima da forma supra descrita, apesar de se encontrar proibido de o fazer por ter sido condenado na pena acessória supra referida, atuando no intuito, concretizado, de desrespeitar a proibição imposta por sentença, violando-a (ponto 18 da pronúncia/acusação).
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Deste elenco sobressai, uma vez percorrida a matéria de facto selecionada, a omissão de pronúncia em relação ao facto descrito no ponto 19 da pronúncia/acusação, a saber:
“19. Em todas as circunstâncias descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei.”
São os seguintes os factos constantes
Da pronúncia (remissiva para a acusação)
5. No dia 05.02.2023, pela 01h00, no interior do estabelecimento comercial “Café A...”, em ..., ..., o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu a seguinte expressão “o que estás aqui a fazer? Os meninos?”, ao que esta respondeu que estes estavam em casa, altura em que o arguido, dirigindo-se à mesma, proferiu a seguinte expressão “anda lá que tu vais ver, vais ter sorte” e saiu daquele estabelecimento.
6. No dia 11.02.2023, pelas 00h30, no interior do estabelecimento comercial “Café
A...”, em ..., ..., o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu a seguinte expressão “queres dançar?”, tendo a mesma respondido “vais começar?”.
7. Ato contínuo, o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu as seguintes expressões “sua filha da puta, não tens vergonha, andas metida com o FF de ..., és uma puta que aí andas, andas a dar o pito a todos”.
8. No dia 12.02.2023, pelas 13h00, o arguido contactou, por via telefónica, o filho CC, pediu para falar com a vítima, e após dirigiu-se à vítima, pediu-lhe desculpa e proferiu a seguinte expressão “eu não posso imaginar tu estares com outro homem”.
9. Em data não concretamente apurada ocorrida entre Abril de 2023 e 08.08.2023, o arguido perguntou aos menores BB e DD como se chamava e onde vivia o namorado da vítima, confrontando-os com fotografias de homens que tinha no telemóvel para que estes identificassem o namorado da vítima.
10. No dia 08.08.2023, pelas 22h00, quando a vítima se encontrava no estabelecimento comercial “Café B...”, o arguido passou por esse local a conduzir o respetivo veículo automóvel.
11. Por temer ser abordada pelo arguido, a vítima abandonou o estabelecimento comercial referido em 10. e, quando se encontrava na via pública a conversar com amigos, o arguido parou o seu veículo automóvel junto aos mesmos e aí permaneceu a olhar fixamente para a vítima, o que levou a mesma a abandonar aquele local.
12. O arguido sabia que as expressões por si dirigidas à vítima eram profundamente ultrajantes e lesivas da sua honra e da consideração pessoal que lhe é devida, mas não obstante essa cognição, agiu com o propósito, conseguido, de a ofender na sua honra e consideração.
13. Sabia que os anúncios acima referidos eram idóneos e apropriados a afetar a sua liberdade de determinação e a provocar-lhe medo e inquietação e deixá-la perturbada no seu sentimento de segurança, com receio de que pudesse levar a cabo o mal anunciado, o que igualmente quis e conseguiu.
14. Mais sabia que, ao atuar da forma supra descrita deixava a vítima perturbada no seu sentimento de segurança e condicionava as suas rotinas por esta se sentir permanentemente vigiada, o que igualmente quis e conseguiu.
15. Sabia ademais que os seus atos, acima descritos afetavam a dignidade pessoal da vítima, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e eram adequados a criar nela angústia e sentimentos de insegurança e dependência em relação a si, aterrorizando-a e humilhando-a, o que igualmente quis e conseguiu.
16. Fê-lo sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência psíquica, bem sabendo que a mesma era sua ex-companheira e que da forma descrita atingia psicologicamente a mesma e lhe infligia maus-tratos psíquicos, o que lhe foi indiferente por ser querida tal conduta.
17. Sabia outrossim que atuava na presença dos filhos menores, bem como que essas circunstâncias lhe agravavam a responsabilidade criminal.
18. Sabia, ainda, o arguido que ao aproximar-se e contactar a vítima da forma supra descrita, apesar de se encontrar proibido de o fazer por ter sido condenado na pena
acessória supra referida, atuando no intuito, concretizado, de desrespeitar a proibição imposta por sentença, violando-a.
19. Em todas as circunstâncias descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei.”
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Ora, visto o consignado em ata de julgamento de 6 de setembro de 2024 sob Referência: 96187312, mal se compreende que em relação ao ponto 18, tendo o arguido admitido conhecer o conteúdo da sentença e a proibição inerente, se dê como não provado que, ao aproximar-se e ao contactar a vítima da forma dada como provada, apesar de se encontrar proibido de o fazer por ter sido condenado, o arguido atuou no intuito, concretizado, de desrespeitar a proibição imposta por sentença, violando-a.
Diferente disto é saber a que título o arguido violou a sentença proferida a 05.05.2022 e transitada em julgado a 29.09.2022, no âmbito do processo n.º ..., designadamente se violou a pena acessória ali aplicada, facto que importa, adiante, à subsunção jurídico penal da conduta do agente, sendo inquestionável que agiu de forma livre, voluntária e conscientemente.
Note-se que, conforme descrito em 4 dos factos provados, o arguido foi condenado por sentença transitada em julgado no dia 29.09.2022, no âmbito do processo n.º ...:
- em pena de prisão principal suspensa por três anos sob condição, além do mais, de proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, nesse período, devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos; e
- na pena acessória de proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho, pelo período de três anos.
Por conseguinte, em relação à alínea g) (ponto 18º da pronúncia) deverá ser dado como provado que “ao aproximar-se e contactar a vítima da forma supra descrita, apesar de se encontrar proibido de o fazer por ter sido condenado a tanto, o arguido atuou no intuito, concretizado, de desrespeitar a proibição imposta por sentença, violando-a.
É o que resulta das regras da experiência comum no momento de saber se o arguido atuou com conhecimento e vontade de agir de acordo com os factos descritos, ciente da proibição imposta pela sentença condenatória anterior.
No mais, questiona-se se o arguido sabia que atuava na presença dos filhos menores, bem como que essa circunstância lhe agravava a responsabilidade criminal, facto descrito na alínea f) dado como não provado.
Ora, percorrida a matéria de facto provada a que se reporta esta alínea f), não se enxerga qualquer atuação maltratante do arguido em relação à sua ex-companheira, na presença dos filhos menores, e menos ainda que aquele soubesse dessa presença.
Por conseguinte, deverá esse facto manter-se como não provado.
Tudo o mais, vertido nas alíneas b) a e) são inferências lógicas atinentes ao dolo, ao qual se reportam os factos impugnados, que dificilmente se alcançam de forma direta, a não ser por confissão, que não foi o caso, havendo que proceder à conjugação da demais factualidade julgada provada com as regras da experiência comum e do conhecimento da vida para se poder concluir pela prova daqueles.
O dolo, à semelhança da consciência da ilicitude, pertence à vida interior e afetiva de cada um e, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão.
Quando não existe confissão, a prova do dolo tem que ser feita por inferência, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objetivos – em particular, dos que integram o tipo objetivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.
Além da confissão do arguido, o único meio de prova que realmente satisfaz a necessidade de provar o dolo é a prova indiciária (ou prova indireta). Na falta de confissão, todos os elementos de estrutura psicológica, como o conhecimento e a vontade de praticar um crime, terão de ser deduzidos de outros elementos, esses sim empiricamente observáveis e que funcionam, segundo as regras da experiência e da lógica, como indicadores da sua existência.
No caso concreto do dolo, terá de ficar demonstrado que, de acordo com os padrões racionais de comportamento e com os critérios de normalidade social, o arguido não pôde ter deixado de representar e querer o resultado em causa.
Salientando a dificuldade de obtenção deste tipo de prova, Ragués i Vallès, in “Considerationes sobre la prova del dolo”, propõe, na falta da confissão, a utilização de regras de atribuição do conhecimento, convocando a análise das designadas regras da experiência sobre o conhecimento alheio que permitem determinar, a partir da concorrência de certos dados externos, o que representou o sujeito no momento de pôr em prática uma certa conduta.
Mas, segundo o mesmo Autor, o que permite ter como correta uma regra de experiência é a existência de um amplo consenso em torno da sua vigência. O juiz não deve construir ou inventar regras de experiência para cada caso, mas socorrer-se da interação social para as encontrar e, no caso particular da prova do dolo, deve deitar mão àquelas regras que se aplicam em sociedade para as atribuições mútuas de conhecimentos entre cidadãos.
Dentro das regras da experiência podem identificar-se dois grupos: as leis científicas (obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas) e as regras de experiência quotidiana (obtidas através da observação, ainda que não exclusivamente cientifica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso.
Retomando o caso concreto, de acordo com as máximas da lógica e da experiência comum, baseadas no consenso social sobre a normalidade da vida, afigura-se que:
- a relatada atuação global do arguido não comporta o anúncio de qualquer mal idóneo e apropriado, cujo concreto significado, aliás, se desconhece, a afetar a liberdade de determinação e a provocar medo e inquietação na vítima, deixando-a perturbada no seu sentimento de segurança, com receio de que pudesse levar a cabo o mal anunciado;
- nem se infere do seu comportamento que o arguido sabia e quis afetar essa liberdade de determinação e ação da vítima, causando-lhe medo, insegurança e inquietação, tanto mais que se desconhece se o arguido procurou deliberadamente a sua ex-companheira, àquela hora, em cada um dos referidos lugares.
A afetação da dignidade pessoal da Assistente, bem como do seu equilíbrio psicológico e emocional são conceitos conclusivos, sem qualquer concretização factual que devem ser tidos como não escritos.
Não se reconhece, à luz das regras da experiencia comum, que a atuação global do arguido fosse adequada a criar angústia e sentimento de dependência da vítima em relação a si, aterrorizando-a, e menos ainda que, ao agir desse modo, o arguido sabia e quis atuar com esse propósito.
De resto, é contraditório afirmar que o arguido atuou sem motivo justificativo e, outrossim, com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência psíquica, atingia psicologicamente.
Ressalvado o episódio do dia 11.02.2023, pelas 00h30, no interior do estabelecimento comercial “Café A...”, no qual o arguido claramente injuriou a ex-companheira, no mais o descrito comportamento do arguido não comporta essa dimensão achincalhamento, temor e insegurança generalizada na vítima.
O arguido não confessou os factos impugnados pela recorrente assistente de índole subjetiva, antes e só a materialização do seu comportamento.
Vista a prova e explanação aduzidas pela recorrente quanto aos factos impugnados das alíneas b) a e) constata-se que a mesmo se limita a colocar em crise a convicção do tribunal recorrido sobre aqueles, e acaba por pretender simplesmente impor a sua própria e subjetiva leitura crítica da prova indiciária, em detrimento daquela que alicerçou a convicção adquirida pelo tribunal recorrido e que a sentença explicita de forma clara e cabal.
Nem a alteração da matéria de facto decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador.
Exige-se, isso sim, que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto.
Da motivação de recurso fica-nos apenas um discurso de assumida discordância da recorrente quanto à análise crítica da prova efetuada pelo tribunal recorrido, qual opinião alicerçada em generalizações probatórias baseadas em concetualizações pessoais sobre o sentido das regras da experiencia, o que torna inviável a pretensão de sindicar a livre apreciação da prova, tal como vem consagrada no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Não se verificam motivos objetivos que justifiquem a modificação da matéria de facto não provada sob alíneas b) a e) (impugnada) e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a mesma.
O juízo decisório só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Nessa decorrência, repete-se, o legislador teve o cuidado de enunciar que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem” e não as que “permitiriam” decisão diversa - cfr. art. 412º, nº 3, al. b).
A negação e/ou diferente interpretação dos factos por parte da recorrente, por si só, não impõe a alteração factual pretendida, sendo falso que o arguido tenha confessado os factos não provados (impugnados) descritos sob alíneas b) a e), mostrando-se nessa parte plenamente justificada a interpretação conferida a toda a prova produzida e examinada em julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.
Não se vislumbram razões, nem a recorrente as especifica, a partir das concretas provas produzidas, para sobrepor o seu juízo interpretativo ao que foi alcançado na decisão impugnada.
Tão pouco se mostrando incumpridas as regras da experiência comum, entende-se que a decisão da matéria de facto se deverá manter inalterada nesta parte, respeitando a convicção pessoal do julgador no âmbito do uso do principio que vigora neste domínio, o da livre apreciação da prova vertido no art.127º.
Nestes termos, carece de fundamento a pretensão recursiva de modificação da matéria de facto no tocante às impugnadas alíneas b) a e) dos factos não provados.
Finalmente, da sentença recorrida, como sobredito, nada consta expressamente sobre a ação voluntária do arguido quando constava da pronúncia o seguinte:
“19. Em todas as circunstâncias descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei.”
Esse segmento de facto foi totalmente omitido na descrição dos factos provados e não provados.
Contudo, como bem refere o ac STJ 28-03-2019, processo 373/15.0JACBR.C1.S1, Cons. Nuno Gomes da Silva, www.dgsi.pt: “Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto "forçado", um acto praticado por uma qualquer imposição exógena. Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir”.
Por conseguinte, agindo o arguido com conhecimento e propósito de praticar os factos típicos descritos em 7), o entendimento que se perfilha é o de que os mesmos contêm a cabal descrição da imputação da ação livre, voluntária e consciente do agente, circunstância que na decomposição do crime não se confunde com o dolo do tipo descrito em 12).
Acresce que, à luz das regras da experiência comum, atento o grau de ofensividade das plúrimas expressões usadas referidas em 7), o arguido não podia deixar de estar ciente que a sua relatada conduta era proibida e criminalmente punida por lei.”
Assim, nesta parte, cumpre suprir a nulidade cometida, nos termos do art.379º, nº1, al. c), e º2, do Código Processo Penal, por referência aos factos provados descritos em 7).
Na parcial procedência do recurso nesta parte, nos termos do art.412º, nº3, do Código Processo Penal, impõe-se reformular a decisão sobre matéria de facto, dando-se como provado sob pontos:
12º-A: Ao atuar como descrito em 7), o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e criminalmente punida por lei.”
12º-B: “Ao aproximar-se e contactar a vítima da forma supra descrita, apesar de se encontrar proibido de o fazer por ter sido condenado a tanto, o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, no intuito, concretizado, de desrespeitar a proibição imposta por sentença, violando-a”.
No mais, manter-se-ão como não provados os factos descritos nas alíneas b) a f) .
Procede, assim, em parte a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
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Do crime de violência doméstica
Ao arguido vem imputada, além do mais, a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 alínea b), nº 2, alínea a) e n.º 4 e 5 do Código Penal.
Dispõe o nº1 do aludido preceito legal, na parte aqui aplicável: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
Por sua banda, preceitua o nº 2 do mesmo normativo: “No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
(…)

Com a redação do n.º 1, do citado art.152.º, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, veio o legislador legitimar a jurisprudência que já vinha entendendo que os maus tratos se podiam reportar a situações de agressão (física ou psicológica) reiterada e continuada no tempo, ou a agressões únicas, mas de gravidade tal, que possibilitem a afirmação de que foram praticadas por especial malvadez ou grave disfunção do agente, subsumindo-se, por isso, a tal infração.

Consequentemente, a circunstância de existir uma conduta delituosa isolada não obsta, só por si, à subsunção legal ao crime de violência doméstica. Essencial é determinar se o ato praticado atingiu a gravidade/danosidade que a densificação normativa pressupõe. Ou seja, se o facto ilícito excede a tutela conferida pelo tipo matriz e impõe a defesa reforçada específica daquele primeiro [1].

Na verdade, o crime de violência doméstica tutela muito mais do que a soma dos vários ilícitos típicos que o podem preencher, dirigindo-se a condutas que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de contextualizar uma situação de maus tratos físicos e/ou psíquicos.

Ora, in casu, a conduta apurada e descrita, embora censurável, não atinge tal patamar não patenteando um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida e/ou sobre a sua liberdade, condenando-a a uma vivência de medo e subjugação, designadamente pela situação episódica do facto relevante descrito em 7) e a menor intensidade da lesão do bem jurídico com tutela penal.

O contexto da atuação global do arguido não possibilita um juízo fundado sobre a necessidade de defesa reforçada apenas concedida pelo crime de violência doméstica.

Como bem refere a sentença recorrida, dos quatro episódios descritos nos factos provados, apenas o segundo (dia 11.0.2023) se mostra penalmente relevante (crime de injurias), posto que os demais são neutros do ponto de vista da ofensa a qualquer bem jurídico penal.
Não resulta provado que o arguido tenha sequer procurado a Assistente ou começado a frequentar locais que esta frequentava de forma persecutória, num intervalo temporal mais ou menos circunscrito.
Do que antecede retira-se que a conduta imputada ao Arguido carece em absoluto da gravidade e reiteração exigíveis para a subsunção do tipo complexo de violência doméstica.
Apenas uma das condutas é suscetível de ser tipificada como criminalmente relevante e, mesmo essa circunscreve-se, em abstrato, ao tipo de injúria, esgotando-se num único momento isolado.
Assim, é manifesto que o crime de violência doméstica não poderá ter-se por verificado pois que, pese embora a circunstância de o Arguido e a Assistente serem ex-companheiros e terem filhos em comum, a conduta do Arguido nos moldes dados como provados não poderá reputar-se como juridicamente relevante para efeitos do tipo de violência doméstica, já que falecem os seus pressupostos da gravidade e reiteração.
Como refere a sentença recorrida, o único episódio atendível para efeitos criminais não permite afirmar a gravidade (traduzida numa ilicitude e culpas acrescidas) demandada pelo tipo punitivo e o carácter isolado dessa conduta afasta o requisito da reiteração.
As demais condutas, no que ora releva, afiguram-se-nos neutras, sendo que, ademais, não se encontra provado o elemento subjetivo do tipo complexo, razão pela qual cumpre concluir que o Arguido não poderá ser condenado pela prática do crime de violência doméstica de que vinha pronunciado.
Em face do exposto, não estamos perante a prática, pelo Arguido, de um crime de violência doméstica, razão pela qual não merece censura a respetiva absolvição.
No caso vertente, a factualidade em apreço apenas poderá ser subsumível ao tipo de injúria, p. p. pelo art.181.º n.º1, do Código Penal, no qual incorre “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
Tal crime é punido com prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
Como vimos, resulta assente que, no dia 11.02.2023, pelas 00h30, no interior do estabelecimento comercial “Café A...”, em ..., ..., o Arguido dirigiu-se à Assistente e proferiu a seguinte expressão “queres dançar?”, tendo a mesma respondido “vais começar?”. Ato contínuo, o Arguido dirigiu-se à Assistente e proferiu as seguintes expressões “sua filha da puta, não tens vergonha, andas metida com o FF de ..., és uma puta que aí andas, andas a dar o pito a todos”.
Mais resulta provado que o Arguido sabia que as expressões por si dirigidas à Assistente eram profundamente ultrajantes e lesivas da sua honra e da consideração pessoal que lhe é devida, mas não obstante essa cognição, agiu com o propósito, conseguido, de a ofender na sua honra e consideração.
Finalmente ficou provado que ao dirigir tais expressões à assistente, o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, ciente da ilicitude penal da sua conduta.
Sucede que, dado o crime de injúria ter natureza particular, conforme decorre do artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal, o mesmo depende de constituição de Assistente e dedução de queixa e acusação particular pelo assistente.
No caso em apreço, a ofendida apresentou queixa (vd. auto de denúncia de fls. 5 e ss.) e constitui-se assistente.
Contudo, a assistente não deduziu acusação particular, nem aderiu à acusação formulada pelo Ministério Público.


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Da (i)legitimidade do Ministério Público

Pergunta-se se em face da posterior transmutação/degradação da natureza do crime de público para particular, o Ministério Público continua com legitimidade para o exercício da ação penal ?

Adiantando, afigura-se que a resposta é positiva.

A exigência superveniente de qualquer condição de procedibilidade (queixa) e/ou condição de prosseguibilidade (acusação particular) quanto aos crimes de natureza semi-pública ou particular, por convolação do crime de violência doméstica no minus de injúria, constitui uma desconformidade constitucional, mormente, com os princípios e ideias da tutela jurisdicional efetiva e do processo penal justo, leal e equitativo, previstos no art.20.º, nº1, 4 e 5, da C.R.P.

Nesta hipótese de convolação da natureza dos crimes, a extinção do procedimento criminal por falta de condição de procedibilidade e/ou de prosseguibilidade conduz a uma verdadeira decisão surpresa e desleal entre sujeitos processuais, a qual afronta o direito à informação e participação ativa da vítima (art.67º-A, nº4, do CPP e art.s 8º e 11º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro).

Por paridade de razão com a sucessão de leis no tempo que transforma um crime público em semipúblico ou particular (Acórdão TC nº 523/99, de 28 de setembro), com respeito pela integridade estatutária da vítima, torna-se evidente a necessidade de chegar a uma solução que permita compatibilizar os interesses da vítima e do arguido.

No justo equilíbrio do interesse do arguido, na verificação dos pressupostos da legitimidade procedimental, com o interesse da vítima em ver reconhecido o direito de desencadear o procedimento criminal, que encontra apoio no direito à informação e participação ativa, esta não pode ser surpreendida no decurso do processo criminal pela alteração legislativa ou judicial que modificou a natureza do crime, sob pena de violação do princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP).

Referindo-se à queixa, como condição de procedibilidade, e à acusação particular, como condição de perseguibilidade, André Teixeira dos Santos, in “Queixa, participação e acusação particular versus crime público convolado em crime particular em sentido amplo por força de redução dos factos objeto do processo”, in RMP, n.º 173, pags 137-138, defende: “Tratando-se de condições que se traduzem em momentos temporais, têm de verificar-se nos tempos chave a que se reportam. Isto é, a queixa e a participação, enquanto conditio sine qua non do processo, têm de existir no seu início, antes de se encetar diligências de investigação e probatórias, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia. Já a acusação particular tem de se verificar no final do inquérito. É nesses momentos-chave que cumpre aferir se o crime objeto do processo reclama o preenchimento dessas condições. Ultrapassado o marco temporal a que se reporta a condição de procedibilidade, os actos praticados posteriormente são válidos. Logo, deduzida uma acusação por crime público, se no julgamento este crime for convolado em crime particular, por somente se terem provado os factos descritos na acusação pública respeitantes a este crime contra a honra, poderá ocorrer a condenação [...]. Nesse ponto do processo não renasce a questão da procedibilidade ou da legitimidade do MP para a prossecução do processo. [...] Em suma, a pedra de toque de todo o edifício jurídico das condições de procedibilidade assenta nos factos que dão azo à instauração do processo-crime e que permitem tal instauração, bem como à fase de julgamento. Marcos temporais delimitados e circunscritos na lei, nisso consistindo a sua definição de pressupostos processuais que, uma vez verificados, não deixam de existir e permitem que haja unidade e um fio condutor no sistema processual penal.”

Colocando o enfoque no tempo processual, o mesmo Autor defende que “as exigências legais quanto a essas condições remontam à data em que tais atos deveriam ter sido praticados.” E “nessa medida, sob pena de defraudação da opção legal, (de perante uma determinada ofensa dum bem jurídico os interesses da comunidade se bastarem com a vontade do ofendido diretamente afetado pelo crime e que será afetado pelo processo), o ofendido deve ter tido oportunidade de manifestar a sua vontade, não sendo surpreendido com uma absolvição ou um arquivamento por falta de queixa ou de dedução de acusação particular, num cenário em que os factos objeto dos autos foram perspetivados pelo MP e/ou pelo Juiz de forma assumida como consubstanciando, sem erro nem lapso na sua qualificação jurídica.”

Tudo isto para não dizer que se afigura manifestamente desproporcionada, logo ofensiva do princípio plasmado no art.18º, nº2, da C.R.P., a negação da pacificação social e descoberta da verdade à conta de uma visão exasperadamente formalista e ancorada numa conceção cristalizada do tema da vinculação processual que, sob a cláusula rebus sic stantibus, deveria condicionar a legitimidade para a ação penal.

Eis as razões da discordância em relação à inviabilidade do procedimento criminal pela prática do crime de injúria, de que foi vítima a ex-companheira do arguido.

A falta de acusação particular, ainda que de mera adesão à acusação pública se trate, não pode ser agora sancionada como vício ou invalidade porque esse ato processual não tinha lugar no iter processual. Exigi-la, neste momento, seria desvirtuar o processo penal, enquanto sucessão de múltiplos e interdependentes atos finalisticamente orientados para a justa decisão do caso concreto, atos esses ordenados, a cada momento, para unidade e harmonia do sistema na sua plenitude – art.8º, nº3 e art.9º do Código Civil.

A final da audiência de julgamento e feita a convolação, estabilizado o objeto do processo, deve considerar-se que o Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente mantém a legitimidade para a sua pretensão de prossecução processual.

Neste sentido, perante a transmutação do crime público em semipúblico ou particular, o recente AUJ (STJ) n.º9/2024, de 9 de julho, Diário da República n.º 131/2024, Série I de 2024-07-09, defendeu: “não se pode agora, a destempo, exigir ao assistente uma condição seja de procedibilidade, a queixa, seja de prosseguibilidade, a acusação particular, que no andamento normal e correto do processo nunca lhe podia ter sido exigida. Nem pode ser penalizado pela sua falta porque nunca teve a possibilidade legal de a deduzir e a única posição que podia tomar em defesa do seu interesse processual era a de acompanhar a acusação pública. O que fez. Tudo apresentado em próprio tempo e em correto andamento processual”.

Do mesmo modo que, segundo o citado AUJ (STJ) n.º9/2024, de 9 de julho, “se ab initio e até final do julgamento se investigou e acusou o crime público de violência doméstica, estruturado o processo fáctica e juridicamente em torno do respetivo objeto, estabilizados que estavam os pressupostos processuais nessa conformidade acusatória, seria destituída de fundamento processual a notificação do assistente para dedução de acusação particular (cfr artigo 285.º, n.º 1, do CPP).”

Em conclusão, em face da posterior transmutação/degradação da natureza do crime de público (violência doméstica) para particular (injúria), o Ministério Público continua com legitimidade para o exercício da ação penal, razão pela qual procede nesta parte o recurso da assistente, ainda que por fundamento diverso e do conhecimento oficioso do tribunal.

Diferente da questão aqui resolvida foi aquela tratada pelo citado AUJ (STJ) n.º9/2024, de 9 de julho, o qual ficou a seguinte jurisprudência: “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”

Se bem vemos as coisas, cotejado o dissidio entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido, a questão única ali a resolver esgotava-se em saber se, na falta da acusação particular em sentido formal, a adesão ou acompanhamento da acusação pública por parte do assistente podia ser equiparado a esta como condição de prosseguibilidade do procedimento criminal pelo crime de natureza particular.

O objeto de recurso no citado AUJ (STJ) n.º9/2024, de 9 de julho, não corresponde à questão hic et nunc a resolver nos autos, qual seja saber se a falta de adesão ou acompanhamento da acusação pública por parte do assistente impede o avanço do processo para condenação do arguido pelo minus de injúria.

Daí que, salvo melhor opinião, a jurisprudência do referido AUJ (STJ) n.º9/2024, de 9 de julho, não seja aqui aplicável.

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Do crime de violação de imposições, proibições ou interdições
Vem o Arguido, além do mais, acusado de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
Dispõe o artigo 353º, do Código Penal: “Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”.
O bem jurídico tutelado pela norma em apreço é a “não frustração de sanções impostas por sentença criminal”, com lesão do respeito devido à autoridade do caso julgado (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, tomo III, pp. 400)
Da factualidade dada como assente, dúvidas inexistem que foi imposta, através de sentença proferida a 05.05.2022 e transitada em julgado a 29.09.2022, no âmbito do processo n.º ..., ao Arguido além da pena principal – que, note-se, para esta sede não releva – pena acessória de proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho, pelo período de três anos.
Ora, resulta da factualidade provada que o Arguido se aproximou da Assistente, após o trânsito em julgado da sentença e no período de 3 anos de vigência das penas acessórias.
No entanto, como bem refere a sentença, não resulta provado que o tenha feito na residência da Assistente ou no local de trabalho da mesma, outrossim apenas em estabelecimentos de café e na via pública (sem qualquer menção em relação a qualquer um dos referidos locais residencial ou laboral).
Ora, como se escreve na sentença recorrida, não se pode confundir a natureza das penas em que o Arguido foi condenado:
- em sede de pena principal: na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de três anos, suspensão esta subordinada às seguintes condições: - regime de prova, a acompanhar pela DGRS, nomeadamente na modalidade de manutenção do acompanhamento psiquiátrico de que o Arguido vem beneficiando (salientando-se que o Arguido expressamente nisso consentiu) e frequência do programa para agressores de violência doméstica; - proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, nesse período (Ofendida GG), devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos;
- em sede de pena acessória de proibição de o Arguido se aproximar da residência da Ofendida GG e do seu local de trabalho, pelo período de três anos.

Ora, o tipo de crime em causa apenas tipifica o incumprimento de pena acessória e já não de pena principal ou condições associadas à suspensão da mesma (cujo incumprimento, conforme se verá em sede própria, poderá determinar consequência específicas, como seja, a revogação da suspensão).

Assim, verifica-se que não se encontra cumprido o elemento objetivo do tipo, já que não resulta provado o incumprimento pelo Arguido de qualquer pena acessória.
Por conseguinte, não merece censura a absolvição do arguido da prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art. 353 do Código Penal.


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Da escolha e medida concreta da pena principal e sua substituição
Aqui chegados, cabe decidir da escolha e medida da pena principal, bem assim da sua eventual substituição, sabido que o arguido incorreu na prática de um crime de injúria, previsto pelo art.181.º n.º1, do Código Penal, e punível com prisão até 3 meses ou multa até 120 dias.

Sendo o crime de injúria punível com pena alternativa de prisão ou multa, cumpre apreciar se o tribunal deve optar pela pena não privativa da liberdade, conforme preferência imposta em abstrato pelo art.70º, do Código Penal, ou – na negativa - optando pela de prisão, se o tribunal deve substituir aquela por outra não privativa da liberdade.
Na ponderação da pena principal e substitutiva há que efetuar sempre apelo às finalidades que subjazem à sua aplicação, conforme decorre do preceituado no nº1, do artigo 40º, do Código Penal.
No caso são elevadas as exigências de prevenção geral, atendendo à repetição com que situações idênticas se repetem.
No que concerne às exigências de prevenção especial, constata-se que, apesar do reconhecimento pelo seu erro, protagonizado pelo arguido com a confissão parcial dos factos, a verdade é que o arguido cometeu o crime de injurias contra a mesma vítima, pouco tempo depois de ver transitada em julgado a sua condenação em pena de prisão suspensa por crime de violência doméstica no âmbito do processo n.º ....
Por conseguinte, não resta ao tribunal outra opção, no caso, que não seja a da escolha da pena de prisão para o caso concreto, visto que a pena de multa não tem, na situação em discussão, qualquer eficácia em matéria de tutela dos bens jurídicos violados.
Para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.
Nessa conformidade, nos termos do nº 2, do artº 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no n.º 2 do referido preceito legal.
No caso dos autos há que ponderar o dolo direto com que o arguido atuou e a ilicitude da sua conduta, significativa, pela repetição das expressões usadas para ofender a vítima e a elevada aptidão das expressões usadas para ofender, como ofendeu, a honra e consideração daquela.
A nível de prevenção especial militam contra o arguido os respetivos antecedentes criminais, concretamente uma condenação anterior por crime de violência doméstica contra a mesma vítima, o que denota que a mesma não teve o efeito pretendido de o afastar da prática de novos ilícitos criminais.
O arguido confessou parcialmente os factos, o que o favorece, e beneficia de inserção social e familiar.
Contudo, o arguido apresenta um “quadro clínico de personalidade evitante com traços de personalidade depressiva e passivo agressiva agravado por uma perturbação de ansiedade generalizada, uma perturbação de pânico com agorafobia e uma distimia.”
Este quadro clinico tem-se mostrado incapacitante e pouco permeável às múltiplas alterações farmacológicas realizadas ao longo do tempo, o que figura como fator de risco de cometimento de novos crimes.
A culpa revelada pelo arguido é, para o tipo legal de crime em apreço e dentro dos limites da sua conduta concretamente apurados, de forte intensidade.
As necessidades de prevenção geral reputam-se elevadas, porquanto é relativamente frequente a prática deste tipo de crime.
Tudo ponderado, entende-se que a pena de 2 (dois) meses de prisão, situada no meio da moldura penal abstrata, se mostra ajustada às exigências de prevenção e culpa do arguido.
Atento os fatores de risco descritos e a existência daquele antecedente criminal, afigura-se que não é adequada a substituição daquela pena de prisão por multa (artigo 43º do CP), o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação (artigo 44º do CP) e a substituição por trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, nº1, do CP).
Também aqui é requisito da aplicação destas penas de substituição, antes de mais, que tal forma de cumprimento realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ainda que de momento se entenda que a realização destas dispensam a colocação do arguido na cadeia, dado que o mesmo consentiu em alegações finais da audiência de julgamento na sujeição a acompanhamento psiquiátrico, mostra-se necessária e adequada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, pelo período de dois anos, suspensão esta subordinada a regime de prova, a acompanhar pela DGRS, e às seguintes regras de conduta durante esse período:
a) manutenção do acompanhamento psiquiátrico de que o Arguido vem beneficiando (salientando-se que o Arguido expressamente nisso consentiu);
b) proibição de contactos, por qualquer meio, com a assistente GG, devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos; e
c) proibição de se aproximar a menos de 500 metros da residência e do local de trabalho da assistente.
Sendo um dos fatores fundamentais, senão o mais fundamental, a ressocialização do agente, a prisão efetiva só deverá ser aplicada quando, em liberdade, se crê, sem sombra para dúvidas, que o arguido não conseguirá deixar de delinquir, sendo a reclusão a única oportunidade para que o mesmo passe a conformar os seus comportamentos segundo o dever-ser jurídico penal.
No caso dos autos, entende este Tribunal que, em face dos antecedentes criminais do arguido, das condições em que foram praticados os factos e, bem assim, das condições sócio-económicas que o mesmo apresenta, conjugada com a confissão parcial dos factos, ainda é de aceitar no limite um juízo de prognose favorável em relação a uma possível suspensão da pena, sob as condições e regime de prova determinados, o que tudo se determina nos termos do artigo 50.º, art.52º, nº2, al.b) e nº3, e art.53º, nº1 e 2, todos do Código Penal.

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Do arbitramento da indemnização civil
Nos termos do preceituado no art. 82º A do CPP, em caso de condenação e não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, o Tribunal pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
No caso, não ressaltam dos factos provados particulares exigências de proteção da vítima que imponham o referido arbitramento oficioso da indemnização civil.
A vítima não é especialmente vulnerável, nos termos do art. 67º-A, nº1, al.b), do Código Processo Penal, conjugado com os artigos 82.º-A, n.º 1, do mesmo diploma e 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º130/2015, de 4 de setembro, nem é nestes autos vítima de violência doméstica, nos termos do art.21º, nº2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
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3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pela assistente e em consequência, revogando a sentença recorrida:
1. condenar o arguido, por convolação do crime de violência doméstica, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.181.º n.º1, do Código Penal, na pena de dois meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, suspensão esta subordinada a regime de prova, a acompanhar pela DGRS, e às seguintes regras de conduta durante esse período:
a) manutenção de acompanhamento psiquiátrico;
b) proibição de contactos, por qualquer meio, com a assistente GG, devendo os contactos com os menores filhos do casal ser levados a cabo pelos filhos mais velhos; e
c) proibição de se aproximar a menos de 500 metros da residência e do local de trabalho da assistente;
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2. no mais, confirmar integralmente a decisão recorrida.
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Custas pela assistente pelo decaimento parcial no recurso que interpôs, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs (arts. 515º, nº 1, al.b), do Código Processo Penal).
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Declaração de voto de vencido:
Juiz Adjunto Raúl Cordeiro:
Concordando com a apreciação feita no acórdão relativamente às demais questões, considero, salvo melhor entendimento, que o arguido AA não poderia ser agora condenado pelo crime de injúrias, sob pena de se desrespeitar a jurisprudência que foi uniformizada através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) n.º 9/2024, de 29-05 (DR I, de 09-07-2024), também aí citado, pois que nele se estabelecem três condições cumulativas para a convolação do crime de violência doméstica nesse crime menor e subsequente condenação do arguido - “desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.” (sublinhado meu).
Nesse Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, onde se faz uma enunciação muito extensa dos Acórdãos dos Tribunais Superiores a respeito desta questão, considerou-se que somente a adesão à acusação pública por parte do assistente supre a ausência de acusação particular (a qual não era exigida, nem admissível, pois que o crime imputado não tinha natureza particular – arts. 50.º e 285.º do CPP), constituindo tal adesão uma condição de prosseguibilidade.
É verdade que nos dois casos ali em confronto existiam queixa do ofendido, a sua constituição como assistente e a adesão à acusação do Ministério Público, sendo que no caso presente não existe adesão da assistente à acusação pública. Contudo, perante essa falta, julgo que, por maioria de razão, o processo não reúne condições para prosseguir pelo crime de injúrias.
Ademais, não me parece que, neste entendimento, exista violação de princípios constitucionais, designadamente da tutela jurisdicional efectiva e do processo penal justo, leal e equitativo, previstos no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP, tal como se argumenta no acórdão, pois que os mesmos têm de ser observados também relativamente ao arguido, sabendo-se que o assistente é obrigatoriamente representado por advogado (n.º 1 do art. 70.º do CPP), devendo admitir, até pela abundante jurisprudência que tem sido publicada a esse respeito, que a eventual convolação, após o julgamento, do crime imputado (violência doméstica) para um crime menor (v.g. injúrias) poderia exigir a tempestiva adesão à acusação pública, nos termos do artigo 284.º do CPP, para defesa do seu interesse processual, através dela vincando a sua vontade de perseguição criminal e de prossecução penal, com a submissão do arguido a julgamento e a respectiva condenação.
Neste caso somente se verificam as referidas duas primeiras condições, pois que a assistente, por opção sua, não aderiu à acusação pública, pelo que, a meu ver, falta a verificação dessa condição de prossecução processual para que pudesse haver condenação do arguido pelas injúrias.
Assim, teria julgado totalmente improcedente o recurso, ainda que com fundamentos não plenamente coincidentes com os vertidos na sentença recorrida.
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Notifique.
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Transitado em julgado o presente acórdão, deverá ser comunicado ao citado processo n.º ..., em vista da ponderação da violação da proibição de contactos, condição imposta para a suspensão da execução da pena ali aplicada.
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(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).


Porto, 5 de fevereiro de 2025
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro (voto vencido)
Maria dos Prazeres Silva

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[1] Como salienta Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, JULGAR - N.º 12 (especial) – 2010, pg.19, no crime de violência doméstica “devem estar em causa actos que, pela sua natureza, sejam (…) idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, para o que importa avaliar a “situação ambiente” e a “imagem global do facto”.

No ensinamento de Sérgio Miguel José Correia, in Maus-tratos Parentais – Considerações sobre a vitimação e a vulnerabilização da Criança”, RFDUL/LLR, LXii (2021) 1, pg.906, os maus-tratos parentais serão aqueles exercidos pela figura paterna e/ou materna sobre a criança, entendidos aqueles, essencialmente, como qualquer conduta que “atente, diretamente, contra os direitos e a satisfação das necessidades fundamentais das crianças, próprias da sua faixa etária e do estágio de crescimento que atravessam, colocando, assim, em causa o seu bem-estar, saúde, segurança, autonomia ou desenvolvimento das suas componentes pessoais, sejam físicas, cognitivas, psicológicas ou socio-emocionais”.