CRIME DE FRAUDE FISCAL
PERDA DE VANTAGENS
PRESSUPOSTOS
ENRIQUECIMENTO ILEGÍTIMO
Sumário

I - Uma leitura acertada do artigo 110º, nº1 do Código Penal tem de responder com justiça e proporção à finalidade do instituto da perda de vantagens: a anulação do enriquecimento de causa ilícita criminosa (ilícita típica) e a restauração da ordenação dos bens correspondente ao direito.
II - O que não acontece manifestamente se for decretada a perda de vantagem contra quem não enriqueceu, a que acresce o facto de se causar uma injustiça: o empobrecimento sem causa da pessoa que não adquiriu vantagens com o crime e que pelo cometimento deste já sofre a pena de prisão, de multa ou substitutiva que lhe foi aplicada.
III - A perda de vantagens do crime só pode ser declarada contra quem delas beneficiou.
IV - O património dos sócios, dos sócios-gerentes, dos gerentes ou dos ‘gerentes de facto’ não se confunde com o património da sociedade.
V - Se as quantias não pagas a título de imposto transitaram por algum modo para os gerentes teria de ser alegado e provado tal facto.
VI - Não é com expressões genéricas e conclusivas interpoladas aqui e ali na matéria de facto da acusação e depois na sentença, limitada esta pelos factos da acusação, que se obtém o preenchimento dos pressupostos de que depende a perda de vantagens resultantes da prática de um crime.

Texto Integral

Processo n.º 96/17.6IDAVR.P2



Sumário (da responsabilidade do relator):
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Relator: William Themudo Gilman
1ª Adjunta: Maria dos Prazeres Silva
2ª Adjunta: Elsa Paixão




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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

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1 - RELATÓRIO

No Processo Comum (Tribunal Singular) nº ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Águeda, após julgamento, em 22.03.2023 (Referência: 126324709), foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Por todo o exposto, condeno os arguidos, em co-autoria e na forma consumada, pela prática, de um crime de fraude fiscal qualificada, cada um, p. e p. pelo art. 103º e 104º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias:
- o arguido AA na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo;
- a arguida BB na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Ambas as suspensões são condicionadas:
- à obrigação dos arguidos procederem ao pagamento, cada um, da quantia de € 200,00 (duzentos euros), todos os meses às Finanças, por conta das quantias em dívida, pagamento esse a efectuar até ao último dia do mês a que disser respeito, sendo esta quantia o valor mínimo pois os arguidos não se encontram desonerados de proceder ao pagamento das quantias em dívida;
- os arguidos deverão comprovar nos autos, todos os meses, os pagamentos ora ordenados.
Mais decido condenar a arguida “A..., Lda.” pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, cada um, p. e p. pelo art. 103º e 104º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um quantitativo global de € 1.7500,00 (mil setecentos e cinquenta euros).
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Vão ainda os arguidos condenados nas custas do processo, com 3 (três) UC’s de taxa de justiça cada um, em face da extensão da prova produzida e da complexidade dos autos.
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Mais decreto a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos, no montante de 196.491,84 € (cento e noventa e seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e oitenta e quatro cênitmos), sendo os arguidos solidariamente responsáveis pelo seu pagamento.
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Não se conformando com esta sentença, os arguidos AA e BB recorreram em peça conjunta (referência Citius 14481257) para este Tribunal da Relação.
Em 29.11.2023 (referência Citius 17503873) foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação concedendo parcial provimento ao recurso e, em consequência, declarada a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação, devendo o tribunal recorrido suprir a falta de motivação relativa às questões assinaladas
(à prova documental de fls. 195 a 483, discriminando-a, pelo menos resumidamente, e fazendo a análise crítica da mesma; - ao documento junto ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP na sessão da audiência de 7.12.2022, fazendo a análise crítica do mesmo;- ao elemento subjetivo do tipo de ilícito, explicando por que razão o deu como provado; - aos depoimentos de várias testemunhas (CC, DD, EE, FF, GG e HH) testemunhas, procedendo à análise crítica dos mesmos;- ao facto provado 22, explicando o modo como o tribunal se convenceu de que os arguidos pessoas físicas integraram também no seu património a vantagem patrimonial de € 196.491,84; - à condição de pagamento a que ficou sujeita a suspensão das penas, quer quanto ao período pelo qual deve perdurar o pagamento quer quanto às consequências do incumprimento do pagamento do montante total.).

Na sequência do decidido, em 24.03.2024 (referência Citius 130946577) foi proferida nova sentença na primeira instância, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, condeno os arguidos, em co-autoria e na forma consumada, pela prática, de um crime de fraude fiscal qualificada, cada um, p. e p. pelo art. 103º e 104º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias:
- o arguido AA na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo;
- a arguida BB na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Ambas as suspensões são condicionadas:
- à obrigação dos arguidos procederem ao pagamento da quantia de € 200,00 (duzentos euros) cada um, todos os meses às Finanças, por conta das quantias em dívida, pagamento esse a efectuar até ao último dia do mês a que disser respeito, durante o período da suspensão da execução da pena de cada um dos arguidos;
- os arguidos deverão comprovar nos autos, todos os meses, os pagamentos ora ordenados.
Mais decido condenar a arguida “A..., Lda.” pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, cada um, p. e p. pelo art. 103º e 104º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um quantitativo global de € 1.7500,00 (mil setecentos e cinquenta euros).
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Vão ainda os arguidos condenados nas custas do processo, com 3 (três) UC’s de taxa de justiça cada um, em face da extensão da prova produzida e da complexidade dos autos.
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Mais decreto a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos, no montante de 196.491,84 € (cento e noventa e seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e oitenta e quatro cêntimos), sendo os arguidos solidariamente responsáveis pelo seu pagamento.
* »
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Não se conformando com esta sentença, a arguida BB recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
«CONCLUSÕES:
A)Embora a ora Recorrente, tenha figurado como uma das sócias gerentes da sociedade A..., Lda, certo é que desde a sua constituição em 09/12/2011, quem de facto sempre foi o gerente foi o pai desta, o arguido AA;
B) Era este, que realizava os negócios para a sociedade, contratando o contabilista, fornecendo a este os documentos para apuramento do IVA e outros impostos, elaboração da escrita comercial, bem como, efetuava as compras e vendas, o que equivale a dizer, que a Recorrente era apenas sócia gerente de direito e quem geria efectivamente a sociedade, era o seu pai, que sobre ela detinha uma ascendência económica e moral.
C)A Recorrente, encontrava-se a estudar ... na Universidade ..., e apenas vinha ao fim da semana a casa, o que ocorreu entre os anos de 2011, 2012, 2013 e 2014, ao que acrescem mais dois anos de doutoramento, pelo que, apesar de maior, encontrava-se dependente economicamente por ser estudante à data dos factos, vindo a casa aos fins de semana, atenta a especificidade do curso já que tinha todos os dias aulas práticas.
D)AA, foi quem sempre teve a seu cargo toda a actividade comercial, decisória e financeira, da sociedade A..., Lda, dominava o negócio, com exclusão de outrem, conhecia a clientela e detinha os fluxos financeiros da mesma, sendo a Recorrente apenas sócia no papel;
E) Não tomava quaisquer decisões no âmbito da gestão e actividade da sociedade, o que equivale a dizer, que em momento algum, decidiu com quem iria a sociedade estabelecer parcerias comercias, comprar, vender, contratar trabalhadores e destinar os fins dos fluxos financeiros.
F)O Inspetor Tributário II, no âmbito da sua inquirição, não infirma os factos dados como provados na fundamentação da douta Sentença, nomeadamente, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 44, 47, 48, 49, 50, 51 e 52;
G) Da matéria de facto não resulta provado a gerência de facto da arguida, ora Recorrente, ao tempo a que se reportam os factos, anos de 2013 e 2014:
(minutos 39:30 a 41:59)
“(…) contratos de trabalho assinados por ela onde exercia essa gestão da sociedade. A perceção que eu tenho é que ela podia fazer um certo ponto da vida dela pois acho que ela estava a … eu também apanhei isto em 2016, ou seja, os factos que aqui estão em causa são de 2013 e 2014 e por aquilo que tenho recordação ela estaria a estudar…. o foco dela não seria tanto a sociedade mas o estudo pois ela estava a estudar para ...… quando eu a apanho em 2016 ela já tinha acabado o curso e já tinha outra disponibilidade. O acompanhamento dela em 2016 já seria maior do que em 2013 e 2014. Em 2016 a perceção que eu tenho é que ela fazia um acompanhamento um pouco mais, como é que vou dizer, mais lato mais nas questões financeiras não tanto no dia a dia quanto aos custos das coisas …. Daquilo que foi a nossa conversa acho que ela tinha alguma perceção do que é que se passava em termos financeiros em 2016. Em 2013 e 2014 eu não tenho bem essa perceção … pois eu estava em Lisboa (…)”
(minutos 42:00 a 42:10)
“(…) Não tenho a perceção das coisas como eram em 2014 (…)”. E também a testemunha em causa não teria a perceção como aconteceram as coisas em 2013.”
(minutos 43:00 a 43:085)
“(…) é o gerente … pelo sr. AA (…)”:
(minutos 44:00 a 44:33)
“(…) ele só me disse que a filha andava por lá já depois no decorrer da própria ação inspetiva … a perceção que eu tive ao início seria a que a BB seria apenas uma gerente de direito (…)”
H) O Inspector Tributário limita a sua percepção à Recorrente, apenas durante o ano de 2016, afirmando que seria o Arguido AA, a pessoa que mais estava ligada à sociedade, e assim, que só por questões financeiras, porque a Recorrente não se encontrava em sede de incumprimento junto do Banco de Portugal, figurava como gerente na sociedade, por forma a ajudar o seu pai atenta a ascendência que o mesmo detinha sobre ela na perspeciva que se encontrava a finalizar o curso de ... e necessitando do apoio financeiro do pai.
I)Não poderia in casu o digno tribunal a quo ter proferida sentença condenatória da arguida, BB, ora Recorrente, com base na prova testemunhal produzida, antes se impondo outra solução: a absolvição integral da recorrente da acusação contra si formulada.
J)Existe clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois além de manifestamente errada, é claramente insuficiente para a fundamentação da condenação da Recorrente, verificando-se o vício constante da al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP.
L)Errada interpretação da prova produzida e consequente erro de julgamento da matéria de facto, pois não poderia ter dado como provado que a arguida BB, é que era a gerente de facto da Sociedade A..., Lda.
M)Existe erro notório na apreciação da prova, pois a Meritissima Juíza do Tribunal "a quo" dá como provado os factos constantes nos pontos 34, 35, 36, 37, 38, 39, 44, 47, 48, 50, 51 e 52, da douta Sentença, quando não foi realizada a mínima prova que possibilitasse alicerçar uma condenação da arguida como gerente de facto.
N)Conforme resulta do douto acórdão proferido no âmbito do processo que correu termos no Juízo Central Criminal de Aveiro– Juiz 1,processon.º...,é dado como provado que quem tem o efectivo controle de facto sobre a sociedade, nomeadamente, negócios, compras e vendas, pagamentos, trabalhadores da sociedade, contabilidade e quem põe e dispõe dos fluxos financeiros da Arguida A..., Lda, é o pai da ora Recorrente, AA, sendo esta à data apenas gerente de direito.
O)Existe no caso sub judice a violação expressa do princípio in dúbio pro reo, não existe uma única prova concreta contra a arguida, ora Recorrente.
P)Dispõe o artigo 32°, n.02 da CRP que todo ao arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Q)O princípio da presunção da inocência do arguido tem uma especial relevância em matéria probatória, decorrendo daquele importante princípio constitucional a inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, isto é, o mesmo não tem que provar a sua inocência para ser absolvido.
R)A testemunha II Inspetor tributário não presenciou os factos.
S)Nada vira à época da ocorrência dos factos, não podendo assim, garantir seja o que for com certeza absoluta, ademais, pelas declarações desta testemunha, confirmou que, apenas aquando da inspecção em 2016 a Arguida, ora Recorrente estava na empresa, não podendo o mesmo confirmar a presença desta em data anterior, ou seja, à data dos factos (2013/2014).
T)Tais dúvidas deveriam ter imposto uma maior exigência nos depoimentos efectuados, e não se satisfazer apenas com meros indícios ou provas indirectas.
U)Nem existe no processo qualquer prova do exercício da gerência de facto pela arguida/Recorrente nos anos a que se reporta a acusação, designadamente ano de 2013 e 2014.
V)Pelo contrário, existe prova de que à data a arguida/recorrente, encontrava-se a residir e a estudar em Viseu, vindo apenas aos fins-de-semana a casa.
X)A douta decisão recorrida, quanto à factualidade considerada provada, não se encontra devidamente fundamentada, com o que infringe o preceituado nos artigos 379.º, n.º1, al. a) e 374.º, n.º 2.
Z)Face a tantas incertezas, devemos atender ao princípio do "in dúbio pró reo", segundo o qual perante a incerteza dos factos, o Tribunal devia absolver a arguida/recorrente por falta de provas e por conseguinte rejeitar a posição da acusação.
AA)A responsabilidade civil e criminal dos gerentes, pressupõe como requisitos o facto jurídico voluntário, a ilicitude, a insuficiência do património da sociedade, a existência de culpa dos responsáveis subsidiários e finalmente o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
BB) O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão de 12 de março de 2009 (Processo n.º 649/08), “a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerente assenta num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a administração.”
CC)A responsabilidade que se transmite aos administradores e gerentes é a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do crédito.
DD)Segundo o artigo 483º n.º 1 do C.C. “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
EE)A responsabilidade civil e criminal pressupõe a existência de um facto jurídico voluntário controlável pela vontade humana podendo consistir numa acção ou omissão, elemento objetivo, ao que acresce a culpa elemento subjetivo desse comportamento ou omissão,
FF)A Recorrente à data era nova, estudante sem qualquer experiência, e dependia economicamente do seu pai, logo, havia uma forte ascendência deste sobre esta, no sentido de esta ter aceite figurar como sócia gerente da sociedade A..., Lda.
GG)A Recorrente desconhecia, estava completamente alheia à gestão da sociedade, no seu todo, negócios efetuados, movimentações financeiras, créditos e débitos, estrutura dos impostos vigentes no país, mecanismos dos mesmos, obrigações dos comerciantes, entre outros mais,
HH)E é devido à ascendência e confiança que tinha no seu progenitor, que a Recorrente anuiu a um pedido deste no sentido de figurar como sócia gerente de uma sociedade por forma a que o seu pai pudesse trabalhar e aceder ao crédito, já que se tratava de uma estudante de tenra idade.
II)A Recorrente nunca falou com o contabilista, desconhecia por completo as obrigações a que a sociedade estava sujeita, quem sempre decidiu quanto ao destino dado aos valores dos impostos apurados a liquidar ou receber, foi sempre o seu pai, o arguido AA, que com exclusão de outrem, sempre destinou de acordo com a sua convicção e a seu bel prazer, os valores a serem canalizados para o cumprimento dessas obrigações.
JJ)Era o arguido, AA, pai da Recorrente quem dominava totalmente o negócio e detinha os fluxos financeiros da mesma, sendo esta apenas sócia no papel, não tomando qualquer decisão que vinculassem a sociedade autonomamente e o que era feito era por indicação do seu próprio pai.
LL)Acresce em abono da Recorrente, o facto de que a responsabilidade civil ou criminal pressupõe a existência de um facto jurídico voluntário controlável pela vontade humana que pode consistir numa acção ou omissão, e como se provou a Recorrente à data era estudante, era dependente dos seus progenitores, facto este de suma importância, para mostrar a ascendência do seu pai sobre os atos praticados a subjugação e condicionamento, fazendo o que lhe era solicitado sem questionar ou opor-se,
MM)A Recorrente, desconhecia assim por completo o que se estava a passar, pois, quem era de facto o gerente era o seu pai, arguido, AA, que realizava os negócios para a sociedade, era ele que fornecia os documentos para apuramento do IVA e outros impostos, para elaboração da escrita comercial e a nível de circulação de dinheiros era ele quem efectuava as cobranças e pagamentos a fornecedores apesar da conta bancária ser da sociedade,
NN)Na verdade, a Recorrente revela um total desconhecimento da estrutura de impostos vigentes no país, mecanismos dos mesmos e obrigações dos comerciantes, compreensível para uma jovem que acreditava e estava condicionada pelo seu progenitor, que a sustentava enquanto estudante,
OO)Não pode ser considerado que tenha havido por parte da ora Recorrente, responsabilidade criminal, por total ausência de vontade humana que pode traduzir-se numa acção ou omissão.
PP)Na medida em que apenas lhe era exigido que assina-se alguns documentos, ora, estando dependente economicamente do seu progenitor para continuar os seus estudos, a forte influência exercida sobre a mesma e ascendência natural do pai sobre a filha, assinava tudo quanto lhe era solicitado por este, no fim de semana quando vinha a casa ou quando o pai se deslocava a Viseu, desconhecendo por completo o destino que era dado aos mesmos pelo seu pai,
QQ)Não se vislumbra por parte da Recorrente a existência de qualquer intenção, sequer conhecimento, isto é, total ausência de querer ou vontade de beneficiar terceiros em detrimento do estado, assim verificou-se a ausência do elemento subjectivo da responsabilidade civil e criminal, no que concerne à Recorrente,
RR)Deve concluir-se que o Tribunal "A Quo" fez uma errada interpretação e aplicação do Direito, alterando-se a douta sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo-se a arguida/recorrente.
SS)A douta sentença não podia ter condenado a arguida, aqui recorrente, a menos que a actividade investigatória desenvolvida permitisse concluir (mas não permite, no caso sub judice) que os factos imputados nos autos à arguida correspondem à realidade.
TT) Resulta da presente condenação a ausência de fundamentação concreta, pelo que, foram violados os princípios constitucional e legalmente consagrados, da legalidade, da justiça, do inquisitório, da busca da verdade material, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos.
UU)Em processo penal cabe ao Tribunal “a quo" fazer a prova concreta, indubitável e sem qualquer dúvida, prova esta que notoriamente não se logrou fazer.
VV)Foram violados os artigos 483º n.º 1 do CC, artigo 374º n.º 2, 379º n.º 1, alínea a) e 410º n.º 2 alínea a) do CPP e artigo 32º n.º 2 CRP.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a douta sentença recorrida e, em consequência, ser absolvida arguida, ora recorrente, fazendo-se assim a habitual e esperada JUSTIÇA»
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O Ministério Público, apresentou alegações de resposta, concluindo do seguinte modo:
«CONCLUSÕES
1.º - Por douta sentença proferida foi a arguida BB condenada, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo art. 103º e 104º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, condicionada à obrigação de proceder ao pagamento, da quantia de €200,00 (duzentos euros), todos os meses às Finanças, por conta das quantias em dívida, pagamento esse a efectuar até ao último dia do mês a que disser respeito, sendo esta quantia o valor mínimo pois a arguida não se encontra desonerada de proceder ao pagamento das quantias em dívida, devendo comprovar nos autos, todos os meses, os pagamentos ordenados;
2.º - Do recurso interposto pela recorrente parece-nos, salvo melhor entendimento, que o que está em causa, é a discordância, por parte daquela, do teor das conclusões valorativas insertas na decisão, por na sua perspectiva, entender que deveriam ter sido dados como não provados os factos 34, 35, 36, 37, 38, 39, 44, 47, 48, 49, 50, 51 e 52 que foram dados como provados, isto na perspectiva das suas convicções.
3.º - A recorrente sustenta que só por ter havido erro do julgamento e na apreciação e valoração da prova é que se deram como provados os supra mencionados factos mas o erro notório na apreciação da prova surge quando da análise do próprio texto da decisão recorrida, se concluiu que o raciocínio do julgador é ilógico, arbitrário e contraditório, o que não é claramente o caso.
4.º - Mais importante que transcrever passagens isoladas de extractos das declarações proferidas e que a recorrente suscita nas suas alegações, é atentar na globalidade dos depoimentos e de toda a demais prova carreada para os autos, como a documental e concatenando tudo concluir que a todos estava subjacente o mesmo fio condutor da confirmação dos factos provados retratados na sentença, que o Tribunal doutamente supriu.
5.º - A prova foi valorada com razoabilidade, os elementos indicados na sentença como relevantes para a decisão de facto foram coerentemente explicados e foram apreciados de acordo com um raciocínio lógico de acordo com as regras da experiência comum.
6.º - Não há qualquer apreciação arbitrária e discricionária da prova produzida ou insuficiência para a decisão da matéria dada como provada ou qualquer erro notório na apreciação da prova.
7.º - A fundamentação contida na decisão é totalmente coerente entre si bem como com os factos dados como provados e a decisão alcançada.
8.º - Não se vislumbra qualquer falta de fundamentação que afecte formalmente a sentença recorrida.
9.º - Não se antevê “caso decidido” formado e decidido noutro processo (...).
10.º - O não ter autonomia ou poder decisório mas levando a cabo actos/condutas como as descritas nos factos dados como provados na sentença ora posta em crise - seja lá em função das orientações do pai ou pressupondo as mesmas - não deixa de se ter por responsabilizada a pessoa que assim decide agir ou aceita agir ou se conforma com a decisão de outro administrador ou gerente e, por via disso, não desresponsabiliza, in casu, a recorrente.
11.º - Nada do texto da sentença nos permite concluir que a Mmª Juiz ficou num estado de dúvida objectiva e razoável sobre a verificação dos factos.
12 - Não violou o Tribunal a quo qualquer disposição legal e/ou constitucional, mormente o principio do in dúbio pro reo.
Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida que condenou o recorrente nos sobreditos termos.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!»
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Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que o recurso não deverá ser provido, devendo ser mantida a decisão condenatória.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2 -FUNDAMENTAÇÃO

2.1 - QUESTÕES A DECIDIR

2.1.1 - QUESTÃO PRÉVIA - lapso de processamento de texto – sujeição da sentença como ato jurídico a interpretação, artigos 295º e 236º do Código Civil.

Como acima referimos, na sequência do decidido por este Tribunal da Relação, a Sra. Juiz do processo em 24.03.2024 (referência Citius 130946577), após conclusão e iniciando o texto com «Em obediência ao superiormente ordenado, passa-se a proferir nova decisão tendente a suprir as insuficiências apontadas: Sentença – Processo N.º ...», proferiu uma nova sentença que terminou de págs. 30 a 32 com o dispositivo que acima transcrevemos, seguido de «Águeda, 21 de Março de 2023 (compus e revi – art. 94º, n.º 2, do C.P.P.)».
Sucede que de seguida, ainda na página 32, após algum espaçamento de linhas, inicia-se novo texto intitulado «Sentença – Processo N.º ...» e que termina nas páginas 56 e 57 com o mesmo dipositivo já referido, apenas sendo alterada a data que passa a ser «Águeda, 24 de Março de 2024 (compus e revi – art. 94º, n.º 2, do C.P.P.)».
Temos dois textos diversos, duas sentenças, inseridos no mesmo documento, natural e eletronicamente assinado no citius apenas uma vez, com igual dispositivo, mas com datas diversas inscritas no final do texto das mesmas, que não no citius -, onde consta como já referimos a data de 24.03.2024 (ver referência Citius 130946577).
Tratou-se evidentemente, como de seguida passaremos a explicar, de um lapso de processamento de texto, em que não só se deixou no documento eletrónico a sentença anulada em seguida à nova sentença proferida, como também se acrescentou ao dispositivo da sentença anulada o novo dispositivo. São coisas que acontecem com a utilização dos processadores de texto que sendo preciosos auxiliares, poupando muito tempo e tornando a legibilidade das decisões mais fácil, por vezes pregam partidas à mínima falha: neste caso o esquecimento de que depois de completar a nova sentença faltava ‘editar-selecionar-apagar’ o texto da sentença anulada que aparece depois da nova sentença proferida, a página 32 do documento ‘word’ em causa.
Além da diferença das datas, temos também que o texto da nova sentença que aparece no documento em primeiro lugar é mais extenso, com uma motivação de facto expondo a formação da convicção do tribunal de forma significativamente mais extensa (de pág. 13 a 21) que a da sentença que aparece em segundo lugar (pág.44-46), pois passou de 3 para 8 páginas. Acresce ainda que a formação da convicção no texto da sentença que aparece em segundo lugar é exatamente igual em conteúdo e número de páginas (3) ao da primitiva sentença anulada.
Ora, além do facto de a primitiva sentença ter sido anulada por falta de fundamentação, a que acresce a numeração dos parágrafos dos factos provados que aparece no texto da sentença que surge em segundo lugar, os quais começam no n.º 30 (em vez de começar no número 1, o que terá resultado da paragrafação automaticamente numerada do programa word que todos conhecemos), bem como o facto de nesta segunda sentença a motivação da convicção da matéria de facto ser exatamente igual à da primitiva sentença anulada, claro é que a sentença que o tribunal recorrido proferiu de acordo com o ordenado pelo Tribunal da Relação é a que surge em primeiro lugar em 24.03.2024 (referência Citius 130946577) e que termina com o dispositivo de págs. 30 a 32 e que acima transcrevemos. A entender-se de outro modo, mantendo-se a mesma fundamentação da sentença anulada, o tribunal recorrido teria desobedecido ao ordenado pelo tribunal superior, o que não sucedeu como é evidente desde logo pelo modo como se introduz a nova sentença. A segunda sentença que lá aparece, mais não é do que a cópia (infiel, na numeração dos parágrafos e no dispositivo) da primitiva sentença anulada e que foi ‘impressa no papel’ ou, melhor dizendo, inserida no documento eletrónico apenas por lapso.
E a confirmação desta asserção de que a nova sentença que o tribunal recorrido proferiu de acordo com o ordenado pelo Tribunal da Relação é a que surge em primeiro lugar e que termina com o dispositivo de págs. 30 a 32 resulta da própria leitura do texto do documento emitido e assinado em 24.03.2024 (referência Citius 130946577). Com efeito, se lermos tal texto, verificamos como acima assinalámos que o mesmo se inicia com «Em obediência ao superiormente ordenado, passa-se a proferir nova decisão tendente a suprir as insuficiências apontadas: Sentença – Processo N.º ...», e termina com o dispositivo de págs. 30 a 32 (no topo da página), a que se segue, após algum espaçamento de linhas (já a meio da página), novo texto intitulado «Sentença – Processo N.º ...», sem que seja precedida da afirmação «Em obediência ao superiormente ordenado, passa-se a proferir nova decisão tendente a suprir as insuficiências apontadas:(…) ». Ora, também esta circunstância aponta clara e decisivamente no sentido de que o texto a partir de página 32 não é a nova decisão que o tribunal recorrido proferiu em virtude da anulação decretada, mas apenas a cópia ‘infiel’ da primitiva sentença anulada, que por lapso de processamento de texto ficou ‘eletronicamente colada’ ao documento da nova sentença proferida. Ainda se poderia acrescentar a circunstância de que proferida a nova decisão se extinguiu o poder jurisdicional, pelo que a segunda nunca poderia valer.
Finalmente, não nos podemos esquecer que a sentença judicial, como ato jurídico que é, está sujeita a interpretação, valendo nesse domínio, por força do disposto no artigo 295º Código Civil, os critérios de interpretação dos negócios jurídicos, devendo, por isso ser interpretada, nos termos previstos no artigo 236º, n.º 1 do Código Civil, de acordo com o sentido que dela possa deduzir um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.
Tudo considerado, a conclusão a que chegamos é a de que qualquer pessoa de mediana inteligência (o tal declaratário normal, colocado na posição do real declaratário de que fala o Código Civil), para mais encontrando-se assistida por mandatário forense, lendo a sentença, compreenderá simples, obrigatória e evidentemente o lapso ocorrido e que a nova sentença que o tribunal recorrido proferiu na sequência da anulação decretada pelo tribunal da Relação é a sentença que se encontra nos autos no documento emitido e assinado em 24.03.2024 (referência Citius 130946577) e que começa com a frase «Em obediência ao superiormente ordenado, passa-se a proferir nova decisão tendente a suprir as insuficiências apontadas:(…)» e termina no topo da página 32 desse documento com « Após trânsito, remeta boletins à D.S.I.C..*Águeda, 21 de Março de 2023(compus e revi – art. 94º, n.º 2, do C.P.P.).»
E é com este sentido que vale, nos termos do 236º, n.º 1 do Código Civil para o real declaratário da sentença proferida nos autos, designadamente a recorrente, ainda para mais estando assistida por mandatário forense, a nova sentença proferida.
Posto isto, é certo que a recorrente impugna a matéria de facto enumerando, erradamente, os pontos impugnados com a numeração que lhes adveio da cópia ‘infiel’ da primitiva sentença anulada (34, 35, 36, 37, 38, 39, 44, 47, 48, 49, 50, 51 e 52), mas tal não constitui qualquer obstáculo ao conhecimento do recurso, porquanto tal numeração tem correspondência direta com a numeração da nova sentença (5, 6, 7, 8, 9, 10, 15, 18, 19, 20, 21, 22 e 23), sendo que nem foi ordenada pelo Tribunal da Relação nem houve alteração de factos, mas tão só a sanação das nulidades decretadas da fundamentação e sendo assinalada a necessidade de clarificação do dispositivo na parte da condição de pagamento, a qual ficou esclarecida na nova sentença.
Resumindo:
A sentença sendo um ato jurídico está sujeita a interpretação nos termos dos artigos 295º e 236º do Código Civil, devendo ser interpretada de acordo com o sentido que dela possa deduzir um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.
Tendo o tribunal por lapso de processamento de texto, ao proferir nova sentença conforme ordenado pelo tribunal superior, inserido duas sentenças no mesmo documento, mas chegando-se à conclusão, através dos elementos interpretativos do texto, de que qualquer pessoa de mediana inteligência, para mais encontrando-se assistida por mandatário forense, lendo a sentença, compreenderá simples, obrigatória e evidentemente o lapso ocorrido e que a nova sentença que o tribunal recorrido proferiu na sequência da anulação decretada é a primeira sentença que se encontra no referido documento, é só essa parte do texto inserido no documento, essa sentença, que vale como nova sentença para todos os efeitos legais.
Solucionada a questão prévia, não se verificando qualquer obstáculo ao conhecimento do recurso, avancemos.

2.1.2 - OBJETO DO RECURSO

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Das conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

1- Nulidade da sentença por falta de fundamentação - 379º, n.º 1, al. a) e 374º n.º 2 do CPP.
2- Factos decididos noutro processo.
3- Vícios da decisão - artigo 410º, n.º 2, al. a), b) e c) do CPP.
4- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento –in dubio pro reo.
5- Pretensão de absolvição.
*

2.2 - A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida transcreve-se a fundamentação de facto:
« Fundamentação de facto:
1. A sociedade arguida A..., Lda., com o NIPC ...80 e sede na R. do ..., em Águeda, na área desta comarca de Águeda, é uma sociedade por quotas que tem por objecto o comércio, importação e exportação de peças de veículos automóveis; a recolha, tratamento e reciclagem de metais ferrosos e não ferrosos, desperdícios e de resíduos metálicos e não metálicos; a fundição de sucata e desperdícios metálicos; leilão de coisas móveis e imóveis, com e sem avaliações antecipadas; venda de bens por leilões, por negociação particular, por carta fechada e por internet; remoção e armazenamento de bens; fiéis depositários e acompanhamento pessoal aos técnicos em exercício dos serviços aos processos de cobrança judiciais, extrajudiciais e penhoras.
2. Nos anos de 2013 e 2014, a sociedade arguida encontrava-se enquadrada no regime geral – contabilidade organizada de tributação em sede de IRC e no regime normal de periodicidade trimestral em sede de IVA.
3. No período em que ocorreram os factos infra descritos, o arguido AA era gerente de facto da sociedade arguida, cabendo-lhe praticar todos e quaisquer actos indispensáveis ao regular funcionamentos desta sociedade, tomas todas as decisões sobre os negócios da mesma, contratar trabalhadores, dar-lhes ordens e orientações e angariar clientes, sendo o rosto visível da sociedade arguida nas relações comerciais mantidas com os clientes.
4. No mesmo período, a arguida BB era a gerente de direito e também de facto da sociedade arguida, cabendo-lhe contratar trabalhadores, proceder ao pagamento dos seus salários, entregar todos os documentos contabilísticos ao Técnico Oficial de Contas da sociedade arguida, contrair empréstimos bancários e ser o rosto visível das entidades bancárias e das Autoridades Públicas.
5. Assim, tanto o arguido AA como a arguida BB eram os responsáveis pela liquidação, retenção e posterior colocação dos impostos (IVA e IRC) à disposição da Administração Fiscal, nos termos legais.
6. Entre Agosto de 2013 e o final do ano de 2014, os arguidos AA e BB, por eles e no interesse da sociedade arguida, delinearam um plano para passarem a apresentar, para efeitos fiscais, maiores valores de custos do exercício daquela sociedade.
7. Na execução deste plano, os arguidos AA e BB decidiram, no ano de 2013, registar na contabilidade da empresa arguida e utilizar perante a Administração Tributária facturas fictícias emitidas a terceiros, que não correspondiam à compra de materiais de sucata, do que aqueles estavam cientes, tendo por objectivo obter vantagens patrimoniais indevidas, em sede de IRC.
8. Para além disso, os arguidos AA e BB decidiram, no ano de 2014, registar na contabilidade da empresa arguida e utilizar perante a Administração Tributária, despesas que não se encontravam documentalmente suportadas nas pastas da contabilidade.
9. Pretendiam assim os arguidos AA e BB, no interesse da sociedade arguida, apresentar perante a Administração Tributária gastos na actividade desta no ano de 2013 e 2014 superiores àqueles que a sociedade arguida efectivamente suportou nesses anos, por forma a obterem a correspondente diminuição do lucro obtido nesse período e, por via disso, pagarem um valor de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) inferior àquele que efectivamente era devido por esta sociedade.
10. Assim, no período compreendido entre Agosto de 2013 e Dezembro de 2013, na execução desse plano tendente a diminuir o lucro obtido da sociedade arguida e, por essa via, liquidar o IRC inferior àquele que era devido, os arguidos AA e BB documentaram gastos simulados através da emissão de facturas em nome de terceiros (vendedores de sucata) – preenchendo-as e apondo nas mesmas, pelo seu punho ou através de terceiros, as assinaturas daqueles –, as quais não correspondem a quaisquer compras efectivamente realizadas pela sociedade arguida.
11. Assim, a sociedade arguida “A..., Lda.” emitiu as seguintes facturas, que titulam transações simuladas, nas datas, pelos valores e em nome dos terceiros respectivamente indicados no quadro que segue:

Fatura de CompraA201301829
A201301830
20-09-13
20-09-13
...46 ...69 ...91
...65 ...75 ...36
LLLL
MMMM
A201301313A20130320613-12-13...39 ...56 ...47NNNN
A20130131419-08-13...01 ...36 ...10JJ2 509,00 €
A20130182720-09-13...11 ...42 ...87KK2 850,02 €
2 700,01 €
2 800,01 €
9 999,00 €
A20130320913-12-13...35 ...00 ...88LL10 000,02 €
A20130322414-12-13...09 ...01 ...10MM2 537,25 €
A20130322714-12-13...11 ...25 ...95NN2 732,00 €
A20130326516-12-13...53 ...13 ...32OO2 968,10 €
A20130336320-12-13...40 ...76 ...94PP9 000,00 €
A20130336420-12-13...62 ...09 ...20QQ9 000,00 €
A20130345126-12-13...73 ...94 ...92RR2 843,22 €
B20130019127-12-13...16 ...25 ...18SS3 218,70 €
A20130356430-12-13...11 ...83 ...33TT2 668,00 €
A20130358531-12-13...00 ...05 ...80UU2 987,00 €
B20130000201-10-13...62 ...06 ...14VV2 397,50 €
B20130000401-10-13...53 ...13 ...32OO2 581,00 €
B20130000603-10-13...40 ...63 ...89WW2 000,00 €
B20130000903-10-13...19 ...78 ...29XX2 500,00 €
B20130003107-10-13...63 ...25 ...70YY3 560,00 €
B20130003808-10-13...16 ...13 ...31ZZ3 550,00 €
B20130004009-10-13...19 ...76 ...00AAA7 102,23 €
B20130004110-10-13...98 ...32 ...53BBB3 162,62 €
B20130004511-10-13...72 ...82 ...98CCC3 340,00 €
B201300052
12-10-13
...05 ...32 ...29DDD2 992,00 €
B20130006917-10-13...80 ...23 ...48EEE2 898,00 €
B20130009022-10-13...76 ...40 ...16FFF1 705,00 €
B20130009122-10-13...10 ...10 ...82GGG2 856,00 €
B20130009222-10-13...74 ...72 ...71HHH2 677,00 €
B20130009322-10-13...09 ...30 ...95III2 865,60 €
B20130009623-10-13...10 ...78 ...06JJJ2 711,50 €
B20130009723-10-13...48 ...13 ...00KKK2 402,60 €
B20130010925-10-13...26 ...40 ...97LLL4 450,70 €
B20130011125-10-13...40 ...63 ...89WW2 859,40 €
B20130011328-10-13...47 ...33 ...89MMM2 700,00 €
B20130011428-10-13...80 ...05 ...79NNN2 635,00 €
B20130011628-10-13...30 ...10 ...28OOO2 701,80 €
B20130012129-10-13...04 ...23 ...00PPP2 560,00 €
B20130012229-10-13...58 ...83 ...69QQQ2 512,00 €
B20130012429-10-13...17 ...67 ...89RRR2 842,00 €
B20130012530-10-13...89 ...40 ...37SSS2 650,00 €
B20130013604-11-13...76 ...40 ...16FFF2 640,00 €
B20130013805-11-13...73 ...62 ...66TTT1 577,00 €
B20130014607-11-13...29 ...81 ...29UUU3 190,00 €
B20130014808-11-13...34 ...01 ...71VVV3 104,00 €
B20130015515-11-13...25 ...61 ...82WWW2 804,30 €
B20130015822-11-13...24 ...28 ...98XXX3 135,00 €
B20130016628-11-13...63 ...91 ...73YYY2 772,00 €
B20130016802-12-13...25 ...40 ...76ZZZ2 898,10 €
B20130016903-12-13
...20 ...72 ...55
AAAA2 877,60 €
B20130017407-12-13...05 ...59 ...91BBBB2 540,00 €
B20130017609-12-13...81 ...29 ...90CCCC3 141,00 €
B20130017709-12-13...45 ...08 ...90DDDD3 509,00 €
B20130018011-12-13...42 ...18 ...81EEEE2 785,20 €
B20130018212-12-13...47 ...96 ...52FFFF1 928,50 €
B20130018517-12-13...37 ...61 ...74GGGG2 292,00 €
B20130018617-12-13...93 ...12 ...79HHHH2 987,00 €
B20130018921-12-13...20 ...37 ...91IIII2 731,80 €
B20130019026-12-13...34 ...68 ...20JJJJ2 293,90 €
C20130388414-12-13...22 ...44 ...95KKKK3 903,00 €
Total das faturas no ano de 2013201 8,68 €

12. Não obstante saberem que a sucata referida nas facturas indicadas em 11 não havia sido vendida pelas pessoas nelas respectivamente identificadas, bem como que os preços respectivamente constantes dessas facturas não haviam sido pagos pela sociedade arguida, os arguidos AA e BB fizeram registar tais facturas na contabilidade desta sociedade.
13. Em resultado da contabilização das facturas descritas em 11, a sociedade arguida considerou como custos do exercício do ano de 2013 as compras por elas documentadas, falsamente inscritos na contabilidade como gastos a título de aquisição de mercadoria e por via disso, na declaração de IRC que a sociedade arguida apresentou à Administração Fiscal relativa ao exercício do ano de 2013, apresentando, por conseguinte, resultados líquidos de exercício e lucros fiscais inferiores aos reais.
14. Pelo que, considerando o resultado real do exercício de 2013, a sociedade arguida deixou de pagar, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) devido no ano de 2013, o valor global de €53.439,55 (cinquenta e três mil, quatrocentos e trinta e nove euros e cinquenta e cinco cêntimos).
15. Do mesmo passo, os arguidos AA e BB, no ano de 2014, efetuaram na contabilidade da empresa arguida (conta SNC ...12 – Operações isentas – outras) um lançamento a débito (lançamento com o nº ...01, em 31-12-2014 do Diário 5 – Operações diversas) no montante de € 587.560,35 (quinhentos e oitenta e sete mil, quinhentos e sessenta euros e trinta e cinco cêntimos), que não encontra suporte em nenhum dos documentos arquivados nas pastas de suporte à contabilidade, inexistindo, por conseguinte, comprovativos do pagamento das compras facturadas.
16. Em resultado do lançamento na contabilidade desta despesa como gastos a título de aquisição de mercadoria a sociedade arguida considerou como custos do exercício do ano de 2014 compras não documentadas e não dedutíveis nesta sede (por força do disposto no artigo 23.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC) e, por via disso, consideradas também na declaração de IRC que a sociedade arguida apresentou à Administração Fiscal relativa ao exercício do ano de 2014, apresentando, por conseguinte, resultados líquidos de exercício e lucros fiscais inferiores aos reais.
17. Pelo que, considerando o resultado real do exercício de 2014, a sociedade arguida deixou de pagar, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) devido no ano de 2014, o valor global de € 143.052,29 (cento e quarenta e três mil, cinquenta e dois euros e vinte e nove cêntimos).
18. Os arguidos AA e BB, ambos na qualidade de gerentes de facto da sociedade arguida, sabiam que no âmbito da actividade por esta exercida estavam obrigados a fazer constar das declarações de IRC que entregaram à Administração fiscal no final de cada período tributário as operações efectivamente realizadas no exercício dessa actividade e os rendimentos reais obtidos com as mesmas, bem como a proceder, no mesmo prazo, ao pagamento do montante de imposto exigível.
19. Não obstante, os arguidos AA e BB actuaram da forma supra descrita, sabendo que usavam facturas que não correspondiam a qualquer negócio efectivamente celebrado entre a sociedade arguida, que representavam, e terceiros vendedores de sucata, e ao fazê-lo alteravam os valores que deviam estar relevados na contabilidade da sociedade arguida, por si legalmente representada, o que fizeram com o intuito logrado de que não fosse liquidada a totalidade dos valores de IRC devidos por esta sociedade.
20. Mais sabiam os arguidos AA e BB que não poderiam fazer constar na contabilidade da sociedade arguida despesas que não se encontravam documentadas em qualquer suporte da contabilidade, porquanto estas nunca seriam dedutíveis em sede de IRC, e ainda assim fizeram-no com o propósito concretizado de obterem para si e para a sociedade arguida uma vantagem patrimonial ilícita e indevida, em prejuízo da Fazenda Nacional.
21. Os arguidos AA e BB ao procederem da forma supra descrita sabiam que punham e quiseram pôr em causa o valor probatório das facturas, das transacções e dos custos comerciais que as mesmas se destinam a certificar e que lesavam os interesses do Estado, nomeadamente os de natureza fiscal.
22. Os arguidos AA e BB, por si e em representação da sociedade arguida, actuaram com o intuito de evitar, como evitaram, a entrega nos Cofres do Estado dos valores devidos pela sociedade arguida “A..., Lda.”, a título de IRC, valores esses que os arguidos integraram no património desta sociedade e também no seu património, enquanto gerentes da mesma, obtendo cada um para si e para tal sociedade uma vantagem patrimonial que não obteriam de outra forma e a que sabiam não ter direito, no valor global de € 196.491,84 (cento e noventa e seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e oitenta e quatro cêntimos) e provocando a correspondente diminuição das receitas tributárias, causando à Administração Fiscal um prejuízo de montante equivalente.
23. Os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
24. A arguida sociedade e a arguida BB não têm antecedentes criminais.
25. O arguido AA tem uma empresa de liquidação de moldes e máquina e aufere quantia equivalente ao salário mínimo nacional.
26. Vive com a esposa, a qual é doméstica.
27. Com o casal vive um filho de 17 anos, a estudar na escola pública.
28. O arguido estudou até à 4ª classe.
29. O arguido AA tem os seguintes antecedentes criminais:
- por factos praticados em 13.9.2010 foi condenado por um crime de detenção de arma proibida e por um crime de receptação na pena de 600 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 24.5.2013;
- por factos praticados em 16.11.2010 foi condenado por um crime de furto, na pena de 240 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 26.6.2013;
- por factos praticados em 1.3.2002 foi condenado por um crime contra a natureza na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, por decisão transitada em julgado em 25.6.2020.
30. A arguida, nos anos de 2013 e 2014 encontrava-se, também, a estudar ... na Universidade ... em Viseu, vindo a casa dos pais e a Águeda de 6ª a domingo.
*
Foram estes os factos provados, mais nenhum outro se provou com relevância para a decisão da causa, nomeadamente não se provou:
- que a arguida BB era apenas uma colaborada do seu pai;
- que apenas se limitava a entregar documentação na contabilidade a pedido do pai;
- que a arguida tivesse alguma autonomia ou poder decisório;
*
Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados, ou contém expressões conclusivas ou de direito, ou são irrelevantes para a decisão da causa.
*
A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na análise crítica e ponderada, quanto ao arguido AA e à sua gerência de facto na sua admissão pelo próprio.
Quanto à intervenção da arguida, sua filha e apesar das declarações do arguido, no sentido de afirmar que a arguida lhe prestava apenas colaboração como filha, fazendo apenas recados, dizendo numa primeira fase que tinha uma procuração passada pela filha e que lhe permitia assinar toda e qualquer documentação mas admitindo, depois, que a filha assinava alguns documentos por ser a gerente de direito, mas sem qualquer autonomia para tomar qualquer decisão ou dar qualquer ordem, a verdade é que tal assim não resultou demonstrado, desde logo pelos e-mails que a arguida trocou com o gabinete de contabilidade e que se encontram nos autos a fls. 83, datado de 14.3.2014. E note-se que nesta troca de correspondência a arguida envia o e-mail do seu próprio endereço electrónico (e não do seu pai ou da sociedade, como seria natural, caso estivesse, apenas, a transmitir um recado), como também fala em nome próprio (e não na 3ª pessoa conforme seria, novamente, natural, se estivesse a comunicar a decisão ou o entendimento do seu pai). Por outro lado, há documentação assinada pela arguida (cfr. doc. de fls. 84 e 85 – “movimentos para conciliar”) e as declarações da testemunha OOOO que foi contratada em 2013/2014 (já não sabia precisar o ano) e referiu ter ido à entrevista com a arguida BB, ter sido por ela contratada e a ela obedecia, na qualidade de sua “patroa”, assim como ao arguido AA. Esclareceu que bastou essa entrevista com a arguida para começar logo a trabalhar, não houve qualquer intervenção do arguido na sua contratação. Mais referiu que a arguida lhe dava ordens, que estava por dentro dos assuntos da empresa e sabia o que se passava. Ora, esta testemunha, de forma inteiramente espontânea, escorreita e sincera referiu esta factualidade, pelo que o seu depoimento se mostrou credível e, por isso, foi positivamente valorado.
A testemunha DD, contabilista certificado e que efectuou a contabilidade da sociedade arguida de 2014 a 2106, referiu que conhecia todos os arguidos e que, inicialmente, falou com o arguido AA mas que, de seguida e para iniciar funções, teve uma reunião com ambos os arguidos (o que contraria, frontalmente, as declarações do arguido AA de que a sua filha não tinha qualquer intervenção da empresa). Mais referiu que, no decurso da sua relação profissional, se tivesse que esclarecer qualquer dúvida ou pedir que fosse tomada qualquer decisão, dirigir-se-ia à pessoa que estivesse na empresa e que, era, com maior assiduidade, o arguido AA. Se ele não estivesse, contactaria a arguida BB. Esclareceu ainda que falava/tratava de qualquer assunto relacionado com a empresa quer com um arguido, quer com outro, indistintamente. Confirmou, inclusivamente, que a arguida tomava decisões apesar de também ter referido desconhecer se a arguida tinha, ou não autonomia para as tomar ou se carecia de “aprovação” por parte do pai.
O seu depoimento foi ainda relevante quanto à questão da auto-facturação feita na sucursal de Coimbra. Recorda-se de ter questionado ambos os arguidos (AA e BB) sobre essa auto facturação mensal e ter pedido a listagem dos compradores que teria estado na base dessas auto facturações e de lhe ter sido exibida uma listagem, não assinada, mas que, depois, não apareceu no momento da inspecção tributária, desconhecendo o motivo. O seu depoimento foi descomprometido, claro, escorreito, natural e com razão de ciência atendível, pelo que foi positivamente valorado.
A testemunha EE, técnica que efectuou a contabilidade da sociedade arguida cerca de 1 ano e meio, tendo terminado em 2014 e que referiu que contactava com a arguida BB e que a mesma sempre se mostrou inteirada da empresa e das suas questões, não sendo uma mera “entregadora” de papéis (conforme o arguido AA fez passar a ideia). Sem prejuízo, referiu que qualquer decisão a tomar era remetida para o arguido AA e que a arguida BB não demonstrava ter autonomia decisória. O seu depoimento foi objectivo, claro, espontâneo e dada a sua razão de ciência e a forma sincera como foi prestado, mereceu, de igual forma, a credibilidade do Tribunal.
A acrescer, as declarações de II, inspector tributário que efectuou a inspecção em 2016 e confirmou que, nesta data, já a arguida estava na empresa com regularidade, tinha um espaço de trabalho próprio e fazia o acompanhamento financeiro da actividade da empresa, contrariando, assim, as declarações do arguido que afirmou que a sua filha nunca teve nada a ver com a empresa, era apenas a sua “testa de ferro”. Contudo, este depoimento, por si só, não seria suficiente para dar por provada a administração e gestão por parte da arguida no período aqui em causa por a testemunha não ter tido qualquer contacto com a empresa no período em apreço.
Tudo isto sem prejuízo das declarações da testemunha PPPP, também funcionária administrativa que, de forma comprometida e já muito cautelosa nas palavras e na forma como respondia, afirmou que o arguido era quem mandava em tudo, que apenas via a arguida à 6ªf à tarde, que nunca a viu a trabalhar no escritório. O seu depoimento, pela forma como foi prestado, não mereceu a credibilidade do tribunal. A testemunha III, amigo do arguido há 15 anos, referiu que fez negócios com ele, sendo entre ambos que eram acertados os valores, mas das suas declarações não se retira, sem mais, que a arguida nenhuma relação/actividade tivesse com/na empresa. A testemunha QQQQ, pessoa que fez negócios com o arguido mas de onde não se extrai, também, qualquer exclusão da arguida da actividade da empresa. RRRR, engenheiro mecânico que tratou de licenciar a actividade da empresa e que, por esse motivo, ia à empresa, em 2013, quase todas as semanas e que referiu que a mesma só ia à empresa tratar de assuntos particulares e a testemunha SSSS, esposa e mãe dos arguidos e que referiu que a filha apenas se deslocava à empresa à 6ªf para a auxiliar nas limpezas. Ora, estes depoimentos são contrários aos supra referidos e, até incompatíveis com o mínimo de intervenção que a arguida sempre teria de ter com a actividade da empresa, nomeadamente na parte da assinatura da documentação, por ter a qualidade de gerente de direito, pelo que os seus depoimentos não foram positivamente valorados.
Já o depoimento da testemunha HH não se mostrou relevante para as questões a apreciar, uma vez que esta testemunha, de 86 anos de idade, apenas se recordava que havia efectuado um contrato de arrendamento com a sociedade arguida, de um armazém em Coimbra, de 1.5.2013 a Abril de 2016 (sendo que se fazia acompanhar do contrato de arrendamento) mas já não tinha qualquer memória da pessoa com quem tinha tratado/efectuado o negócio.
A testemunha FF - amigo do arguido AA e que intermediou alguns negócios, nos anos de 2012/2013 a 2015/2016 (já não sabia precisar ao certo) – referiu que algumas vezes assistiu a algumas vendas/compras de sucata e explicou a dinâmica (o vendedor chegava ao armazém com o material, que era separado, pesado e atribuído um preço e que este era pago, ou em dinheiro ou em cheque e que o vendedor tinha que dar o nome e o número de contribuinte) e que quem estava presente era o arguido AA e os funcionários. Quanto à arguida BB, referiu que nessa altura a mesma se encontrava a estudar em Viseu e que apenas a viu na empresa num sábado ou domingo, quando lá passou. Mais contextualizou que se deslocava às instalações da sociedade arguida de forma muito variável - tanto podia ser uma vez por mês, como duas ou três e até podia passar alguns meses sem aí se deslocar. Do seu depoimento não se extrai, dada a forma inconstante e pouco frequente com que se deslocava à empresa, razão de ciência atendível para afastar a intervenção da arguida BB na sociedade.
CC, sobrinho e primo dos arguidos, pessoas singulares e sócio da empresa de contabilidade que fazia a contabilidade da sociedade arguida em 2013/2014 declarou que não tinha contacto directo com a contabilidade da empresa, estando a mesma a cargo de EE. Que se recorda de ter passado, algumas vezes, em caminho, na empresa para levar documentação que estivesse em falta, apenas, não tendo tido qualquer outro contacto com a contabilidade da empresa. Confirmou que a empresa não pôde ficar em nome do tio devido aos problemas que este apresentava e que os seus primos – BB e TTTT – figuraram como gerentes mas apenas formalmente, estando ambos a estudar. Ora, não obstante esta declaração, a verdade é que esta testemunha não tinha contacto profissional com a sociedade para saber, de acordo com a realidade, qual o papel/intervenção/participação da arguida BB pelo que o seu depoimento, não obstante se mostrar sério, credível e objectivo, não foi valorado quanto à questão da gestão por parte da arguida.
A testemunha GG trabalhou para uma promotora imobiliária da qual o arguido AA foi socio, há cerca de 10 anos e desenvolveram uma realção de amizade desde então. Referiu que foi à empresa A... duas ou três vezes e que tem o arguido AA como dono da mesma, apesar de nada saber sobre a vida da sociedade. Quanto à arguida BB, conhece apenas por ser filha do arguido. Do seu depoimento e em face da sua razão de ciência, nada de relevante se extrai sobre a gestão da sociedade.
Já no que respeita à emissão das facturas sem correspondência com a venda real, quer nos montantes, quer nos vendedores, a prova é abundante e conclusiva: assim os diversos depoimentos dos supostos vendedores: CCC, NNN, TT, CCCC. Todos, de forma unânime e inteiramente espontânea e sincera referiram que ou não venderam os metais referidos nas facturas onde consta o seu nome, ou naquelas quantidades, nem sequer reconheceram as rúbricas que constam nas facturas, com as quais foram confrontados em sede de audiência de discussão e julgamento.
Para além destes depoimentos, a prova documental que existe a fls. 195 a 483 nesse mesmo sentido, pelas diversas pessoas contactadas. Vejamos: fls. 196, factura emitida em nome de UUUU e a fls. 197 a carta desta pessoa a informar que não conhece a empresa arguida; factura de fls. 200 em nome de JJ e a fls. 201 e-mail deste a negar que tenha vendido qualquer produto à sociedade arguida; fls. 203, factura emitida em nome de KK e a fls. 204 a carta desta a informar que desconhece a sociedade arguida; factura de fls. 207 em nome de LLLL e a fls. 208 e-mail deste a informar que não vendeu qualquer bem; fls. 210 e 211 notificação e envio da factura em nome de MMMM e a fls. 212 a carta deste a dizer que nunca fez qualquer negócio; fls. 216 e 217 nos mesmo moldes relativamente a NNNN; fls. 222 e 223 relativamente a LL em que a factura era de € 10.000,00 e o próprio afirma que vendeu apenas € 30,00 de material; fls. 232 e 234, factura em nome de MM e declaração deste a negar qualquer negócio; factura de fls. 237 em nome de NN e declaração deste a fls. 240 explicando que vendeu valores insignificantes; fls. 243 e 244 (duas facturas nos valores de € 2968,10 e € 2581,00) em nome de OO e a fls. 245 declaração deste a informar que recebeu apenas € 50/€60,00 e que não reconhece a rubrica aposta nas facturas e junta a fls. 248 a factura verdadeira, no valor de € 41,25; fls. 249 e declaração de fls. 251 a negar relativamente ao valor de € 9.000,00 e ao suposto vendedor PP; fls. 277 factura em nome de RR no valor de € 2.843,00 e a fls. 279 declaração desta a negar qualquer venda; fls. 281 a factura em nome de SS e a fls. 283 o –mail deste a negar qualquer venda; fls. 285 factura em nome de TT e a fls. 287 a sua declaração a explicar que vendeu apenas € 22,80 e junta a factura verdadeira a fls. 289; fls. 291, factura em nome de UU e a fls. 292 a declaração deste a dizer que nunca vendeu à sociedade arguida; fls. 295 e 296, nos mesmo moldes em relação a VV; fls. 304 e 305 facturas em nome de WW e a fls. 306 e-mail deste e a fls. 307 declaração a explicar que apenas vender € 92,73 e a fls. 308 a factura verdadeira; fls. 313 e ss. quanto a uma factura em nome de XX e declaração deste a informar que vendeu € 25,00; fls. 316 factura em nome de YY e fls. 317 e 318 e-mail e declaração deste a dizer que não reconhece o documento ou o negócio; fls. 322 factura em nome de ZZ e declaração deste a fls. 324 a dizer que não vendeu; fls. 330 e 331, duas facturas, de € 3,93 e € 7.102,33 e a declaração de fls. 333 a explicar que apenas vendeu o material correspondente à primeira factura e não reconhecendo, sequer, a rúbrica que lhe é atribuída na factura de maior valor); fls. 339, factura em nome de CCC no valor de € 3.340,00 e declaração deste a fls. 340 explicando que vendeu apenas €20,40 de material; fls. 342 factura em nome de DDD e declaração deste a fls. 343 a negar qualquer venda; declaração de fls. 345 de EEE a explicar que vendeu quantias diminutas de sucata e que não reconhece a factura de fls. 347, no valor de € 2.898,00; facturas de fls. 349 e 350 em nome de FFF e as facturas de fls 352 e 353, no mesmo nome, com valores e assinaturas totalmente diferentes; factura de fls. 355 em nome de GGG e a fls. 356 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 359 em nome de HHH e a fls. 360 declaração negatória deste; factura de fls. 363 em nome de III e a fls. 364 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 367 em nome de JJJ e a fls. 369 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 371 em nome de KKK no valor de € 2.402,60 e a fls. 372 declaração deste a informar que vendeu por duas vezes sucata doméstica no valor de € 100,00; factura de fls. 375 em nome de LLL no valor de € 4.450,70 e a fls. 376 declaração deste de não reconhecimento da mesma e esclarecendo que vendeu quantidades mínimas e apresenta a fls. 377 a factura verdadeira no valor de € 64,00; factura de fls. 380 em nome de MMM e a fls. 381 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 384 em nome de NNN e a fls. 386 declaração desta de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 388 em nome de OOO e a fls. 389 declaração desta de não reconhecimento daquele negócio nem da assinatura; factura de fls. 393 em nome de PPP e a fls. 395 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 399 em nome de QQQ e a fls. 400 declaração deste a informar que vendeu quantias e tipo de produto em quantidade muito diferente e menor; factura de fls. 402 em nome de RRR e a fls. 403 declaração deste explicando que vendeu apenas 5 ou 6 Kg de sucata, apenas e a factura menciona950 Kg de metal velho; factura de fls. 406 em nome de SSS e a fls. 408 declaração desta de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 410 em nome de TTT e a fls. 411 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 413 no valor de € 3.190,00 em nome de UUU e a fls. 414 declaração desta de não reconhecimento do negócio nem da assinatura e a junção, pela própria, a fls. 416, da factura correspondente ao negócio que efectuou no valor de € 105,28; factura de fls. 419 em nome de VVVV e a fls. 420 declaração deste informando que efectuou vendas sempre abaixo de € 50,00; factura de fls. 422, no valor de € 2.804,30 em nome de WWW e a fls. 423 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura em causa e junta a factura que tinha quanto ao negócio efectuado, a fls. 424, no valor de € 55,25; factura de fls. 426 em nome de XXX e a fls. 428 cópia da queixa que o mesmo apresentou por falsificação da sua assinatura; factura de fls. 431 em nome de YYY e a fls. 432 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 435 no valor de € 2.898,10 em nome de ZZZ e a fls. 436 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura e a fls. 437 esclarece que vendeu sucata à sociedade arguida no valor de € 30,00, apenas; factura de fls. 439 no valor de € 2877,60 em nome de AAAA e a fls. 440 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura, tendo vendido apenas duas baterias e a fls. 442 junta a factura verdadeira no valor de € 7,70; facturas de fls. 444 e 445 em nome de BBBB e a fls. 446 declaração deste de não reconhecimento dos negócios nem da assinatura, tendo vendido apenas bens de diminuto valor e junta as facturas verdadeiras a fls. 447 e 448; factura de fls. 450 em nome de CCCC e a fls. 451 declaração desta de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 453 em nome de DDDD e a fls. 454 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura e a fls. 456 a factura que tinha correspondente ao negócio que efectivamente efectuou; factura de fls. 459 em nome de EEEE e a fls. 460 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 461 em nome de FFFF e a fls. 463 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 465 em nome de GGGG e a fls. 466 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 419 e 469 em nome de HHHH e a fls. 470 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 472 em nome de IIII e a fls. 474 declaração desta de não reconhecimento do negócio nem da assinatura; factura de fls. 476 em nome de JJJJ e a fls. 477 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura e a fls. 478 a factura correspondente ao negócio que realizou; factura de fls. 481 em nome de KKKK e a fls. 482 declaração deste de não reconhecimento do negócio nem da assinatura.
Ou seja, destes documentos e conjugando-os com os depoimentos das testemunhas supra referidas resulta à evidência o esquema montado pelos arguidos: aproveitando-se de um qualquer negócio anterior com determinado vendedor, socorriam-se dos seus dados (nome, morada e número de contribuinte) e faziam facturas que não têm qualquer correspondência com qualquer negócio, nem em quantidade, nem em material, nem em valor.
Valorados ainda os extractos de compras e recibos de fls. 91 a 132; facturas de fls. 133 a 193 e 518 a 531, Extrato das contas bancárias da sociedade “A..., Lda.”, a fls. 489 a 516, extrato de conta no ano de 2014, a fls. 542 a 543,cujos valores dos cheques não têm correspondência com as facturas emitidas e supra referidas; certidão do Registo Comercial da “A..., Lda.”, de fls. 732 a 737 quanto à composição dos órgãos gerentes e comprovativos de entrega das declarações de IRC respeitantes aos anos 2013 e 2014, a fls. 663 a 671-V. Sobre a actividade e a prática da empresa, foi determinante o depoimento do inspector tributário II o qual, de forma lógica, coerente, assente na análise que fez e na sua experiência profissional e pessoal, explicou que as facturas foram emitidas em data posterior à data que nelas consta, que a existência de um lançamento a débito em 31.12.20214, sem qualquer suporte documental, mais não é do que a criação de um valor fictício para diminuir os lucros tributáveis. E este valor, apesar das declarações de DD no sentido de ter havido uma listagem de suporte, não ficou demonstrado já que inexiste na contabilidade da empresa e não foi exibido. E mesmo o documento junto em audiência em 7.11.2022 também não fornece qualquer resposta sobre o lançamento efectuado porquanto refere apenas e só, genericamente, tratar-se do lançamento do valor total das compras de auto-facturação registadas e, conforme vimos, trata-se de facturas fictícias.
Quanto à forma e vontade de actuação dos arguidos, pessoas singulares, tendo posto em prática este esquema fraudulento de emissão de facturas sem correspondência com a realidade e de inclusão da contabilidade de valores de despesa que não correspondiam à efectivamente realizada, resulta das regras da experiência e do normal acontecer que os mesmos tinham por objectivo falsear os elementos em que assenta a tributação e, por essa via, fazer diminuir o valor de impostos que a sociedade teria de pagar, assim obtendo a vantagem correspondente. Mais, tendo ficado demonstrado que o arguido AA trabalhava e vivia dos rendimentos da sociedade (conforme o próprio assumiu) e que a arguida BB, à data, era estudante e não tinha fonte de rendimento própria (conforme o arguido também assumiu), sendo o pai quem custeava os seus estudos, naturalmente que havendo maior disponibilidade económica da empresa da qual eram retirados os rendimentos do agregado familiar do arguido AA, ditam as regras da experiência comum e do normal acontecer que esses valores era, pelo menos em parte, canalizados/utilizados pelos arguidos, pessoas singulares.
Relativamente à situação pessoal e económica do arguido, baseou-se o tribunal nas declarações do próprio.
Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração os certificados de registo criminal juntos aos autos em 21.3.2023.
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Já no que concerne aos factos dados por não provados, a sua resposta resultou contrariada pela positividade dos factos atinentes à gestão da arguida, pelas razões vindas de expor. *»
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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.

2.3.1- Nulidade da sentença: falta de fundamentação - 379º, n.º 1, al. a) e 374º n.º 2 do CPP.
Entende a recorrente que a sentença recorrida quanto à factualidade considerada provada não se encontra devidamente fundamentada, com o que infringe o preceituado nos artigos 379º, nº1, al. a) e 374º, n. 2 do CPP. Alega, em suma, que não existe no processo qualquer prova do exercício da gerência de facto pela recorrente nos anos a que se reporta a acusação, designadamente ano de 2013 e 2014 e que, pelo contrário, existe prova de que à data a arguida/recorrente, encontrava-se a residir e a estudar em Viseu, vindo apenas aos fins-de-semana a casa.
Vejamos.
Como requisitos da sentença, determina o n.º 2 do artigo 374.º, o seguinte:
«Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»
Resulta desta norma que o tribunal, para além de indicar as provas que serviram para formar a sua convicção do tribunal, tem também ainda de efetuar o exame crítico daquelas, explicitando o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas.
É que, com a leitura da fundamentação da sentença, deve ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, no sentido de considerar provados e não provados os factos objeto do processo.
O objetivo dessa fundamentação é o de permitir a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina.
Mas como é evidente, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.
O que importa é que a exposição e o exame crítico das provas, explicitado na sentença, permita avaliar racionalmente o fundamento da decisão e o processo lógico seguido.
Descendo ao caso dos autos, verificamos que o Tribunal recorrido, após enumerar os factos provados e não provados, passou a expor exaustivamente a motivação da decisão de facto (páginas 13 a 21), explicando como procedeu à análise da prova produzida elencando e conjugando criticamente as provas que serviram para formar a respetiva convicção, designadamente os depoimentos e declarações valorados e não valorados, os documentos. Está exaustivamente explicado por que razão o tribunal se convenceu da atuação da arguida dada como provada.
O que importa é que se compreende da leitura da motivação por que razão o tribunal deu como provados ou não provados os factos que constam da matéria de facto da decisão. O Tribunal recorrido conjugou a prova pessoal com a prova documental e apreciando-as à luz das regras da experiência comum e formou a sua convicção. Percebe-se, conjugando os factos com a motivação da sentença, o raciocínio do Tribunal.
Poder-se-ia questionar se, face à prova produzida, o Tribunal decidiu da melhor maneira quanto à matéria de facto, mas essa não é a questão colocada neste momento, mas tão-só a da insuficiente fundamentação.
Concluindo, entendemos não haver falta de fundamentação da sentença, pelo que não se verifica a nulidade prevista nos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do CPP.
2.3.2- Factos decididos noutro processo.
Na alínea ‘N’ das conclusões do seu recurso vem a recorrente alegar que no acórdão proferido no processo ... é dado como provado que quem tem o efetivo controle de facto sobre a sociedade, nomeadamente, negócios, compras e vendas, pagamentos, trabalhadores da sociedade, contabilidade e quem põe e dispõe dos fluxos financeiros da arguida A..., Lda, é o pai da ora Recorrente, AA, sendo esta à data apenas gerente de direito.
Embora a recorrente não seja muito clara quanto ao efeito que pretende retirar de tal facto, de tal ‘caso decidido’, cremos que o relaciona com algum dos vícios da decisão do artigo 410º do CPP, nomeadamente o erro notório.
É certo que se atentarmos no histórico do processo, designadamente no recurso anteriormente interposto e que culminou no acórdão deste Tribunal que anulou a sentença anterior, a recorrente invocou o ‘caso decidido’ (conclusão A) quanto à exclusiva gestão de facto da sociedade, mas desta vez não o fez, limitou-se à referida alegação.
Tal alegação é inócua, pois que o ‘caso decidido’ formado e decidido noutro processo (...) no sentido de que a gestão de facto da sociedade A... Lda. pertencia apenas ao coarguido não implica que agora na decisão da sentença recorrida se tivesse em conta tal caso decidido e que neste processo teria de se respeitar essa decisão não se podendo decidir de modo diverso sobre o mesmo facto.
Com efeito, uma coisa é o crime, facto criminoso, conjunto de pressupostos de que depende a aplicação a alguém de uma pena ou medida de segurança – artigo 1º/1/a do CPP. Não podendo a mesma pessoa ser julgada duas vezes pelo mesmo facto (criminoso). Coisa diferente é em crimes diversos a mesma pessoa ter ou não intervenção como agente dos mesmos. O facto de no processo ..., respeitante a crimes diversos dos em causa nos presentes autos, se ter dado como provado que a arguida neles não teve intervenção por não exercer a gerência de facto não impede que relativamente aos crimes em conhecimento nos presentes autos se conclua de modo diverso. A arguida pode não ter agido na prática de um crime e ter intervindo no cometimento de um outro.
Em conclusão, não há qualquer violação dessa figura do ‘caso decidido’, ou do caso julgado ou sequer da garantia constitucional ne bis in idem: a arguida não foi sujeita a um duplo julgamento ou a uma dupla punição pelos mesmos factos criminosos, pelo mesmo conjunto de pressupostos de que depende a aplicação a alguém de uma pena ou medida de segurança - artigo 1º do Código de Processo Penal.
Assim, é manifestamente inócua a alegação e improcedente nesta parte o recurso.
2.3.3- Vícios da decisão - artigo 410º, n.º 2, al. a), b) e c) do CPP.
De acordo com o artigo 410º, n.º 2 do CPP, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
Consideremos os vícios da sentença, os quais, aliás, são do conhecimento oficioso.
a- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. O tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada.
Este vício não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, em que se afirma que teriam sido dados como provados factos sem prova para tal, nem tão pouco se confunde com a errada aplicação do direito aos factos provados, designadamente por os factos provados não preencheram os pressupostos de que depende a aplicação duma consequência jurídica do crime (v.g. pena ou perda das vantagens do crime).
Mas parece ser precisamente nestas confusões que a recorrente incorre, pois embora invoque o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que acaba por fazer é referir que a matéria de facto provada é não só manifestamente errada como claramente insuficiente para a fundamentação da condenação da recorrente.
Quanto à primeira questão cabe referir que só se verifica a insuficiência da matéria de facto para a decisão se o tribunal deixou de investigar o que devia e podia.
Concluindo, da leitura da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo deu como provados e não provados todos os factos relevantes para a decisão justa da causa e de que podia conhecer.
Deste modo, no caso em apreço, do texto da decisão recorrida não resulta o vício da previsão do artigo 410.º, 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
b-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existirá contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Em suma, da leitura completa e conjunta da sentença recorrida, não encontramos factos contraditoriamente provados entre si, ou entre estes e os não provados, como também não encontramos qualquer contradição insanável entre a fundamentação da convicção e a matéria de facto provada e não provada.
Assim, não se verifica este vício na decisão recorrida.
c- Erro notório na apreciação da prova.
Este vício, previsto no artigo. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum.
Mas a verdade é que, lendo o texto da motivação de facto, o que vemos é uma fundamentação lógica suficiente, explicando o modo como se chegou à convicção a que se chegou quanto aos factos provados, sem que algum erro se lhe possa apontar.
O tribunal de forma suficiente enunciou os meios de prova que serviram para a formação a sua convicção e procedeu à análise crítica dos mesmos, em especial da prova testemunhal e das declarações prestadas pelo arguido, tendo explicado de modo razoável porque e em que parte considerou ou desconsiderou tal prova pessoal.
Com efeito e quanto à matéria que a recorrente põe em causa, a relativa à sua intervenção como gerente de facto, o tribunal foi claro na motivação da decisão de facto quanto a essa parte, iniciando precisamente por aí a exposição das provas e explicação das razões que levaram a concluir nesse sentido. Foram desvalorizadas as declarações do arguido, e foram conjugados os emails e documentos com os depoimentos das testemunhas OOOO, contratada pela arguida para a empresa, DD que fez contabilidade para a empresa e EE técnica de contabilidade que também trabalhou para a empresa, todas estas com conhecimento direto do exercício das funções da arguida e ainda da testemunha II, inspetor de Finanças, que o tribunal valorou mas com menos importância que os demais, uma vez que apenas em 2016 teve contato com a empresa.
Como se pode ver da motivação, o tribunal recorrido realçou da análise da prova que fez a conjugação dos e-mails que a arguida trocou com o gabinete de contabilidade enviados do seu próprio endereço eletrónico e em que fala em nome próprio, mais a documentação assinada pela arguida; com as declarações da testemunha OOOO que foi contratada em 2013/2014 (já não sabia precisar o ano) e referiu ter ido à entrevista com a arguida BB, ter sido por ela contratada e a ela obedecia, na qualidade de sua “patroa”, e que bastou essa entrevista com a arguida para começar logo a trabalhar, e que referiu que a arguida lhe dava ordens, que estava por dentro dos assuntos da empresa e sabia o que se passava; com a testemunha DD, contabilista certificado e que efetuou a contabilidade da sociedade arguida de 2014 a 2106, que, inicialmente, falou com o arguido AA mas que, de seguida e para iniciar funções, teve uma reunião com ambos os arguidos e dirigir-se-ia à pessoa que estivesse na empresa e que, era, com maior assiduidade, o arguido e se ele não estivesse, contactaria a arguida BB e que confirmou, inclusivamente, que a arguida tomava decisões; bem como com a testemunha EE, técnica que efetuou a contabilidade da sociedade arguida cerca de 1 ano e meio, tendo terminado em 2014 e que referiu que contactava com a arguida BB e que a mesma sempre se mostrou inteirada da empresa e das suas questões, não sendo uma mera “entregadora” de papéis; e finalmente com a as declarações de II, inspetor tributário que efetuou a inspeção em 2016 e confirmou que, nesta data, já a arguida estava na empresa com regularidade, tinha um espaço de trabalho próprio e fazia o acompanhamento financeiro da atividade da empresa, embora relativamente a este depoimento o tribunal tivesse considerado que por si só não seria suficiente para dar por provada a administração e gestão por parte da arguida no período em causa por a testemunha não ter tido qualquer contacto com a empresa no período em apreço.
A lógica da motivação é clara, sendo compreensíveis as razões pelas quais o tribunal decidiu no modo que decidiu.
Mas entende a recorrente que «existe erro notório na apreciação da prova, pois a Juíza do Tribunal "a quo" dá como provado os factos constantes nos pontos 34, 35, 36, 37, 38, 39, 44, 47, 48, 50, 51 e 52, da matéria dada como provada na douta Sentença, quando não foi realizada a mínima prova que possibilitasse alicerçar uma condenação da arguida como gerente de facto.»
Mas, ao argumentar assim o que sucede é a recorrente incorrer em confusão entre os vícios da decisão e o erro de julgamento a que diz respeito o artigo 412º do CPP, ou seja, à chamada ‘impugnação ampla da matéria de facto’, pois se é certo que por um lado a recorrente invoca expressamente o vício do erro notório no recurso, a verdade é que o que resulta da leitura da motivação de recurso é a pretensão de impugnar a matéria de facto por erro de julgamento nos termos da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.
Não se verificando na sentença recorrida qualquer dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP, avancemos então para a impugnação alargada da matéria de facto.
2.3.4-Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento –in dubio pro reo.
Discorda a recorrente da matéria de facto dada como provada pelo tribunal na parte em considerou que a recorrente exerceu a gerência de facto da arguida, argumentando, em resumo, que estava a estudar ... na Universidade ... e não tomava quaisquer decisões no âmbito da gestão e atividade da sociedade sendo o arguido AA quem sempre teve a seu cargo toda a atividade comercial, decisória e financeira, da sociedade A..., Lda, e que dominava o negócio, com exclusão de outrem, conhecia a clientela e detinha os fluxos financeiros da mesma, sendo a recorrente apenas sócia no papel.
Mais entende a recorrente que da prova produzida em audiência, designadamente, dos depoimentos gravados da testemunha ouvida em Audiência de Julgamento, Inspetor Tributário II, nunca os factos dados como provados na fundamentação da douta Sentença, factos 34, 35, 36, 37, 38, 39, 44, 47, 48, 49, 50, 51 e 52, da matéria de facto provada resultariam provados, pois não resultou provada a gerência de facto da arguida, ora recorrente, ao tempo a que se reportam os factos, anos de 2013 e 2014. Transcreveu excertos do depoimento da testemunha II, indicando os minutos respetivos da gravação.
Em resumo, a recorrente impugna, conforme acima referimos na resolução da questão prévia (2.1.1.), os factos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 15, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 da matéria de facto provada.
Estamos, portanto, no campo da impugnação alargada da matéria de facto.
Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
A recorrente cumpriu de modo suficiente com estes ónus da impugnação da matéria de facto.
Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso.
Assim, deve concluir-se que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente.
O nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 da Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Postas estas considerações, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Vejamos então.
Lendo a motivação de facto da sentença recorrida, como acima já referimos, podemos constatar que nela se elencaram os meios de prova relevantes para a formação da convicção, tendo sido feita a sua análise crítica e apontada a sua relevância para a decisão sobre os factos provados.
O ponto essencial que a recorrente coloca em causa é o da prova do exercício de facto da gerência, que entende não se ter verificado, face às declarações da testemunha II, inspetor de Finanças, cujos excertos que entendeu relevantes para tanto transcreveu.
Fomos ouvir os excertos indicados pelo recorrente e constatamos que a inquirição da testemunha sobre tal matéria se inicia um pouco antes do minuto 39.30, ao minuto 38.10, sendo de notar que, além do transcrito pela recorrente, a 38.41 a testemunha em resposta à pergunta que lhe é feita afirma que a perceção que teve foi a de que quem tomava as decisões eram os dois, embora houvesse ascendente do Sr. AA e que depois cerca do minuto 41 a testemunha refere que em 2016 a arguida tinha um gabinete (na empresa).
Como se retira da motivação de facto da sentença recorrida a importância dada a esta testemunha quanto à atuação da arguida como gerente de facto foi reduzida, apenas podendo confirmar o que viu assinado relativamente ao período em causa nos autos, anterior à inspeção, e o que constatou em 2016, designadamente a perceção de que ambos os arguidos decidiam e que a arguida tinha um gabinete (na empresa).
O problema é que o depoimento desta testemunha na parte referente à gerência da arguida não é suficiente para impor resultado diverso quanto aos factos provados, designadamente os relativos à gerência da arguida, pois que, como já referimos, a sentença nesta parte da gerência de facto deu relativamente pouco interesse ao depoimento desta testemunha.
Na sentença recorrida, considerou-se na análise crítica da prova produzida precisamente o ponto colocado em causa pela recorrente e explicou-se de forma racional e decisiva por que se entendeu que a arguida exerceu a gerência de facto nos períodos em causa. Como já referimos foram conjugados os emails e documentos com os depoimentos das testemunhas OOOO, contratada pela arguida para a empresa, DD que fez contabilidade para a empresa e EE técnica de contabilidade que também trabalhou para a empresa, todas estas com conhecimento direto do exercício das funções da arguida e ainda da testemunha II, inspetor de Finanças, que o tribunal valorou mas com menos importância que os demais, uma vez que apenas em 2016 teve contato com a empresa. Como é evidente o depoimento desta testemunha não impõe solução diversa quanto à matéria de facto, aliás até corrobora os demais, dada a perceção que teve em 2016 de que ambos geriam e de que a arguida té atinha um gabinete.
Ou seja, o Tribunal recorrido, que teve a imediação da prova, entendeu retirar credibilidade às declarações do arguido e das testemunhas que procuraram afastar da gerência da sociedade a arguida recorrente, e explicou de forma razoável porque o fez.
Com efeito, tudo se explicou na sentença recorrida de um modo lógico e racional, de acordo com as regras da experiência e do normal suceder das coisas da vida, pelo que não se vê como a decisão do Tribunal recorrido quanto ao efetivo exercício da gerência por ambos os arguidos se mostre irrazoável.
Tudo visto, analisando a argumentação da recorrente e a motivação de facto da sentença, desde logo diremos que, tendo em conta as transcrições de depoimentos feitas na motivação de recurso pela recorrente, bem como a audição que se fez da prova, nada nelas impõe que se altere a matéria de facto dada como provada nos pontos impugnados pela recorrente.
O Tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para dar como provada a matéria de facto impugnada, a qual, corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que não se violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código Penal, sendo a decisão sobre a matéria de facto, por isso, inatacável.
Quanto a uma eventual violação do princípio in dubio pro reo e do artigo 32.º, n.º 2 Constituição cabe dizer que não se verificou, uma vez que o tribunal, tal como resulta da decisão recorrida, não ficou na dúvida quanto à ocorrência dos factos provados.
É, pois, improcedente o recurso nesta parte, mantendo-se inalterada a matéria de facto assente na primeira instância.
2.3.3- Pretensão de absolvição da arguida Recorrente.
Pretendia a arguida a revogação da sentença recorrida e a sua consequente absolvição.
Relembremos que a arguida foi condenada pelo cometimento em coautoria de um crime de fraude fiscal qualificada dos artigos 103º e 104º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, condicionada à obrigação de proceder ao pagamento, cada um, da quantia de € 200,00 (duzentos euros), todos os meses às Finanças, por conta das quantias em dívida, pagamento esse a efetuar até ao último dia do mês a que disser respeito, devendo comprovar nos autos, todos os meses, os pagamentos ora ordenados, e mais foi decretada a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos, no montante de 196.491,84 €, sendo os arguidos solidariamente responsáveis pelo seu pagamento.
Face à condenação sofrida, a pretensão de absolvição da arguida compreende duas questões:
- a questão da absolvição do crime de fraude fiscal.
- a questão da sua responsabilidade pela perda de vantagens decretada.
2.3.3.1- Da absolvição do crime de fraude fiscal.
Mantendo-se inalterada a matéria de facto fixada pela primeira instância, é de assinalar que face a tal matéria assente não merece qualquer censura a qualificação jurídica operada na primeira instância relativamente ao crime cometido pela arguida.
Com efeito, face aos factos provados, dúvidas não restam de que os arguidos preencheram, com as suas condutas, todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de fraude fiscal, pelo que se mostram incursos na prática de um crime, p. e p. no art.º 103.º do RGIT.
E preenchida se mostra também a variante qualificada do art.º 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, pois que resultou provado que os arguidos em representação da sociedade arguida e de comum acordo, na execução de um plano entre todos gizado, emitiram diversas faturas fictícias que fizeram constar da contabilidade da sociedade arguida por si representada, registando-as e apresentando-as para efeitos de declaração de IRC, incrementando ficticiamente os custos da sociedade arguida, apurando imposto de valor inferior ao que teria verdadeiramente apurado, logrando enganar - as autoridades fiscais e o Estado, tudo em ordem à obtenção pela sociedade arguida de redução da matéria coletável e do imposto sobre ela incidente (IRC), relativo aos anos fiscais de 2013 e 2014, e, por essa via, locupletou-se em proveito próprio de importâncias a que não tinha direito, o que foi feito à custa do erário público.
Assim, a pretensão de absolvição do crime de fraude fiscal é improcedente.
2.3.3.2- Da responsabilidade pela perda de vantagens decretada.
Atentemos agora na segunda questão implicada pelo pedido de absolvição: a da responsabilidade pela perda de vantagens decretada.
Relembremos que o Ministério Público requereu a condenação dos arguidos pessoas singulares e pessoa coletiva a pagar solidariamente ao Estado o valor total € 196.491,84 correspondente à vantagem da atividade criminosa desenvolvida pelos arguidos e na sentença e tal pedido procedeu sendo os arguidos condenados nesses termos.
Importa saber se a pretensão de absolvição da recorrente procede nesta parte da sentença condenatória.
Sobre a perda de vantagens determina o artigo 110º, n.º 1, al b) do Código Penal que são declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Acresce que nos termos do n.º 2 do citado artigo a vantagem do facto ilícito abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
Desta norma resulta que a perda de vantagens é obrigatória desde que se verifiquem os seus pressupostos legais.
Pressuposto da perda das vantagens é a prática pelo agente de um facto ilícito típico.
Que vantagens são essas?
Responde o citado artigo 110º: «considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.»
Lida a norma, a ordem ou comando nela contidos parecem fáceis de entender.
A perda de vantagens inclui todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime, seja adquirida diretamente através da prática do facto ilícito-típico ou mediante transação ou troca com o objeto diretamente adquirido[1].
O ladrão roubou uma quantia, o homicida recebeu uma quantia pela morte de outrem, o traficante/transportador recebeu determinada quantia pelo transporte da droga, os exemplos são quase incontáveis. Essas quantias são declaradas perdidas a favor do Estado.
Considerando o caso da fraude fiscal, através desta o agente pode causar um prejuízo ao Estado e ao mesmo tempo obter para si uma vantagem, consistente no imposto evadido. Assim, a vantagem decorrente da fraude fiscal deve ser perdida favor do Estado.
Pergunta-se, nestes casos quem é o sujeito passivo dessa relação jurídica entre o Estado e aquele que vai ver decretada contra si a perda da vantagem?
A resposta também é simples, o sujeito passivo da relação jurídica, aquele que verá a declaração de condenação a pagar ou a perder essa quantia ao ou para o Estado é o ladrão, o traficante, o homicida e o agente da fraude fiscal que perpetraram os crimes e obtiveram vantagens.
As coisas já se complicam se intervierem mais pessoas no cometimento do facto criminoso – facto ilícito típico – que deu lugar à vantagem. Sendo plural a autoria, contra quem é decretada a perda da vantagem? Contra todos os autores ou cúmplices ou só contra aqueles que beneficiaram e na medida em que beneficiaram da vantagem?
O autor do crime tanto pode ser apenas um como ser uma pluralidade e os beneficiários podem ser apenas um ou vários e terem ou não tido participação no facto ilícito típico.
Essa questão tem sido apreciada no Tribunal da Relação do Porto, sendo que as respostas jurisprudenciais se têm dividido entre as duas opções colocadas[2].
Dada a divergência jurisprudencial, debrucemo-nos um pouco mais sobre a questão de se saber contra quem é decretada a perda da vantagem, sobre quem deve ser condenado a entregar ao Estado a vantagem obtida com a prática do crime[3].
Para procurar responder a esta questão, cumpre averiguar das finalidades do instituto da perda de vantagens do crime. Sem se saber qual a finalidade da lei, a sua teleologia, não conseguiremos interpretar adequadamente uma norma e o comando nela existente, por mais simples que pareça.
As normas não devem ser interpretadas ou obedecidas cegamente, sob pena de poderem atingir um resultado contrário do pretendido. Basta relembrarmos os exemplos didáticos de Heck[4]: a enfermeira que acorda o doente para lhe dar o soporífero, porque tinha sido a ordem expressa recebida a de dar esse medicamento àquela hora, o artilheiro que bombardeia, segundo as ordens recebidas, uma colina já entretanto ocupada pelo seu exército, etc.
A obediência tem de ser pensante ou inteligente.
A essência político-criminal da perda das vantagens do crime, como ensina Jorge de Figueiredo Dias, é primariamente um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia de que o crime não compensa[5].
Esta afirmação da ideia de que o crime não compensa tem efeitos de prevenção especial, agindo sob os motivos do crime, e de prevenção geral positiva, reforçando a confiança da comunidade na validade das normas, através da anulação do enriquecimento de causa ilícita criminosa (ilícita típica), demonstrando o Estado que não é tolerável uma situação patrimonial antijurídica. Trata-se em suma de uma imposição de justiça: a restauração da ordenação dos bens correspondente ao direito[6].
Partindo da finalidade do instituto da perda de vantagens e a sua finalidade, apuremos agora da sua natureza jurídica.
A natureza jurídica do instituto da perda de vantagens não é a de uma pena, ainda que acessória, mas de uma providência sancionatória que prescinde de o agente ter atuado ou não com culpa e cuja finalidade é prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à comunidade que na sequência de um facto ilícito típico é sempre instaurada a ordenação dos bens adequada ao direito[7].
O instituto da perda de vantagens atua com finalidades preventivas impedindo a manutenção do enriquecimento de causa criminosa (típica-ilícita), anulando-o.
E anula o enriquecimento no património do agente do crime na justa medida do enriquecimento, nem mais nem menos.
Ora, se o instituto da perda de vantagens atua com finalidades preventivas anulando os enriquecimentos de causa criminosa, lógico se torna que, além do caso excecional da recompensa prometida, apenas pode ser decretado contra quem enriqueceu na sequência dum ato ilícito típico e não contra o coautor ou cúmplice do crime que não enriqueceu.
Se o coautor ou cúmplice não adquiriu vantagens do facto ilícito, como aplicar-lhe o instituto da perda de vantagens, tirando-lhe uma coisa que não tem ou algo de que não beneficiou?
Condenar-se à perda de vantagem quem com o crime não enriqueceu não só não cumpre a finalidade do instituto, pois por definição não impede o enriquecimento de causa criminosa nem restaura a ordem patrimonial adequada ao direito, como ainda leva a um empobrecimento sem causa da pessoa que não adquiriu vantagens com o crime.
Uma leitura acertada do artigo 110º, nº1 do Código Penal tem de responder com justiça e proporção à finalidade do instituto da perda de vantagens: a anulação do enriquecimento de causa ilícita criminosa (ilícita típica) e a restauração da ordenação dos bens correspondente ao direito. O que não acontece manifestamente se for decretada a perda de vantagem contra quem não enriqueceu, a que acresce o facto de se causar uma injustiça: o empobrecimento sem causa da pessoa que não adquiriu vantagens com o crime e que pelo cometimento deste já sofre a pena de prisão, de multa ou substitutiva que lhe foi aplicada.
Aliás da letra da lei - São declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem- vemos que não se diz que a perda de vantagens é decretada contra os agentes do crime (os quais até podem ser desconhecidos), aliás a esse respeito (contra quem) nada se especifica. O que se diz é que são perdidas a favor do Estado as vantagens resultantes para o agente do crime ou para outrem. O enfoque é colocado na vantagem económica e não em quem cometeu o crime. Para quem simplesmente cometeu o crime já lá está a pena, o mal que se vai sofrer pelo ilícito penal praticado.
O instituto da perda de vantagens está nitidamente mais próximo das actio in rem scripta do que das actio in personam, tem mais a ver com a titularidade das coisas e direitos provenientes do crime do que com o agente ou agentes que os cometeram.
Concluindo, o decretamento da medida de perda de vantagens que culmina no empobrecimento de quem não enriqueceu com o crime é ilegal, não sendo permitida tal interpretação do artigo 110º do Código Penal por ir contra a teleologia do instituto.
Aproveitando uma ideia de Jorge de Figueiredo Dias[8] a propósito do decretamento de perda de objetos não perigosos, diremos que empobrecer-se com fundamento na prática de um facto ilícito típico quem com este não enriqueceu só pode ser fruto de um pensamento retributivo ligado à compensação da culpa, sendo no limite expressão de uma retribuição mais que taliónica, como inflição de um mal gratuito a título de vingança pelo mal do crime.
O agente do crime que não enriqueceu com o facto já tem de sofrer a pena, porquê arranjar-lhe mais esta punição sob forma encapotada e sem qualquer justificação ou equilíbrio?
Não há resposta razoável para esta questão, a não ser o excesso retributivo e taliónico.
Daí a solução de que a perda de vantagens do crime só pode ser declarada contra quem delas beneficiou. O sujeito passivo da relação jurídica em que o Estado vai exercer o direito potestativo de extinção do direito real ou de crédito em que resultou a vantagem do crime é o titular desse direito, aquele que recebeu a vantagem do crime, aquele que enriqueceu de causa criminosa. Sendo a medida da extinção ou perda igual à medida do enriquecimento.
Encontrada a solução de que, ressalvando a exceção da promessa incumprida de recompensa, só contra o agente do crime que enriqueceu e na medida em que enriqueceu pode ser decretada a perda de vantagens, atentemos agora num problema de natureza processual que se por vezes se suscita e que no caso dos autos também se verifica.
A consequência jurídica do crime perda de vantagens para ser decretada depende da verificação dos seus pressupostos, desde logo a prática de um facto ilícito típico do qual resultaram vantagens, um enriquecimento do agente do crime ou de um terceiro.
Daqui resulta que para ser decretada contra alguém têm de ser alegados e resultar provados: o facto ilícito, a vantagem obtida, o enriquecimento de causa criminosa, e quem beneficiou dessa vantagem, o enriquecido.
Não se provando estes elementos, designadamente o enriquecimento do agente ou de um dos agentes do crime, a perda de vantagens não pode contra ele ser decretada.
Ora, sucede que nos deparamos frequentemente na prática judiciária com acusações de crimes fiscais em que surgem um ou mais factos genéricos alusivos à apropriação pelo gerente ou sócio da sociedade das vantagens do crime, normalmente situados perto ou misturados com os relacionados com o elemento subjetivo do crime e que depois passam para as sentenças.
Só que, lendo as sentenças tais expressões, tais pérolas de indefinição e de generalidade não fazem qualquer lógica, pois que no resto da descrição dos factos, o que se vê é que a sociedade não pagou o imposto por si devido e por isso foi ela que lucrou. Não há qualquer densificação desses termos conclusivos e ou nem sequer aparecem justificados na motivação de facto das sentenças ou a justificação é, como não podia deixar de ser, genérica e insuficiente. Falta não só a determinação ou identificação das vantagens que resultaram para o gerente da sociedade, daquele agente do crime que atuou em nome de outrem, como também o quando, como e onde da aquisição para ele das referidas vantagens, e sem isso não há, não pode haver, declaração de perda de vantagens.
Ora, a aposição desses factos genéricos na matéria de facto não é aceitável e os tribunais, os juízes, têm de estar muito atentos ao dar os factos como provados para ver se não estão a cair num alçapão semântico-jurídico.
A consequência jurídica da existência de expressões desse jaez na matéria de facto da acusação, ainda que conseguindo tais expressões passar para a matéria de facto provada da sentença, é a da sua inocuidade para preenchimento dos pressupostos da perda de vantagens.
Com efeito, tais expressões conclusivas ou genéricas metidas na matéria de facto da acusação e tendo conseguido passar silenciosa e injustificadamente para a matéria de facto da sentença não poderão ser tomadas em conta pelo tribunal, pois não passam de meras imputações genéricas. Ora, as imputações genéricas de enriquecimento, sem qualquer especificação das condutas ou factos como e em que se concretizou esse enriquecimento ou vantagem criminosa - quando, onde e como ocorreu o enriquecimento -, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, não permitindo o exercício do direito de defesa constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição, não podem servir de suporte à declaração de perda de vantagens, sendo por isso de se ter por não escritas.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-01-2023[9]:
«Não é com expressões genéricas e conclusivas interpoladas aqui e ali na matéria de facto da acusação e depois na sentença, limitada esta pelos factos da acusação, que se obtém o preenchimento dos pressupostos de que depende a perda de vantagens resultantes da prática de um crime. E o juiz, enquanto garante dos direitos dos arguidos, não pode permitir que estas interpolações genéricas, confusas e conclusivas venham tomar o lugar dos factos que eventualmente deveriam ter constado da acusação (e dela não constaram) e que permitiriam a posterior declaração da perda de vantagens.
Falta não só a determinação ou identificação das vantagens que resultaram para o arguido, como também o quando, como e onde da aquisição das referidas vantagens, e sem isso não há declaração de perda de vantagens.»
Regressando ao caso dos autos, verificamos que o pedido de declaração de perda de vantagens, no valor de 196.491,84 €, formulado pelo Ministério Público na acusação tem expressão nos factos que resultaram provados nos pontos 10 a 14 da matéria de facto provada quanto ao valor de 53.439,55 € que a sociedade arguida deixou de pagar, a título de IRC devido no ano de 2013, e nos pontos 15 a 17 da matéria de facto provada quanto ao valor de 143.052,29 € que a sociedade arguida deixou de pagar, a título de IRC devido no ano de 2014, pelo que essa vantagem no montante total de 196.491,84 € decorrente do crime de fraude fiscal cometido teria de ser, como foi, declarada perdida a favor do Estado.
Já quanto aos arguidos BB (recorrente) e AA (não recorrente), verificamos que não resultou dos factos provados a concretização de qualquer quantia de que tenham beneficiado diretamente ou como recompensa pela participação no não pagamento de impostos devidos pela sociedade arguida, pelo que a perda de vantagens do crime não poderá ser contra eles decretada.
Embora tenham sido condenados em coautoria pela prática do crime de fraude fiscal, a verdade é que, bem lidos os factos provados, o que se constata é que quem enriqueceu ou tirou vantagens do crime foi a sociedade arguida que em virtude do crime de fraude fiscal cometido deixou de pagar Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) nos anos de 2013 e 2014 no montante total de 196.491,84 €, e não os seus ‘gerentes de direito e de facto’ ou ‘só de facto’, os arguidos BB (recorrente) e AA (não recorrente).
É preciso não confundir a pessoa das sociedades com a dos seus gerentes, sócios-gerentes, gerentes ou ‘gerentes de facto’.
Com efeito, o que resultou provado (pontos 9 a 17) foi que os arguidos agiram no interesse da sociedade arguida, apresentaram perante a Administração Tributária gastos na atividade desta no ano de 2013 e 2014 superiores àqueles que a sociedade arguida efetivamente suportou nesses anos, por forma a obterem a correspondente diminuição do lucro obtido nesse período e, por via disso, pagarem um valor de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) inferior àquele que efetivamente era devido por esta sociedade. E em resultado da atuação dos arguidos a sociedade arguida deixou de pagar, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) devido no ano de 2013 no valor de €53.439,55 e devido no ano de 2014 no valor de € 143.052,29 (pontos 14 e 17 da matéria de facto provada).
Mas se assim é, quem enriqueceu foi a sociedade arguida e não os arguidos ‘gerentes de direito e de facto’ ou ‘só de facto’.
Embora se venha no ponto 20 da matéria de facto, de modo absolutamente genérico e conclusivo, introduzir ou interpolar a expressão «obterem para si» na afirmação de que os arguidos agiram com «o propósito concretizado de obterem para si e para a sociedade arguida uma vantagem patrimonial ilícita e indevida, em prejuízo da Fazenda Nacional», é notório que este «para si» além de conclusivo não tem qualquer sustentação nos factos provados que o antecedem. No ponto 22 introduz-se ou interpola-se a expressão «e também no seu património, enquanto gerentes da mesma» na afirmação «Os arguidos AA e BB, por si e em representação da sociedade arguida, actuaram com o intuito de evitar, como evitaram, a entrega nos Cofres do Estado dos valores devidos pela sociedade arguida “A..., Lda.”, a título de IRC, valores esses que os arguidos integraram no património desta sociedade e também no seu património, enquanto gerentes da mesma, obtendo cada um para si e para tal sociedade uma vantagem patrimonial que não obteriam de outra forma e a que sabiam não ter direito, no valor global de € 196.491,84 (cento e noventa e seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e oitenta e quatro cêntimos) e provocando a correspondente diminuição das receitas tributárias, causando à Administração Fiscal um prejuízo de montante equivalente.».
Ora, estes «obterem para si» e «e também no seu património, enquanto gerentes da mesma» afiguram-se absolutamente despropositados e ilógicos, pois como é que obtêm para si aqueles montantes e integram no seu património pessoal se quem não pagou as quantias foi a sociedade arguida, pessoa jurídica distinta dos seus sócios ou gerentes.
Pois então, se a sociedade é que não procedeu à entrega das quantias devidas devido à falsificação da faturação e empolamento de gastos, como é possível dizer que os arguidos pessoas físicas agiram com o «propósito de obterem para si» e «integraram no seu património enquanto gerentes»?
O património dos sócios, dos sócios-gerentes, dos gerentes ou dos ‘gerentes de facto’ não se confunde com o património da sociedade, o que todos sabemos – juristas e não juristas. Se as quantias não pagas a título de imposto transitaram por algum modo para os gerentes teria de ser alegado e provado tal facto. Quando, como e onde passaram para os gerentes? Não é com expressões como as supra-referidas misturadas no meio dos factos referentes ao elemento subjetivo do crime que se acusa, prova, afirma ou concretiza o facto vantagem obtida, pressuposto do instituto da perda de vantagens.
As ditas expressões vinham assim da acusação e assim transitaram para a sentença, mas mal, desde logo porque são confusamente misturadas no elemento subjetivo na parte final da narrativa do ilícito, não passam de afirmações interpoladas, genéricas e conclusivas e depois porque não têm qualquer facto objetivo antecedente que suporte tais conclusões. Onde, quando e como ficaram os arguidos pessoas físicas com o dinheiro que não foi pago ao Estado Administração Fiscal ? Procuramos na sentença e até na acusação, para ver se faltava algum facto à sentença, e não encontramos.
Não é com expressões genéricas e conclusivas interpoladas aqui e ali na matéria de facto da acusação e depois na sentença, limitada esta pelos factos da acusação, que se obtém o preenchimento dos pressupostos de que depende a perda de vantagens resultantes da prática de um crime. E o juiz, enquanto garante dos direitos dos arguidos, não pode permitir que estas interpolações genéricas, confusas e conclusivas venham tomar o lugar dos factos que eventualmente deveriam ter constado da acusação (e dela não constaram) e que permitiriam a posterior declaração da perda de vantagens.
Falta não só a determinação ou identificação das vantagens que resultaram para os arguidos pessoas físicas, como também o quando, como e onde da aquisição das referidas vantagens, e sem isso não há declaração de perda de vantagens.
Assim, da matéria de facto da sentença recorrida apenas se pode retirar que quem beneficiou das vantagens do facto ilícito típico criminal foi a sociedade arguida e, por isso, só contra esta pode ser decretada a perda de vantagens.
Quanto aos arguidos pessoas físicas nada resulta de válido nesta parte.
Assim, a pretensão de absolvição da recorrente é procedente na parte relativa à perda de vantagens, devendo a mesma ser absolvida do pagamento ao Estado da quantia de 196.491,84 €, a título de perda de vantagens a favor do Estado.
Como nos termos do artigo 402º, n.º 2 do Código de Processo Penal, salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto por um dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restantes, temos que o arguido AA, não recorrente, mas coautor do crime de fraude fiscal, também beneficia do recurso interposto, devendo nos mesmos termos ser absolvido do pagamento ao Estado da quantia de 196.491,84 €, a título de perda de vantagens a favor do Estado.
Procede parcialmente o recurso interposto.

*

3- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida e em consequência:
- Revogam a condenação dos arguidos BB e AA no pagamento ao Estado da quantia de 196.491,84 €, a título de perda de vantagens a favor do Estado, absolvendo-os nessa parte.
- No mais, mantêm a sentença recorrida.
*
Sem custas.

Notifique.


Porto, 5 de fevereiro de 2025

William Themudo Gilman

Maria dos Prazeres Silva – [Voto vencida: - quanto à revogação da declaração de perda de vantagem patrimonial a favor do Estado e condenação dos arguidos no respetivo pagamento.
Discordo do entendimento que obteve vencimento quanto ao preenchimento dos pressupostos legais da declaração de perda de vantagem patrimonial, considerando que inexistem razões para não responsabilizar os arguidos AA e BB pelo correspondente pagamento ao Estado, atenta a sua atuação em ordem à apropriação dos quantitativos devidos que ficou provada.
Assim, considero que a procedência da requerida perda de vantagem patrimonial não depende da demonstração de terem os arguidos feito ingressar no seu património pessoal aqueles quantitativos, sendo aliás a matéria provada, mormente nos pontos 10-14, 15-17, 18 a 20 e 22, suficiente para a verificação dos requisitos da perda de vantagem patrimonial, nos termos previstos no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Por conseguinte, a meu ver, não deveria ser decretada a absolvição dos arguidos AA e BB relativamente ao pedido formulado pelo Ministério Público de perda de vantagens a favor do Estado, no valor de 196.491,84€ (cento e noventa e seis mil, quatrocentos e noventa e um euros, oitenta e quatro cêntimos), devendo, antes, ser mantida a condenação dos mesmos arguidos no respetivo pagamento.]

Elsa Paixão

_____________________________________
[1] Cfr. neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, pág. 635 e segs.; e Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, pág. 316.
[2] 1-TRP de 2019-04-30 – Élia São Pedro – Proc.1325/17.1T9PRD.P1, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/47f319d4089d588e8025842a004fd6a7?OpenDocument.
2- TRP de 2021-10-11 – João Pedro Nunes Maldonado – Proc. 276/17.4IDPRT.P1,  https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4c0cf81ff7f19573802587920054635b?OpenDocument
3-TRP de 2022-06-29 – Liliana de Páris Dias – Proc. 638/17.7IDPRT.P2, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/ff89011f6d5b9b408025887d003a4ff8?OpenDocument
 4- TRP de 2023-01-18 – William Themudo Gilman – Proc. 7930/19.4T9PRT.P1, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/56c647210fc2d393802589490053bc07?OpenDocument
 5- TRP de 2023-04-19 – João Pedro Pereira Cardoso – Proc. 2460/20.4T8VFR.P1, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/ffee7ef21fba3c9b802589ad004b6c42?OpenDocument    
6-TRP de 2023-05-17 – Francisco Mota Ribeiro – Proc. 234/18.1IDAVR.P1 https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/bb69b7dcd31bd4ad802589ba003232e4?OpenDocument    
7-TRP de 2023-09-13 – Liliana de Páris Dias – Proc. 2111/21.0T9VFR.P1, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c205e9332fa60ca580258a4b003531c8?OpenDocument   
8-TRP de 2023-12-13 – José António Rodrigues da Cunha – Proc. 12/19.0FAPRT.P1 https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f045e274c1ab9fa680258aac005316e3?OpenDocument
 9-TRP de 2024-04-03 – Liliana de Páris Dias – Proc. 2390/18.0T9AVR.P1 https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d0b7dea98da7b46880258b1800581559?OpenDocument.
[3] Sobre esta questão cfr. A perda de vantagens do crime – reflexões breves contra quem deve ser declarada a perda de vantagens do crime: contra qualquer dos agentes/coautores do crime ou só contra quem delas beneficiou?, William Themudo Gilman, Revista Online, julho de 2024, https://julgar.pt/2024/07/10/;   
[4] Cfr. A. Castanheira Neves, Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Lições 1971-1972, p.441.
[5] Cfr.  Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pág. 632.
[6] Cfr.  Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pág. 632-633.
[7] Cfr.  Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pág. 638.
[8] . Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pág. 631.
[9] Proc. 7930/19.4T9PRT.P1 (William Themudo Gilman), https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/56c647210fc2d393802589490053bc07?OpenDocument