RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO
NÃO USO DO LOCADO
DOENÇA DO GERENTE DA SOCIEDADE ARRENDATÁRIA
Sumário

1. - O fundamento de resolução do contrato de arrendamento referente ao não uso do locado urbano (habitacional ou para fim comercial) – a que se reporta o art.º 1083.º, n.º 2, al.ª d), do CCiv. – pretende evitar a desvalorização do espaço locado, ante a degradação decorrente da sua não utilização ou ausência do locatário, e visa o lançamento no mercado locativo de todos os espaços susceptíveis de ocupação por terceiros.
2. - A essência do conceito de tal não uso (prédio desabitado/encerrado ou que deixou de constituir, consoante os casos, residência permanente ou local de funcionamento de estabelecimento comercial) reside na desativação do locado, mantido fechado ou não utilizado para habitação ou para fim comercial, traduzindo-se num efetivo desaproveitamento do arrendado, assim se compreendendo que o arrendatário que não usa e frui do locado o deva restituir.
3. - A falta de permanência ou funcionamento de estabelecimento comercial no locado, com intermitência injustificada na sua utilização comercial, já pode configurar situação de não uso e consequente incumprimento contratual do locatário, se por mais de um ano.
4. - Não é fundamento de resolução do contrato, no quadro daquele regime legal, um não uso de escassa importância, em que o incumprimento, pela sua diminuta relevância em termos de afetação do interesse contratual do senhorio, não seja suscetível de pôr em causa a manutenção do vínculo locatício.
5. - Se, porém, o incumprimento se traduz em afastamento/ausência injustificado do locado, enjeitado como efetivo centro de funcionamento do estabelecimento comercial, com utilização mínima pelo locatário, por mais de um ano, ocorre um não uso que pode ser reputado como importante, pela forma como afeta a utilização do espaço locado e o inerente interesse da contraparte, dando causa à resolução do contrato.
6. - Todavia, assim não será se o motivo do afastamento/ausência da sócia gerente da sociedade arrendatária for de natureza a esbater a importância do incumprimento, como no caso de aquela ficar temporariamente impossibilitada em consequência de um acidente sofrido no estrangeiro, com o decorrente prolongamento de incapacidade e recuperação, deixando-a involuntariamente distante do estabelecimento, mas não a impedindo de diligenciar, com o concurso de outrem, pela abertura periódica do espaço para limpeza e, concomitantemente, realização de algumas transações de mercadoria ali preservada, até à contratação pela sociedade de uma trabalhadora que mantivesse o espaço permanentemente aberto.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


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I – Relatório

AA e BB, com os sinais dos autos,

intentaram ([1]) ação declarativa de condenação com processo comum contra

A..., Ld.ª”, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. em termos de:

a) Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na violação do disposto no art.º 1083.º do CCiv.;

b) Com o pagamento aos AA. da quantia de € 7.000,00, pelos prejuízos causados, patrimoniais e não patrimoniais;

c) Bem como da quantia de € 2.000,00, como litigante de má-fé;

d) O direito à resolução do contrato, como pedido subsidiário, caso se venha a provar que a ré fez de facto um trespasse, cessão de exploração ou sublocação, sem conhecimento do senhorio;

e) Devolver os dois estabelecimentos aos senhorios, por força da resolução do contrato.

Para tanto, alegaram, em síntese, que:

- os AA. são atuais comproprietários de um prédio, que identificam, onde funcionam dois estabelecimentos comerciais, que presentemente vendem jornais e revistas, mas que inicialmente foram arrendados como dois estabelecimentos autónomos, com fim diverso (um, como quiosque de jornais e o outro como barbearia), cujas rendas são, respetivamente de € 118,00;

- o senhorio autorizou que fosse derrubada uma parede por forma a que ambos os estabelecimentos tivessem comunicação interior, tendo a barbearia cessado a sua atividade, com o arrendatário a explorar o negócio de venda de jornais, revistas, postais e, hoje, recordações;

- é arrendatária a R., sendo que, desde, pelo menos 10/03/2021 até 20/06/2022, estes estabelecimentos estiveram encerrados e sem qualquer uso;

- decorrido mais de um ano sobre o encerramento, os AA. enviaram duas cartas registadas com aviso de receção, para o estabelecimento e para a morada dos dois sócios, que são cônjuges, dando nota do encerramento pelo período referido e pedindo a devolução do estabelecimento;

- no dia 20/06/2022 os estabelecimentos reabriram, ali exercendo atividade pessoa desconhecida do senhorio, que nunca ali laborou, por razões também desconhecidas;

- A R., litigando de má-fé, causou danos aos AA., que importa sejam indemnizados.

A R. contestou, impugnando diversa factualidade articulada pelos AA. e concluindo pela improcedência da ação, para o que afirmou assim:

- o estabelecimento da R. está aberto ao público nos termos em que estivera anteriormente, mas, agora, por uma funcionária por si contratada, com contrato de trabalho;

- as cartas enviadas pelos AA. foram respondidas, com informação de que a sócia gerente da R. sofreu um acidente que a incapacitou temporariamente para o trabalho, do que entretanto recuperou;

- apesar de tal incapacidade, o estabelecimento não foi encerrado permanentemente, ao contrário do afirmado pelos AA..

Saneado o processo, com enunciação do objeto do litígio e dos temas de prova, realizou-se depois a audiência final, após o que foi proferida sentença – datada de 21/06/2024 –, julgando a ação totalmente improcedente, por não provada, com a decorrente absolvição da R. de tudo o peticionado.

Inconformados, vêm os AA. interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([2]):

«A) A sentença comete erro de direito por não ter feito a análise crítica das provas prevista no artigo 607 nº 4 e 5 do CPC. Esta norma deve ser interpretada com o sentido que ela literalmente contém. Nos autos, mais do que deficiente interpretação há um incumprimento da norma. Cumprindo o dispositivo legal do artigo 639 nº 2, b), a norma deve ter o seguinte sentido interpretativo: colher e apreciar livremente dos depoimentos testemunhais uma informação que não se afaste literalmente do que as testemunhas disseram, integrando estes dizeres no contexto do que foi afirmado pelas demais testemunhas e do resulta da prova documental, extraindo as conclusões com base em prudente convicção.

B) A análise crítica das provas é um elemento fundamental na elaboração da sentença, pelo que o seu incumprimento determina que a Relação supra o incumprimento e revogue a sentença.

C) Pela documentação junta e por confissão da sócia gerente, ficou provado que desde 10 de Março de 2021 até 20 de Junho de 2022 não há registo de vendas no programa de facturação conhecido como SAFT.

D) Pela documentação junta provou-se que não foi registado nos livros da contabilidade organizada, o lançamento de qualquer venda na conta Receitas.

E) Provando-se que não há vendas, nem registadas nem contabilizadas na escrita de um estabelecimento comercial (com contabilidade organizada), elas não existem como vendas, menos ainda quando se alega terem sido apontadas em simples papéis para registo posterior e nem tais papéis haverem sido apresentados.

F) Provou-se que o estabelecimento, pelo menos desde o dia 10 de março de 2021 até uma data que não se apurou, teve na porta um dístico que dizia “encerrado por tempo indeterminado”; resultou ainda provado que também esteve afixado um outro dístico, que dizia “passa-se”, embora este com início temporal não concretamente apurado.

G) Provou-se documentalmente que durante o período de março de 2021 e Junho de 2022, não houve consumos de energia e água, como ficou provado que o município ..., fornecedor da água, informou que os recibos por estimativa se deveram ao facto de durante esse ano período temporal o funcionário não ter tido acesso ao contador.

H) Da análise critica da prova, resultou a resulta que entre pelo menos, desde 10 Março de 2021 e Junho de 2022, o estabelecimento esteve sem o uso habitual de comércio, pois nunca esteve aberto ao publico para proceder a venda generalizada, como anteriormente ocorria.

I) Pela documentação junta, ficou provado que durante este mesmo período, como a sentença apurou, embora sem o ter autonomizado na matéria de facto que: “é inegável, e a própria representante da ré assumiu no decurso da audiência final, que esteve na Suíça e que o estabelecimento deixou de ter o funcionamento diário normal que tinha antes”.

J) O artigo 26 da matéria de facto deve ser retirado por não se ter provado mas, admitindo-o provado com base na livre convicção, o descritivo deverá concretizar que não apurou o período temporal sobre as limpezas e o atendimento de clientes.

K) O artigo 27 deve ser retirado pois nenhum vizinho viu a filha, e esta confessa não ter aberto a porta a clientes, competindo à sentença apurar também o período temporal e as mercadorias vendidas.

L) O ónus da prova deste e de todos os factos que sejam impeditivos do encerramento entre 10 de março de 2021 e Junho de 2022 compete à ré, razão pela qual terão der sempre quantificados, objectivados em tempo, regularidade, frequência, horários e vendas.

M) Apenas no dia 20 de junho de 2022, com uma funcionária contratada para o efeito, o estabelecimento abriu ao público com a mesma actividade ou actividade similar à que tinha antes do encerramento em 10 de Março de 2021.

N) A doença prevista no artigo 1083 do CC não se aplica ao caso dos autos, por estarmos perante uma pessoa colectiva sociedade comercial, uma entidade autónoma dos sócios. No caso dos autos acresce que são dois os sócios e a sociedade tem sempre a possibilidade de recorrer a representante ou a pessoa contratada, como aliás veio a acontecer, contratando uma pessoa que é quem passou a fazer e faz o giro comercial de abertura.

O) Finalmente, a prova documental apresentada pelos AA relativa à facturação e ao registo contabilístico e ainda às facturas de electricidade e água não podem ser objecto de apreciação livre do juiz com base em testemunhos, por tal lhe estar vedado por lei, como supra se alegou. . Trata-se de documentos particulares que fazem prova plena, que só podem ser provados com documentos de valor probatório superior.

P) A conduta da ré mostra clara e intencional má fé, razão por que devem ser condenados como litigantes, tal se pediu na acção e acima supra se alegou, bem como no montante da reconvenção.».

A Recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação do decidido.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado.

Cumpridos os vistos legais e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre então apreciar e decidir.


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II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, importa saber:

1. - Se ocorreu omissão de análise crítica das provas, em violação do disposto no art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, do NCPCiv. [conclusões A) e segs. dos Apelantes];

2. - Se ocorreu erro de julgamento quanto à decisão de facto (designadamente, factos 26 e 27 dados como provados), implicando a alteração dessa decisão [de molde a considerá-los não provados, de acordo com as conclusões J) e K)];

3. - Se, por força de tal alteração fáctica, e/ou por razões de direito, existe fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, com decorrente procedência da ação [conclusões M) e segs.].


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III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

«1- Os AA. são os únicos herdeiros de BB e CC;

2- Da herança aberta por óbito dos mesmos, faz parte um prédio sito no Largo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...12;

3- No referido prédio funciona um estabelecimento comercial, que presentemente vende jornais e revistas, inicialmente arrendado como dois estabelecimentos autónomos com fins diversos, um como quiosque de jornais e outro barbearia, cujas rendas são, respetivamente, de € 118,00 (cento e dezoito euros);

4- O dono autorizou que fosse derrubada uma parede para que os estabelecimentos tivessem comunicação interior, altura em que foi cessada a atividade de barbearia, passando a ser explorada apenas a venda de jornais, revistas, postais e, hoje, recordações alusivas à cidade e região;

5- Atualmente, explora o espaço a sociedade A... Lda., R. na presente ação;

6- Posteriormente à constituição da sociedade existiram transmissões de quotas, até aos atuais sócios que a integraram já depois do referido em 4;

7- Algum tempo antes de março de 2021 foi afixado na porta, pelo lado de dentro, um dístico dizendo “passa-se”, sem prévio conhecimento dos AA.;

8- Os AA. enviaram duas cartas registadas com aviso de receção para o estabelecimento e para a morada dos sócios da R., cartas essas que foram recebidas;

9- A primeira, datada de 25 de março de 2022, refere, além do mais, o seguinte: “ (…) Verificámos que há mais de um ano os estabelecimentos objeto do contrato de arrendamento com a sociedade A... Lda, de que Vexas. são sócios exclusivos, estão encerradas. Nas portas dos estabelecimentos, da parte de dentro, estão afixados dois painéis com os dizeres “passa-se”. Vexas não nos prestaram qualquer informação sobre o encerramento, sobre o não uso do locado, sobre a intenção da cessão do negócio. Não sabendo para que endereço deveríamos contactar, enviamos esta carta para dois endereços: o local arrendado e a residência que têm ou tinham em ..., na Rua .... O não uso do local arrendado por mais de um ano dá ao senhorio o direito ao despejo judicial. Assim, a fim de evitar mais demora e despesas, convidamo-lo a entregar os estabelecimentos livres e desocupados, sob pena de darmos início a uma ação de despejo, à qual acrescentaremos os prejuízos sofridos de não ter cumprido a entrega no prazo legal, além das despesas judiciais em que vamos incorrer para assegurar o despejo. (…)”;

10- A segunda, datada de 11 de maio de 2022, refere, além do mais, o seguinte: “(…) Recebemos uma carta da Sócia DD em que me dá conta de um acidente que terá tido na Suíça. Desejamos que tudo lhe corra bem no que respeita à saúde. O que me informa não tem qualquer relevo para o facto de o estabelecimento estar encerrado há mais de um ano. Como não releva o facto de o pretenderem trespassar já antes do encerramento. Verifico que o que o sócio EE me disse ao telefone, ou seja, a vontade de entregarem o estabelecimento e procurarem vida nova na Suíça não era para levar a sério. Assim sendo, vou recorrer ao despejo judicial, face à posição que acabaram de me comunicar. (…)”;

11- Após o envio das cartas, o A. e o sócio da Ré, EE, que se encontrava na Suíça, estabeleceram contacto via WhatsApp;

12- No decurso de tais conversas este sócio ponderou entregar o estabelecimento, pretendendo vender antes a mercadoria que a Ré ali possuía;

13- No decurso dos contactos, o A. sugeriu que contactassem FF, que explora negócio do mesmo ramo da Ré;

14- Tais contactos foram feitos, mas não existiu acordo no negócio da venda da mercadoria, nem entrega do estabelecimento pela Ré;

15- No dia 20.06.2022 o estabelecimento abriu e ficou ali a trabalhar pessoa contratada para o efeito, de nome GG, trabalhadora da Ré, depois de nos dois primeiros dias ter estado também no mesmo o sócio EE;

16- O estabelecimento é contíguo à sala de pequenos almoços da Residencial ..., o que é do conhecimento da Ré;

17- Os AA. pretendem alargar a sala de pequenos almoços, usando o espaço do estabelecimento para o efeito;

18- Uma vez que a residencial tem 25 quartos e a sala de pequenos almoços não alberga mais de 16 ou 17 pessoas de cada vez, obrigando os hospedes a aguardar por vez;

19- A R. respondeu às cartas dos AA., por carta de 05.05.2022, com o seguinte teor: “(…) É verdade terem sido postos nas “portas dos estabelecimentos” os dois papéis que mencionam. Contudo, os ditos papéis e seu conteúdo já haviam sido lá colocados estando, ainda, o estabelecimento aberto ao público e anteriores aos anos da dita “pandemia”. Foi verdade, a signatária ter-se deslocado à Suíça para visitar o seu marido, EE e, uma vez ali, foi vítima de um acidente no dia 3 de dezembro de 2021. Em virtude de tal acidente, ficou, então, incapacitada para o exercício de qualquer actividade, inclusive, de cuidar da sua pessoa (…) Essa incapacidade para o trabalho, mesmo doméstico, manteve-se a 100% até 24.02.2022 (…) O grau de incapacidade passou a 50% de 24.02.2022 a 24.03.2022, estando sujeita a tratamento de fisioterapia a partir de então e, ainda, se mantêm. (…) A gravidade das lesões sofridas impossibilitaram o seu regresso a Portugal e o uso efectivo do locado o que tudo aconteceu contra a sua vontade e demais sócios. Era para regressar nos inícios de janeiro de 2022, o que não sucedeu atenta a situação surgida com o acidente sofrido nos finais de 2021. Daí que, a partir de dezembro de 2021, os locais arrendados estiveram encerrados devido, única e exclusivamente, ao seu estado de saúde que, de todo em todo, impossibilitou o seu regresso a Portugal. Agradeço vossa compreensão para uma situação de doença que, inviabilizando o regresso a Portugal, impossibilitou a abertura dos estabelecimentos e, dessa forma, explorá-lo nos termos contratuais. (…)”;

20- Em dezembro de 2021 a sócia gerente da Ré estava com o marido à Suíça, onde sofreu um acidente e foi levada ao hospital;

21- Em função de tal acidente sofreu uma incapacidade para o trabalho de 100%, de 03.12.2021 a 09.12.2021;

22- Vista em consulta em 26.01.2022, foi renovada tal incapacidade até 24.03.2022;

23- Teve consulta em 06.04.2022 e fez fisioterapia até 28.08.2022;

24- Fez diversos RX, ressonância magnética e infiltrações no ombro esquerdo;

25- No segundo semestre de 2021 e primeiro de 2022, a sócia gerente da Ré veio várias vezes a Portugal/..., alturas em que abria o estabelecimento;

26- Eram efetuadas limpezas no estabelecimento todas as semanas, em regra ao sábado, alturas em que abria para atender clientes;

27- A filha da sócia gerente da Ré também procedia a essa abertura semanal.».

2. - E foi julgado não provado que:

«a. O referido em 4 tenha ocorrido por decisão apenas de quem explorava os estabelecimentos;

b. Desde pelo menos 10.03.2021 e até 20.06.2022 que os estabelecimentos estiveram encerrados e sem qualquer uso por parte da R.;

c. O referido em 7 ocorreu em março de 2021;

d. A Ré chantageou os AA. para que lhe pagasse ou teria que recorrer aos tribunais;

e. A atitude da R. transtorna o negócio da residência dos AA.;

f. O referido em 26 ocorria por períodos de oito ou quinze dias consecutivos.».


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B) Substância do recurso

1. - Da falta de análise crítica das provas

Pretende a Apelante que incorreu o Tribunal recorrido em omissão de análise crítica das provas produzidas, assim incorrendo em violação do disposto no art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, do NCPCiv..

A Apelada defende o contrário, afirmando que nenhuma censura pode ser feita ao exercício judicatório empreendido na sentença em crise.

Na justificação da convicção do Tribunal recorrido pode ler-se:

«O Tribunal decidiu a factualidade supra mencionada como provada e não provada, de acordo com a convicção que resultou de toda a prova produzida, passando a expor a análise crítica da mesma.

Começando pela análise da factualidade vertida nos pontos 1 a 6 dos factos provados, o Tribunal considerou o acordo das partes ainda na fase dos articulados e o teor dos documentos constantes dos autos, concretamente, as escrituras de habilitação, certidão permanente relativa ao prédio em questão, recibos de renda, escritura de constituição da sociedade.

Quanto ao ponto a. dos factos não provados, resultou assim considerado em função da total ausência de prova que sustentasse tal factualidade.

Desde logo na fase dos articulados, as partes estiveram também de acordo quanto ao teor dos pontos 8, 9 e 10 dos factos provados, estando tais factos ainda sustentados em prova documental, considerando as cópias das cartas juntas ao autos e os comprovativos de envio.

Quanto à matéria factual constante do ponto 7 dos factos provados e ponto c. dos factos não provados, o tribunal considerou, desde logo, as declarações prestadas por HH, legal representante da Ré, a qual, não obstante a sua qualidade, demonstrou total clareza e objetividade no que afirmou, reconhecendo a colocação do dizer “passa-se”, mas esclarecendo que se tratou de uma ideia que lhe surgiu ainda antes da pandemia, tendo a sua colocação ocorrido antes da data indicada pelos AA.. Reconheceu, porém, não ter dado conhecimento aos mesmos de tal colocação. Embora outras testemunhas tenham mencionado a colocação de tais dizeres, não souberam localizar no tempo, com exceção da testemunha II, que explora salão de cabeleireiro no local e que, de forma coerente e clara, afirmou que tais dizeres foram ali colocados antes dos sócios da Ré se terem deslocado para a Suíça.

Relativamente à factualidade vertida nos pontos 11 a 14 dos factos provados, resultou das declarações do Autor e da legal representante da Ré que existiram tais contactos, embora a última tenha referido não conhecer o seu teor. No entanto, conjugando tais declarações com os depoimentos das testemunhas FF e JJ, e tendo ainda presente as transcrições das mensagens juntas aos autos, resultou evidente que o sócio referido ponderou a entrega do estabelecimento, com a venda da mercadoria que a Ré possuía. FF foi contactado na tentativa de que adquirisse tal mercadoria, o que resultou do seu depoimento e do depoimento de JJ, tendo-se deslocado ao estabelecimento para verificar os artigos que se propôs comprar. Não chegaram a acordo e nada foi vendido, tal como não foi entregue o estabelecimento.

A factualidade vertida no ponto 15 dos factos provados, resultou do acordo das partes no âmbito dos articulados, juntamente com toda a prova colhida nos autos, demonstrativa de que GG foi contratada e trabalha para a Ré (recibos de vencimento, contrato de trabalho juntos e informação prestada pela segurança social), tal como afirmado pela legal representante da sociedade e pelas testemunhas que lhe são família e que, por isso, conhecem a realidade da empresa (JJ, KK).

Quanto aos factos constantes dos pontos 16 a 18, foram afirmados de forma clara e detalhada pelo Autor, cujas declarações foram suportadas pelas testemunhas LL e MM, ambas trabalhadoras da residência e que, de forma coerente e objetiva, relataram as características da residência e a dificuldade de servir os pequenos almoços aos hospedes.

A factualidade vertida no ponto 19 dos factos provados está documentalmente sustentada nos autos, com a cópia da respetiva carta.

Quanto aos factos vertidos nos pontos 20 a 24 dos factos provados, resultaram da conjugação das declarações da própria com os depoimentos prestados por várias testemunhas, NN (mãe de HH), JJ (filha de HH), KK (tia de HH), OO, PP, QQ e RR.

HH descreveu o acidente que sofreu, bem como as respetivas consequências, encontrando o seu relato sustentação nos depoimentos das testemunhas suas familiares que acompanharam o seu período de doença, sobretudo, da sua filha JJ que, por ser aluna do curso de medicina melhor explicou as lesões e limitações sofridas pela mãe, o que fez de forma totalmente credível. Também as testemunhas OO e QQ, clientes do estabelecimento, confirmou ter visto DD ainda de braço ao peito, o mesmo tendo sucedido com PP, que fazia a limpeza no estabelecimento e atendia clientes nesses momentos, bem como RR, trabalhador do salão de cabeleireiro situado junto ao estabelecimento.

Acresce toda a documentação junta, que traduz os períodos de incapacidade para o trabalho, as consultas em que compareceu, tratamentos e exames a que se submeteu.

Por último, no que concerne à factualidade vertida nos pontos 25 a 27 dos factos provados e b., d. e e. dos factos não provados, o tribunal fez apelo à conjugação de toda a prova produzida.

É inegável, e a própria legal representante da Ré assumiu no decurso da audiência final, que esteve na Suíça e que o estabelecimento deixou de ter o funcionamento diário normal que tinha antes. Viu-se, entretanto, impossibilitada de retomar tal funcionamento, em função do acidente que sofreu em dezembro e que a incapacitou para o trabalho durante os períodos indicados. Porém, é inegável, também, pelos vários depoimentos prestados, que o estabelecimento não esteve continuamente encerrado nem sem qualquer uso por parte da Ré. Basta considerar os depoimentos das testemunhas JJ e PP, cuja coerência e clareza não deixaram ao tribunal qualquer motivo para duvidar da sua veracidade. Ambas se deslocavam ao estabelecimento, pelo menos com regularidade semanal, para abrir e fornecer clientes, sendo que a primeira fazia ainda a limpeza semanal do estabelecimento. As duas descreveram a forma como procediam, afirmando que as mercadorias continuavam expostas para venda, acessíveis aos clientes que ali se deslocavam, explicando ainda que anotavam o que vendiam, pois que não tinham forma de proceder à emissão das respetivas faturas/recibos.

Na senda do que relataram, foram os depoimentos das testemunhas OO, QQ, SS e RR, os três primeiros clientes do estabelecimento e que confirmaram ter continuado a adquirir produtos no mesmo. OO especificou que o fazia com uma regularidade mensal e que sempre foi servido, ou pela senhora que lá se deslocava para fazer as limpezas ou pela filha dos sócios. QQ referiu que as compras que efetuou foram sempre feitas à DD, uma vez que procurava condições especiais de venda (preços mais baixos), o que sustenta que a sócia gerente da Ré abria o estabelecimento e ali efetuava vendas quando se deslocava a Portugal, sem que contudo se tenha apurado por que período em concreto mantinha o estabelecimento aberto. SS efetuava também compras no estabelecimento, sempre ao fim de semana, tendo sido atendido por PP e pela filha dos sócios. Por último, RR, que trabalha no salão de cabeleireiro junto ao estabelecimento, confirmou o procedimento de PP e de JJ, de limpeza e abertura do mesmo, sendo que a JJ o fazia sempre aos sábados. Confirmou ainda que viu lá a sócia gerente ainda de braço ao peito, tendo conversado com a mesma sobre a doença.

Todas estas testemunhas se revelaram claras, objetivas e isentas, não considerando o tribunal que o afirmado pelas restantes comprometeu a sua credibilidade.

Na verdade, começando pelo Autor, refira-se que o próprio admitiu só se deslocar a ... de três me três semanas, sendo notório que as suas afirmações foram feitas mais por apelo ao que lhe ia sendo transmito por terceiros.

Ouvidas as testemunhas TT, UU e II, verificou o tribunal que, começando todos por afirmar o encerramento do estabelecimento, sem que precisassem o período certo de tal encerramento, acabaram por admitir, o primeiro que apenas passava lá esporadicamente e sem hora certa, e os restantes que viram lá uma senhora a fazer limpeza e que não estavam a reparar se vendia ou não, uma vez que estavam a cuidar da sua vida e dos próprios estabelecimentos que exploram.

Quanto à testemunha FF, o tribunal não lhe atribuiu grande credibilidade, dada a contradição existente nas suas próprias afirmações e nas afirmações das restantes testemunhas, demonstrando uma evidente intenção de sustentar a posição dos Autores nos presentes auto.

Se por um lado afirma que o estabelecimento esteve sempre encerrado, na medida em que a divisória entre o mesmo e aquele que ele próprio explora é feita em madeira muito fina e nunca mais ouviu qualquer ruído vindo de lá, questionado, não soube explicar por que razão não dava, pelo menos, pela presença da senhora que efetuava as limpezas – facto afirmado quase de forma unânime em julgamento – uma vez que se trata de algo que implica a realização e algum barulho.

Acresce que o tribunal, perante todas a prova que já indicou/referiu, inclusivamente de clientes que continuaram a comprar produtos, não pode acreditar na versão de que todos os produtos estavam empacotados, versão essa que esta testemunha apenas partilha com o próprio Autor.

Quanto à visita efetuada ao estabelecimento, ouve também inúmeras contradições entre as versões do Autor e desta testemunha, sendo que apenas a testemunha JJ, com a sua clareza e objetividade, conseguiu transmitir ao tribunal que lá esteve com esta testemunha, explicando que apenas estava empacotada a mercadoria excedente, destinada a repor a que estava exposta e quando fosse vendida.

Ainda assim, quando questionado, FF acabou por admitir que pode ter lá estado gente sem se aperceber.

Também as testemunhas VV, LL e MM, mais não fizeram do que confirmar o que ninguém pôs em causa, de terem visto o estabelecimento encerrado vários dias em que lá passavam, circunstância que não põe em causa a factualidade dada como provada e já sustentada na prova indicada.

Refira-se, ainda, que as informações prestadas quanto ao consumo de luz e água, bem como à faturação da empresa, em nada colocam em causa o já referido.

Na verdade, consultados os referidos documentos, verifica-se que durante o período em causa, provavelmente pela irregularidade de abertura do estabelecimento, as cobranças foram feitas por estimativa, existindo depois um acerto relativamente aos valores após contagem. Ora, os consumos foram naturalmente muito baixos durante aquele período e, porque considerados por estimativa, não existe a possibilidade de perceber qual o consumo mensal exato efetuado.

Quanto à faturação da empresa, a Ré assume a sua inexistência naquele período, na medida em que as vendas eram feitas e apontadas, só se faturando após o regresso do estabelecimento ao regular e normal funcionamento. Tal circunstância, podendo ser considerada para efeitos fiscais, não será seguramente algo a considerar na apreciação deste tribunal, quando à existência ou não de encerramento do estabelecimento para o efeito pretendidos pelos Autores.

Uma palavra, ainda, para a circunstância de ter existido a ponderação de entrega do estabelecimento. Tal não traduz, por si, o reconhecimento pelos sócios do encerramento do estabelecimento e do direito dos Autores a verem terminado o contrato de arrendamento. Na verdade, a cessação da atividade pode ter sido ponderada – verificadas que fossem determinadas circunstâncias – o que não significa que a Ré, por essa ponderação tenha admitido o teor das cartas rececionadas e o encerramento do estabelecimento por período superior a um ano.

Tanto mais, que não foi esse o sentido da prova produzida.

Não se alcança, ainda, da prova produzida e até pela análise já explanada, que tenha sido a atitude da Ré a transtornar o negócio da residencial dos Autores, até por que, os mesmos, sustentam tal alegação na obrigação da mesma em proceder à entrega do estabelecimento pelo seu encerramento por mais de um ano, o que não se apurou.» (itálico aditado).

Apreciando.

Dispõe o art.º 607.º do NCPCiv., com referência às regras de elaboração da sentença:

«4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.» (destaques aditados).

A análise crítica da prova produzida – como imposta ao juiz na elaboração da sentença, com vista à decisão da matéria de facto (a provada e a não provada) – deve ficar evidenciada, com transparência, na fundamentação/justificação da convicção, tal como exarada na decisão judicial (na respetiva parte fáctica), com exposição dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, o que obriga a valorar os concretos meios de prova relevantes quanto a cada facto, sejam documentais ou decorrentes de prova pessoal ou pericial.

Quanto aos documentos, haverá, assim, de ponderar-se se são dotados, ou não, de força probatória plena e, não o sendo, em que medida contribuem para a prova (ou contraprova) de determinado facto, eventualmente na sua conjugação com outras provas produzidas (que apontem no mesmo sentido ou em sentido divergente).

Relativamente à prova pessoal (por depoimento ou declarações de parte ou testemunhal), importa atentar na eventual confissão de factos pela parte ou nas declarações de parte que contribuam para o esclarecimento dos factos, pela sua credibilidade e pertinência, mormente se forem confortadas por provas corroborantes, tal como importa atentar, por outro lado, nos depoimentos testemunhais (prova por vezes falível, mas comummente imprescindível), valorando-os, enquanto elementos probatórios sujeitos à livre apreciação do tribunal, de molde a colher a respetiva razão de ciência, a coerência do depoimento, o desprendimento manifestado face aos interesses debatidos no processo, a serenidade e isenção evidenciadas, de modo a estabelecer a credibilidade e valia dos relatos testemunhais, por vezes até de pendor divergente, com um conjunto de testemunhas a depor num sentido e outro conjunto em sentido diverso ou oposto, caso em que terá de estabelecer-se o fio condutor dos depoimentos, a lógica e coerência dos mesmos, de modo a surpreender qual a versão mais credível, aquela que mostra com maior verosimilhança o que aconteceu no passado, de molde a reconstituí-lo com a verdade possível.

É nesta ponderação conjugada e crítica, respeitando a prova vinculada e analisando/valorando a prova sujeita à livre convicção, que se alcançará a verdade intraprocessual, aquela que resulta da instrução levada a cabo no processo, em audiência final, justificando-se, passo a passo, na sentença por que se conferiu maior força probatória e credibilidade a determinados elementos de prova, em detrimento de outros, e, assim, se deu determinada factualidade como provada ou não provada, tudo num esforço de reconstituição da verdade histórica e de transparente persuasão quanto aos motivos da decisão.

Como, a respeito, referem Abrantes Geraldes e outros ([4]), o julgador «deve, pois, expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».

Ora, no caso, vista a justificação da convicção exarada na sentença (supra transcrita), não se vê como possa defender-se ter o Tribunal recorrido faltado à exigível análise crítica das provas produzidas, seja quanto a factos julgados como provados, seja aos dados como não provados.

Na verdade, procedeu-se a uma fundamentação facto a facto – ou por conjunto homogéneo de factos –, explicitando os motivos concretos da convicção adotada.

Para tanto, convocou-se, concretamente, os elementos de prova tidos por relevantes, vistos de per si ou em conjugação com outros, mostrando-se as razões pelas quais lhes foi conferida força probatória e se alcançou convicção em determinado sentido.

Assim se mostrou qual a razão para se atribuir maior credibilidade a determinadas testemunhas, em detrimento de depoimentos de pendor contrário, e se evidenciou, no conjunto da prova, as razões pelas quais determinados documentos – tidos como destituídos de força probatória plena, com referência à factualidade concretamente probanda (o que essencialmente relevava era o facto alegado do encerramento do estabelecimento) – não bastavam para se dar como assente determinada factualidade, no confronto também com prova testemunhal, analisada como credível, que apontava em sentido diverso.

Em suma, ficou clara a exposição da convicção probatória, tal como claros ficaram os motivos pelos quais a mesma se formou em determinado sentido – embora divergente em relação ao pretendido pelos AA. –, daí emergindo/transparecendo a operada análise crítica e conjugada das provas quanto a cada facto em discussão, tornando percetível o alcançado resultado de “provado” ou “não provado”.

Coisa diversa é não coincidir a leitura da prova operada pelo Tribunal com a que fazem os Recorrentes, que pretendem a extração de conclusões diversas/opostas em relação às adotadas pelo Julgador, no exercício da sua livre convicção.

Coisa diversa é também a parte considerar que um determinado documento particular é dotado de força probatória qualificada e o Tribunal o considerar prova sujeita à sua livre apreciação e convicção.

Aqui estamos já perante divergência em face do julgamento da decisão de facto e de eventual erro decisório, matéria que só poderá ser objeto de apreciação em sede de impugnação da decisão de facto, se devidamente suscitada.

Daí, pois, a improcedência da argumentação dos Recorrentes em sentido contrário.

2. - Do erro de julgamento quanto à decisão de facto

A questão que agora se coloca é a de saber se o Tribunal a quo avaliou erroneamente as provas produzidas, devendo, por isso, a matéria de facto fixada pela 1.ª instância ser alterada por esta Relação (nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.), nos segmentos em que considerou provados os factos contidos nos aludidos pontos 26 e 27, factualismo esse a dever merecer agora, na ótica da apelação, juízo de não provado [al.ªs J) e seg. das conclusões dos Apelantes]. Embora os Recorrentes o não digam no seu acervo conclusivo [e deviam dizê-lo, por se tratar de um ónus legal a seu cargo, de acordo com o disposto no art.º 640.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv.], depreende-se que pretendem também que o facto da al.ª b) do quadro não provado passe a “provado”.

Recapitulando, está em causa saber se: (i) eram efetuadas limpezas no estabelecimento todas as semanas, em regra ao sábado, alturas em que abria para atender clientes (ponto 26); (ii) a filha da sócia gerente da R. também procedia a essa abertura semanal (ponto 27); ou (iii) ocorreu encerramento entre 10/03/2021 e 20/06/2022 [al.ª b) do quadro não provado].

Na sentença entendeu-se que sim quanto a (i) e (ii), pelos fundamentos ali expostos, e julgou-se negativamente quanto a (iii), sabido, por outro lado, que, para efeitos de impugnação da decisão de facto, a Relação (só) deve alterar a decisão da 1.ª instância se a prova produzida impuser decisão diversa, cabendo, pois, à parte recorrente evidenciar o erro de julgamento do Tribunal a quo (cfr. art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Assim, tal erro tem de ser manifesto, não bastando uma situação de simples dúvida, tendo em conta que, embora caiba ao Tribunal de recurso formar a sua própria/autónoma convicção face à prova, a sindicância é limitada a determinados elementos fácticos e probatórios (os convocados pela parte recorrente), não se tratando, pois, de um novo julgamento (irrestrito/global), e o “privilégio”/garantia da plena imediação apenas cabe à 1.ª instância, tendo a Relação – como não pode olvidar-se – um contacto apenas mediato perante a prova pessoal (só acessível por gravação áudio).

Os impugnantes divergem da sentença, quanto àqueles pontos (factos essenciais), a que pretendem revisão, argumentando nos seguintes termos:

- por via de prova documental junta e por confissão de parte (sócia gerente da R.), ficou provado que, entre 10/03/2021 e 20/06/2022, não houve registo de vendas/faturação;

- por via de prova documental junta, mostra-se que não foi registado no livro de contabilidade organizada o lançamento de qualquer venda na conta “receitas”;

- provou-se que, desde 10/03/2021 e até data não apurada, esteve colocado na porta do estabelecimento um dístico com a menção de “encerrado por tempo indeterminado”, bem como um outro com a menção “passa-se”;

- por via de prova documental junta, mostra-se que, entre 10/03/2021 e 20/06/2022, não houve consumos de energia e água, com contagens por estimativa, por falta de acesso ao contador da água;

- assim, nesse período, o estabelecimento esteve sem o uso habitual de comércio, nunca tendo estado aberto ao público para venda generalizada.

Ora, quanto a matéria de confissão de parte (no caso, a R./sociedade), o que se retira das atas das sessões de audiência final, é que nada ficou registado em ata relativamente a uma confissão nos moldes invocados pelos AA./Recorrentes (veja-se a ata da sessão de 03/04/2024, mormente as respetivas ps. 2 e 3, sem qualquer alusão a confissão quanto a registo de vendas/faturação, ou ausência dele). E é sabido que, se confissão houvesse, em sede de depoimento de parte – seria necessário demonstrar, desde logo, que a depoente tinha poderes, sozinha, para obrigar a sociedade em confissão judicial –, a mesma teria, para ser válida/eficaz/atendível, no plano formal, de ser obrigatoriamente reduzida a escrito, nos moldes previstos no art.º 463.º do NCPCiv., posto a força probatória plena da confissão (contra a parte confitente) depender de uma confissão judicial escrita (art.º 358.º, n.º 1, do CCiv.).

Depois, os impugnantes, referindo-se reiteradamente a “prova documental junta”, não identificam concretamente essa prova [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv.].

 De qualquer modo – procurando prosseguir a discussão, mas sem entrar em apreciações de direito substantivo, que aqui não cabem –, a não emissão de faturas, o não registo de vendas, a não realização de negócios, não implica uma conclusão automática de encerramento do estabelecimento.

Se é certo que, em condições de normalidade, um estabelecimento comercial opera transações, a inexistência dessas transações, num determinado período temporal, não é sinal infalível de automático encerramento do estabelecimento e de não uso do locado onde o mesmo está instalado.

Podem ocorrer circunstâncias excecionais que impliquem a temporária diminuição de atividade do estabelecimento, ou até a interrupção de atividade, sem que o estabelecimento deixe de ali estar instalado e sem que o espaço ocupado fique marcado pelo não uso.

Se o estabelecimento continua instalado no locado, o seu encerramento temporário de portas, por razões excecionais, pode não implicar uma situação de não uso, mormente se os elementos corpóreos que o integram se mantém guardados/preservados no respetivo espaço locado.

Ora, in casu, um conjunto de depoimentos aponta no sentido, como visto, de, no período aludido, as portas do estabelecimento serem ocasionalmente/periodicamente abertas para realização de limpezas e algumas vendas só informalmente registadas (ou destituídas de registo), já que continuava a haver mercadoria no local e também haveria ainda clientela.

O Tribunal recorrido convenceu-se da veracidade destes depoimentos, a que, na sua livre apreciação/convicção e à luz da sua total imediação, entendeu conferir segura credibilidade, em detrimento de outra prova pessoal de feição contrária.

Resulta dos autos (e de factos provados não sujeitos a impugnação) que a sócia gerente da sociedade R., tendo-se deslocado ao estrangeiro, ali sofreu um acidente, com decorrentes prejuízos para a sua saúde e incapacidade, de que demorou tempo a recuperar.

Por isso, é plausível que, durante esse tempo de permanência no estrangeiro, de incapacidade para o trabalho e de recuperação da saúde, a atividade do estabelecimento tenha sido diminuída ou interrompida, mas com as ditas deslocações e aberturas ocasionais/periódicas, para limpezas e algumas vendas, ainda que sem adequado registo/faturação/contabilização.

Num tal contexto, é plausível a diminuição de consumos de energia e água, daí não podendo depreender-se um encerramento permanente do estabelecimento e decorrente não uso do locado.

Também a temporária colocação na porta do estabelecimento de dísticos com a menção “encerrado por tempo indeterminado” e “passa-se” não implicam necessariamente – como é óbvio – a desativação do estabelecimento ou o seu trespasse, nem que o locado tenha deixado de ser usado na sua afetação ao dito estabelecimento, ali todavia instalado.

Seria necessário mostrar o encerramento permanente do estabelecimento – para a sua atividade comercial – e a não abertura de portas do locado, o que teria de ocorrer no tempo alegado (por mais de um ano).

Ora, existe prova, a que o Tribunal conferiu credibilidade, no sentido de o estabelecimento e o locado, onde está instalado, ser aberto periodicamente, o que, nesta ótica, permitia o juízo positivo quanto aos factos dos pontos 25 a 27 e, em coerência, negativo à matéria da al.ª b) dos factos não provados.

Note-se que esta al.ª b) se reporta a um alargado período temporal (cerca de 15 meses consecutivos) e a uma situação de completo encerramento (do estabelecimento), um total não uso (do locado).

Ora, o Tribunal recorrido fundou-se em diversa prova testemunhal em sentido contrário a tal completo encerramento e total não uso, sendo que os respetivos depoimentos se apresentaram conformes, coerentes e precisos, o que não logrou ser abalado em sede de impugnação.

Havendo outra prova – toda ela sujeita à livre convicção do Tribunal (nenhuma que constituísse prova vinculada e com força probatória plena quanto ao que essencialmente se discutia, o dito não uso pelo tempo alegado) – de pendor contrário, importava estabelecer como mais credível uma das versões antagónicas.

Foi o que a 1.ª instância fez, conferindo maior credibilidade à prova que apontava no sentido da inexistência de uma situação de total encerramento e não uso permanente, ao longo do período temporal mencionado.

Como dito, é plausível alguma mitigação de atividade e de abertura de portas por força das consequências do acidente sofrido pela sócia gerente da R. e da ausência desta no estrangeiro. Mas tal, sendo compatível com a diminuição de negócios e de consumos de energia e água, não é impeditivo da abertura ocasional/periódica, embora esporádica, de portas, para limpezas e algumas vendas, apesar de não registadas, que podiam ser efetuadas por quem ali se deslocasse (empregada e filha da dita sócia gerente), tanto mais que o estabelecimento não se mostrava desativado/exaurido e haveria ainda clientes.

O locado continuava a albergar o estabelecimento e este continuava a ter mercadoria para venda.

Os Recorrentes não mostram que a versão – perante duas versões opostas de prova – acolhida pelo Tribunal seja inverosímil, destituída de razoabilidade, totalmente avessa aos dados da normalidade e da experiência comum ([5]).

A situação retratada na factualidade dada como provada, embora não usual, não é irrealista, sendo que a sua excecionalidade não é sinal de falsidade (ou de impossibilidade de acontecer).

É certo que a sociedade R. poderia ter contratado uma trabalhadora mais cedo (antes de 20/06/2022) para abertura diária do estabelecimento e que, em 05/05/2022, por carta, admitiu ter estado (a sócia gerente) impossibilitada de regressar a Portugal, com o inerente prejuízo para o uso efetivo do locado, mas sempre reiterando que tal se deveu ao acidente e vicissitudes da decorrente recuperação.

Vicissitudes essas que podem ter estado na origem da demora (ou hesitação) em contratar uma funcionária/trabalhadora, com as responsabilidades daí decorrentes (obrigações de entidade patronal).

Compreende-se, assim, que o Tribunal recorrido tenha formado convicção positiva quanto à abertura ocasional/periódica do estabelecimento e do locado – nos moldes aludidos – e convicção negativa quanto ao encerramento e não uso, total e consecutivamente, desde 10/03/2021 até 20/06/2022, com base em prova expressa a que deu credibilidade.

Também se compreende que, num tal contexto, as contagens de consumos fossem realizadas por estimativa, por falta de acesso ao contador da água, mas o que não constitui fator seguro de total encerramento e não uso.

Em suma, não impondo as provas produzidas decisão diversa, antes sendo razoável e plausível a leitura da prova vertida na sentença, não se mostra que tenha o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento de facto.

Termos em que improcede esta vertente da impugnação e as conclusões em contrário dos AA./Apelantes, nada havendo, pois, a alterar ao quadro fáctico da decisão em crise.

3. - Da pretendida errada aplicação do direito

Pretendem, por fim, os Apelantes, baseando-se na factualidade que pugnavam fosse julgada provada, mas também, assim não se entendendo, com fundamento nos factos julgados provados na sentença, que o Tribunal a quo incorreu numa errada interpretação e aplicação em matéria de direito, ao não aplicar o invocado art.º 1083.º, n.º 2, al.ª d), do CCiv., com a redação resultante da Lei n.º 6/2006, de 27-05, que aprovou o NRAU e alterou o CCiv., e da Lei n.º 13/2019, de 12-02.

Assim, na lógica dos Recorrentes, demonstrando-se, como pretendiam, que deixou de ser usado, totalmente, o locado por um período de 15 meses consecutivos, ou, ao menos, provando-se que nele não laborava o estabelecimento, apenas aberto para ocasionais limpezas e atendimento excecional de clientes, tal conduziria à procedência da ação, por não uso efetivo do locado para o fim contratado, tendo em conta, por outro lado, que a invocada situação de doença (da sócia gerente) não relevaria para o caso por a locatária ser uma sociedade [cfr. art.º 1072.º, n.º 2, al.ª a), do CCiv.].

Resultado que, por esta via, a Apelante não alcançará naquela primeira perspetiva, pois que, como visto, mantém-se inalterado o quadro fáctico da sentença recorrida.

Resta a segunda perspetiva ([6]), âmbito em que na sentença em crise se expendeu assim:

«Esta inexigibilidade ao senhorio de manter o contrato, tem de ser aferida considerando a gravidade e consequências do referido não uso, sempre ponderadas à luz do princípio geral da boa fé, nos termos do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil.

Trata-se, na verdade, de uma causa de resolução que visa acautelar o interesse do senhorio, de forma a evitar a desvalorização do locado associado ao seu não uso. Por outro lado, por efeito da dimensão social conferida à propriedade, e ainda proteger o seu aproveitamento económico, numa perspetiva de otimização dos recursos materiais existentes.

(…)

Neste domínio, o conceito de não uso, engloba não apenas o encerramento, mas também o de desabitado como conceito normativo e não meramente naturalístico (…).

Para além disso, o não uso pelo arrendatário, poderá ser lícito em certas situações, como em casos de força maior ou doença, o que resulta do artigo 1072.º, do Código Civil.

O arrendatário tem a obrigação de utilização efetiva da coisa para o fim contratado, tal como resulta do artigo 1072.º, n.º 1, do Código Civil, por forma a evitar a sua desvalorização, normalmente associada ao não uso, facto que, permite considerar como fundamento de resolução não apenas a não utilização integral, mas também a redução da utilização que seja de molde a prejudicar o valor do locado.

“Destarte, urge ter presente que não preterem ou descaraterizam o conceito legal “não uso” as simples intervenções ou utilizações intercalares e esporádicas, que entretanto o arrendatário escolha fazer ao longo e no decurso de uma desafetação continuada, pois que, mesmo assim, o estado de desocupação do espaço arrendado é essencialmente mantido” (…).

Resulta da factualidade provada que o encerramento do estabelecimento não se manteve por mais de um ano consecutivo.

A Ré foi desenvolvendo atividade no mesmo, sempre que tal lhe era possível, pelas deslocações da sua sócia gerente a Portugal e através das pessoas que ao mesmo se deslocavam para o efeito semanalmente, vendendo produtos, sobretudo, aos clientes habituais. Acresce a demonstração de que o espaço foi semanalmente cuidado e limpo, permitindo concluir pela salvaguarda da sua conservação.

Na verdade, não se pode afirmar que o espaço deixou de estar afeto à atividade a que estava destinado, apenas, e de forma temporária, deixou de estar aberto ao público com a regularidade normal.

E se até dezembro de 2021 tal sucedeu apenas por opção da Ré, o mesmo não se pode afirmar daí em diante.

De facto, a sócia gerente da Ré sofreu um acidente que a incapacitou para o trabalho, exigindo meses de recuperação e tratamentos. Não obstante, a situação continuou a ser temporária, pois que em junho de 2022, o estabelecimento voltou a funcionar em pleno, com a contratação de uma funcionária.

Neste conspecto, e perante tudo o que supra se explanou, afigura-se a este tribunal que a interpretação a efetuar destes factos é no sentido de que os mesmos não contêm em si gravidade ou consequências que permitam ao senhorio colocar fim ao contrato, nos termos do mencionado artigo 1083.º, do Código Civil.».

Vejamos.

É fundamento de resolução do contrato de arrendamento urbano o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à contraparte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, «o não uso do locado por mais de um ano (…)» [dita al.ª a) do n.º 2 do art.º 1083.º].

O fundamento desta previsão é, como dito na sentença, o de evitar a desvalorização do arrendado, pela consequente degradação motivada pelo encerramento/desabitação ou não utilização do local. Tem ainda por finalidade o lançamento no mercado locativo de todos os espaços suscetíveis de ocupação por terceiros.

Quanto ao que deve entender-se por não uso, há que atender a todas as circunstâncias do caso concreto, designadamente a natureza do local arrendado, o fim do arrendamento, o grau de redução da utilização/atividade, as suas causas e o seu caráter temporário ou definitivo. A essência do conceito de não uso (prédio desabitado/encerrado ou que deixou de constituir residência permanente ou, para o caso, local de instalação de estabelecimento funcional) reside na desativação do locado, que deve permanecer fechado ou não ser utilizado.

Assim, o não uso em causa deverá traduzir-se num efetivo desaproveitamento do arrendado, vulgarmente coincidente com a ideia de “espaço/prédio encerrado”, consubstanciando-se na falta de aplicação ao fim a que se destina, bem como a retirada do proveito imobiliário previsto, compreendendo-se, em conformidade, que o arrendatário que não usa e frui do locado, o restitua a quem o mesmo pertence.

No caso dos autos, como já se aludiu, o arrendado destinava-se ao funcionamento de estabelecimento comercial ali instalado.

E, como visto, vem provado que o estabelecimento – e, por inerência, o locado onde se encontra instalado – sofreu significativa diminuição de atividade, claro retrocesso funcional, só esporadicamente sendo aberto em pretérito período temporal, cuja duração, porém, não resulta ser superior a um ano.

É certo que já antes de março de 2021 foi afixado dístico com a menção “passa-se”, significando a vontade de trespassar o estabelecimento.

Porém, nem tal trespasse veio a ocorrer, nem tal representa qualquer encerramento do estabelecimento e/ou do locado.

Também é certo que um dos sócios da R. ponderou entregar o estabelecimento (e o locado), pretendendo vender a mercadoria que ali se encontrava; mas tal não se concretizou.

Concorda-se com a parte recorrente quando defende que a situação de doença a que aludem as normas conjugadas dos art.ºs 1083.º, n.º 2, al.ª d), e 1072.º, n.º 2, ambas do CCiv., não colhe aplicação a pessoas coletivas ([7]), como a sociedade R., pela sua natureza específica – só as pessoas singulares/físicas podem sofrer doença, no sentido de patologia de âmbito físico, psicológico ou psíquico.

E quem sofreu doença foi a sócia gerente da R., aquela sócia que explorava/utilizava/geria o estabelecimento (já que o marido residia na Suíça).

Mas é sabido que esta doença e decorrente tempo de incapacidade e recuperação teve repercussões, não só na sua vida, mas também na exploração e gestão do estabelecimento.

Com efeito, a dita sócia gerente sofreu prolongado tempo de incapacidade para o trabalho e, por fim, a R. contratou uma trabalhadora para se manter no estabelecimento em permanência.

Ou seja, se a doença ocorrida foi sofrida pela sócia gerente e não pela R./sociedade, nem por isso deixou de ter influência na atividade desta, quanto à exploração do estabelecimento a que aquela se dedicava e deixou, temporariamente, de o poder fazer.

Sobre a técnica legislativa utilizada em matéria de resolução no aludido art.º 1083.º do CCiv., por contraposição ao regime do RAU, escreveu Joaquim de Sousa Ribeiro ([8]):

«… desaparece a tipificação taxativa de fundamentos, prevista no art. 64.º, n.º 1, do RAU, para a resolução por iniciativa do senhorio. Causa de resolução é agora genericamente a falta de cumprimento de obrigações contratuais que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível, quer ao senhorio, quer ao inquilino, a manutenção do vínculo (…).

Este critério de base, formulado em termos de cláusula geral, corresponde ao regime geral da resolução, ajustado às relações duradouras, sendo depois complementado por previsões específicas, de carácter meramente exemplificativo de situações de incumprimento do arrendatário, justificativas da resolução pelo senhorio. Destas previsões, a da al. a) é nova; as restantes já constavam, com formulações não coincidentes, do RAU».

E acrescenta que “a aplicação das previsões específicas não pode ser desligada da ponderação do factor de valoração enunciado na cláusula geral”, esclarecendo ainda – em nota de rodapé – que «Já no regime do RAU era correctamente entendido que o princípio geral do irresolubilidade com base em incumprimento de “escassa importância” (art. 802.º, n.º 2) era aplicável no âmbito do art. 64.º …», sendo claro «que as previsões das várias alíneas do n.º 2 do art. 1083.º concedem um espaço de valoração da gravidade do incumprimento de amplitude muito diferenciada – praticamente inexistente, no caso da al. d), é de intensidade máxima, no caso da al. a), que, aliás, lhe faz expressa referência».

Assim sendo, o atual regime resolutivo da relação locatícia, pela sua elasticidade, permite ponderar adequadamente situações como a dos autos, em que ocorre, não caso de desocupação – muito menos de abandono, que não resultou minimamente provado –, mas uma intermitência, uma falta de funcionamento (e abertura) permanente, que já configura, de algum modo, um não uso do locado, mas que não se comprovou (reitera-se) ter prolongamento por mais de um ano.

Doutro modo – caso se entendesse cumprido o requisito temporal (encerramento/não uso por mais de um ano) –, a questão a resolver seria a de saber se tal situação de ampla intermitência, configurando já não uso do locado (incumprimento), bastaria para tornar inexigível, no balanço de interesses contratuais das partes e respetiva lesão, a manutenção da relação locatícia.

Ou estaríamos ainda perante um incumprimento de “escassa importância”, com diminuta lesão do interesse contratual do senhorio, como tal não justificativo da extinção da relação contratual?

Ora, neste quadro, cabe dizer que, ainda que a apurada intermitência traduzisse, in casu, já um significativo não uso habitacional, uma vincada ausência do locado pela arrendatária, é certo que ela sempre manteve o locado ocupado, designadamente com mercadoria, e limpo/higienizado, inexistindo, pois, de todo, uma situação de abandono do espaço arrendado.

Ainda assim, embora sem desocupação, poderíamos estar perante um não uso que, longe de ser desprezível, insignificante ou escasso, se assumisse, como já algo importante, pela forma como afeta a utilização do espaço locado e o inerente interesse do senhorio.

Porém, os motivos, na medida em que apurados, do afastamento/ausência da sócia gerente e consequente mitigação de exploração, com deprimida abertura do locado, sempre seriam, salvo o respeito devido, de natureza a esbater a importância do incumprimento.

Com efeito, foi em consequência de um acidente sofrido no estrangeiro, com o decorrente tempo de incapacidade e recuperação, que aquela sócia gerente se viu afastada do estabelecimento, o que, todavia, não a impediu de diligenciar pelas aberturas esporádicas/periódicas do espaço para limpeza e, concomitantemente, realização de algumas transações.

Donde que tal incumprimento, pela sua causa e pelo esforço de derradeira manutenção do espaço e do estabelecimento, não assumisse, tudo ponderado, grave relevância, em termos tais que lesasse de forma importante, a final, o interesse contratual da contraparte na manutenção do locado aberto ao público, não sendo, por isso, idóneo a comprometer a subsistência do vínculo contratual, pelo que não tornaria, a esta luz, inexigível a manutenção do arrendamento.

Não se justificaria, pois, a resolução do contrato, assim improcedendo a argumentação em contrário dos Recorrentes, pelo que nada mais cabe apreciar.

Inexistindo, nesta senda, qualquer invocada violação de lei, é de improceder a apelação, com manutenção da decisão recorrida.

Vencidos, cabe aos AA./Recorrentes suportar as custas da apelação (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).   

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas da apelação a cargo dos AA./Apelantes.

Coimbra, 14/01/2025

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Carlos Moreira


([1]) Em 20/10/2022, no Juízo Local Cível de Lamego do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu.
([2]) Cujo teor se deixa transcrito.
([3]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Código de Processo Civil Anot., vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 720. Sobre a matéria, designadamente prova vinculada e prova sujeita à livre apreciação, sua ponderação e inerente análide crítica, cfr. ainda José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anot., vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 709 e segs..
([5]) Ademais, elementos probatórios quanto a faturação e registo contabilístico de estabelecimento comercial ou a faturas de consumos de energia e água, tratando-se de “documentos particulares” (como, aliás, referem os Apelantes), não são dotados, de per si, de força probatória plena, muito menos quanto à factualidade, que aqui derradeiramente importa, referente ao encerramento do estabelecimento e ao não uso do locado (cfr. art.ºs 363.º, n.ºs 2 e 3, 373.º e 376.º do CCiv.).
([6]) Tendo em conta que a lei contempla, como fundamento de resolução do contrato de arrendamento por incumprimento do arrendatário, o “não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2, do artigo 1072.º” [cfr. art.º 1083.º, n.º 2, al.ª d), do CCiv.].
([7]) Diversa será uma situação que configure “caso de força maior”, como também previsto na norma, nada parecendo impor uma exclusão de aplicação às pessoas coletivas.
([8]) Vide Direito do Contratos, Estudos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, ps. 336 e seg..