PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CRÉDITOS
CREDOR NÃO RECLAMANTE
LEGITIMIDADE
Sumário

Quanto à legitimidade para impugnar a lista de créditos por parte de um credor, por exclusão de um crédito (seu) que não reclamou, importa verificar se esse crédito havia sido aposto na lista inicial apresentada pelo devedor: o credor não reclamante tem legitimidade se o seu crédito for incluído na lista de credores junta pela empresa, mas não figurar na lista provisória.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Chandra Gracias
Adjuntos: Arlindo Oliveira
José Avelino Gonçalves


Recorrente: A..., Lda.

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

(…).

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

Em 18 de Julho de 2024, A..., Lda., melhor identificada nos autos, apresentou-se a processo especial de revitalização, declarando ser uma empresa rentável, mas encontrar-se em situação económica difícil, na acepção contida no art. 17.º-B, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

No desenrolar dos trâmites processuais, foi deduzida impugnação da lista provisória de créditos, por parte do Banco 1..., S.A., Fundo de Contragarantia Mútuo (FCGM), e Requerente, e subsequentemente actuado o direito de resposta às mesmas.

A final, a Administradora Judicial Provisória emitiu pronúncia, segundo a qual:

«… sugere-se que neste contexto que sejam feitas as seguintes alterações à lista de credores e respectivos direitos de voto depositada:

a. Banco 1... S.A: 187.396,31€ - CRÉDITO COMUM

b. Banco 1... S.A.: (leasing nº ...77) : 40.137,04 € - CRÉDITO CONDICIONADO

c. FCGM – FUNDO DE CONTRAGARANTIA MÚTUO/ Banco 2... S.A.: CRÉDITO COMUM :69.301,26 € - CRÉDITO COMUM

d. B... S.A.: 2.785,68 € CRÉDITO COMUM

Das Responsabilidades para com a AT

A Devedora logo na sua Petição Inicial no doc. 3, declarou existirem muito mais responsabilidades para com a A.T. do que as dívidas/créditos, que a A.T. reclama.

A AJP constata que a A.T. apenas reclamou dívidas já em “processo executivo”, à “Data de Corte”, ou seja, à data da nomeação da AJP, art 17º-C, nº5 PER.

A Devedora entende que o art. 196, nº7 conjugado com a regra excecional do art. 30º, nº3 da LGT permite incluir no Plano as dívidas fiscais cujos “factos tributários “ sejam anteriores à data da nomeação da AJP, art 17º-C, nº5 PER, a “Data de Corte”, independentemente, de nessa data tais dívidas, ainda não estarem em processo executivo.

Face à impugnação apresentada pelo Devedora, a A.T. nada disse no prazo do Contraditório.

Assim, por aplicação do art. 131º, nº3, in fine aplicável ex-vi art 17º-A, nº3, todos do CIRE, ou seja, a Impugnação da devedora contra a A.T. deve, juridicamente e automaticamente ser declarada procedente.

Neste contexto, a impugnação da devedora quanto ao crédito da A.T. deve ser julgada procedente, devendo a A.T. vir declarar aos autos, quais os créditos cujo “Facto Constitutivo” seja anterior à nomeação da AJP, que ocorreu no dia 23 de Julho de 2024.».

Em 20 de Setembro de 2024 foi lavrada Sentença, em cujo Dispositivo se pode ler, entre o mais:

«Termos em que, julgando parcialmente procedente a impugnação deduzida, consideram-se reconhecido o crédito do Banco 1..., S.A. no valor de €227 714,54, dos quais €35.868,31 são crédito sob condição e o demais crédito comum.

… julgar procedente a impugnação apresentada por esta credora [Fundo de Contragarantia Mútuo (FCGM)], considerando-se reconhecido o crédito nos exactos termos constantes da impugnação apresentada, ou seja, no valor total de € 69.301,26, como crédito comum.

3. Do crédito da Autoridade Tributária

Veio a Requerente impugnar a lista provisória de créditos porquanto da mesma não constam quaisquer créditos da AT, existindo créditos cujo facto constitutivo é anterior à nomeação da AJP e apenas se irão vencer durante o PER, requerendo a notificação da AT para concretização dos montantes em causa.

Dos autos resulta que:

Aquando do requerimento inicial a Requerente indicou na relação de credores a “Finanças – AT”, limitando-se a indicar a sua morada, não indicando qualquer crédito (anexo 1 do documento 3); também no documento 2 o espaço relativo ao crédito das “Finanças – AT” surge em branco, sem qualquer indicação do montante do crédito. Também no anexo 5.b. não obstante a alusão ao “credor” “Finanças – AT” não surge indicado qualquer crédito.

A autoridade Tributária não reclamou qualquer crédito.

Da lista da Sr.ª AJP não consta qualquer crédito reconhecido à autoridade tributária.

Ora, como resulta do exposto, a Requerente não indicou a existência de qualquer crédito da AT, nem esta reclamou qualquer crédito, nem a Sr.ª AJP apurou da sua existência, caso em que os teria incluído na lista provisória.

Na verdade, veja-se que a AT, como qualquer outro credor que não reclamou qualquer crédito e porque não foi incluído na lista de credores, não teria legitimidade para impugnar a lista de créditos. Parece-nos assim evidente que não pode agora a Requerente substituir-se ao potencial credor que não reclamou tempestivamente o seu crédito, não podendo, naturalmente, ser atendida a reclamação do crédito que, sob a capa e sob o pretexto, de uma impugnação à lista provisória de créditos, a Requerente pretendeu efectuar.

De facto, a questão não está em saber se existem ou não provas inequívocas (ou bastantes) da existência do crédito; a questão é que, ainda que essas provas existam, o Tribunal nunca poderia reconhecer ou decretar uma pretensão que não lhe foi formulada e, portanto, não poderia reconhecer um crédito que não foi relacionado pelo AJP e que não foi reclamado pela forma e no momento que a lei define como adequados para tal reclamação.

Impõe-se, assim, sem necessidade de outras considerações, decidir no sentido da improcedência da impugnação apresentada.

Custas do incidente pela impugnante, com taxa de justiça que se fixa em uma UC (artigos 537.º, n.º1, do Código do Processo Civil e 7.º, n.º4 , do RCP, conjugado com a Tabela II Anexa).».

II.

Dela discordando, a Requerente interpôs Recurso de Apelação, e as suas alegações findam com as seguintes

«CONCLUSÕES

(…)».

III.

O magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, alinhavando as suas alegações com estas

«CONCLUSÕES:

(…)».                          

IV.

Questões decidendas

Sem postergar a apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Do crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira: da sua existência e exclusão da lista de créditos.

- Da condenação em custas processuais pelo incidente.

- Da graduação e classificação dos créditos.

V.

Dos Factos

Para além das circunstâncias processuais acima relatadas, alcança-se que:

1. Aquando da propositura desta acção, na relação de credores, a Recorrente indicou «Finanças – AT»,  com menção da  morada, mas sem especificar qualquer crédito (cf. doc. n.º 3).

2. Em 24 de Julho de 2024, data da publicitação do despacho judicial atinente ao pedido de abertura deste processo especial de revitalização, a mesma tinha a situação tributária regularizada.

3. Em 23 de Agosto de 2024, o Serviço de Finanças ... remeteu certidão de dívida daquela empresa, quer para a Administradora Judicial, como para os Serviços do Ministério Público, para Reclamação de Créditos.

4. Nessa certidão, emitida em 21 de Agosto de 2024, constavam dívidas em cobrança coerciva, correspondentes aos processos de execução fiscal n.ºs  ...96, ...26 e ...45, no valor total de € 16 066,88 € (dezasseis mil e sessenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos).

5. A Autoridade Tributária e Aduaneira não reclamou qualquer crédito neste autos.

6. Em 30 de Agosto de 2024, a Recorrente impugnou a lista de créditos reconhecidos, posto que da mesma não decorriam quaisquer créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira, existindo créditos cujo facto constitutivo é anterior à nomeação da Administradora Judicial, e requerendo a notificação daquela para a concretização dos respectivos montantes.

7. Na sequência desta pronúncia, a Administradora Judicial sugeriu-o nos autos.

8. De acordo com a certidão datada de 12 de Outubro de 2024, em nome da Recorrente constam as seguintes dívidas tributárias:

- em cobrança coerciva, a quantia global de 45 064,15 € (quarenta e cinco mil e sessenta e quatro euros e quinze cêntimos);

- em cobrança voluntária, ascende ao total de 65,45 € (sessenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos).

VI.

Do Direito

No caso vertente, consoante emerge dos arts. 1.º, n.º 2, e 5.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a Recorrente – empresa que declarou encontrar-se em situação económica difícil, na acepção contida no seu art. 17.º-B – veio a Tribunal pedir a instauração de processo especial de revitalização, o qual é um processo judicial especial, pré-insolvencial, concursal[2], urgente, híbrido e recuperatório[3].   

            Ao mesmo são-lhe aplicáveis as respectivas regras (arts. 17.º-A a 17.º-J), seguidamente e com as necessárias adaptações, as normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que não sejam incompatíveis com a sua natureza (art. 17.º, n.º 3), e por fim, as disposições gerais e comuns, devidamente adaptadas, do Código de Processo Civil (arts. 17.º, n.º 1, e 549.º, este do Código de Processo Civil).

A questão que importa aqui enfrentar é a de saber se, não tendo sido reclamado um crédito, o qual também não foi inserido na lista provisória de créditos efectuada por administrador judicial, mas que fôra oportunamente referenciado pela empresa, esta pode validamente impugnar tal lista, com fundamento na sua omissão.   

A sentença recorrida propendeu em sentido negativo, sendo coincidente a posição da Recorrente e do Ministério Público em sentido diametralmente oposto.

 

No que concerne à fase da reclamação e impugnação de créditos, é reclamável por qualquer credor (comum, garantido, privilegiado ou subordinado), o seu crédito, contanto que seja um crédito actual, ou seja, já constituído à data do despacho de admissão do processo, ainda que não se tenha vencido, no momento da reclamação, mesmo que esteja subordinado a condição suspensiva ou resolutiva [art. 17.º-D, n.º 2, al. b)]. 

            Já no que tange ao conteúdo da lista provisória de créditos, há quem sustente que o administrador judicial pode nela (leia-se, tem o dever de[4]) integrar os créditos que não tenham sido reclamados, desde que constem dos elementos contabilísticos da empresa[5], ou que por outra forma lhe cheguem ao conhecimento (art. 24.º, n.º 1), ou, também, os créditos constantes da relação de créditos remetida pela própria empresa ao processo.

Impõe-se anotar que o reconhecimento dos créditos por parte do Administrador Judicial e a decisão sobre as impugnações da lista provisória de créditos não produzem efeitos fora deste processo especial de revitalização, mas têm por função determinar o universo de créditos e aferir a base de cálculo das maiorias necessárias à aprovação do plano de recuperação[6].

Na determinação da legitimidade para a impugnação da lista provisória de créditos, é inequívoco que a empresa e os credores reclamantes tem-na (art. 17.º-D, n.º 4)[7].

A impugnação pode abranger o crédito próprio ou de terceiro(s), mormente quanto à sua existência, montante ou classificação, e incidir sobre questões fácticas ou jurídicas (art. 17.º-D, n.º 4)[8].

Quanto à legitimidade para impugnar a lista de créditos por parte de um credor, por exclusão de um crédito (seu) que não reclamou, há que decompor este segmento em dois aspectos distintos:

. esse crédito havia sido aposto na lista inicial apresentada pelo devedor [arts. 17.º-C, n.º 3, al. c), e 24.º, n.º 1, al. a)]: o credor não reclamante tem legitimidade se o seu crédito for incluído na lista de credores junta pela empresa, mas não figurar na lista provisória[9].

. esse crédito não surge na lista inicial apresentada pelo devedor: suscitam-se sérias dúvidas quanto à legitimidade para a impugnação, até porque o credor não teve a diligência e o cuidado de reclamar atempadamente o seu crédito[10].

            Do que vem de ser dito conclui-se que a situação em apreço reconduz-se à primeira hipótese.

Sendo assim, a empresa requerente destes autos e ora Recorrente tinha legitimidade para impugnar a lista de créditos, arguindo a exclusão do crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, mesmo não tendo esta reclamado o seu crédito e este não aparecer na lista provisória de créditos, pela circunstância de o ter indicado no momento da sua apresentação a processo especial de revitalização.

Pelo que impendia sobre o Tribunal a quo, perante o suporte documental remetido por essa entidade, apurar a quanto ascendia esse crédito e as suas características, mais a mais considerando a posição cautelosa expendida pela Administradora Judicial.  

Como argutamente alerta o digno magistrado do Ministério Público, «A não inclusão dos créditos da AT neste PER poderá ter como consequência inviabilizar todo o propósito do PER.».

Uma vez que a impugnação da devedora é admissível, incumbirá agora ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre tal crédito (identificado como n.º 3 na sentença em crise).

Destarte, assistindo inteira razão à Recorrente nesta questão recursiva, a sua condenação no pagamento das «custas do incidente» fica, necessariamente, sem efeito.

Reputa-se prejudicado, por ora, o conhecimento do restante mérito da instância recursiva.

O pagamento das custas processuais vincula quem, a final, seja por elas responsável (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, por via da remissão do art. 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

VII.

Decisão:

Nos moldes explanados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, anulando a sentença recorrida na parcela relativa a «3. Do crédito da Autoridade Tributária», julgando prejudicado o conhecimento das demais questões recursivas.

O pagamento das custas processuais fica a cargo de quem, a final, for pelas mesmas responsável.

Registe e notifique.


Coimbra, 28 de Janeiro de 2025

 (assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)



[1] Juiz Desembargador 1.º Adjunto: Dr. Arlindo Oliveira
Juiz Desembargador 2.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves
[2] Maria do Rosário Epifânio in, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição (Reimpressão), Almedina, Outubro de 2024, «…não só todos os credores interessados podem nele participar, como também a sentença homologatória do plano aprovado em sede de PER vincula todos os credores, mesmo aqueles que não tenham reclamado os seus créditos ou participado nas negociações (art. 17.º-F, n.º 11)», «…relativamente aos créditos constituídos até à data do despacho de admissão do requerimento de abertura do PER.» (pp. 441 e 475, respectivamente).
[3] Maria do Rosário Epifânio, op. cit., p. 440.
[4] Menezes Leitão in, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 11.ª Edição, 2021, anotação ao art. 128.º, p. 203, nota 4.
Enfatizando na anotação ao artigo seguinte que «3. O administrador tem o dever de reconhecer os créditos que considere existirem sobre o insolvente, independentemente de terem sido reclamados ou não.» (p. 204).
[5] Carvalho Fernandes e Labareda in, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, 3.ª Edição, 2015, p. 152, nota 7, e Mariana França Gouveia in, Verificação do Passivo, Themis Revista de Direito (Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa), Edição Especial (2005), Novo Direito da Insolvência, p. 153, adianta «Podem ser reconhecidos créditos não reclamados, nos termos do artigo 129.º n.º 1 parte final, se constarem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do conhecimento do administrador da insolvência.».
[6] Acórdão deste Tribunal da Relação, Proc. n.º 744/20.0T8FND-A.C1, de 07-09-2021, disponível em https://www.dgsi.pt, assim como os demais citados.
[7] Sendo certo que a falta de impugnação equivale ao reconhecimento definitivo do crédito – art. 17.º-D, n.º 6.
[8] No Acórdão deste Tribunal da Relação, Proc. n.º 745/16.3T8VIS.C1, de 18-10-2016, lê-se «A lei não prevê um modo particular de impugnação da lista provisória de créditos para o PER, a impugnação pelos credores interessados será realizada como no processo de insolvência comum, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualidade dos créditos reconhecidos, como dispõe o n.º1 do art.º 130 do CIRE.», e no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 2134/12.0TBCLD-B.L1, de 09-05-2013.
[9] Fátima Reis Silva in, A Verificação de Créditos no Processo de Revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, p. 261, e Elisabete Assunção in, Impugnação e Decisão da Impugnação da Lista Provisória de Créditos, no âmbito do Processo Especial de Revitalização, Julgar n.º 31 (2017), pp. 49 a 60, maxime p. 53.
[10] Elisabete Assunção, op. cit., p. 54.