I – Não procede a alegada inconstitucionalidade do art. 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – na interpretação segundo a qual a falta de apresentação da lista dos cinco credores tem como consequência directa o não recebimento da oposição apresentada –, dado que o devedor foi notificado para a junção da lista (aquando da sua citação), e porque não a fez chegar aos autos, uma segunda vez, especificamente para esse efeito, sendo certo que, em ambas as ocasiões, foi advertido da sanção para a ausência de cumprimento, isto é, que a sua oposição seria desconsiderada.
II – Assegurado está o processo equitativo, na dimensão das garantias de defesa, posto que o Tribunal a quo deu-lhe a especial oportunidade de suprir uma omissão juridicamente relevante, exactamente como alude a jurisprudência constitucional (Plenário - Acórdão n.º 639/2014, Proc. n.º 835/11, de 07-10-2014).
(Sumário elaborado pela Relatora)
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I.
Em 17 de Setembro de 2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira, representada pelo digno magistrado do Ministério Público, requereu a declaração de insolvência, conforme art. 20.º, n.º 1, als. a), b), g) e i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, de AA, melhor identificado nos autos, aduzindo, em abono da sua pretensão, que o mesmo deve-lhe a quantia de 10 928,27 € (dez mil novecentos e vinte e oito euros e vinte e sete cêntimos), auferindo 538 € (quinhentos e trinta e oito euros)/mês a título de pensão de reforma, valor impenhorável, não cumpre com as suas obrigações fiscais desde, pelo menos, o ano de 2013, e não tem outros rendimentos ou bens susceptíveis de penhora.
Em 19 de Setembro de 2024, foi proferido despacho liminar a ordenar a sua citação para deduzir oposição e indicar os cinco maiores credores, sob pena de, mantendo-se inerte, não ser recebida a oposição, conforme decorre dos arts. 29.º, n.ºs 1 e 2, e 30.º, n.ºs 1 e 2, sendo certo que o mesmo apenas apresentou oposição, entrada em 10 de Outubro seguinte.
Por isso, foi exarado despacho em 14 de Outubro de 2024 – notificado na mesma data –, de harmonia com o qual:
«Em conformidade com o que dispõe o n.º 2 do artigo 30.º do CIRE, determino a notificação do requerido a fim de juntar lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respetivo domicílio, sob pena de não recebimento da oposição.
Prazo: 5 dias.».
O requerido silenciou.
Em 28 de Outubro de 2024, foi exarada decisão, contendo no Relatório e Dispositivo , entre o mais:
«3. Procedeu-se à citação do requerido, para deduzir oposição, nos termos do disposto no artigo 29.º do CIRE e, ainda, para indicar os cinco maiores credores.
4. O requerido apresentou oposição, mas não identificou os seus cinco maiores credores.
5. Por despacho proferido em 14.10.2024, e em conformidade com o que dispõe o n.º 2 do artigo 30.º do CIRE, determinou-se a notificação do requerido a fim de juntar a referida lista, com exclusão do requerente, com indicação do respetivo domicílio, sob pena de não recebimento da oposição.
6. Decorrido o prazo que lhe foi concedido, o requerido nada disse nos autos.
7. Conforme resulta do normativo citado no aludido despacho, o devedor pode, no prazo de 10 dias, contados desde a sua citação, deduzir oposição, à qual é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º.
Mais impõe a referida norma que o devedor junte com a oposição, sob pena de não recebimento, a lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respetivo domicílio.
Notificado para proceder a essa junção, o requerido não deu cumprimento ao que lhe foi determinado.
Em face do exposto, decide-se não receber a oposição apresentada, proferindo-se a competente sentença em conformidade.
….
1. Declarar a insolvência de AA, solteiro, NIF ...36;
…»
II.
Desta dissentindo, o Insolvente interpôs Recurso de Apelação, e as suas alegações findam com as seguintes
«Conclusões:
(…)».
III.
O digno magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, trazendo as seguintes
«Conclusões:
(…)».
IV.
Questão decidenda
Sem prejuízo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):
- Da inconstitucionalidade do art. 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por violação do processo equitativo, com amparo constitucional no art. 20.º, n.º 4.
V.
As circunstâncias pertinentes para a boa decisão do recurso encontram-se enunciadas.
VI.
Do Direito
O Recorrente aduz uma única objecção recursiva que se prende com a inconstitucionalidade do art. 30.º, n.º 2[2], na interpretação segundo a qual a falta de apresentação da lista dos cinco credores tem como consequência directa o não recebimento da oposição apresentada, por a tanto se oporem as garantias ínsitas ao processo equitativo.
Em reforço do seu entendimento, o Recorrente traz à liça dois Acórdãos, um do Tribunal Constitucional de Abril de 2009, e outro do Supremo Tribunal de Justiça de Junho de 2014[3].
Sem razão, no entanto, como se passa a demonstrar.
O Estado de direito democrático e o direito fundamental de acesso aos Tribunais co-envolvem e exigem o processo equitativo, como resulta das disposições concertadas dos arts. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[4], e 47.º, § 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[5], 2.º, 8.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa, e 3.º do Código de Processo Civil.
Aqui se integra a garantia dos direitos de defesa, cuja dimensão mais impressiva é a do exercício do princípio do contraditório, implicando, desde logo, a proibição de indefesa.
Esta consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe são respeitantes.
A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses[6].
A efectividade do direito de defesa pressupõe o conhecimento pelo demandado do processo contra ele instaurado; o conhecimento, pelas partes, das decisões proferidas no processo; o conhecimento da conduta processual da parte contrária; a concessão de um prazo razoável para o exercício dos direitos de oposição e de resposta; e a eliminação ou atenuação de gravosas preclusões ou cominações, decorrentes de uma situação de revelia ou ausência de resposta à conduta processual da parte contrária, que se revelem manifestamente desproporcionadas[7].
Recuperando esta última parcela e volvendo ao caso em apreço, o Recorrente entende que a cominação que a lei impõe quando o devedor não carreie a lista com a identificação dos cinco credores é demasiado gravosa, logo desrazoável, por se tratar de uma exigência meramente processual, não legitimada pelo interesse da celeridade.
Por lapidar transcreve-se aqui a resenha histórica mais recente desta problemática:
«4. Foi objecto de controvérsia na jurisprudência do Tribunal Constitucional se a sanção do não recebimento da oposição, prevista no n.º 2, para a hipótese de o devedor não juntar a lista dos cinco maiores credores respeita o princípio do processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da CRP. No acórdão do Tribunal Constitucional 556/2008, de 19 de Novembro de 2008 (CURA MARIANO, vencido BENJAMIM RODRIGUES) considerou-se esta norma inconstitucional por violar o direito constitucional a um processo equitativo consagrado no art. 20.º, n.º 4, CRP, posição reiterada no acórdão do Tribunal Constitucional 350/2012, de 5 de Julho de 2012 (CARLOS FERNANDES CADILHA, vencida MARIA LÚCIA AMARAL). Mas já no Acórdão 606/2013, de 24 de Setembro de 2013 (MARIA LÚCIA AMARAL, vencidos JAOQUIM SOUSA RIBEIRO e JOSÉ DA CUNHA BARBOSA) considerou-se que essa norma não padecia de inconstitucionalidade. Interposto recurso obrigatório para o plenário deste último acórdão, no Acórdão 639/2014, de 7 de Outubro 2014 (JOSÉ DA CUNHA BARBOSA, vencidas MARIA LÚCIA AMARAL e MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS), foi decidido julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 30.º do CIRE, por violação do princípio do processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da Constituição, quando interpretada no sentido de não dever ser admitida a oposição se não acompanhada da lista contendo a indicação dos cinco maiores credores da requerida e sem que a esta tenha previamente sido concedida a oportunidade de suprir a deficiência.»[8].
Em face das divergências que estes acórdãos espelhavam, o Tribunal Constitucional, em Acórdão cuja prolação ocorreu em Plenário[9], firmou a seguinte jurisprudência:
«Julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 30.º do CIRE, por violação do princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, quando interpretada no sentido de não dever ser admitida a oposição se não acompanhada da lista contendo a indicação dos cinco maiores credores da requerida e sem que a esta tenha previamente sido concedida a oportunidade de suprir a deficiência.».
Revisitada, esta jurisprudência tem-se mantido inalterada[10]/[11].
Por conseguinte, na análise da situação dos autos, resulta inequívoco que o Recorrente foi notificado em dois momentos temporais distintos: uma primeira vez para a junção da lista (aquando da sua citação), e porque não a fez chegar aos autos, uma segunda vez, especificamente para esse efeito, sendo certo que, em ambas as ocasiões, foi advertido da sanção para a ausência de cumprimento, isto é, que a sua oposição seria desconsiderada.
Assegurado está o processo equitativo, na dimensão das garantias de defesa, posto que o Tribunal a quo deu-lhe a especial oportunidade de suprir uma omissão juridicamente relevante, exactamente como alude a jurisprudência constitucional.
Optando por não juntar aos autos a lista, sibi imputet.
Soçobrando integralmente a tese recursiva, o Apelante responde pelo pagamento das custas processuais (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, por via da remissão do art. 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), sem prejuízo do benefício da protecção judiciária.
VII.
Decisão:
De acordo com o expendido, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
O pagamento das custas processuais impende sobre o Apelante, sem prejuízo do benefício da protecção judiciária.
Registe e notifique.
Coimbra, 28 de Janeiro de 2025
(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
[1] Juiz Desembargadora 1.ª Adjunta: Dra. Maria João Areias
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta: Dra. Maria Catarina Gonçalves
[2] O qual, intitulado Oposição do devedor, preceitua que:
«1 - O devedor pode, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, à qual é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º
2 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respectivo domicílio.
3 - A oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência.
4 - Cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º.
5 - Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, e a insolvência é declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo referido no n.º 1, se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do n.º 1 do artigo 20.º.».
[3] No referido Proc. n.º 4051/13.7TBVNG-A.P1.S1, decidiu-se: «1- Declarar a norma do art. 30º, nº2, do CIRE, materialmente inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no art. 20º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada no sentido de não dever ser admitido o articulado da oposição, se este não for acompanhado da lista contendo a indicação dos cinco maiores credores da requerida e sem que a esta tenha sido previamente concedida a oportunidade de suprir essa deficiência, recusando-se, nessa medida e com tal alcance, a aplicação do referido preceito legal.» – disponível em https://www.dgsi.pt, tal como os demais.
[4] Em consonância com o art. 2.º da Lei n.º 45/2019, de 27-06.
[5] Jornal Oficial (2000/C 364/01), de 18-12-2000.
A Carta, proclamada em 2000, na sua versão revista e adaptada em 12-12-2007, tornou-se juridicamente vinculativa para a União Europeia, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 01-12-2009, o que significa que, desde essa altura, beneficia do mesmo valor (e segurança) jurídico que os Tratados – cf. artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia.
[6] Gomes Canotilho e Vital Moreira in, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 164.
[7] Lopes do Rego in, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, p. 17.
[8] Menezes Leitão in, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 11.ª Edição, Almedina, 2021, anotação ao art. 30.º, p. 113, nota 4.
Maria do Rosário Epifânio in, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição (Reimpressão), Almedina, Outubro de 2024, p. 59.
[9] Acórdão n.º 639/2014, Proc. n.º 835/11, de 07-10-2014, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140639.html.
[10] Cf. Decisão Sumária n.º 470/2020, Proc. n.º 477/20, 3.ª Secção, de 22-09-2020, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20200470.html.
[11] No mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. n.º 364/21.2T8STB-C.E1, de 29-04-2021, e deste Tribunal da Relação e Secção, Proc. n.º 214/17.4T8SEI-B.C1, de 24-10-2017.