EXECUÇÃO BASEADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL
FORMA SUMÁRIA
GARANTIA REAL
TÍTULO
LIVRANÇA
MÚTUO COM HIPOTECA
Sumário

I – Nos termos previstos no art.º 550.º do CPC, a execução baseada em título extrajudicial e em relação à qual não se verifique nenhuma das situações previstas no n.º 3 do citado preceito legal seguirá a forma sumária, não só quando a obrigação exequenda não exceda o valor correspondente ao dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância (al. d), mas também quando, independentemente do seu valor, a obrigação exequenda esteja garantida por hipoteca ou penhor (al. c).
II – Para os efeitos referidos, a garantia real não tem que constar ou resultar do título executivo que é invocado para fundamentar a execução; tal garantia pode resultar de outro título ou documento (o título constitutivo da garantia) que, complementando o título executivo, seja apresentado pelo exequente, desde que ele permita reportar essa garantia à concreta obrigação que está a ser executada e que consta do título executivo na qual se baseia a execução.
III – Nessas circunstâncias e independentemente do valor da quantia exequenda, segue a forma sumária (e não ordinária) a execução instaurada com base numa livrança em que a exequente alega como relação subjacente um contrato de mútuo e a existência de uma hipoteca constituída para garantia da concreta obrigação que é exigida e consta do título executivo, juntando os respectivos documentos e, em particular, o documento/título constitutivo da hipoteca.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A Banco 1..., Crl., melhor identificada nos autos, veio instaurar execução, com processo sumário, contra A..., Lda., AA, BB e CC, melhor identificados nos autos, pedindo o pagamento da quantia de 27.761,59€ e indicando como título executivo uma livrança.

Na descrição dos factos, invoca – como origem do crédito – um contrato de mútuo celebrado com a 1.ª Executada no âmbito do qual – e para garantia das obrigações dele decorrentes – os restantes Executados constituíram hipoteca a favor da Exequente sobre os dois prédios que identifica, tendo sido ainda entregue livrança em branco, subscrita pela 1.ª Executada e avalizada pelos restantes Executados, mais alegando ter preenchido a livrança nos termos que haviam sido acordados e que a mesma não foi paga.

Anexou ao requerimento o referido contrato de mútuo, a escritura de constituição de hipoteca sobre os referidos imóveis e a livrança a que fez referência, no valor de 27.761,59€.

Em 30/09/2024 – na sequência da apresentação do requerimento inicial – foi proferido despacho com o seguinte teor:

Do erro na forma do processo

Pelos presentes autos, veio a Exequente Banco 1..., C.R.L. intentar ação executiva para pagamento de quantia certa, no valor de € 27.761,59 e apresentando como título executivo uma livrança.

Determina o art. 550.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (doravante, CPC) que “[e]mprega-se o processo sumário nas execuções baseadas: […] d) Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância”.

No presente caso, foi apresentado como título executivo um título extrajudicial de obrigação pecuniária vencido e com valor superior ao dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância (art. 44.º, n.º 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto).

Ora, aplicando o disposto no art. 550.º, n.º 2, al. d) a contrario do CPC, bom é de ver que estes autos devem seguir a forma ordinária, em virtude do título executivo dado à execução e ainda o valor da quantia exequenda.

O erro na forma do processo constitui uma nulidade de conhecimento oficioso (art. 196.º do CPC), impondo-se observar o princípio do aproveitamento dos atos, devendo privilegiar-se a adaptação do processado à forma processual adequada (art. 193.º, n.ºs 1 e 3 do CPC), somente sendo anulados os atos que não possam ser aproveitados e praticar os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida na lei.

Assim, considerando o valor do pedido executivo e o título executivo apresentado, os presentes autos seguem a forma ordinária do processo comum para pagamento de quantia certa, pelo que se determina a alteração da forma processual para execução ordinária.

Em consequência, determina-se a nulidade de todos os atos praticados pela Senhora Agente de Execução que são incompatíveis com a forma processual aplicável e anteriores a este despacho – atos sobre os quais tem aplicação o art. 45.º, n.º 4 da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto.

Custas do incidente a cargo da Exequente, que se fixa no mínimo legal.

Registe e retifique autuação em conformidade.

Notifique.

Comunique à Senhora Agente de Execução.

Oportunamente, abra conclusão a fim de ser proferido despacho liminar”.

Em desacordo com essa decisão, a Exequente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a presente execução deve seguir a forma de processo ordinária ou sumária.


/////

III.

Com relevância para a decisão, extraem-se dos autos os seguintes factos:

1. A Exequente instaurou a presente execução pedindo o pagamento da quantia de 27.761,59€ e indicando, no respectivo formulário, como título executivo uma livrança.

2. Na descrição dos factos, alega:

- Que, no exercício da sua atividade e mediante contrato de mútuo celebrado em 11/03/2020, concedeu à 1.ª Executada um empréstimo no montante de 30.000,00€, pelo prazo de 120 (cento e vinte) meses, destinado a financiar a regularização de responsabilidades;

- Que, para bom, pontual e integral cumprimento das obrigações assumidas, foi constituída pelos restantes Executados hipoteca sobre os prédios urbanos descritos na CRP ... sob os n.ºs ...7 e ...17 e inscritos na matriz predial sob os artigos ...54 e ...20, respectivamente;

- Que, para titular as obrigações emergentes do contrato e eventuais alterações, e para assegurar o seu pagamento sem que tal constituísse novação, a Mutuária entregou à Exequente uma Livrança por si subscrita em branco e avalizada pelos restantes Executados, cujo preenchimento ficou a cargo da ora Exequente, que o fez de acordo com o disposto na cláusula sétima do contrato;

- Que, apresentada a pagamento, a identificada livrança não foi paga pelos seus subscritores, apesar de terem sido interpelados para o efeito.

3. Além da livrança indicada como título executivo, a Exequente anexou ao requerimento executivo:

- Um contrato de mútuo celebrado em 11/03/2020 por via do qual declarou conceder à 1.ª Executada um empréstimo no valor de 30.000,00€ (valor que a Executada aí declarou ter recebido), obrigando-se a Executada a pagar essa quantia com os respectivos juros, impostos, encargos e despesas nos termos e nas condições ali indicados, mais se estabelecendo que, para titular as obrigações emergentes do contrato, seria entregue uma livrança em branco, subscrita pela referida Executada e avalizada pelos restantes Executados e a preencher pela Exequente nos termos ali definidos. Mais se declarou nesse documento que o cumprimento dessas obrigações ficava assegurado pela hipoteca constituída a favor da Exequente nos termos da escritura pública realizada em 07/12/2015 sobre os imóveis descritos na CRP ... sob os n.ºs ...7 e ...17 e inscritos na matriz predial sob os artigos ...54 e ...20, respectivamente, com a inscrição hipotecária registada com a apresentação 1240 de 07/12/2015.

- Uma escritura celebrada em 07/12/2015 na qual os Executados AA, BB e CC declararam constituir hipoteca, a favor da Exequente, sobre os imóveis acima identificados para garantia do integral pagamento de todas e quaisquer obrigações e responsabilidades até ao valor de capital de 100.000,00€ que perante ela tivessem sido contraídas ou viessem a ser contraídas pela 1.ª Executada, nos termos e condições que ali se encontram descritos.

4. As referidas hipotecas mostram-se inscritas no registo predial mediante a apresentação 1240 de 2015/12/07 (cfr. certidão do registo predial, entretanto junta ao processo de execução).


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IV.

Coloca-se no presente recurso a questão de saber se a presente execução deve ser seguir a forma de processo ordinária ou sumária.

Sobre essa matéria rege o disposto no art.º 550.º do CPC que dispõe nos seguintes termos:

1 - O processo comum para pagamento de quantia certa é ordinário ou sumário.

2 - Emprega-se o processo sumário nas execuções baseadas:

a) Em decisão arbitral ou judicial nos casos em que esta não deva ser executada no próprio processo;

b) Em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória;

c) Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor;

d) Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância.

3 - Não é, porém, aplicável a forma sumária:

a) Nos casos previstos nos artigos 714.º e 715.º;

b) Quando a obrigação exequenda careça de ser liquidada na fase executiva e a liquidação não dependa de simples cálculo aritmético;

c) Quando, havendo título executivo diverso de sentença apenas contra um dos cônjuges, o exequente alegue a comunicabilidade da dívida no requerimento executivo;

d) Nas execuções movidas apenas contra o devedor subsidiário que não haja renunciado ao benefício da excussão prévia.

(...)”.

A decisão recorrida, atendendo ao disposto na alínea d) do n.º 2 da citada disposição e considerando que a situação dos autos nela não se integrava (uma vez que a execução se fundava em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor excedia o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância), conclui, em resultado da interpretação a contrario da citada alínea, que a presente execução devia seguir a forma de processo ordinária e não a sumária que havia sido indicada pela Exequente. Concluiu, por isso, pela existência de erro na forma de processo, determinando que os autos seguissem os termos do processo ordinário.

A Apelante discorda dessa decisão, sustentando que a situação dos autos se integra na alínea c) do referido n.º 2 e que, nessa medida, a forma processual adequada é a sumária.

Pensamos que a razão está com a Apelante.

Conforme resulta do disposto na norma citada, o processo sumário tem aplicação às situações previstas nas diversas alíneas do seu n.º 2 e desde que não se verifique nenhuma das situações previstas no n.º 3.

Ora, apesar de ser certo – conforme se considerou na decisão recorrida – que a situação dos autos não se enquadra na alínea d) da norma citada (na medida em que a obrigação pecuniária que vem peticionada e está incluída no título excede o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância), pensamos ser certo que ela se inclui na alínea c) e, portanto, não ocorrendo no caso nenhuma das situações previstas no n.º 3, a forma de processo adequada será a sumária.

Dispõe, com efeito, a citada alínea c) que se emprega o processo sumário nas execuções baseadas em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor.

Conjugando as duas alíneas, impõe-se concluir que a execução baseada em título extrajudicial seguirá a forma sumária, não só quando a obrigação exequenda não exceda o valor correspondente ao dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância, mas também quando, independentemente do seu valor, a obrigação exequenda esteja garantida por hipoteca ou penhor.

Importará ainda esclarecer, a este propósito, que nada na lei autoriza a afirmação/conclusão de que a hipoteca ou penhor constituídos em garantia da obrigação exequenda tenham que constar ou resultar do título executivo que é invocado para fundamentar a execução. A garantia real pode resultar do próprio título executivo, mas também pode resultar de título diferente; o que é necessário é que o título constitutivo da garantia (que pode ou não ser simultaneamente um título constitutivo ou certificativo de uma obrigação que possa valer, só por si, como titulo executivo, independentemente de prova complementar nos termos previstos no art.º 707.º do CPC) permita reportar essa garantia à concreta obrigação que está a ser executada e que consta do título executivo na qual se baseia a execução.

No caso em análise, o título executivo que era invocado correspondia a uma livrança (subscrita pela 1.ª Executada e avalizada pelos restantes Executados) que, como é próprio destes títulos, não incorporava a constituição de qualquer garantia real (no caso, hipoteca) nem lhe fazia qualquer referência. Isso não significava, porém, que essa obrigação (corporizada no título) não pudesse estar garantida por garantia real e a verdade é que a Exequente, além de invocar e alegar a relação subjacente à livrança (um contrato de mútuo garantido por hipoteca constituída anteriormente por escritura de 07/12/2015), também alegava que a obrigação exequenda (constante do título, ou seja, da livrança) estava garantida por hipoteca sobre dois imóveis que havia sido constituída pela escritura que juntou aos autos (celebrada em 07/12/2015) para garantia do integral pagamento de todas e quaisquer obrigações e responsabilidades até ao valor de capital de 100.000,00€ que perante a Exequente tivessem sido contraídas ou viessem a ser contraídas pela 1.ª Executada (abrangendo, portanto, a obrigação exequenda, como, aliás, se havia consignado expressamente no contrato de mútuo que estava na origem da subscrição da livrança).

Era certo, portanto, tendo em conta a alegação da Exequente, que estava em causa uma obrigação garantida por hipoteca sobre dois imóveis (devidamente registada), tendo sido junto aos autos, não só o título executivo (a livrança), mas também o documento que, complementando esse título, corporizava a constituição da hipoteca em garantia (entre outras) da obrigação que constava do título e era objecto da execução.

Impõe-se, assim, concluir que está em causa uma execução baseada em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida que está garantida por hipoteca e que, nessa medida, e independentemente do valor da obrigação, se insere no âmbito de previsão da alínea c) do n.º 2 do citado art.º 550.º. Nessas circunstâncias e não se verificando nenhuma das situações previstas no n.º 3 da citada disposição legal, a presente execução deverá seguir a forma sumária.

Sobre essa matéria e em idêntico sentido, vejam-se os Acórdãos da Relação de Évora 16/05/2019 (processo n.º 882/17.7T8ENT-A.E1) e de  27/06/2019 (processo n.º 882/17.7T8ENT-B.E1) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 27-06-2024 (processo n.º 15358/23.5T8PRT-A.G1)[1].

Revoga-se, portanto, a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

V.
Em face do exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que a execução prossiga nos termos em que havia sido proposta pela Exequente, ou seja, sob a forma de processo sumário.
Custas a cargo de quem, a final, seja por elas responsável.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                    (Chandra Gracias)

                                                   (Maria João Areias)


[1] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.