LAPSO MANIFESTO
ERRO MATERIAL
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário

1. Existirá lapso manifesto sempre que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material (v. g., erro de escrita): quis escrever uma coisa, e escreveu outra.
2. É o “erro na expressão”, não no pensamento, sendo necessário que do próprio conteúdo da sentença ou despacho, ou dos termos que o precederam, se depreenda claramente que se escreveu coisa diferente do que se queria escrever.
3. Se assim não for, a aplicação do art.º 614º do CPC é ilegal, importando evitar que, à sombra desta disposição legal, o juiz se permita emendar erro de julgamento, que é espécie diversa de erro material e deverá ser impugnado mediante interposição de recurso.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Vítor Amaral
                  Luís Cravo


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                Sumário do acórdão: (…) 


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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            I. Por apenso aos autos de execução n.º 436/21.... movidos por Banco 1..., S. A., contra O A..., Unipessoal, Lda., AA e BB, na sequência das citações do art.º 788º do Código de Processo Civil (CPC), a credora Banco 2..., S. A., reclamou o respetivo crédito (por requerimento de 19.9.2023)[1].

               Cumprido o n.º 1 do art.º 789º do CPC[2], por sentença de 31.01.2024, o Tribunal a quo julgou procedente a reclamação, declarando verificado o crédito reclamado e procedendo à seguinte graduação: «1. O crédito exequendo; 2. O crédito reclamado».

           Notificada da sentença[3], a reclamante B... SARL, por requerimento de 07.3.2024, veio expor e requerer o seguinte:

           «B... SARL, Credor Reclamante[4] nos autos à margem identificados (habilitada no lugar do Banco 3...), vem, muito respeitosamente e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 614º do Código de Processo Civil, requerer a V. Exa. a RETIFICAÇÃO DA SENTENÇA DE GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS nos termos e com os seguintes fundamento: / 1. No âmbito dos presentes autos foi proferida sentença de graduação de créditos (...), na qual (...) declara-se verificado o crédito reclamado, procedendo à respetiva graduação de créditos da seguinte forma: - O crédito exequendo; - O crédito reclamado.” / 2. Ora, entende a ora Credora que poderá, salvo melhor opinião, ter sido lapso o facto de não ter graduado o crédito da ora Credora B... SARL (anterior Banco 3... S. A.). / 3. Foi apresentada (...) Reclamação de créditos no montante de 180.919,50€ (...) em 19/01/2022, crédito este garantido por hipoteca sob o imóvel penhorado nos autos. / 4. Ora, após ter sido deduzida a respetiva reclamação de créditos veio a ser proferida sentença e Acórdão na qual se entendeu que a ora Credora não poderia requerer o prosseguimento do processo dado não ter dado cumprimento ao PERSI. / 5. Ora, as decisões dos presentes autos, apenas e tão-só, são no sentido da ora Reclamante não ter legitimidade para impulsionar o processo e não que não existe o crédito reclamado. / 6. Assim sendo, e tendo o processo prosseguido a pedido de outro interveniente, dúvidas não existem que o crédito da ora Reclamante tem de ser graduado nos presentes autos. / 7. (...) requerer V. Exa. que seja retificada a sentença de graduação de créditos incluindo na mesma o crédito da ora Credora. / (...)»

           Na sequência do despacho de 19.3.2024[5] e tendo a reclamante B... apresentado idêntico requerimento (a 26.3.2024)[6], o executado/reclamado AA (invocando a qualidade de “Embargante nos autos de Embargos de Executado que por este juízo de execução e - Proc. nº 3832/17.... correm seus termos”) veio dizer, nomeadamente (em 10.4.2024): «(...) o crédito exequendo encontra-se já pago, facto este que, em 7 de abril de 2022, determinou a extinção da instância executiva. / (...) em face da decisão jurisdicional proferida nos presentes autos, a ora reclamante B... é agora parte ilegítima para a presente ação. / Mas sem prescindir, nunca obviamente, em face da decisão jurisdicional proferida, a B... poderá vir a ver agora o seu alegado crédito reconhecido. / Na verdade, e como foi então reconhecido, por falta de cumprimento das obrigações decorrentes do PERSI o crédito reclamado pela B... não poderia ter sido, sequer, cedido, como o foi, nos termos da norma imperativa do artigo 18º, n.º 1, alinea c) do decreto lei n.º 227/2012 (...). / (...) e como bem o referiu o acórdão da Relação de Coimbra, que confirmou a sentença proferida, “A omissão da informação ou a falta de integração do devedor no PERSI, pela instituição de crédito, constitui violação de normas de carácter imperativo, que configura, também, exceção dilatória atípica ou inominada, conducente à absolvição do executado da instância executiva”. / Não pode assim a presente instância executiva prosseguir a impulso de quem se viu já impedido de o fazer. (...)»

           Foi depois proferido o seguinte despacho (a 23.5.2024): «Requerimento datado de 07/03/2024: / Louvando-nos nos argumentos exarados na segunda parte do requerimento datado de 10/04/2024 entendemos não assistir razão à requerente, inexistindo fundamento que justifique a pretendida retificação da sentença, que assim se indefere

           Dizendo-se inconformada, a reclamante B... apelou[7] formulando as seguintes conclusões:

            1ª - A ora Credora, em 19/01/2022, apresentou reclamação de créditos nos presentes autos, reclamando o montante de 180.919,50€, referente aos contratos de mútuo celebrados com os Executados, que se encontram em incumprimento.

           2ª - A Reclamação de créditos aqui em causa nunca foi impugnada e, bem assim, nunca os Executados alegaram a não existência da dívida.

           3ª - A execução aqui em causa, veio a ser extinta, face ao acordo celebrado com a Exequente.

           4ª - Assim sendo, a Senhora Agente de Execução notificou a Credora da extinção da execução.

           5ª - Na sequência dessa mesma notificação, a Recorrente requereu a renovação da execução e que a mesma prosseguisse os seus regulares termos com a respetiva venda do imóvel sob [sic] o qual detém hipoteca.

           6ª - O Tribunal veio a decidir no sentido que não podia a ora Credora requerer a renovação do processo uma vez que não se encontrava cumprido o PERSI, pelo que não poderia ser requerida a renovação do processo pela Recorrente.

           7ª - Posteriormente, veio outro Credor, requerer a renovação dos presentes autos para cobrança dos valores em dívida.

           8ª - Face a este requerimento o Tribunal proferiu sentença de graduação tendo apenas graduado o crédito exequendo e o crédito do Banco 2..., S. A..

            9ª - Tal decisão, salvo melhor opinião, dever-se a um lapso, uma vez que a ora Credora também tem de constar da sentença de graduação.

            10ª - A ora Credora e Recorrente mantém-se como Credora, e os executados encontram-se em dívida perante a mesma.

           11ª - A decisão da Relação é clara ao mencionar, que face ao não cumprimento do PERSI, não pode a Recorrente requerer a renovação do processo, contudo a dívida existe e mantém-se.

           12ª - Assim sendo, se a execução for renovada a pedido da Exequente ou outro Credor, não pode a ora Credora ser excluída da graduação.

           13ª - O crédito hipotecária da ora Credora mantém-se, não tendo deixado de existir pelo facto de não ter legitimidade para requerer a renovação da execução.

            14ª - Acresce que, a ora Credora já cumpriu o respetivo PERSI junto dos devedores, pelo que já nem se encontra com qualquer irregularidade.

           15ª - As decisões anteriores dos presentes autos, apenas e tão-só, são no sentido da ora Reclamante não ter legitimidade para impulsionar o processo e não que não existe o crédito reclamado.

           16ª - Tendo o processo prosseguido a pedido de outro interveniente, dúvidas não existem que o crédito da ora Reclamante tem de constar da sentença de graduação.

           17ª - Pelo que se requer que seja retificada a sentença de graduação de créditos constando da graduação o crédito da Recorrente.

           Remata dizendo que “requer que o despacho que ora se recorre seja corrigido e seja o crédito da ora Credora graduado, devendo o processo prosseguir os seus regulares termos”.

            Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa reapreciar, principalmente, se existiu/existe erro material ou lapso manifesto enquadrável na previsão do art.º 614º do CPC.


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            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do relatório que antecede e ainda:

           1) Por sentença de 14.02.2023, proferida no apenso A (de reclamação de créditos), decidiu-se absolver os Reclamados/executados da instância por verificação da exceção dilatória inominada decorrente da falta de integração em PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento), «julgando, em consequência, que a execução não poderá prosseguir a impulso do credor Reclamante» Banco 3..., S. A., na alegada qualidade de cessionário dos créditos reclamados[8].

           2) Por sentença de 08.11.2022 proferida no apenso B (habilitação de cessionário), transitada em julgado, foi habilitada como adquirente/cessionária a sociedade B..., SARL em substituição da cedente e credora reclamante Banco 3..., S. A., representada em Portugal por Banco 3... - Sucursal em Portugal, passando a mesma a ocupar o lugar deste nas ações em curso.

           3) Na sentença aludida em 1) foi dado como provado que a execução dos autos principais foi declarada extinta, em face do pagamento da quantia exequenda, nos termos dos art.ºs 846º, n.º 1 e 849º, n.º 2 do CPC, em 07.4.2022, tendo o Reclamante requerido a renovação da execução para pagamento do seu crédito, declarando estar o mesmo vencido.

           4) Fez-se constar da fundamentação da mesma sentença, designadamente:

           - o Reclamante não provou que tenha integrado os devedores em PERSI e juntou aos autos uma carta para resolução contratual que – a ter sido enviada – contraria frontalmente a norma imperativa do art.º 18º do DL n.º 227/2012, de 25.10, por ser anterior ao início de alguns dos PERSI que alega terem sido instaurados;

           - a inobservância das normas procedimentais impostas neste diploma legal não permitem que as instituições de crédito recorram à ação executiva, constituindo essa omissão uma verdadeira falta de condição objetiva de procedibilidade que, na busca do lugar paralelo, é enquadrada, com as necessárias adaptações, no regime jurídico das exceções dilatórias;

            - essas condições de procedibilidade resultam da imperatividade deste regime jurídico e do facto de, por força do estatuído no referido art.º 18º, a instituição de crédito estar impedida de, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento: a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento; b) Intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito; c) Ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito; ou d) Transmitir a terceiro a sua posição contratual;

           - o Banco Reclamante não demonstrou que tenha integrado os mutuários, em PERSI aquando do vencimento das prestações em causa e que tenha, validamente, resolvido os contratos de crédito celebrados, omissão que, embora não o impedisse de reclamar créditos (pelo contrário) já o impede de prosseguir com a execução, por duas razões: pelo facto de estarmos perante a falta de uma condição de procedibilidade que constitui uma exceção dilatória inominada (que acarreta a absolvição dos Reclamados/devedores da instância); e pelo facto de, por não ter havido uma resolução contratual válida, os créditos reclamados não se encontrarem vencidos, circunstância impeditiva da execução prosseguir a impulso do credor reclamante;

            - se é incontestável que, com a penhora efetuada na execução, o Reclamante, citado na qualidade de credor com garantia real sobre o bem penhorado, teria de liquidar o seu crédito para efeitos de verificação e posterior graduação a par do crédito exequendo, não resulta, porém, dos factos provados que o seu crédito se encontre vencido e, como tal, em face do estado da execução não poderia requerer a renovação da execução extinta, atento o que dispõe o art.º 850º, n.º 2 do CPC.

           5) A dita sentença (e sua fundamentação) foi confirmada por acórdão da RC de 12.9.2023.

           6) Neste aresto, foi reafirmado e explicitado, designadamente, que «não é possível instauração de ação para cobrança do crédito (...) sem que o cliente bancário tenha sido inserido no PERSI», e que, «estando o mutuário/devedor em situação de lhe ser aplicado o PERSI, a entidade bancária não pode ceder o crédito a terceiro (instituição não bancária) sem ter previamente cumprido as exigências decorrentes do regime ínsito no regime decorrente do DL n.º 227/2012, de 25.10. (...) a cedência ou a transmissão de um crédito (...) não pode ser feita em detrimento da posição do devedor, ou com diminuição das suas garantias».

           7) Na mencionada sentença de 31.01.2024 expendeu-se e concluiu-se: «Na execução principal mostra-se penhorada a fração “B” (...). / (...) O reclamante, por seu turno, tem registada a seu favor e no âmbito da execução 590/17...., (...), uma penhora sobre o mesmo prédio aqui penhorado, a qual foi registada mediante AP. ...97, de 2023/07/20. / Assim, tendo presente que a penhora nesta execução realizada foi registada em data anterior à penhora de que beneficia o crédito reclamado, deverá ser graduado em primeiro lugar o crédito exequendo e, em segundo lugar, o crédito reclamado.»

            2. Cumpre apreciar e decidir.

           Sabemos que o objetivo prosseguido pelo Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), previsto no DL 227/2012, de 25.10, é o de envolver as instituições de crédito na apresentação de propostas de regularização de situações de incumprimento adequadas à situação do consumidor/devedor; o credor não poderá intentar ações judiciais para satisfação do seu crédito se inobservado aquele procedimento, e bem assim entre a data da integração em PERSI e a sua extinção, sob pena de extinção da instância.[9]

           Os factos descritos, principalmente, em II. 1. 1), 4), 5) e 6), supra, contendem com aquela problemática e relevam para a compreensão do decidido na 1ª instância - confirmado por esta Relação - quanto à reclamação de créditos apresentada pela recorrente.

            Na resposta a dar à questão colocada importa considerar aquela dimensão de natureza eminentemente substantiva e, sobretudo, o regime jurídico adjetivo que se referirá de seguida.

           3. É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada (art.º 146º, n.º 1, do CPC[10], sob a epígrafe “suprimento de deficiências formais de atos das partes”). Deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa (n.º 2).

            Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 613º, n.º 1). É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2). O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos (n.º 3).

            Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz (art.º 614º, n.º 1). Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação (n.º 2). Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo (n.º 3).

            Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido (art.º 631º, n.º 1). As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias (n.º 2).

           4. O princípio da intangibilidade da decisão judicial, formulado no art.º 613º, pressupõe que a sentença ou despacho reproduz fielmente a vontade do juiz; se houve erro material na expressão dessa vontade, se, por qualquer circunstância, a vontade declarada na sentença ou despacho não corresponde à vontade real do juiz, a regra da intangibilidade não funciona. Não faz sentido que subsista vontade diversa da que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho.

           Deve, pois, ser lícito ao juiz ajustar, mediante retificação, a vontade declarada à vontade real. Este o sentido e a razão de ser do art.º 614º, disposição que não tem aplicação quando houve erro de julgamento (e não erro material na declaração da vontade do juiz), mas é de aplicar qualquer que seja a causa ou a forma do erro material.

           5. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada (por lapso, inconsideração, distração) diverge da vontade real.

           O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode (sob pena de manifesta, e inadmissível, alteração do julgado) socorrer-se do art.º 614º para emendar o erro. Os erros de julgamento só podem ser impugnados mediante interposição de recurso.

           6. Relativamente ao erro material, e considerada a expressão lapso manifesto, dir-se-á que o mesmo se verifica sempre que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material (v. g., erro de escrita): quis escrever uma coisa, e escreveu outra.

            Há de ser o próprio contexto da sentença que há de fornecer a demonstração clara do erro material. É o “erro na expressão”, não no pensamento: a simples leitura da sentença deve tornar evidente que o juiz, ao manifestar o seu pensamento, usou nomes, palavras ou números (cifras) diferentes dos que deveria ter usado para exprimir fiel e corretamente as ideias que tinha na mente.

           É, pois, necessário que do próprio conteúdo da sentença ou despacho, ou dos termos que o precederam, se depreenda claramente que se escreveu coisa diferente do que se queria escrever; se assim não for, a aplicação do art.º 614º é ilegal.

            Como já se explicitou, importa evitar que, à sombra deste art.º, o juiz se permita emendar erro de julgamento, que é espécie diversa de erro material.

           7. Os erros materiais (lapsus calami) de que trata o n.º 2 do art.º 614º, do tipo descrito no art.º 249º do CC[11] a propósito dos negócios jurídicos, assim como as omissões manifestas sobre pontos essenciais, mas que não interferem na substância ou na fundamentação da decisão (v. g., omissão dos nomes das partes), podem ser corrigidos a todo o tempo por meio de simples despacho, seja a requerimento de qualquer das partes ou de ambas, seja por iniciativa do juiz.[12]

            8. A sentença, uma vez proferida, esgota o poder jurisdicional do juiz, não podendo, por conseguinte, ser modificada ou alterada na sua essência, embora os seus erros materiais possam ser corrigidos ou as suas lacunas preenchidas, sem prejuízo do sentido e alcance da decisão já lavrada.

           A sentença, seja qual for a sua proveniência, constitui uma injunção aplicativa do Direito - não constitui, na verdade, uma declaração de vontade, porque ela não visa sequer exprimir a vontade de quem a profere, mas sim a vontade da lei (rectius: a vontade do Direito) -, que não se identifica com a norma legal ou o preceito regulamentar, que também se não integra na categoria das declarações negociais, de que tratam, entre outros, os art.ºs 236º e seguintes do Código Civil, mas cuja interpretação obedece naturalmente aos mesmos parâmetros por que se rege a fixação do sentido decisivo dessas mensagens.

            À semelhança do que sucede com a declaração negocial, e ao invés do que ocorre com a norma legal, a sentença (despacho ou acórdão) dirige-se apenas a determinadas pessoas e regula somente certas situações reais e concretas, aplicando-se, na sua interpretação, os princípios comuns à interpretação das leis e à interpretação das declarações negociais, realçando-se, contudo, a função heurística fundamental que cabe ao texto verbal na interpretação da declaração, as funções essenciais do texto na fixação do sentido decisivo das próprias decisões judiciais.[13]

            9. Vem de há muito o entendimento de que qualquer lapso/erro manifesto, quer quanto à sua existência quer quanto ao modo de o retificar, poderá/deverá ser retificado/eliminado.[14]

           Em idênticas circunstâncias, qualquer lapso/erro manifesto ou ostensivo, ocorrido nos autos, deverá ser igualmente retificado/eliminado - cf., sobretudo, art.ºs 146º[15] e 614º, do CPC.[16]

            10. Afirma a recorrente que a aludida sentença de graduação de créditos, de 31.01.2024, por lapso manifesto, não graduou o respetivo crédito,  devendo ser retificada (cf., nomeadamente, “conclusões 1ª e 9ª”, ponto I., supra)[17], porquanto quem deu (novo) impulso à ação executiva foi a credora Banco 2..., S. A. (a execução foi renovada a pedido de outro credor), pelo que o crédito hipotecário anteriormente reclamado (titulado pela recorrente) também tem de constar da sentença de graduação - a recorrente/reclamante mantém-se como credora, os executados encontram-se em dívida perante a mesma e dúvidas não existem que o crédito (que não deixou de existir pelo facto de não ter legitimidade para requerer a renovação da execução) tem de ser graduado nos presentes autos.

           A decisão recorrida afirmou inexistir fundamento que justifique a pretendida retificação da sentença, pois, anteriormente à dita sentença, o Tribunal a quo havia considerado, nomeadamente, que a omissão da informação ou a falta de integração do devedor no PERSI configurava exceção dilatória conducente à absolvição do executado da instância executiva, derivando, também, dessa falta de cumprimento das obrigações decorrentes do PERSI, que o crédito reclamado (pela recorrente) não poderia ter sido, sequer, cedido.

            11. Decorre do expendido em II. 4. a 7. e 9., supra, conjugado com a realidade dos autos, que não se vislumbra erro ou lapso manifesto suscetível de ser retificado conforme se prevê no art.º 614º.

            Ao proferir a sentença de 31.01.2024, a julgadora reconheceu e graduou os créditos em conformidade com os elementos que considerou existirem nos autos.

           E não se enxerga qualquer “erro na expressão” ou lapso manifesto, objetivamente comprovável, que o próprio contexto da sentença clara e inequivocamente evidencie/demonstre.

           12. Se a recorrente/reclamante considera que outra deveria ter sido a decisão a proferir e que fica prejudicada pela decisão proferida, tratando-se, assim, de um (aparente) erro de julgamento, pensamos que, atenta a sua conhecida “ligação aos autos” e, inclusive, a notificação (da sentença) que lhe foi dirigida - cf. ponto I., supra[18] -, não lhe restava alternativa à (eventual) impugnação mediante interposição de recurso, atento o regime jurídico descrito em II. 1. 3), supra.

13. O Tribunal a quo decidiu ante a realidade conhecida nos autos[19] e o correspondente quadro normativo, sendo que do acervo fáctico que integra as decisões ditas em II. 1., supra, não resultava que o crédito da recorrente se encontrava vencido.

           Por conseguinte, inexistindo o apontado lapso manifesto ou qualquer outro, resta confirmar a decisão recorrida, que não viola quaisquer disposições legais.

           14. Soçobram, desta forma, as conclusões da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pela reclamante/apelante.


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25.01.2025


[1] No montante global de € 43 481,79, garantido por penhora registada sobre o imóvel penhorado na execução, mediante AP. ...97 de 2023/07/20.

[2] Na sequência do despacho de 15.11.2023, sem impugnação do crédito reclamado.  

[3] Na pessoa da sua Exma. Mandatária («Certificação Citius: elaborado em 01.02.2024») e que, em 20.11.2023, havia sido notificada da reclamação de créditos do Banco 2..., S. A..
[4] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[5] Com o seguinte teor: «Requerimento datado de 07/03/2024: / Por o não ter feito notifique a habilitada para comprovar nos autos o cumprimento do disposto no art.º 221º do Código de Processo Civil
[6] Nos termos do qual se pediu a admissão da “junção de novo requerimento notificando todas as partes do mesmo”.

[7] Recurso admitido com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.

[8] Nos montantes de € 155 056,24 e € 25 863,23 (capital, juros de mora e despesas) derivados de dois contratos de mútuo com hipoteca, celebrados em 20.12.2007, incidindo a garantia sobre a fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...51, da freguesia ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...16 da referida freguesia, registada mediante a Ap. ... de 2007/11/30.

[9] Cf., nomeadamente, acórdão da RC de 11.02.2020-processo 7576/18.4T8CBR-A.C1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[11] Que assim reza: «O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta».
[12] Sobre os pontos II. 4. a II. 7., vide, principalmente, Alberto dos Reis, CPC anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 130 e seguintes; Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 666 e seguinte e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 666.

   A respeito da caracterização do erro material da sentença, vide, ainda, Antunes Varela, RLJ, 124º, pág. 151, nota (1), citando, entre outros, Liebman, Manuale di diritto processuale civile, 4ª edição, 1981, II, n.º 283, pág. 246.
[13] Vide Antunes Varela, RLJ, 124º, págs. 152 e seguinte e, por exemplo, acórdão do STJ de 05.12.2002-processo 02B3349, publicado no “site” da dgsi.

[14] Vide ainda, nomeadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 1974, pág. 255.

[15] O art.º 146º do CPC foi introduzido pela Lei n.º 41/2013, de 26.6 (que aprovou o atual Código de Processo Civil), adaptando, assim, ao processo civil a regra enunciada no art.º 249º do CC (a propósito do erro de cálculo ou de escrita nas declarações de vontade negociais), norma a que desde há muito se atribui um “alcance geral”, aplicando-se também em “outros casos em que se verifique a sua razão de ser”, designadamente, declarações/alegações “que as partes produzem no decurso do processo” - vide Vaz Serra, RLJ, ano 112º, pág. 6 e, entre outros, acórdão da RC de 18.6.1991, in BMJ 408º, 659.

[16] No domínio do CPC de 1961, defendeu-se que os erros materiais cometidos pelas partes nos articulados, desde que manifestos, eram passíveis de retificação, nos termos do disposto no artigo 667º do CPC [normativo a que corresponde o atual - e similar - art.º 614º do CPC], aplicado por analogia.

   Sobre a matéria, reportando-se aos articulados da ação e/ou à decisão judicial, cf., designadamente, acórdãos do STJ de 27.11.2002-processo 01S2773 e da RC de 01.02.2005-processo 3529/04 e 10.9.2024-processo 1211/22.3T8GRD-A.C1, publicados no “site” da dgsi.
[17] Cf., ainda, nomeadamente, II. 1. 1) e “nota 8”, supra.
[18] Cf., ainda, “nota 3”, supra.
[19] Desconhecendo-se, por exemplo, se e quando teve conhecimento do que se fez constar da “conclusão 14ª”, ponto I., supra.