AÇÃO QUE RECONHECE A POSIÇÃO DE SENHORIO POR SER PROPRIETÁRIO
PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA PROPRIEDADE COM BASE EM USUCAPIÃO POR PARTE DO EX-ARRENDATÁRIO
CASO JULGADO
Sumário

1. A autoridade do caso julgado inerente a uma decisão que reconheceu aos Réus o direito a reaver o bem, como senhorios proprietários, contra o arrendatário, impede que este, em nova ação, peça o reconhecimento de um direito de propriedade sobre o mesmo bem, constituído por usucapião, para manter o domínio sobre este bem.
2. A segurança e a certeza jurídicas decorrentes do trânsito em julgado da decisão obstam a que se volte a questionar o domínio sobre o bem, com base numa realidade que já se verificava aquando da 1ª ação e que aí deveria ter sido invocada para impedir a procedência da mesma.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

“Na contestação apresentada, entre o mais, alega a ré habilitada a “excepção do caso julgado”, alegando para o efeito que no âmbito da acção que correu termos sob o nº 10/19...., foi proferida sentença transitada em julgado no dia 01.02.2022 onde foi decidido declarar válida a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre os aqui réus e o aqui autor respeitante ao imóvel dos autos, bem como condenar o réu, aqui autor, à respectiva entrega.

Respondeu o autor a esta excepção pugnando pela improcedência da mesma, porquanto não se verifica a tríplice identidade de pedido, causa de pedir e sujeitos, como o exige o artº 581º do CPC, já que na acção 10/19.... o que era peticionado pelos autores (aqui réus) era a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento em falta de pagamento de rendas e ainda o despejo do locado e nos presentes autos o que é peticionado é o reconhecimento do direito de propriedade e a condenação dos réus (ali autores) a isso reconhecerem.

Resultam, da certidão junta com o requerimento de 12.03.2023, referente ao processo 10/19.... que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Peniche os seguintes factos:

1- As aqui rés instauraram contra o aqui autor a referida acção pedindo: que sejam reconhecidas a validade e legitimidade da resolução do contrato de arrendamento comercial em causa, bem como a sua produção de efeitos, com os fundamentos acima aduzidos, condenando-se o Réu no pagamento da quantia de € 6.222,20 (seis mil duzentos e vinte e dois euros e vinte e dois cêntimos), que se discrimina em € 5.673,64 (cinco mil seiscentos e setenta e três euros e sessenta e quatro cêntimos) a título de rendas em atraso, mais € 548,55 (quinhentos e quarenta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de juros civis vencidos, e devendo ainda, acrescer os juros que se vierem a vencer até integral pagamento da quantia peticionada; condenando-se o Réu, igualmente, a vagar o imóvel em causa, entregando-o livre de pessoas e bens aos Autores”.

A título subsidiário, formularam o seguinte pedido: “caso assim não se entenda, deve a resolução contratual ser considerada válida e legítima, produzindo efeitos a contar da citação da presente acção, devendo o Réu ser condenado no pagamento da quantia acima aludida, acrescida dos juros que se vierem a vencer, e devendo ainda, acrescer os juros que se vierem a vencer até integral pagamento da quantia peticionada; condenando-se o Réu, igualmente, a vagar o imóvel em causa, entregando-o livre de pessoas e bens aos Autores.

2- Para fundamentar o pedido referido em 1 alegaram, em síntese, que celebraram

com o réu um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, por prazo indeterminado, convencionando o pagamento mensal de renda tendo, em maio de 2016, procedido à atualização extraordinária de tal renda e transição do contrato para o NRAU, o que o réu não respeitou pois desde então não liquida a renda no valor devido conforme entendem os autores, mais alegando que aquele atribuiu fim diverso ao locado.

3- Na referida acção foram dados por provados os seguintes factos:

1) O segundo Autor é o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de AA, sua falecida mulher (conforme Documento 1 junto com a p.i.), que ainda carece de ser alvo de partilha.

2) Em vida, o segundo Autor e a sua falecida mulher eram os legítimos proprietários de um imóvel sito em Rua ..., Ilha ..., ..., ..., bem como do estabelecimento que lhe estava associado.

3) Atualmente os Autores são os legítimos proprietários do imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo ...32, sendo que o edifício não se encontra registado na Conservatória do Registo Predial (conforme caderneta predial sob a denominação Documento 2 junto com a p.i. e informação da Conservatória do Registo Predial junto como Documento 3 com a p.i.).

4) No dia 21 de Junho de 1983 este estabelecimento foi objecto de trespasse pelo preço de 202.000$00 (duzentos e dois mil escudos) para a exploração de um estabelecimento comercial conforme certidão de escritura pública de trespasse com arrendamento comercial sob a denominação Documento 4 junto com a p.i.) tendo pelas partes sido declarado o seguinte: “Pelos primeiros outorgantes BB e mulher AA foi dito: Que pelo preço de duzentos e dois mil escudos, já recebido, trespassam ao segundo outorgante” – CC – “o seu estabelecimento comercial de café-bar instalado no prédio urbano, sito no ..., da dita freguesia ..., da qual são proprietários os primeiros outorgantes, em cuja matriz se encontra inscrito em artigo três mil duzentos e vinte e oito” (….)” abrangendo este trespasse a cedência da respectiva chave e direitos e obrigações de arrendatários, assim como de todas as licenças, móveis e utensílios. Que pelo segundo outorgante foi dito: que aceita o presente contrato nos termos exarados”.

5) Em Maio de 2016 a renda encontrava-se no valor de 426,85€ (quatrocentos e vinte e seis euros e oitenta e cinco cêntimos).

6) O segundo Autor passa grande parte da sua vida no Canadá pelo que, habitualmente, deixa, no seu banco, uma caderneta de recibos previamente assinada para cada ano.

7) Sendo o seu banco, o Banco 1..., que entrega os recibos de renda ao Réu, na qualidade de arrendatário.

8) Em Maio de 2016 os Autores, por intermédio da respectiva mandatária à data, comunicaram ao Réu o seguinte “Exmo. Senhor, em representação do M/ Constituinte, BB, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de AA, venho, ao abrigo do disposto na Lei n.º 31/2012, nomeadamente nos artigos 300 e seguintes, venho pela presente comunicar a intenção de transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano. Para o efeito e nos termos do disposto na Lei 31/2012 0 senhorio que pretenda transitar para o Novo regime do Arrendamento Urbano deve comunicar essa intenção ao senhorio, com os elementos constantes das alienas a) a c) do artigo 30º da Lei 31/2012 Deste modo, e em cumprimento do disposto na alínea b) do supra citado artigo informo que o valor actual do imóvel, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do C.I.M.I. é de 158.020€ (Cento e cinquenta e oito mil e vinte euros), o que pode comprovar pela caderneta predial cuja cópia se junta (conforme determina a alínea c) do artigo 30º). Nos termos da aliena a) da Lei 31/2012 e utilizando como critério o estipulado no artigo 35º n.º 2 alínea a) da Lei 31/2012, a nova renda será de 650€ (Seiscentos e cinquenta euros), sendo que o contrato será um contrato de duração limitada pelo prazo de cinco anos, não sendo objecto de renovação no seu final. Apresento os meus melhores cumprimentos”.

9) Em 26 de Abril de 2016 o Réu respondeu aos Autores mediante e-mail enviado pelo seu mandatário (conforme documento 6 junto com a p.i.) onde informa que: “Acusamos a recepção da V. carta dirigida ao n/constituinte DD, que mereceu a nossa melhor atenção. Quanto ao teor o mesmo, é com estranheza que recebemos, o teor da comunicação enviada por V.Exas. ao abrigo da Lei 31/2012, porquanto, é do n/conhecimento que entre o n/constituinte e o s/constituinte BB foi outorgada em 21 de Junho de 183, uma Escritura de Trespasse do prédio em causa na s/missiva no Cartório Notarial ..., exarada de fls. 75 a fls. 76 verso do livro de notas para escrituras diversas número ...74 — B Ora, tendo sido outorgada a referida Escritura de Trespasse do referido prédio em causa, não é possível a aplicação do regime jurídico do Arrendamento Urbano. Pelo que, desde já agradecemos que nos esclareça a pretensão do s/constituinte. Por outro lado, como é do V. conhecimento a transição dos contractos de arrendamento para o NRAU depende de acordo entre as partes, o que não sucede in casu visto que o n/constituinte não aceitaria tal proposta, pelo que, nos termos do artigo 36.º da citada Lei 31/2012, de 14 de agosto, pelo que, sempre se manteria o alegado contrato de arrendamento em vigor, sem alteração do regime. Desconhecendo-se a pretensão do s/constituinte, por mera cautela de patrocínio, sempre se expressa para todos os devidos e legais efeitos, que o n/constituinte não aceita que o alegado contrato de arrendamento passasse a ter termo.”

10) O Réu nunca pagou a renda atualizada.

11) No dia 14 de Setembro de 2018, os AA., por intermédio do seu mandatário, interpelaram o Réu (cfr. notificação avulsa de carta de resolução de contrato de arrendamento, acompanhada da referida carta de interpelação, juntos como documentos 7 e 8 com a p.i.), referindo-lhe que “Na qualidade de mandatário do senhor BB, enquanto de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de AA, venho comunicar a Vossa Excelência que, no seguimento da comunicação realizada em abril de 2016, se vem exigir o cumprimento do valor de renda aí fixado, ou seja, a quantia mensal de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), bem como o pagamento dos valores em atraso, contados desde Maio de 2016 até à presente data. Por meio de carta enviada pela mandatária do meu constituinte nessa altura, foi comunicada a Vossa Excelência a intenção de operar a transição do arrendamento para o NRAU e o aumento da renda para o valor supramencionado (junta-se cópia em anexo). Em 26 de abril de 2016, por intermédio do mandatário de Vossa Excelência, foi respondido, por e-mail, que se estranhava o conteúdo da missiva em questão, pedindo-se o esclarecimento do seu teor (junta-se cópia em anexo). Em acréscimo, contrariando a suposta incompreensão, foi rejeitada a passagem do contrato de arrendamento para contrato de duração limitada. Contudo, nenhuma oposição foi manifestada em relação à atualização de renda, pelo que esta se consolidou de facto e de direito, ainda que Vossa Excelência nunca tenha cumprido com o pagamento integral do valor mensal correspondente. É inequívoco de que não há qualquer base legal e/ou jurisprudencial que concretize que, por ter sido celebrada uma Escritura de Trespasse, este arrendamento não está abrangido pelo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, até porque Vossa Excelência vem pagando uma quantia, a título de renda, no valor de €431,23 (quatrocentos e trinta e um euros e vinte e três cêntimos), o que demonstra a existência de um contrato dessa natureza. Destarte, por força da não oposição à aludida atualização de renda, nos termos do artigo 31.º, n.º 9, da Lei n.º 31/12, de 14 de agosto, que se passa a citar: “A falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2.” E, volta-se a frisar, quanto à questão da atualização do valor de renda, não houve qualquer recusa. Ora, em virtude da atualização ter operado, o pagamento do novo valor mensal da renda deveria ter ocorrido a partir de Maio de 2016, ou seja, o segundo mês seguinte ao termo do prazo. Isto significa que, desde esse momento, Vossa Excelência entrou em incumprimento da obrigação de pagamento integral e atempado da renda, nos termos dos artigos 1041.º e artigo 1083.º do Código Civil. Ademais, em observância do mesmo artigo 1041.º, o senhorio pode exigir o pagamento de uma indemnização igual a 50% do que for devido, além do pagamento das rendas em atraso, que, neste caso, se configuram na diferença entre o valor da renda atualizada e o que foi efectivamente entregue ao meu constituinte, na qualidade da cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de AA. Desse modo, o senhor BB vem exigir que Vossa Excelência cumpra com as suas obrigações contratuais, pagando o valor atualizado de renda, o que tem de ocorrer já em outubro de 2018. Adicionalmente, vem reclamar o pagamento dos valores tangentes à renda que se encontram em atraso, isto é, que dizem respeito aos meses que vão de maio de 2016 a setembro de 2018, acrescido de uma indemnização equivalente a 50% do que é devido. O que se cifra na quantia de €9.516, 50 (nove mil, quinhentos dezasseis euros e cinquenta cêntimos), que se discrimina da seguinte maneira: 1. €650,00 (valor de renda atualizado) – €431,23 (valor efectivamente pago) = €218,77; 2. €218,77 x 29 (número de meses em que a renda não foi integralmente paga) = €6.125,56 (valores em atraso); 3. €6.344,33 (valores em atraso) + 3.172,17 (metade dos valores em atraso) = €9.516, 50. Mais se diz que, de acordo com o artigo 1083.º, n.º 3, do Código Civil, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário. Por consequência, no que toca ao pagamento de renda a ocorrer no mês de outubro, se o valor integral e atualizado da renda não for entregue ao meu constituinte, uma vez que a mora se estende por cerca de 28 meses, este, na qualidade de cabeça-de-casal da herança acima identificada, irá resolver o contrato de arrendamento e promover o despejo de Vossa Excelência. Entendendo que o pagamento dos valores em atraso é elevado, o meu constituinte expressa, desde já, a sua abertura para ponderar uma proposta de pagamento que não seja excessivamente onerosa para Vossa Excelência. Para esse fim, confere-se o prazo de 8 dias úteis, a contar da recepção da presente missiva.”

12) O Réu conservou-se em silêncio.

13) Em 23 de Outubro de 2018, por notificação avulsa (vide Documento 7 junto com a p.i.), os Autores comunicaram ao R. “a resolução, com efeitos imediatos, do contrato de arrendamento relativo ao imóvel sito na R. ..., Ilha ... (…)uma vez que não se dignou a responder à missiva acima identificada e se manteve em incumprimento contratual, não pagando, em outubro de 2018, o valor integral da renda fixada em Abril de 2016 (…)”.

14) Por intermédio do seu mandatário os AA. no dia 02 de Novembro de 2018, os

Autores enviaram nova missiva, recebida a 08 do mesmo mês, reiterando a resolução contratual, demandando que o Réu vagasse o imóvel em 30 (trinta) dias e apresentando-lhe os valores atualizados em dívida (cfr. documentos 10 e 11 juntos com p.i.).

15) O Réu levou a cabo dois pagamentos de €431,23 em novembro de 2018.

16) O arrendatário reside atualmente no imóvel, fazendo deste o seu lar.

17) A acção entrou em juízo a 15.01.2019.

4- A final foi proferida sentença, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, e transitada em julgado em 01.02.2022, do seguinte teor: Pelo exposto e decidindo, o Tribunal julga a acção parcialmente procedente e em consequência: a) Declara a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento celebrado entre as partes sobre o imóvel sito em Rua ..., Ilha ..., ..., ... e estabelecimento que lhe está associado, com efeitos à data de citação. b) Condena o Réu a vagar o imóvel sito em Rua ..., Ilha ..., ..., ..., entregando-o livre de pessoas e bens aos Autores; c) Absolve o R. do demais peticionado.

5- A decisão referida em 4 teve por fundamento o disposto no artº 1038º alínea c) do Código Civil, considerando que o ali réu tinha feito uso do locado para fim diverso (habitacional) daquele a que se destinava (comercial).

Em face destes factos, cumpre apreciar.

É consabido que o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo

e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada. O mesmo forma-se, em princípio, apenas sobre a decisão contida na sentença, pois como determina a primeira parte do artº 621º do Código de Processo Civil (CPC) a sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga.

A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira já ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artº 580º nºs 1 e 2 CPC).

Fundamenta-se, quer em razões de segurança e certeza jurídicas, quer no próprio prestígio dos tribunais que “seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente” in Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2ªEdição, pg. 306.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa, os efeitos do caso julgado material projetam-se em processo subsequente necessariamente como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constituiu uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior, ou como excepção de caso julgado em que a existência de decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objecto posterior.

Significa isto que o caso julgado material pode ter valências diferentes, em objectos processuais posteriores, consoante valha como autoridade de caso julgado ou como excepção de caso julgado. Se o objecto da acção posterior for idêntico ao da acção anterior, o caso julgado valerá como excepção de caso julgado; se o objecto da acção posterior é dependente do objecto da acção antecedente, valerá como autoridade de caso julgado.

Neste caso, o juiz da acção posterior está vinculado a não contradizer e a não repetir a decisão da acção anterior.

Ora, e se no âmbito da excepção do caso julgado se exige a tríplice identidade que vem referida no artº 581º do CPC, identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, tal não sucede, quando o que está em causa é a autoridade do caso julgado.

Como referido no sumário do Acórdão da Relação de Coimbra de 06.09.2011, da

excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º (actual artigo 581º) do Código de Processo Civil.

O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.

Aqui chegados, cabe dizer que na decisão descrita no facto 4 não foi diretamente discutida a questão sobre a propriedade do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...32, pois o objecto do litígio prendia-se com a resolução do contrato de arrendamento invocado pelos ali autores, bem como na condenação do réu, aqui autor, no pagamento das rendas vencidas e respectivos juros. Porém, a apreciação destas questões pressupõe a apreciação da propriedade do prédio, tendo sido dado por provado no facto 3 da decisão supra descrita que os ali autores eram os legítimos proprietários daquele imóvel.

Ora, como referido no AC.STJ de 14.01.2021, a este propósito, o respeito pela autoridade de caso julgado não tem como efeito impedir a apreciação do mérito na segunda acção, antes visa assegurar que nessa apreciação sejam ponderados os efeitos emergentes de uma anterior decisão transitada em julgado que seja vinculativa para ambos os sujeitos. Em determinadas circunstâncias que vêm sendo enunciadas pela doutrina e pela jurisprudência, tem-se revelado premente ponderar o que, com trânsito em julgado, já foi decidido noutra acção, a fim de evitar uma contradição intrínseca de julgados.

Em linhas muito gerais, vem sendo assumido pela doutrina e pela jurisprudência,

neste caso refletida em numerosos arestos do Supremo Tribunal de Justiça que, pressuposta a aludida identidade de sujeitos, os efeitos de uma determinada decisão proferida numa acção podem projetar-se positiva ou negativamente noutra acção, embora não exista total coincidência entre os respectivos pedidos e/ou causas de pedir.

Assim, apesar de estarmos perante pedidos diferentes, nada impede que a decisão proferida no processo 10/19.... possa e deva ser refletida na apreciação e decisão da pretensão do autor nos presentes autos.

Acresce que, quanto aos limites objectivos do caso julgado, é também jurisprudência, que cremos ser já uniforme, de que nos mesmos se incluem todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.

Tendo a decisão proferida no processo 10/19...., como pressuposto da sua decisão, a propriedade do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...32 como sendo dos aqui réus, em confronto com a posição do aqui autor, então não pode este pretender voltar a discutir o direito de propriedade sobre o mesmo, designadamente o reconhecimento de que lhe pertence.

Em face do exposto, dado o reflexo que a decisão proferida no processo 10/19...., a qual se impõe às partes, é manifesta a improcedência do pedido formulado nas alíneas a) e b), a título principal, pelo que quanto aos mesmos absolvo os réus do pedido.” (Fim da citação)


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           Inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

A. Mal andou o Mmo. Juiz ao reconhecer a verificação da autoridade do caso julgado, e ter absolvido os Réus do pedido com esse fundamento, porquanto não se verifica a tríplice identidade de pedido, causa de pedir e sujeitos processuais, como o exige o artº 581º do CPC, já que na acção 10/19.... o que era peticionado pelos autores (aqui réus) era a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento em falta de pagamento de rendas e ainda o despejo do locado, e nos presentes autos o que é peticionado é o reconhecimento do direito de propriedade e a condenação dos réus a isso

reconhecerem.

B. O caso julgado material forma-se, apenas sobre a decisão contida na sentença,

pois como determina a primeira parte do artº 621º do Código de Processo Civil (CPC) a sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga.

C. A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira já ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artº 580º nºs 1 e 2 CPC). E, na presente acção, o objecto da mesma não é dependente do objecto da acção antecedente, pelo que, também não se verifica nem se aplica aqui a figura da autoridade de caso julgado.

D. Na referida decisão, da identificada anterior acção, não foi discutida a questão

sobre a propriedade do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...32, pois o objecto do litígio prendia-se com a cobrança de rendas e a resolução do contrato de arrendamento. E, a apreciação destas questões não pressupõe a apreciação da propriedade do prédio, pois, a relação jurídica contratual de arrendamento é independente da propriedade dos imóveis.

E. Não existe identidade de sujeitos, e estamos perante pedidos diferentes, isso só por si, impede que a decisão proferida no processo 10/19.... possa e deva ser refletida na apreciação e decisão da pretensão do autor nos presentes autos, não se verificando, pois, nem a excepção de caso julgado nem a autoridade do caso julgado.

F. Não pode aceitar o recorrente aceitar nem se conformar com a decisão exarada e proferida no despacho saneador, de que «/…/ dado o reflexo que a decisão proferida no processo 10/19...., a qual se impõe às partes, é manifesta a improcedência do pedido formulado nas alíneas a) e b), a título principal, pelo que quanto aos mesmos absolvo os réus do pedido. Custas nesta parte pelo autor (artº 527º nº 1 do CPC), a serem tomadas em consideração a final.»

G. Deverá ser revogada a identificada Decisão proferida no despacho saneador e

prolatado douto Acórdão que julgue procedente o presente Recurso de Apelação, e assim, ordene ao Tribunal ‘a quo’ que proceda ao julgamento da causa com apreciação dos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da PI, a título principal pelo Autor.


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           Contra-alegou a Ré habilitada, defendendo o bem fundado da decisão recorrida.

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A questão a decidir é a do alcance da autoridade do caso julgado pela sentença proferida no processo n.º 10/19.....

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           Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

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A decisão recorrida está correta.

Nos termos do n.º 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”.

O caso julgado material forma-se mediante uma sentença de mérito que conheça da relação jurídica substancial e que declara os direitos e obrigações respectivos.

É a esta sentença que pretende garantir-se estabilidade e segurança jurídicas, o que se faz por via da força e autoridade do caso julgado, isto é, pela afirmação de que a sentença não poderá ser mais alterada nem desrespeitada.

O caso julgado constitui uma excepção dilatória que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior (artigo 580º, nº 2, da mesma lei).

O seu artigo 581º prevê os requisitos do caso julgado:

“Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”.

“Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.”

Mas o alcance e autoridade do caso julgado não se limitará aos contornos definidos nestes artigos 580.º e 581.º para a exceção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que, apesar da aparente ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela autoridade está notoriamente presente.

“A sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga” (art.621º da mesma lei).

Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e da sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença e, concretamente, dos fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado. (ver acórdão do STJ, de 20.6.2012, no processo 241/07, em www.dgsi.pt.)

Devemos ainda considerar, nos termos do art. 573º, nº 1, da lei processual, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, normativo entendido como expressão do princípio da eventualidade ou da preclusão.

Como ensina o Prof. A. Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, página 394, “preclusão de todos os meios de defesa: tanto os que não chegaram a ser deduzidos como os que poderiam ter sido deduzidos …Idem de todas as possíveis razões do autor – impossibilidade de invocar outros factos instrumentais, ou outras razões de direito não produzidas nem consideradas oficiosamente no processo anterior…” (Ainda sobre o alcance da preclusão, ver acórdão do STJ, de 10.10.2012, no proc. 1999/11, no sítio digital já referido.)

Assim, não pode a parte vencida em anterior processo contornar a imodificabilidade da decisão através dos meios de defesa que não deduziu e podia ter deduzido naquele.

Analisemos o caso concreto.

Mostra-se verificada a identidade de sujeitos, requisito que o próprio Recorrente aceita preenchido.

Se os pedidos e a causa de pedir aparentam ser diversos, haverá que reconhecer que o imóvel é o mesmo, objeto da contratação invocada na anterior ação.

Relativamente ao bem, discutia-se a posição jurídica das partes.

Na anterior ação, foi discutida a posição de senhorio, que decorria da posição de proprietário, sem que fosse apresentada outra titulação.

Está pressuposto que o Autor, (Réu na anterior ação), discutiria o invocado arrendamento e apresentaria, sob pena de preclusão, a sua posição de proprietário, que apresenta agora.

Ficou assegurado que os falecidos eram os senhorios, no pressuposto factual de que eram os proprietários, e que o Autor era arrendatário do imóvel.

Ficou assegurado que o arrendatário não tinha outro título, nada havendo que obstaculizasse à sua condenação a entregar o imóvel livre e desocupado.

Assim, na relação jurídica entre as partes, face ao identificado imóvel, ficou assegurado que o Autor foi arrendatário e não proprietário. Não pode, então, na mesma relação, ver agora reconhecida a posição de proprietário.


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Decisão.

           Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente.

Coimbra, 2025-01-28


(Fernando Monteiro)

(Vítor Amaral)

(Luís Cravo)