O PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA
CULPA GRAVE; LEVE E LEVÍSSIMA
INEXIGIBILIDADE DA RECONSTITUIÇÃO NATURAL
Sumário

I - O princípio da intangibilidade da obra pública, criado pela jurisprudência francesa no século XIX, encerra um desvio ao princípio geral de que a indemnização deve, preferencialmente, assumir a modalidade da reconstituição natural - artº 562.º do CCivil –, permitindo liminarmente o ressarcimento por sucedâneo pecuniário.
II - Para que tal principio emirja, o ente público que, irregular ou ilicitamente, atuou sobre bem jurídico titulado por ente privado, não pode atuar com culpa grave, mas antes sem culpa, ou, no máximo, com culpa leve, e, bem assim, do ressarcimento in natura resultarem danos graves para o interesse público.
III - A culpa grave ou negligência grosseira, reclama a prática de um facto que só uma pessoa excecionalmente descuidada comete.
A culpa leve exige um facto negligente em que o homem médio, o bónus pater de família, não incorreria.
A culpa levíssima revela-se num atuação negligente que a generalidade das pessoas cometeria e que só alguém excecionalmente cauteloso evitaria.
IV- Provando-se que o réu Município interveio no prédio de particular depois de diligenciar, junto de pessoa que nele era vista a cuidar, no sentido de obter desta, ou de quem ela indicasse como proprietário do terreno, o necessário consentimento, tendo ela concedido este - e não tendo os autores provado que o réu não podia confiar na qualidade/legitimidade da concedente -, tem de concluir-se que, apesar de serem perspetiváveis outras diligências para apurar dos donos do prédio, a culpa do réu é apenas leve.
V - Provando-se que foram anexados ao domínio público apenas 150m2 de um prédio com mais de 30 mil m2, que tal área se destinou a melhorar acessibilidade, mobilidade e segurança de local e estrada, qualidades estas que seriam prejudicadas com a restituição de tal parcela, e não alegando os donos que ela se apresente essencial para que eles do terreno possam adequadamente fruir, tem de concluir-se que o ressarcimento via reconstituição natural é inexigível, por constituir grave dano do interesse público, e assim, na emergência do aludido princípio da intangibilidade, devendo-o ser via sucedâneo pecuniário.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: Luís Cravo
Fernando Monteiro




ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA e BB, ambos com os sinais dos autos, intentaram contra o Município de Seia a presente ação declarativa, de condenação, com forma de processo comum.

Pedindo que o réu seja condenado a:

a) Reconhecer os autores como donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artº 1º da petição inicial;

b) Restituir aos autores a parcela de terreno desse prédio que abusiva e ilicitamente ocupou (artºs 14 e 15 da petição inicial), repondo e reconstruindo o muro que recuou no local onde antes se encontrava.

c) Pagar aos autores  a quantia de  2.500, 00 euros a título de danos não patrimoniais.

d) Pagar aos autores uma sanção pecuniária compulsória de dez euros por cada dia que decorrer entre a sua citação e a efetiva reposição do prédio na situação anterior.

e) Abster-se de praticar qualquer outro ato que ofenda o direito de propriedade dos autores sobre aquela parcela de terreno.

Para tanto alegaram, e em síntese, que:

- Os autores são donos e legítimos possuidores na proporção de metade para cada um do seguinte prédio rústico  que melhor identificam.

- Tal prédio foi por ambos adquirido por sucessão legitima dos seus pais e anteriores proprietários CC e DD;

- Para além deste título de aquisição derivada, os autores beneficiam também da presunção resultante do registo de propriedade a seu favor, nos termos do artº 7 do C.R.P.

- Antes deles os seus antecessores já ocupam e possuem o dito prédio há mais de 20, 30, 40 e 50 anos; limpando-o, surribando-o, gradando-o, fresando-o, irrigando-o, semeando nele batatas e pasto, plantando árvores fruteiras e colhendo os respetivos frutos, cedendo o seu uso a terceiros e pagando sempre as respetivas contribuições;

- Tudo isto ininterrupta e continuadamente até hoje, sem oposição de ninguém, à frente de toda a gente, com a convicção de possuírem coisa própria, como de facto é.

- Daí que também por usucapião, os autores já haviam adquirido o direito de propriedade sobre o mencionado prédio.

- Tal prédio confronta do lado norte com a estrada, mais concretamente com a Estrada Municipal 522, que liga Seia a Gouveia.

- Parte dessa estrada, que pertence e está sob a jurisdição do Município de Seia, foi por este requalificada no ano de 2018 ou 2019.

- Esta requalificação consistiu, para além do mais, num novo asfaltamento do piso, na beneficiação das bermas e, nas zonas coincidentes com aglomerados urbanos, como é o caso de S. Martinho, no arranjo dos passeios pedonais e no aproveitamento de espaços para estacionamento de veículos, com o correspondente alargamento da via.

- Antes desta obra, o prédio dos autores estava na sua estrema norte totalmente delimitado da estrada (ou da sua estreita berma em terra) por um muro em pedra de granito com cerca de 1,5 metros de altura e com mais de 200 metros de comprimento.

- Tratava-se de um muro construído em linha reta no sentido Seia Gouveia, sem qualquer saliência para a estrada ou reentrância para o prédio dos autores, que se desenvolvia entre a sua estrema poente até à guarda direita da ponte situada a nascente

- Ao executar a mencionada empreitada de beneficiação da estrada, o réu, sem pedir autorização aos autores e sem sequer lhes dar conhecimento ou uma satisfação, decidiu demolir uma parte desse muro e apropriar-se de uma parcela de terreno do prédio dos autores de cerca de 150 m2.

- Parcela essa que ocupou parcialmente com um passeio pedonal pavimentado em pavê e uma berma em terra de cerca de 3 metros de largura, e com um estacionamento de cerca de 2 metros de largura e aproximadamente 30 metros de comprimento;

- O muro foi depois recuado para o interior do prédio dos autores, apresentando agora uma configuração el L em vez da sua anterior configuração retilínea.

- Tal postura do réu afronta o direito de propriedade dos autores, pois não foi precedida de nenhum consentimento para o efeito nem de nenhum procedimento de expropriação ou de constituição de uma servidão administrativa que legitimassea ocupação abusiva que foi levada a cabo.

- Logo que dela se aperceberam, os autores insurgiram-se e escreveram ao Presidente da Câmara em funções, pedindo a reposição do muro e do tal prédio tal como dantes se encontrava;

- O réu, porém, não fez mais do que protelar explicações que acabou por nunca dar, mesmo já com o atual executivo eleito.

- Em consequência do mencionado comportamento do réu, os autores sofreram desgaste, preocupação e indignação.

O réu contestou.

Disse:

O Estado Português e a Hidromondego - Hidroelétrica do Mondego, Lda celebraram um contrato de concessão relativo ao aproveitamento hidroelétrico de Girabolhos, no âmbito da implementação do Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroelétrico, contrato esse que viria em 18.04.2016 a ser cancelado.

Por força desse cancelamento, e como forma de mitigar o impacto negativo do mesmo, em 30.06.2016 foi celebrado entre o réu, Município de Seia e a Hidromondego, um Acordo-Quadro, por meio do qual esta última se comprometeu a implementar um conjunto de medidas consubstanciadas no apoio à realização de um conjunto de obras, designadamente, a reabilitação viária da Estrada Municipal 522 entre São Martinho e Santa Marinha, as quais, no final da execução, reverteriam, como reverteram, para o Município réu.

Nessa sequência, a 11 de agosto de 2017, foi celebrado um Protocolo entre a Hidromondego  e o Município  réu, onde se definiram os termos necessários a concretizar o disposto no Acordo-Quadro, designadamente, os respeitantes à empreitada de reabilitação viária da Estrada Municipal 502-1 entre Paranhos da Beira e a rotunda da Escola de Girabolhos.

Com vista à execução da referida obra, a Hidromondego, na qualidade de dono de obra, assinou contrato para a de empreitada, iniciando-se, assim, a obra.

Esta reabilitação foi feita numa extensão aproximada de 2 805 metros, e teve como objetivo melhorar as condições de circulação e de segurança da via existente, intervindo-se essencialmente ao nível da pavimentação, drenagem e sinalização rodoviária, sendo que, para cumprimento integral do projeto, tornava-se necessário fazer a demolição de alguns muros e execução de outros.

Para todas estas intervenções, o Município  réu e a Hidromondego obtiveram de todos os particulares, as necessárias autorizações.

No local concretamente indicado pelos autores na sua petição inicial, o que sucedeu foi que a propriedade em questão, situa-se na União de Freguesias de Santa Maria e São Martinho, cujo presidente era à data e ainda é, o Ex.mo. Senhor EE.

O terreno em causa nos autos era explorado, cultivado e fruído, há vários anos, e à vista de todos, sempre pela mesma pessoa, a Senhora FF.

A fim de obter a autorização necessária para a alteração do muro, o Senhor Presidente da Junta abordou a referida senhora, no sentido de obter desta ou de quem ela indicasse como proprietário do terreno, o necessário consentimento para a execução da reabilitação do muro.

Pela senhora em questão, a única que se via a cuidar e circular na propriedade, não sendo na freguesia conhecidos os proprietários, foi dito que consentia na realização dos trabalhos, sem necessidade de outros formalismos.

Terá sido essa a informação que o Sr. Presidente da Junta de Freguesia transmitiu ao R., e que por sua vez a transmitiu à Hidromondego (o dono da obra) tendo por esta razão, avançado com os trabalhos de reconstrução do muro em questão.

A necessidade de demolir parcialmente o muro existente, recuando o alinhamento do novo muro construído que, de resto, manteve as mesmas características do original, prendeu-se com a necessidade de dotar o espaço para estacionamento longitudinalmente à via e um passeio.

A procura por lugares de estacionamento pelos moradores era elevada, pelo que, antes da intervenção, detetavam-se situações de insegurança devido a estacionamentos irregulares na via e a ocupação de passeio com viaturas, o que conduzia a sentimentos generalizados de elevada insegurança para peões e automobilistas.

Esta solução de reconstrução do muro resolveu, cabalmente, os referidos problemas, melhorou substancialmente a segurança de pessoas e bens, promovendo fortemente a segurança rodoviária, e melhorando as condições de acessibilidade e mobilidade, para todos os moradores do espaço público.

A empreitada em questão, iniciou-se em 05 de setembro do ano de 2017, tendo o muro sido executado também nesse ano.

Se os autores visitassem a propriedade certamente que não teriam esperado até maio de 2019 para reclamar da situação junto do réu.

Do mesmo modo que, se naquela pequena freguesia, onde toda a gente se conhece, alguém os conhecesse como proprietários, certamente que a informação lhes teria chegado mais cedo, como tão habitualmente sucede nos pequenos meios.

Não existiu, pois, da parte do réu ou de outrem, qualquer abuso ou má-fé, tendo, pelo contrário, tentado obter todos os consentimentos, da pessoa (no caso) que julgavam ter poder de decisão na concreta situação de autorização de reconstrução do muro, por ser esta quem cultivava, explorava, entrava e saía da propriedade e fruía o terreno, há vários anos.

 De resto, a Senhora xx  referiu que a obra beneficiava até a propriedade, não só no que respeitava a não ter veículos permanentemente a impedir-lhe a entrada, a pé ou de trator, como também ao melhoramento da entrada para o prédio, uma vez que iria ficar como ficou calcetada.

A reconstrução do muro nos termos em que foi feita, teve em vista a prossecução do interesse público.

O réu acautelou todos os interesses privados e agiu sempre de boa-fé, pelo que agiu no pressuposto do direito que lhe permitia fazer a obra de recuperação do muro.

Quando recebeu a informação dos autores a apresentaram-se como proprietários daquele prédio, foi já em maio de 2019, cerca de um ano e meio volvido da conclusão do muro.

O réu não se recusou a ressarcir os autores dos prejuízos que alegam.

Sucede que, os autores não pretendem apenas o ressarcimento, mas também a restituição da parcela, o que implicará a destruição da obra pública que no mesmo teve lugar.

A pretensão que os autores pretendem realizar nesta sede judicial, apresenta-se esvaziada de conteúdo, pois implica um sacrifício para a generalidade dos cidadãos residentes naquela freguesia, ignorando o bem comum.

O direito que os autores invocam, realizado nos precisos termos em que o preconizam restituição da parcela, repondo e reconstruindo o muro que recuou no local onde antes se encontrava - poderia ainda ser direito (numa perspetiva positivista e formal), mas já não seria justiça.

Isto porque, implicava um imenso sacrifício para a generalidade dos cidadãos ali residentes, que voltariam às situações de perigo anteriormente existentes e de carência de estacionamentos, numa desproporção que o direito, encarado na perspetiva da realização da justiça, não pode tutelar.

Por outro lado, o valor atribuído pelos autores a título de sanção pecuniária compulsória diária é excessivo, e extravasa os limites da equidade e dentro dos quais se deve situar o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade, conducentes à razoabilidade do valor encontrado.

O mesmo se diga relativamente à quantia peticionada a título de danos não patrimoniais, porquanto, o réu, por diversas vezes tentou o consenso no desfecho desta questão.

Destarte pediu:

Que a ação seja decidida com base na correta ponderação de todos os interesses envolvidos

Foi oficiosamente determinada a realização de arbitramento para determinação do valor do prédio identificado na petição inicial.

Na sequência do mencionado arbitramento, foi, por decisão proferida nos autos, fixado o valor de 74.900,00 euros  à ação.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, tudo visto e ponderado, o Tribunal decide julgar a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência, condenar o réu, Município ..., a:

1- Reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1) da factualidade assente;

2- Restituir aos autores a parcela de terreno ientificada nos artigos 9) e 10)da factualidade assente, repondo e reconstruindo o muro que recuou no local onde antes se encontrava;

3- Abster-se de praticar qualquer ato que ponha em causa o direito de propriedade e a posse dos autores sobre tal parcela de terreno;

4- Pagar aos autores a quantia de mil e quinhentos euros, a título de danos não patrimoniais;

5- Pagar aos autores uma sanção pecuniária compulsória de dez euros, por cada dia de atraso, que decorrer para além de noventa dias contados após o transito em julgado da presente decisão até efetiva reposição do prédio na situação anterior.

*

 Custas da ação a suportar pelo réu (cfr. artigo 527º do Código do Processo Civil).»

3.

Inconformado recorreu o réu.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Existe clara contradição entre a factualidade dada como provada e a decisão proferida, classificando-se a mesma de desproporcional, em face dos interesses envolvidos.

2. Com efeito, a restituição da parcela de terreno e a reconstrução do muro, implica, necessariamente, a destruição da obra pública, a saber, do passeio e estacionamento que foram executados para salvaguarda das pessoas e melhoria das acessibilidades e mobilidade dos moradores locais, promovendo a segurança rodoviária.

3. Ora, a decisão de reposição da parcela ao seu estado anterior ao da ocupação, encontrando-se a obra pública consolidada há vários anos, ou seja, já concluída, utilizada pelos moradores locais e que a estas beneficia, não obedece aos requisitos legitimadores de moderação, equilíbrio, lógica, racionalidade e proporcionalidade do exercício do direito, pelo que, a devolução da parcela nos termos preconizados, podendo ser um direito (numa perspetiva positivista e formal), já não seria de justiça, e constituiria um enorme sacrifício imposto à comunidade.

4. O direito invocado e, consequentemente, a douta sentença, aparecem desligados dos interesses da comunidade, gerando uma desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, no caso, a todos os cidadãos que habitam aquela localidade.

5. O caso em análise aponta para uma apropriação irregular e expropriação indireta.

6. Nestes casos, pode acontecer que à tomada de posse por parte da administração de um imóvel do particular ocorre uma atividade administrativa legal.

7. E foi para resolver estas situações, em que tudo aconselhava a manutenção sob pena de resultarem graves danos para o interesse público que a jurisprudência francesa enviou a figura jurídica da expropriação indireta.

8. É a consideração deste interesse público, ponderado e valorado na expropriação indireta, que conduziu a jurisprudência francesa a criar o princípio tradicional da intangibilidade da obra pública, que tem vindo a ser aplicado na jurisprudência portuguesa.

9. Deste modo, o Princípio da Intangibilidade da obra pública traduz-se na manutenção da posse por parte da Administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público.

10. Volvendo ao caso dos autos, a douta sentença recorrida deu como provado que, no âmbito do Programa Nacional de Barragens com elevado Potencial Hidroelétrico, o Estado celebrou um contrato de concessão e que desse mesmo contrato resultava a necessidade de se fazer um conjunto de obras, para as quais foi feito um projeto, projeto esse que foi publicado e sujeito a discussão pública.

11. Necessário que foi implementar esse projeto, foi celebrado um Acordo-Quadro entre o Município de Seia e a Hidromondego, sendo que esta última, na qualidade de dona da obra e executante da empreitada, executou todas as obras consoante projeto que diga-se nunca foi objeto de qualquer reclamação por parte dos AA. - e de onde resultava a necessidade de recuar o muro dos AA. para fazer uma zona de estacionamento e alargamento da via. Para segurança dos peões e melhoramento das condições de circulação de viaturas, acima de tudo, pesadas.

12. Ou seja, não existiu por parte do Réu nenhuma usurpação grosseira, pois não só a obra não foi feita por si, muito embora lhe esteve confiado o acompanhamento da mesma, como tinha de dar cumprimento a um projeto do Estado, projeto esse que foi do conhecimento público e não mereceu oposição dos AA..

13. Foi pedido consentimento à pessoa que se via circular e tratar o prédio, a qual anuiu à execução da obra sem qualquer reserva.

14. Quanto aos AA., nunca foram vistos a circular pela propriedade ou nos arredores, nem eram conhecidos da população local.

15. Atento o exposto, é notório que não existiu qualquer atentado grosseiro intencional à propriedade privada, pelo que, atendendo ao interesse geral que a obra pública representa, o douto Tribunal a quo devia ter-se abstido de ter decido pela restituição do bem aos AA., mas antes limitar-se a conceder uma indemnização aos proprietários, ora AA.

16. A douta decisão é, pois, desproporcionada e gravemente lesiva de interesses de ordem pública, pelo que se considera que a mesma violou, ostensivamente o Princípio da Proporcionalidade.

17. A diminuta importância da área da parcela ocupada, o seu pequeno valor e o facto das obras que foram realizadas pelo município permitirem uma melhor e mais segura circulação automóvel e de peões, impede o direito à restituição in natura da parcela por haver abuso de direito.

18. O Recorrente sempre se propôs chegar a um acordo com os AA. no sentido de encontrarem um justo valor para a indemnização pela apropriação do terreno (artigo 29º da contestação) por ser inviável a restituição natural, dado o interesse público subjacente à obra, posição que reiterou já na instância judicial e que não obteve aceitação por parte dos AA.

19. No caso dos autos, o terreno até foi mandado avaliar para efeitos de atribuição de valor de ação, pelo que, tendo o Recorrente manifestado a disponibilidade para ressarcimento dos prejuízos e pagamento de uma indemnização, teria sido possível utilizar o mesmo relatório para efeitos de apuramento do valor de indemnização a pagar pela parcela ocupada.

20. O douto Tribunal, apesar de dar como provada a matéria que comprova a existência do interesse público da obra, desvalorizou-o, desconsiderando totalmente, a possibilidade de manter a obra pública, mediante o pagamento da justa indemnização aos AA. pela ocupação.

21. Nessa situação, tendo o Réu município alegado a impossibilidade de restituição natural e oferecendo-se para pagar um valor de indemnização o que propôs em sede de audiência prévia e conduziu à suspensão da instância - pode interpretar-se juridicamente esse pedido também, como querendo proceder à restituição em espécie.

22. A sentença faz, pois, um errado enquadramento jurídico e uma errónea aplicação jurídica dos factos apurados.

Contra alegaram os autores pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é a seguinte:

Desproporcionalidade da decisão, devendo em vez da condenação na reconstrução do muro no local onde antes se encontrava, ser decidir uma indemnização.

5.

Apreciando.

5.1.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar.

1. O prédio rústico composto por terra de batata, centeio, pastagem com fruteiras, sita ao ..., freguesia ... - Seia, com a área de 30.400 m2, a confrontar de norte com Estrada e Ribeiro, sul com Caminho Público, nascente com GG e outro e poente com Herdeiros de HH e outro, está inscrito na matriz sob o artigo ...39.

2. Tal prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...29, e inscrita a propriedade a favor dos autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão hereditária, pela Ap. ...32 de 2010/01/29.

3. O mencionado prédio confronta do lado norte com a estrada, mais concretamente com a Estrada Municipal 522, que liga Seia a Gouveia.

4. Parte dessa estrada, que está sob a jurisdição do Município de Seia, foi por este requalificada no ano de 2018 ou 2019.

5. Esta requalificação consistiu, para além do mais, num novo asfaltamento do piso, na beneficiação das bermas e, nas zonas coincidentes com aglomerados urbanos, como é o caso de S. Martinho, no arranjo dos passeios pedonais e no aproveitamento de espaços para estacionamento de veículos, com o correspondente alargamento da via.

6. Antes desta obra, o prédio dos autores estava na sua estrema norte totalmente delimitado da estrada (ou da sua estreita berma em terra) por um muro em pedra de granito com cerca de 1,5 metros de altura e com mais de 200 metros de comprimento.

7. Tratava-se de um muro construído em linha reta no sentido Seia Gouveia, sem qualquer saliência para a estrada ou reentrância para o prédio dos autores, que se desenvolvia entre a sua estrema poente até à guarda direita da ponte situada a nascente.

8. Ao executar a mencionada empreitada de beneficiação da estrada, o réu, sem pedir autorização aos autores e sem sequer lhes dar conhecimento ou uma satisfação, decidiu demolir uma parte desse muro e apropriar-se de uma parcela de terreno do prédio dos autores de cerca de 150 m2.

9. Parcela essa que ocupou parcialmente com um passeio pedonal pavimentado em pavê e uma berma em terra de cerca de 3 metros de largura, e com um estacionamento de cerca de 2 metros de largura e aproximadamente 30 metros de comprimento.

10. O muro foi depois recuado para o interior do prédio dos autores, apresentando agora uma configuração em L em vez da  sua anterior configuração retilínea.

11. Tal postura do réu não foi precedida do consentimento dos autores para o efeito nem de nenhum procedimento de expropriação ou de constituição de uma servidão administrativa que legitimasse a ocupação que foi levada a cabo.

12. Em consequencia do mencionado comportamento do réu, os autores sofreram desgaste, preocupação e indignação.

13. Em 2013, o Estado Português e a Hidromondego - Hidroelétrica do Mondego, Lda celebraram um contrato de concessão relativo ao aproveitamento hidroelétrico de Girabolhos, no âmbito da implementação do Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroelétrico, contrato esse que viria em 18.04.2016 a ser cancelado.

14. Por força desse cancelamento, e como forma de mitigar o impacto negativo do mesmo, em 30.06.2016, foi celebrado entre o R., Município de Seia, e a Hidromondego um acordo -Quadro, por meio do qual esta última se comprometeu a implementar um conjunto de medidas consubstanciadas no apoio à realização de um conjunto de obras, designadamente, a reabilitação viária da Estrada Municipal 522 entre São Martinho e Santa Marinha, as quais, no final da execução, reverteriam, como reverteram, para o Município réu.

15. Nessa sequência, a 11 de agosto de 2017, foi celebrado um Protocolo Entre a Hidromondego e o Município réu, onde se definiram os termos necessários a concretizar o disposto no Acordo-Quadro, designadamente, os respeitantes à empreitada de reabilitação viária da Estrada Municipal 502-1 entre Paranhos da Beira e a rotunda da Escola de Girabolhos.

16. Com vista à execução da referida obra a Hidromondego,  na qualidade de dono de obra, assinou contrato para a de empreitada, iniciando-se, assim, a obra.

17. Esta reabilitação foi feita numa extensão aproximada de 2 805 metros, e teve como objetivo melhorar as condições de circulação e de segurança da via existente, intervindo-se essencialmente ao nível da pavimentação, drenagem e sinalização rodoviária, sendo que, para cumprimento integral do projeto, tornava-se necessário fazer a demolição de alguns muros e execução de outros.

18. A fim de obter a autorização necessária para a alteração do muro, o Senhor Presidente da Junta abordou a senhora FF, no sentido de obter desta ou de quem ela indicasse como proprietário do terreno, o necessário consentimento para a execução da reabilitação do muro.

19. Pela senhora em questão, que era vista a cuidar e circular na propriedade, foi dito que consentia na realização dos trabalhos, sem necessidade de outros formalismos.

20. Terá sido essa a informação que o Sr. Presidente da Junta de Freguesia transmitiu ao réu e que por sua vez a transmitiu à Hidromondego (o dono da obra) tendo, por essa razão, avançado com os trabalhos de reconstrução do muro em questão.

21. A necessidade de demolir parcialmente o muro existente, recuando o alinhamento do novo muro construído que, de resto, manteve as mesmas características do original, prendeu-se com a necessidade de dotar o espaço para estacionamento longitudinalmente à via e um passeio.

22. A procura por lugares de estacionamento pelos moradores era elevada, pelo que, antes da intervenção, detetavam-se situações de insegurança devido a estacionamentos irregulares na via e a ocupação de passeio com viaturas, o que conduzia a sentimentos generalizados de elevada insegurança para peões e automobilistas.

23. Esta solução de reconstrução do muro resolveu, cabalmente, os referidos problemas, melhorou substancialmente a segurança de pessoas e bens, promovendo fortemente a segurança rodoviária, e melhorando as condições de acessibilidade e mobilidade, para todos os moradores do espaço público.

24. A empreitada em questão, iniciou-se em 05 de setembro do ano de 2017, tendo o muro sido executado também nesse ano.

25. A reconstrução do muro nos termos em que foi feita, teve em vista a prossecução do interesse público.

5.2.

Perscrutemos então.

5.2.1.

O direito de propriedade, consagrado constitucional - art. 62º da Constituição,  -  e legalmente – artº 1305º do CCivil - não é garantido em termos absolutos, mas sim, atendendo à sua função social, dentro dos limites e com as restrições  legalmente previstas e definidas.

Tal resulta, vg. do disposto no artº1305.º do CCivil, o qual estatui:

«O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.»

Uma das formas de se bulir com o direito de propriedade é através da expropriação.

Sendo que o ato expropriativo tem na sua génese e escopo, através de um processo  legal específico, a tutela e prossecução de direitos e interesses públicos.

Se a administração pública não respeita os critérios legais expropriativos, ou, por qualquer modo, viola ilicitamente o direito de propriedade, ela deve ressarcir o proprietário nos termos legais aplicáveis.

Assim, urge ter presente que o princípio geral e primeiro, na indemnização, é o da reconstituição natural.

Na verdade, estabelece o artº 562.º do CCivil, como princípio geral:

«Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.»

E que a indemnização apenas é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor – artº 566º do CCivil.

5.2.2.

Um dos desvios a esta regra geral tem-se verificado aquando da violação do direito de propriedade particular por um órgão do Estado ou por um ente dotado de poderes públicos.

Assim, tem-se entendido que se a violação não revestir um ato grosseiro/doloso, mas apenas encerrar uma atuação negligência ou culpa leve, e se os direitos e  interesses públicos que se pretenderam realizar e atingir assumirem valor e magnitude elevados -  desde logo versus o interesse do direito violado - e a reconstituição natural acarretar danos graves para o interesse público, deve o particular ver reposto o seu direito de propriedade não através de uma reconstituição natural, com reposição da situação que ante lesão existia, mas apenas através de uma indemnização/sucedâneo pecuniário.

É o que a doutrina e jurisprudência definiram como  o princípio da intangibilidade da obra pública.

Na verdade:

«I. O princípio da intangibilidade da obra pública encerra, conceitualmente, a ponderação das consequências da violação do princípio da legalidade da Administração Pública, quando apesar da sua actuação à margem da lei, redunda na prossecução do interesse público.

II. No direito francês o princípio da intangibilidade da obra pública e a teoria da via de facto são conhecidos desde o século XIX: “L´ouvrage public mal planté ne se détruit pas”: foi criação da jurisprudência francesa, concretamente, a partir do Arrêt Robin de la Grimaudière, de 7.7.1853.  - Ac. STJ de 11.09.2018, p. 342/12.4TBFAF.G2.S2, in dgsi.pt, como os infra cits.

Efetivamente:

«I - O princípio da intangibilidade da obra pública foi criado como forma de garantir a manutenção da posse por parte da administração pública quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público .

II – Todavia, a aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos em que a apropriação de prédios por uma entidade pública, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado» - . Ac. TRG de 27.04.2023, p. 1484/21.9T8GMR.G1.

Ou ainda:

«Este princípio traduz-se na manutenção da posse por parte da Administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público.» -  Ac. TRL de de 30.03.2023, p. 807/11.3TBSCR.L1-6.

(sublinhado nosso)

Vemos pois que, para a emergência daquele princípio, se exigem requisitos subjetivos e objetivos.

Naquela vertente não pode a administração agir com erro grosseiro, mas apenas com negligência ou culpa leve.

Nesta ótica exige-se que a reconstituição natural acarrete para o erário público dano ou prejuízo grave, em si mesmo considerado, e por comparação com o prejuízo do direito particular atingido.

Obviamente que estes princípios já emergem nas relações entre entes privados.

Pois que um direito não pode, por via de regra,  e sob pena do seu exercício abusivo, que o torna ilegítimo,  ser exercido atribilária e ilimitadamente, mas antes devendo ser exercido com  moderação, equidade e equilíbrio.

É o que dimana do disposto no artº 334º do CCivil, a saber:

«É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»

Se assim é no domínio meramente privado, por igualdade ou maioria de razão – argumento a fortiori – o deve ser quando na relação jurídica intervenha um ente público presumivelmente com o fito único de prosseguir o interesse público comum.

Ademais, e naquela vertente subjetiva, há que ter presente que:

«III - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).

IV - A negligência pode também assumir diferentes graus: será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado; será leve quando o padrão atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa excepcionalmente descuidada e incauta teria também incorrido.

V - A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.

VI - A culpa grave deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio acidentado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.» - Ac. STJ de 24.02.2010, p. 747/04.2 TTCBR.C1.S1

Ou seja:

a) A culpa grave ou negligência grosseira, reclama a prática de  um facto que só uma pessoa excecionalmente descuidada comete;

b) A culpa leve  exige a prática de um facto  negligente em que o bom pai de família não incorreria;

c) A culpa levíssima  revela-se num atuação factual negligente que a generalidade das pessoas cometeria e que só alguém excecionalmente cauteloso evitaria.

5.2.3.

O caso vertente.

5.2.3.1.

A julgadora decidiu nos seguintes, essenciais, termos:

«Estabelece o artigo 1305º do Código Civil que, «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.

Significa isto que o proprietário tem o direito a não ser perturbado no uso dos seus poderes de uso fruição e disposição, podendo exigir dos outros comportamentos de abstenção de perturbação desses seus poderes.

Da factualidade assente resulta que o réu decidiu executar obras de beneficiação da estrada que confina com o prédio dos autores e, sem pedir autorização a estes e/ou sequer dar-lhes conhecimento, decidiu demolir uma parte do muro existente no prédio dos autores e apropriar-se de uma parcela de terreno de cerca de 150 m2. Parcela essa que ocupou parcialmente com um passeio pedonal pavimentado em pavê e uma berma em terra de cerca de 3 metros de largura, e com um estacionamento de cerca de 2 metros de largura e aproximadamente 30 metros de comprimento.

…A realização de tais obras não foi precedida do consentimento dos autores para o efeito nem de nenhum procedimento de expropriação ou de constituição de uma servidão administrativa que legitimasse a ocupação que foi levada a cabo.

 Em consequencia de tal factualidade, os autores estão privados de parte do prédio que lhes pertence.

Alega o réu que a fim de obter a autorização necessária para a alteração do muro, o Senhor Presidente da Junta abordou a senhora FF, no sentido de obter desta ou de quem ela indicasse como proprietário do terreno, o necessário consentimento para a execução da reabilitação do muro, sendo que, pela senhora em questão, que era vista a cuidar e circular na propriedade, foi dito que consentia na realização dos trabalhos, sem necessidade de outros formalismos.

Sucede que a tal Senhora FF, cuja identificação completa e cabal, o réu nem sequer não facultou aos autos, não tem legitimidade, e à data também não tinha, para autorizar o réu a levar a efeito as obras descritas na factualidade assente.

Para além disso, encontrando-se o prédio em causa descrito na Conservatória do Registo Predial ... e aí inscrita a propriedade a favor dos autores, com relativa facilidade o réu poderia ter alcançado a identificação dos letigimos proprietários, se tivesse agido com o zelo e a diligencia que se lhe impunham, podendo inclusivamente lançar mão do competente processo de expropriação, o que não fez.

Decorrentemente, forçoso é concluir que o réu praticou atos perturbadores da posse e direito de propriedade dos autores, devendo o mesmo ser condenado a restituir aos autores a parcela de terreno que ocupou, repondo e reconstruindo o muro que recuou no local onde antes se encontrava e a abster-se da prática de atos lesivos desse direito.

Decorrentemente, os pedidos formulados nas alienas b), e e) do petitório deverão ser julgados integralmente procedentes.»

5.2.3.2.

Sdr, e considerando os factos dados como provados, não se acompanha, na integra, o entendimento plasmado na sentença.

Em primeiro lugar, e desde logo na vertente subjetiva, não se pode concluir que o réu agiu com má fé, grosseiramente e com culpa grave

Na verdade, provou-se que:

18. A fim de obter a autorização necessária para a alteração do muro, o Senhor Presidente da Junta abordou a senhora FF, no sentido de obter desta ou de quem ela indicasse como proprietário do terreno, o necessário consentimento para a execução da reabilitação do muro.

19. Pela senhora em questão, que era vista a cuidar e circular na propriedade, foi dito que consentia na realização dos trabalhos, sem necessidade de outros formalismos.

20. Terá sido essa a informação que o Sr. Presidente da Junta de Freguesia transmitiu ao réu e que por sua vez a transmitiu à Hidromondego (o dono da obra) tendo, por essa razão, avançado com os trabalhos de reconstrução do muro em questão.

Resulta das partes sublinhadas que o réu diligenciou no sentido de obter o consentimento do proprietário para a realização das obras.

Tendo contactado a pessoa que no prédio era vista a cuidar e circular, esta deu tal consentimento sem necessidade de mais formalismos.

Ou seja, parecendo inculcar no réu a convicção ou ideia de que a sua anuência era suficiente para o efeito por este pretendido.

Certo é que não se sabe se a qualidade da FF  era adequada  de sorte a atribuir-lhe legitimidade  bastante para tornar suficiente a sua aquiescência, e de tal suficiência convencer o réu.

Mas perante o ora apurado, competia aos autores – como facto impeditivo ou extintivo dos efeitos decorrentes do provado: artº 342º nº2 do CCivil -  provar que tal qualidade e legitimidade inexistiam, que o réu de tal falta se deveria ter apercebido, e que, assim, o consentimento concedido era irrelevante ou insuficiente.

Não tendo operado tal prova, ficam apenas apurados os singelos factos nos aludidos  pontos constantes.

Ora perante eles, e «por essa razão», ou seja, por causa deles, o réu avançou com os trabalhos.

Destarte, perante tais factos não se pode concluir que o réu agiu com culpa grave, a qual, como supra se expendeu, reclama a prática de  um facto que só uma pessoa excecionalmente descuidada comete.

Pois que, reitera-se, tem de concluir-se, atento o acervo factual apurado, que ele ficou convicto que o consentimento da FF era legítimo e suficiente.

Certo é que, à cautela, poderia diligenciar adicionalmente pela identificação dos proprietários, vg., como dito na sentença, através da consulta do registo predial.

Mas perante a postura da FF, e, porventura, alguma necessidade e premência na realização da obra, não foi inação ou omissão que se possa concluir só ser oriunda de uma pessoa excecionalmente descuidada.

Quando muito pode dizer-se que seriam diligências adicionais  exigíveis a um cidadão medianamente cuidadoso, desperto e diligente, um bónus pater família.

Mas, aqui, como supra se expôs, não nos encontramos no âmbito do erro grosseiro ou culpa grave, mas estamos apenas no domínio da culpa leve.

5.2.3.3.

Em segundo lugar e no atinente ao dano ou prejuízo do direito dos autores e o decorrente para o réu  por virtude da reconstituição natural.

Provou-se:

O réu demoliu uma parte do muro de pedra granítica com cerca de 1,5 metros de altura e com mais de 200 metros de comprimento que delimitava a estrema norte do prédio dos autores.

Fez recuar o muro e  apropriou-se de uma parcela de terreno do prédio dos autores de cerca de 150 m2.

9. Parcela essa que ocupou parcialmente com um passeio pedonal pavimentado em pavê e uma berma em terra de cerca de 3 metros de largura, e com um estacionamento de cerca de 2 metros de largura e aproximadamente 30 metros de comprimento.

21. A necessidade de demolir parcialmente o muro existente, recuando o alinhamento do novo muro construído que, de resto, manteve as mesmas características do original, prendeu-se com a necessidade de dotar o espaço para estacionamento longitudinalmente à via e um passeio.

22. A procura por lugares de estacionamento pelos moradores era elevada, pelo que, antes da intervenção, detetavam-se situações de insegurança devido a estacionamentos irregulares na via e a ocupação de passeio com viaturas, o que conduzia a sentimentos generalizados de elevada insegurança para peões e automobilistas.

23. Esta solução de reconstrução do muro resolveu, cabalmente, os referidos problemas, melhorou substancialmente a segurança de pessoas e bens, promovendo fortemente a segurança rodoviária, e melhorando as condições de acessibilidade e mobilidade, para todos os moradores do espaço público.

25. A reconstrução do muro nos termos em que foi feita, teve em vista a prossecução do interesse público.

Há ainda a considerar que, pela perícia constante dos autos, resulta que:

- o prédio em causa é constituído por uma área urbana de 3.000 m2, valendo 15 euros o m2. e por uma área inserida em espaço RAN e REN de 27.400 m2, à razão de 1,00 euro o m2.

Perante estes factos tem de concluir-se que a dignidade e magnitude do interesse público são  relevantes.

Na verdade, está em causa o melhoramento e alargamento da via no local, com possibilidade de estacionamento.

Acarretando tais obras melhores condições de acessibilidade, mobilidade e segurança.

Em suma: contribuindo elas para o claro melhoramento da qualidade de vida das pessoas em geral e de quem na zona reside em particular.

 Já o prejuízo dos autores resume-se a uma diminuição da área do seu prédio em 150m2.

Área esta que se afigura diminuta, não apenas em si mesma, como, principalmente, por reporte à área total do terreno, a qual, como se viu, é extensa, ultrapassando os três hectares.

Os autores não alegaram nem provaram que, por qualquer motivo, a restituição  dos 150m2 ao terreno seja essencial, ou mesmo apenas conveniente, para que dele possam  retirar especiais utilidades ou dele  possam adequadamente fruir.

Por conseguinte, se atingindo a conclusão de que a aludida restituição ao terreno  da superfície anexada pelo réu constituiria um grave dano para o interesse público.

Pois que prejudicaria a acessibilidade, mobilidade e segurança de quem ali caminhe ou circule, contendendo assim com a qualidade de vida dos transeuntes e dos condutores de veículos.

Acresce que, como se viu, inexistem nos autos elementos que provem que o prejuízo oriundo  para os autores da anexação dos aludidos 150m2 é também grave e relevante de tal sorte que pudesse impedir a manutenção de tal área no domínio publico ou, ao menos, diminuí-la.

Nesta conformidade se concluindo que também o requisito objetivo da gravidade do dano para o interesse público se encontra presente.

Do que decorre que a reconstituição in natura não deve ser concedida, antes o ressarcimento devendo consecutir-se pela via do sucedâneo pecuniário.

Esta consecução deverá ter em consideração a área anexada de 150m2, se ela se situa em área urbana ou em espaço REN ou RAN, bem como quaisquer outros factos ou elementos relevantes que possam influir no quantum da indemnização patrimonial.

Tudo a efetivar em sede de incidente de liquidação.

Sendo que o valor não patrimonial arbitrado é, desde já, de manter.

Procede o recurso.

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogar a sentença e, agora, para além da indemnização por danos não patrimoniais já arbitrada, que se mantém, condenar o réu a indemnizar os autores por danos patrimoniais decorrentes da anexação da parcela de 150m2, a liquidar no respetivo incidente.

 

Custas recursivas pelos autores.

Coimbra, 2025.01.28