Por força do disposto na al. a), do n.º 2, do artigo 37.º (Fraude à lei) do DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho, é nula a cessão do crédito à habitação efetuada para uma entidade não submetida à supervisão do Banco de Portugal, improcedendo, por isso, o pedido de habilitação formulado pela cessionária na pendência da execução.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,
1.º Juiz adjunto……… João Manuel Moreira do Carmo
2.º Juiz adjunto………. José Vítor dos Santos Amaral
Recorrida…………………….A... S.À.R.L.
Melhor identificadas nos autos.
a) O presente recurso vem interposto por AA, executada nos autos apensos à ação executiva em que é exequente Banco 1..., S. A. e executados a recorrente, BB e CC, a requerente A... S.À.R.L., e visa a decisão que julgou procedente o pedido de habilitação de cessionário formulado pela recorrida.
A recorrida alegou, muito em síntese, que, por contrato de cessão de créditos, celebrado através de escritura pública outorgada em 26 de setembro de 2023, o exequente Banco 1..., S.A., cedeu-lhe o crédito de que é titular sobre os executados, com todos os direitos e garantias associados.
Conclui, pedindo a sua habilitação na posição processual do exequente.
Juntou cópia da escritura pública de cessão de créditos e extrato da listagem anexa de créditos.
A Recorrente contestou alegando as razões que coincidem coma as indicadas mais abaixo nas conclusões do seu recurso.
Realizou-se a audiência de julgamento e depois foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«V. Dispositivo
Face ao exposto, e nos termos das supracitadas disposições legais, o Tribunal decide:
i. Julgar totalmente procedente, por provado, o presente incidente de habilitação de cessionário, declarando a requerente A... S.À.R.L. habilitada nos autos principais, assumindo a posição de exequente em substituição do Banco 1..., S.A.
ii. Absolver o requerente do pedido de condenação de litigância de má fé contra si deduzido;
Valor: 176.336,13 € (art. 304.º, n.º 1 e 297.º, n.º 1 do CPC).
Custas pela requerida, face à improcedência da contestação – art. 539.º, n.º 1 do CPC.»
b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Recorrente, cujas conclusões são as seguintes:
«A. A Recorrente discordando da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou procedente o incidente de habilitação de cessionário da recorrida, vem dela agora interpor recurso.
B. Na sentença, o tribunal considerou que a sociedade A..., S.À.R.L., sendo uma sociedade constituída e registada no Luxemburgo, mantém a sua personalidade jurídica e, consequentemente, a sua capacidade judiciária, mesmo que atue em violação do art. 4.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC). A decisão conclui que, apesar da falta de registo comercial em Portugal ou da constituição de uma representação permanente, a sociedade conserva a personalidade atribuída pela sua lei pessoal, e, assim, pode estar em juízo sem impedimentos.
C. O artigo 4.º, n.º 1 do CSC é claro ao exigir que uma sociedade estrangeira que exerça atividades comerciais em território nacional por mais de um ano deva instituir uma representação permanente em Portugal e cumprir o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial. Este requisito tem como finalidade assegurar a regularidade da atividade comercial e a proteção dos interesses das partes envolvidas, bem como a fiscalização da atuação das sociedades estrangeiras em território português.
D. A decisão do tribunal subestima a importância do regime jurídico nacional, colocando as sociedades estrangeiras numa posição privilegiada em comparação com as nacionais, ao permitir-lhes contornar as exigências de registo sem enfrentar consequências processuais.
E. O art. 4.º, n.º 1 do CSC, impõe uma obrigação clara e objetiva às sociedades estrangeiras que pretendem atuar em território português. A sua violação não pode ser tratada de forma superficial. A ausência de registo e de constituição de uma representação permanente implica que a sociedade opera de forma irregular, o que deve, necessariamente, ter impacto na sua capacidade de estar em juízo. O princípio da boa-fé processual exige que as sociedades que atuam no país respeitem as regras locais, sob pena de verem limitadas as suas capacidades de litigar.
F. O legislador impôs essa obrigação para garantir que todas as sociedades estrangeiras que operem em Portugal sejam sujeitas às mesmas regras de transparência e regulação que as sociedades nacionais. O não cumprimento deste requisito prejudica não apenas os interesses dos devedores, mas também o próprio sistema judicial e comercial português, ao permitir que sociedades estrangeiras operem à margem da lei.
G. A ausência de registo comercial deveria implicar a ineficácia do ato de cessão de créditos no que respeita à sua execução em território português. Sem o registo e representação permanentes, a sociedade A... não está legalmente habilitada a exercer direitos de crédito em território português, incluindo a capacidade de executar judicialmente tais créditos.
H. O tribunal, ao desconsiderar a violação do art. 4.º, n.º 1 do CSC, cometeu um erro grave ao não reconhecer que a falta de registo comercial afeta diretamente a capacidade judiciária da sociedade estrangeira. A violação desse requisito deve er
interpretada como um impedimento à atuação da cessionária em juízo, o que justifica
a procedência da exceção de falta de personalidade e capacidade judiciária, devendo a sentença ser revogada nesse ponto.
I. Porém, o tribunal não considerou que a estranheza de o processo da recorrente ter transitado do contencioso para pré-contencioso dentro da instituição bancária.
J. Para depois haver uma cessão de créditos.
K. E manter o processo em execução.
L. Todo o processo que envolve a casa de morada de família da recorrente, e a forma como tem sido conduzido pela recorrida é, no mínimo, sui generis…
M. Tanto que está em curso uma investigação por suposta fraude à lei comercial e fraude à lei fiscal, quanto aos negócios entre Banco 1..., S.A e A... S.À.R.L., em especial o que envolve a recorrente que lesa e muito os seus direitos.
N. Tendo já sido comunicada a referida investigação aos autos principais e apensos.
O. A sentença concluiu, ainda, que a cessão de créditos é válida e que a alteração do titular do crédito (Banco 1..., S.A. para A..., S.À.R.L.) não prejudica a posição da devedora. O tribunal sustentou que, independentemente da natureza da cessionária, o contrato de mútuo, os direitos e as obrigações do devedor permanecem inalterados, e que a devedora pode exercer os mesmos meios de defesa contra a cessionária que tinha contra o cedente (Banco 1...). Além disso, o tribunal afastou a argumentação de que a cessão criaria qualquer impedimento à retoma do contrato, concluindo que a alteração da titularidade não afeta o exercício do direito de retoma pela devedora.
P. A sentença desconsidera a complexidade da cessão de créditos quando a cessionária é uma entidade não sujeita à supervisão de uma autoridade financeira, como o Banco de Portugal, diferentemente do Banco 1..., S.A.
Q. O simples fato de o contrato de mútuo permanecer formalmente inalterado não significa que a cessão não traga implicações práticas significativas para a devedora, especialmente no que diz respeito ao direito de retoma e à aplicação de regras imperativas de proteção ao consumidor previstas no Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
R. A decisão não levou em conta que uma entidade que não é uma instituição de crédito está menos vinculada às exigências de renegociação e ao cumprimento de medidas de apoio ao mutuário em situações de incumprimento, o que coloca a devedora numa situação desvantajosa.
S. Além disso, o tribunal desconsiderou a alegação de fraude à lei, que surge claramente do contexto da cessão. A transferência do crédito para uma entidade que não é uma instituição de crédito, sabendo que a devedora pretendia retomar o contrato, levanta suspeitas legítimas sobre a intenção de evitar a aplicação das disposições imperativas de proteção ao consumidor e dificultar o exercício dos direitos da devedora, nomeadamente o direito de retoma.
T. A cessão de créditos para uma entidade como a A..., S.À.R.L., que não é uma instituição de crédito, enfraquece as proteções conferidas ao devedor, nomeadamente o direito de retoma do contrato, conforme previsto no Decreto-Lei n.º 74-A/2017. Esse diploma estabelece um conjunto de normas imperativas que visam proteger o devedor em situações de crédito hipotecário, e a cessão para uma entidade que não é regulada pelas mesmas normas compromete a eficácia dessas proteções.
U. O art. 37.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 estabelece que são nulas as situações criadas com o intuito de evitar a aplicação das disposições desse diploma, o que inclui a cessão de créditos para entidades que não estão sujeitas ao regime jurídico aplicável às instituições financeiras.
A cessão operada neste caso enquadra-se perfeitamente nesta categoria, pois ao transferir o crédito para uma sociedade que não tem a mesma obrigação de cumprir com o regime de proteção ao consumidor, o cedente (Banco 1...) contornou as disposições legais destinadas a proteger a devedora.
V. A cessão de créditos para uma entidade que não é uma instituição de crédito deve ser analisada à luz do art. 37.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, que visa proteger os mutuários de crédito à habitação. Esta disposição legal visa impedir manobras que possam excluir o crédito do âmbito de proteção desse diploma. A cessão para uma sociedade que não está sujeita ao Regime Geral das Instituições de Crédito tem como efeito prático enfraquecer a proteção da devedora, especialmente o direito de retoma, dado que a cessionária não está vinculada às mesmas obrigações que uma instituição de crédito teria para facilitar essa retoma
W. No caso em apreço, a cessão foi realizada num contexto em que a devedora já tinha manifestado a intenção de retomar o contrato, sendo que a transferência do crédito para uma entidade não financeira dificulta diretamente esse exercício. A cessão de créditos teve como objetivo dificultar a posição do devedor e evitar a aplicação de normas de proteção ao consumidor, pelo que esta cessão deve ser considerada nula ou ineficaz.
X. Além disso, a transmissão dos créditos foi realizada com o intuito de mascarar a verdadeira natureza da operação, dado que a cessão visou apenas afastar a devedora da relação com o Banco 1..., S.A., uma entidade obrigada a cumprir os deveres de proteção do consumidor. Esta simulação prejudica a devedora ao criar um ambiente em que os seus direitos, nomeadamente o de retoma, ficam comprometidos.
Y. A cessão de créditos realizada pelo Banco 1..., S.A. para a A..., S.À.R.L. altera significativamente as condições da relação contratual, prejudicando a devedora. Enquanto o Banco 1..., S.A. era uma instituição de crédito sujeita à supervisão do Banco de Portugal, a cessionária não está vinculada pelas mesmas obrigações, nomeadamente as relativas à renegociação de crédito e ao cumprimento dos mecanismos de retoma previstos no Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
Z. Uma cessão que cria uma situação desfavorável para o devedor, especialmente ao retirar-lhe as proteções conferidas por um regime legal específico de proteção ao consumidor, é ineficaz.
AA. A cessão de créditos para uma sociedade não financeira torna impraticável o exercício efetivo do direito de retoma, conforme previsto no art. 28.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
BB. O Decreto-Lei n.º 74-A/2017 foi expressamente desenhado para proteger o devedor em contratos de crédito hipotecário, estabelecendo garantias que devem ser mantidas durante toda a vigência do contrato, independentemente da situação do crédito.
CC. A cessão para uma entidade que não é uma instituição de crédito cria uma situação que se desvia do escopo de proteção ao consumidor previsto no diploma, configurando uma fraude à lei.
DD. O facto de a cessão alterar o titular do crédito para uma entidade menos regulada retira à devedora a segurança jurídica e a previsibilidade que as disposições legais imperativas visam garantir.
EE. O que justifica que a sentença seja anulada, ou pelo menos, corrigida nos termos supra expostos.
V – (…)
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso, alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, com o que VV. Excias. farão a devida justiça.»
Taxa de Justiça: ...72
c) Foram produzidas contra-alegações pela A... S.À.R.L, com estas conclusões:
«A. As presentes contra-alegações vêm no seguimento do recurso interposto pela Recorrente, da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, a fls., datado de 16/09/2024, que julgou totalmente procedente, por provado, o presente incidente de habilitação de cessionário, declarando a requerente A... S.À.R.L. habilitada nos autos principais, assumindo a posição de exequente em substituição do Banco 1..., S.A.
B. Com o devido respeito, não poderá a Recorrida concordar com as alegações e conclusões da Recorrente
C. Ora, quanto à questão da personalidade e capacidade judiciária, da aqui recorrida, não suscita qualquer controvérsia, que estamos perante uma sociedade comercial, constituída ao abrigo da lei do Luxemburgo, sediada nesse país, em cujo registo comercial se encontra matriculada sob o n.º ...45.
D. Mais, também constitui um facto assente que, a aqui Recorrida, tem como objeto social a aquisição, detenção, administração e alienação de créditos.
E. A sua atividade em Portugal, encontra-se devidamente regularizada junto dos serviços nacionais, sendo portadora do número de identificação de entidade equiparada estrangeira n.º ...06 e encontrando-se devidamente autorizada para efeitos de aquisição de créditos hipotecários.
F. Assim, a Recorrida encontra-se devidamente representada, formal e materialmente, por B..., S.A., com sede na Avenida ..., Piso 12, ... ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ...88, no exercício do poder atribuído pela procuração outorgada, em 24 de Outubro de 2023, no Cartório Notarial de Luxemburgo, devidamente apostilhada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do Grão-Ducado do Luxemburgo em 26 de Outubro de 2023 (cfr. procuração registada em https://www.procuracoesonline.pt/ProcuracoesOnline/com o código ...02), nas pessoas dos seus procuradores constituídos.
G. Assim, e ao contrário do que se pretende fazer valer a Recorrente, a aqui ecorrida, encontra-se devidamente representada em Portugal, através dos procuradores constituídos para o efeito e, por fim, devidamente representados em juízo pelos seus mandatários, nos presentes autos.
H. Contudo, ainda que assim não fosse, conforme decidiu – e bem – o douto Tribunal a quo, a existência de personalidade e capacidade judiciária de sociedade comercial estrangeira, que se rege de acordo com a sua lei pessoal (Luxemburguesa), a exercer atividade em Portugal, por mais de um ano, que não cumpra o disposto no artigo 4.º, n. º1, do CSC, não tem como consequência a extinção da sua personalidade e capacidade judiciária.
I. Aliás, caso assim fosse, seria um contrassenso prever a possibilidade de a sociedade estrangeira ser demandada nos tribunais portugueses e simultaneamente prever a extinção da sua personalidade jurídica.
J. As consequências são as previstas no n. º 3 e 4, do artigo 4.º, CSC, e que se subsumem à possibilidade de encerramento da sua atividade em Portugal e liquidação dos bens que se situem em Portugal.
K. Termos em que, conclui-se que, andou bem o Tribunal a quo, ao julgar totalmente improcedente, a invocada exceção de ausência de personalidade e capacidade judiciária da Recorrida, fazendo uma correta aplicação do direito aos factos, mais concretamente, quanto ao disposto no artigo 4.º da CSC.
L. Ainda, em instância recursiva, vem, a Recorrente, alegar de forma insuficiente, sem a devida densificação jurídica e sem prova factual, bastando-se com meras conclusões, digam-se, descabidas, de uma hipotética tentativa de prejudicar a posição processual da Recorrente, nomeadamente, comprometendo o seu direito de retoma contratual.
M. Acompanhamos na íntegra, a posição do douto Tribunal a quo, cujo entendimento não merece qualquer reparo, uma vez, a recusa da substituição processual tem por base critérios processuais e não causas pessoais, ligados ao próprio devedor, pois, caso contrário, bastaria a mera alegação de que a cessão inviabiliza um eventual acordo com o Cedente, para não ser admitida a substituição, o que é de todo inexequível.
N. Além do mais, não só a Recorrente, não demonstra jurídica e factualmente, em que termos a sua posição fica afetada, como se contradiz na sua argumentação, quando já avançou em sede de contestação, que se frustraram as tentativas de negociação com o Cedente.
O. Por fim, quanto à invocada nulidade da cessão dos créditos, por alegado intuito fraudulento, mais uma vez, a Recorrente, apresenta meras conclusões, desprovidas de fundamentação jurídica e fática.
P. Em primeiro lugar, não é pelo facto de ocorrer a transmissão do crédito exequendo para a esfera jurídica de uma entidade (que não tem a natureza de instituição de crédito), que prova a existência de um intuito fraudulento por parte do Cedente com a Cessionária, de esta primeira eximir-se ao cumprimento das regras imperativas do Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
Q. Mais, também não é pelo facto de a Recorrida, não ser uma entidade supervisionada por uma autoridade financeira, como é o caso do Banco de Portugal, que a Recorrente enquanto cliente bancária/devedora, vê diminuídas as suas garantias de proteção ao consumidor.
R. Contudo, e como será expetável, encontrando-se o contrato resolvido pelo Cedente, por incumprimento definitivo, jamais, pode vir a Recorrente requerer a execução do contrato, por parte da Recorrida, uma vez que, a situação do contrato é de resolução e contencioso judicial, regendo-se pelas normas previstas no Código Civil e Código de Processo Civil.
S. Não obstante, e como bem referiu o douto Tribunal a quo, a aqui Recorrida, encontra-se vinculada, tal como qualquer outra entidade (bancária ou não bancária), às regras imperativas de proteção ao consumidor, previstas no Decreto-Lei n.º 74-A/2017, nomeadamente a que concede ao consumidor o direito à retoma do contrato, ainda que já tenha sido extinto por resolução.
T. Em primeiro lugar e, corroborando a tese do tribunal a quo, a cessão de créditos não opera qualquer transformação ou modificação objetiva aos contratos de mútuo, pelo que não poderá torná-los contratos excluídos do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
U. Aliás, o mesmo, resulta do artigo 585.º do C. Civil, ao prever que o devedor pode opor ao cessionário todos os meios de defesa que poderia opor ao cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (à data da cessão, já poderia ser exercido o direito de retoma, pelo que, não se aplica).
V. Em último lugar, apesar de o Cedente/Exequente ter transmitido o seu crédito para uma sociedade que não tem a natureza de instituição de crédito, tal não obsta à retoma do contrato, desde que, naturalmente, se encontrem preenchidos os requisitos previstos para a efetiva da retoma do contrato, cfr. artigo 28.º do DL supra mencionado.
W. Pelo que, caso se encontrem preenchidos tais requisitos, o Cessionário, terá de retransmitir o crédito ao credor primitivo, por se tratar de uma instituição bancária/financeira, que exerce em exclusivo a atividade bancária/financeira.
X. O mesmo é dizer que, entre o direito á retoma previsto ao consumidor no diploma supra referida e o interesse do Cessionário, prevalece o direito à retoma do consumidor, dado o caráter imperativo desta norma.
Y. Termos em que, não prova a Recorrente, em que termos a Cedente ou Cessionária, aqui Recorrida, atuaram de forma fraudulenta, ao celebrarem a cessão de créditos de forma a contornar os direitos dos consumidores, previsto no citado diploma, no que respeita, ao seu direito de retoma contratual.
Z. Aliás, ficou provado, pela sentença recorrida, que todas as entidades que exerçam ou não a atividade bancária/financeira, ficam imperativamente vinculadas, a assegurar os direitos de proteção ao consumidor, mais concretamente, no que respeita à retoma do contrato, conforme decorre do disposto no Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
AA. Termos em que, não deverá ser dado provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida, nos seus exatos termos.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá, o Recurso, ser julgado improcedente, por não provado, concluindo-se pela improcedência de todas as suas conclusões e, em consequência, confirmar- se a sentença proferida pelo Tribunal a quo, assim se fazendo JUSTIÇA.»
II. Objeto do recurso.
1 - A primeira questão colocada pela recorrente no recurso consiste em saber se a ausência de registo por parte da sociedade cessionária, ou de constituição de uma representação permanente em Portugal, implica que a sociedade esteja a operar irregularmente em Portugal e que, por essa razão, careça de personalidade e capacidade judiciária para estar em juízo.
2 - Em segundo lugar, o recurso coloca a questão de saber se o facto da cessionária ser uma entidade não sujeita à supervisão de uma autoridade financeira, como o Banco de Portugal, ao contrário do que sucedia com o cedente Banco 1..., S.A., enfraquece as proteções conferidas ao devedor, nomeadamente o direito de retoma do contrato, conforme previsto no artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, sendo certo que este diploma estabelece um conjunto de normas imperativas que visam proteger o devedor em situações de crédito hipotecário, e a cessão para uma entidade que não é regulada pelas mesmas normas compromete a eficácia dessas proteções.
E se esta situação face ao disposto no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, que estabelece a nulidade das situações criadas com o intuito de evitar a aplicação das disposições deste diploma, se aplica ao caso dos autos, ou seja, ao caso da cessão de créditos para entidades que não estão sujeitas ao regime jurídico aplicável às instituições financeiras.
III. Fundamentação
b) 1. Matéria de facto – Factos provados
1. No dia 02/03/2022, o exequente Banco 1..., S.A. instaurou a ação executiva de que estes autos são apenso contra AA, CC e BB, com base em escrituras públicas de mútuo com hipoteca, para cobrança de um crédito global de 173.336,13 €.
2. No campo do requerimento executivo destinado à exposição de factos, o exequente alegou o seguinte:
No exercício da sua actividade, por título de COMPRA E VENDA, MÚTUO COM HIPOTECA E FIANÇA, celebrado em 24/05/2017, e documento complementar ao mesmo, o Banco exequente concedeu à mutuária AA um empréstimo no montante de €127.000,00 a que corresponde o n.º ...01, do qual se confessou devedora, a reembolsar em prestações mensais e sucessivas de capital e juros, estes contados à taxa atual de 3,916% acrescida da sobretaxa de 3% em caso de mora, conforme referido título que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; Em garantia deste empréstimo foi constituída fiança de BB e CC, e ainda hipoteca voluntária sobre a fração urbana "A" do prédio urbano descrito na ... CRP ... sob o n.º ...12, da freguesia ...,
Habilitação do adquirente ou cessionário encontrando-se a mesma devidamente registada pela inscrição AP. ...00 de 2017/05/24, conforme citado título e certidão de encargos que se junta.
No exercício da sua atividade, por título de MÚTUO COM HIPOTECA E FIANÇA, celebrado em 24/05/2017, e documento complementar ao mesmo, o Banco exequente concedeu à mutuária AA um empréstimo no montante de € 28.000,00 a que corresponde o n.º ...02, do qual se confessou devedora, a reembolsar em prestações mensais e sucessivas de capital e juros, estes contados à taxa atual de 3,916% acrescida da sobretaxa de 3% em caso de mora, conforme referido título que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; Em garantia deste empréstimo foi constituída fiança de BB e CC, e ainda hipoteca voluntária sobre a fração urbana "A" do prédio urbano descrito na ... CRP ... sob o n.º ...12, da freguesia ..., encontrando-se a mesma devidamente registada pela inscrição AP. ...01 de 2017/05/24, conforme citado título e certidão de encargos que se junta.
Sucede que, em 06/03/2020 e 06/12/2019 respetivamente, venceram-se as prestações de capital e juros dos empréstimos supra identificados, que não foram pagas naquela data, nem posteriormente, como não foram pagas as prestações que se venceram posteriormente, nem a conta DO se encontrava ou veio a encontrar habilitada para o efeito, pelo que o Banco interpelou os ora executados para cumprir no incumprido, mas sem sucesso, motivo porque não lhe restou outra solução senão considerar o crédito totalmente vencido;
Aliás, a falta de pagamento de uma prestação importa o vencimento de todas (art.º 781.º Código Civil);
Não sendo a quantia exequenda voluntariamente paga, a execução deverá prosseguir nos termos do art.º 752.º do Código Processo Civil com a penhora do prédio hipotecado, que a garante.
Nestes termos e nos mais de Direito, requer a citação dos ora executados - mutuária e fiadores – e bem assim o cumprimento dos ulteriores termos legais, tendo em vista a realização todas as diligências necessárias ao pagamento da quantia exequenda, acrescida dos juros que se vierem a vencer até efetivo e integral pagamento, à taxa de 3,916%, acrescida da sobretaxa de mora de 3%.
3. No dia 26/09/2023, no Cartório Notarial ..., foi lavrada uma escritura pública denominada de “cessão de créditos” e garantias, outorgada, entre os mais, entre a requerente, na qualidade de “compradora” e o requerido Banco 1..., S.A., na qualidade de “vendedor”.
4. Teor da escritura pública junta aos autos, celebrada no dia 26/09/2023, no Cartório Notarial ..., denominada de “cessão de créditos” e garantias, outorgada, entre a requerente, na qualidade de “compradora” e o requerido Banco 1..., S.A.
5. Do ponto 175 do documento complementar n.º 2 à escritura pública identificada em “3”, elaborado nos termos do art. 64.º, n.º 1 do Código do Notariado, consta, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, o seguinte:
Cedente: Banco 1..., S.A.
Fracção Autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão A, apartamento com um terraço exterior devidamente demarcado e um estacionamento com o n.º 2 no piso menos dois, destinado habitação, que faz parte do prédio urbano, denominado lote 10.12, Empreendimento in ..., situado na Quinta ..., freguesia ..., Concelho ....
Concelho: ...
Descrição: ...67 da freguesia ....
... Conservatória do Registo Predial ...
Artigo matricial urbano: ...39 da freguesia ...
Hipotecas registadas a favor do Banco 1..., S.A., que se transmitem:
Apresentação: ...00 de 2017/05/24
Apresentação: ...01 de 2015/05/24
Outros ónus ou encargos a favor do Banco 1..., S.A.:
Apresentação: ...96 de 2022/03/14 – Penhora a favor do Banco 1..., S.A.
6. Da listagem dos créditos cedidos que é parte integrante do documento
complementar referido em “5”, consta o seguinte: (…)
7. A operação de cessão de créditos identificada em “3” encontra-se inscrita no registo predial, sob AP. ...03 de 2024/02/22, relativamente à fracção designada pela letra "A" do prédio urbano descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...67, da freguesia ....
Mais estes:
Em 03 de dezembro de 2023 foi proferido, no processo principal, o seguinte despacho:
«Da suspensão dos prazos processuais
Por despacho proferido no dia 10/12/2022 concluiu-se que os prazos processuais em curso – concretamente para dedução de embargos de executado e de oposição à penhora – continuavam interrompidos ao abrigo do disposto no artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29.07.
No dia 14/2/2023 ingressou nos autos um ofício da Ordem dos Advogados, de acordo com o qual foi oficiosamente nomeada a Exma. Sr.ª Dr.ª DD para exercer o patrocínio da executada nos presentes autos.
Notificada da sobredita nomeação por ofício de 14/02/2023, a executada veio responder asseverando que não havia sido notificada de qualquer decisão de deferimento do seu pedido por parte da Segurança Social. Pelas mesmas razões, a Il. Advogada nomeada pugnou, entre o mais, pela manutenção da interrupção dos prazos processuais até à clarificação dos contornos da sua nomeação.
Assim, face às dúvidas suscitadas, foi proferido novo despacho, com data de 23/02/2023, que determinou se mantivesse a interrupção de prazos até à notificação à requerente da resposta que viesse a ser fornecida pelo Instituto da Segurança Social.
Através de ofício de 27/2/2023, o CDSS de Coimbra veio comunicar a decisão de revogação do despacho de indeferimento e a emissão de despacho de deferimento do pedido de apoio judiciário formulado pela executada, nas modalidades requeridas, entre as quais de nomeação e pagamento de compensação a patrono.
Sucedeu-se um encadeamento de pedidos de escusa dos patronos sucessivamente nomeados:
- No dia 2 de Março de 2023 a Exma. Sr.ª Dr.ª DD juntou aos autos comprovativo de pedido de escusa.
- No dia 29 de Março de 2023 foi nomeado o Exmo. Sr. Dr. EE, que juntou aos autos comprovativo de pedido de escusa no dia 24 de Abril de 2023;
- No dia 11 de Maio de 2023 foi nomeado o Exmo. Sr. Dr. FF, que juntou aos autos comprovativo de pedido de escusa no dia 2 de Junho de 2023;
- No dia 6 de Junho de 2023 foi nomeado o Exmo. Sr. Dr. GG, que apresentou requerimento no dia 3 de Novembro de 2023, no qual informa que pediu escusa, mas não juntou aos autos comprovativo do respectivo pedido.
Dispõe o art. 34.º, n.º 2 da Lei n.º 34/2004, de 29/07 que o pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção dos respectivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24.º.
Por conseguinte, mesmo que o prazo processual desencadeado com a nomeação do último patrono estivesse em curso na data em que apresentou o pedido de escusa (o que não é o caso, na medida em que a beneficiária teve conhecimento da nomeação, pelo menos, em 26/6/2023, conforme resulta da mensagem de correio electrónico dessa data, junta sob ref.ª 8478666), não tendo comprovado nos autos o pedido de escusa, nunca operaria o efeito interruptivo previsto na citada disposição legal.
De resto, em rigor, carece ainda de confirmação por parte da O.A. se a escusa foi aceite, de molde a que seja possibilitada a nomeação de novo patrono.
Tudo para concluir que está integralmente transcorrido o prazo para dedução de embargos de executado e de oposição à penhora.
Notifique.
Com cópia do requerimento apresentado pelo último Patrono, oficie à Ordem dos Advogados solicitando que proceda a nova nomeação oficiosa, facultando-se o endereço de correio electrónico da executada AA para notificação da nomeação que se venha a concretizar.»
Este despacho foi notificado no dia 04 de dezembro, no processo principal, ao Ex.mo mandatário da executada então nomeado no âmbito do apoio judiciário (Dr. GG).
2. Matéria de facto – Factos não provados
Não há.
c) Apreciação das questões objeto do recurso
1 – Vejamos se a ausência de registo por parte da sociedade cessionária, ou de constituição de uma representação permanente em Portugal, implica que a sociedade esteja a operar irregularmente em Portugal e que, por essa razão, careça de personalidade e capacidade judiciária para estar em juízo.
A resposta a esta questão é negativa, pelas seguintes razões:
O artigo 4.º (Sociedades com atividade em Portugal) do Código das Sociedades Comerciais DL n.º 262/86, de 02 de setembro tem a seguinte redação:
«1- A sociedade que não tenha a sede efectiva em Portugal, mas deseje exercer aqui a sua actividade por mais de um ano, deve instituir uma representação permanente e cumprir o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial.
2 - A sociedade que não cumpra o disposto no número anterior fica, apesar disso, obrigada pelos actos praticados em seu nome em Portugal e com ela respondem solidariamente as pessoas que os tenham praticado, bem como os gerentes ou administradores da sociedade.
3 - Não obstante o disposto no número anterior, o tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, ordenar que a sociedade que não dê cumprimento ao disposto no n.º 1 cesse a sua actividade no País e decretar a liquidação do património situado em Portugal.
4 - O disposto nos números anteriores não se aplica às sociedades que exerçam actividade em Portugal ao abrigo da liberdade de prestação de serviços conforme previsto na Directiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro.»
Nos considerandos da referida Directiva n.º 2006/123/CE, diz-se o seguinte:
«(1) A Comunidade Europeia pretende estabelecer laços cada vez mais estreitos entre os Estados e os povos europeus e garantir o progresso económico e social. Nos termos do n.o 2 do artigo 14.o do Tratado, o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação de serviços. Nos termos do artigo 43.° do Tratado, é assegurada a liberdade de estabelecimento. O artigo 49.° do Tratado estabelece o direito de prestar serviços na Comunidade. A eliminação dos entraves ao desenvolvimento das actividades de serviços entre Estados-Membros é essencial para reforçar a integração entre os povos europeus e para promover o progresso económico e social equilibrado e duradouro. Para que tais entraves sejam suprimidos, é essencial garantir que o desenvolvimento do sector dos serviços contribua para a concretização da missão definida no artigo 2.o do Tratado, ou seja, a promoção, em toda a Comunidade, de um desenvolvimento harmonioso, equilibrado e sustentável das actividades económicas, um elevado nível de emprego e de protecção social, a igualdade entre homens e mulheres, um crescimento sustentável e não inflacionista, um alto grau de competitividade e de convergência dos comportamentos das economias, um elevado nível de protecção e de melhoria da qualidade do ambiente, o aumento do nível e da qualidade de vida, a coesão económica e social e a solidariedade entre os Estados-Membros.»
No n.º 1 do artigo 1.º da Diretiva refere-se que «A presente directiva estabelece disposições gerais que facilitam o exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços, mantendo simultaneamente um elevado nível de qualidade dos serviços.»
E no artigo 2.º, n.º 2 elencam-se as atividades às quais não se aplica a Diretiva, ou seja:
«(…) 2 - . A presente directiva não se aplica às seguintes actividades:
a) Serviços de interesse geral sem carácter económico;
b) Serviços financeiros, como serviços bancários, de crédito, de seguros, de resseguros, de regimes de pensões profissionais ou individuais, de títulos, de investimento, de fundos, de pagamento e de consultoria de investimento, incluindo os serviços enumerados no Anexo I da Directiva 2006/48/CE;
c) Serviços e redes de comunicações electrónicas, bem como os recursos e serviços conexos, no que se refere às matérias regidas pelas Directivas 2002/19/CE, 2002/20/CE, 2002/21/CE, 2002/22/CE e 2002/58/CE;
d) Serviços no domínio dos transportes, incluindo os serviços portuários, abrangidos pelo âmbito do Título V do Tratado;
e) Serviços de agências de trabalho temporário;
f) Serviços de cuidados de saúde, prestados ou não no âmbito de uma estrutura de saúde, e independentemente do seu modo de organização e financiamento a nível nacional e do seu carácter público ou privado;
g) Serviços audiovisuais, incluindo serviços cinematográficos, independentemente do seu modo de produção, distribuição e transmissão, e a radiodifusão sonora;
h) Actividades de jogo a dinheiro que impliquem uma aposta com valor monetário em jogos de fortuna ou azar, incluindo lotarias, actividades de jogo em casinos e apostas;
i) Actividades relacionadas com o exercício da autoridade pública, como previsto no artigo 45.o do Tratado;
j) Serviços sociais no sector da habitação, da assistência à infância e serviços dispensados às famílias e às pessoas permanente ou temporariamente necessitadas, prestados pelo Estado, por prestadores mandatados pelo Estado ou por instituições de solidariedade social reconhecidas pelo Estado enquanto tais;
k) Serviços de segurança privada;
l) Serviços prestados por notários e oficiais de justiça, nomeados por acto oficial do Governo.»
A escritura de cessão de créditos foi realizada em 26 de setembro de 2023 e o pedido de habilitação de cessionário foi apresentado em 12 de dezembro de 2023.
Face ás norma acima transcritas verifica-se que não é estabelecida qualquer sanção que se reflita na falta de capacidade ou de personalidade para a sociedade estar em juízo em Portugal.
2 – Vejamos agora se o facto da cessionária ser uma entidade não sujeita à supervisão de uma autoridade financeira, no caso o Banco de Portugal, ao contrário do que sucedia com o cedente Banco 1..., S.A., enfraquece as proteções conferidas ao devedor, nomeadamente o direito de retoma do contrato, conforme previsto no artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 – Regime dos Contratos de Crédito Relativos a Imóveis –, sendo certo que este diploma estabelece um conjunto de normas imperativas que visam proteger o devedor em situações de crédito hipotecário, e a cessão para uma entidade que não é regulada pelas mesmas normas compromete a eficácia dessas proteções.
E se esta situação é causa de nulidade da cessão, face ao disposto no artigo 37.º deste diploma.
Vejamos então.
O DL n.º 74-A/2017 estabelece no artigo 28.º (Retoma do contrato de crédito), o seguinte:
«1- O consumidor tem direito à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação abrangidos pelo presente decreto-lei ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.
2 - Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.
3 - O mutuante apenas está obrigado a aceitar a retoma do contrato duas vezes durante a respetiva vigência.
Ou seja, em caso de resolução do contrato de crédito à habitação por parte do mutuante e subsequente execução, é possível, face a esta norma, «ressuscitar» o contrato, como se não tivesse existido a resolução do mesmo.
Verifica-se, pois, que a retoma do contrato é possível até se ter esgotado o prazo para a oposição à execução ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores desde que sejam pagas as quantias em dívida («… pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.» n.º 1 do artigo.
Por conseguinte, no caso dos autos o contrato, em abstrato ainda pode ser retomado.
Face ao que fica referido, não é indiferente para o devedor que o crédito seja cedido a uma entidade que não esteja submetida à supervisão do Banco de Portugal, como é o caso da ora cessionária.
Com efeito, a cessão de um crédito à habitação, efetuada para uma entidade que não é uma entidade financeira, nos termos previstos no DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), coloca a ora cessionária fora do alcance da supervisão do Banco de Portugal no que tange à execução do contrato de crédito à habitação, como é o caso do contrato que está na origem desta execução.
Nos termos do n.º 1, do artigo 116.º desta lei, no desempenho das suas funções de supervisão, compete em especial ao Banco de Portugal «b) Vigiar pela observância das normas que disciplinam a atividade das instituições de crédito (…); c) Emitir determinações específicas dirigidas a pessoas coletivas ou singulares, designadamente para que adotem um determinado comportamento, cessem determinada conduta ou se abstenham de a repetir ou para que sejam sanadas as irregularidades detetadas; (…); g) Sancionar as infrações.»
Verifica-se, pois, que não é indiferente, como se vem referindo, para a posição jurídica dos executados, que o crédito esteja na titularidade da exequente primitiva ou da cessionária.
Pode, pois, concluir-se que o facto da cessionária ser uma entidade não sujeita à supervisão do Banco de Portugal, ao contrário do que sucedia com o cedente Banco 1..., S.A., enfraquece as proteções conferidas ao executado, nomeadamente o direito de retoma do contrato, conforme previsto no artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
O que fica dito tem relevância face ao disposto no artigo 37.º (Fraude à lei) do DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho, o qual tem a seguinte redação:
«1. São nulas as situações criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicação do disposto no presente decreto-lei.
2 - Configuram, nomeadamente, casos de fraude à lei:
a) A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo;
b) A escolha da legislação de um país terceiro aplicável ao contrato de crédito, se esse contrato apresentar uma relação estreita com o território português ou de um outro Estado-Membro da União Europeia.»
Face ao já referido, a cessão implica a exclusão da supervisão do Banco de Portugal do quadro contratual previsto no DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho.
Por isso, esta situação enquadra-se na al. a), do n.º 2, do artigo em questão: «A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo.»
Esta exclusão não é total, na medida em que, como refere Sandra Passinhas, «O devedor continua adstrito exatamente à mesma prestação a que se vinculou perante o cedente, resultante de um contrato de crédito à habitação, cuja qualificação como contrato de consumo é determinada no momento da celebração do contrato, cristalizando, e importando a sua sujeição a um determinado regime legal imperativo, no caso, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017. Como estabelece o artigo 585.º do Código Civil, o debitor cessus pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão. Resulta do regime geral que a cessão não pode colocar o devedor em pior situação do que aquela em que ele anteriormente se encontrava, mas a estatuição é reiterada e reforçada pelo carácter imperativo das garantias do consumidor, como resulta expresso, em especial, dos artigos 35.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017.» - www.revistadedireitocomercial.com 2021-01-12, pág. 107-108.
Embora não seja uma exclusão total, existe uma exclusão porque afasta a supervisão do Banco de Portugal.
E, como exclusão que é, inclui-se na referida alínea, situação que gera a nulidade da cessão, porquanto a cessão só é possível depois de esgotada a possibilidade de retoma do contrato, é dizer, só é viável após a venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos.
Nessa altura, a resolução do contrato já não pode retroceder e, a partir daí, é indiferente que a entidade cessionária se encontre ou não submetida à supervisão do Banco de Portugal.
O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido da nulidade, no acórdão proferido em 29 de outubro de 2024, no processo n.º 5920/22.9T8MAI-A.P1.S1, com este sumário:
«Numa execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do DL. 74-A/2017, é nula a cessão de crédito que fundamenta o direito do exequente por este não estar em condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o art.º 28.º do DL 74-A/2017, quando ainda é possível o exercício deste direito, e o mesmo pressupõe a qualidade de instituição de crédito, que o exequente não tem.» - em www.dgsi.pt.
Procede, pois o recurso, cumprindo revogar a decisão recorrida, julgando nula a cessão do crédito acima identificada e improcedente o pedido de habilitação formulado pela cessionária.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente. Declara-se nula a cessão do crédito e improcedente o pedido de habilitação.
Custas pela Recorrente.
Coimbra, …